Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6127/10.3TBVFR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVEDOR
CONDUTA DOLOSA
Nº do Documento: RP202007146127/10.3TBVFR.P2
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, através do qual se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de, por essa via, se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores.
II - A excepcionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores e ao cumprimento pontual das injunções impostas no despacho inicial a que alude o artigo 239º do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas.
III - Nesse contexto, a cessão temporária do rendimento disponível durante todo o período da cessão é uma condição da exoneração do passivo restante e representa, no equilíbrio dos interesses em presença, o esforço mínimo que a lei exige ao devedor para legitimar aos olhos dos credores a libertação definitiva quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
IV - O decurso do prazo de um ano (a que se alude no nº 2 do artigo 243º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) sobre o conhecimento ou cognoscibilidade de factos susceptíveis de integrar a previsão normativa de alguma das alíneas do nº 1 do mesmo normativo tem tão-somente como consequência a inviabilidade de o legitimado requerer, com base nesses factos, a cessação antecipada do procedimento de exoneração, não resultando daí qualquer causa (substantiva) de inexigibilidade do cumprimento da obrigação inobservada no período em causa.
V - A recusa da exoneração do passivo restante com fundamento na violação pelo insolvente, durante o período da cessão, de qualquer obrigação a que esteja vinculado, exige, cumulativamente, uma conduta dolosa ou gravemente negligente desse devedor, um prejuízo para satisfação dos credores da insolvência e bem assim um nexo causal entre aquela conduta e esse dano.
VI - Verificam-se os referidos requisitos se o insolvente, durante todo o período da cessão, não entregou, sem justificação, a totalidade do seu rendimento disponível ao fiduciário, repercutindo-se esse inadimplemento diretamente nos valores a entregar aos credores e consequentemente na medida do seu ressarcimento, nisso se traduzindo o prejuízo por estes sofrido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6127/10.3TBVFR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis – Juízo de Comércio, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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SUMÁRIO
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I- RELATÓRIO
B… e esposa C… (entretanto falecida) vieram apresentar-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante.
Em 7 de março de 2011 foi prolatada sentença que declarou a insolvência dos requerentes, vindo a ser proferido, em 25 de maio desse mesmo ano, despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se fixou a título de rendimento indisponível o equivalente a três salários mínimos nacionais.
Encerrada a fase da liquidação em 27 de fevereiro de 2014, foi prolatado despacho de encerramento do processo para efeitos de cessão do rendimento disponível, tendo-se considerado (por decisão já transitada em julgado) que, nessa data, teve início o período de cessão, durante o qual os insolventes cederiam para a massa todos e quaisquer quantias que ultrapassassem o montante correspondente a três salários mínimos nacionais.
Findo o período de cessão, veio o administrador da insolvência apresentar o seu parecer final, sustentando que a exoneração do passivo restante só deveria ser concedida ao devedor acaso este procedesse ao pagamento dos montantes que durante os cinco anos da cessão não entregou e que totalizam 32.848,61€.
Também os credores se pronunciaram no mesmo sentido.
O devedor/insolvente, defendendo que não lhe é exigível que entregue tal montante, pugnou pela concessão da exoneração do passivo restante.
Foi então proferida decisão que recusou a exoneração do passivo restante.
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Não se conformando com o assim decidido, interpôs o insolvente o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência:
A) Ser revogada a decisão recorrida por outra que conceda a exoneração final à recorrente, por verificação dos pressupostos de que a mesma depende, nos termos do artigo 244.º do CIRE;
B) Subsidiariamente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida, por inexigibilidade, a extinção da obrigação de cessão do rendimento disponível relativamente ao primeiro, segundo, terceiro e quarto anos, uma vez que relativamente ao qual não foi apresentado qualquer requerimento a que alude o n.º 2 do art. 243.º do cire e conceder ao recorrente a possibilidade de entregar o valor do quinto ano, designadamente por um plano prestacional;
C) Ainda, subsidiariamente, ser declarada nula a decisão recorrida nos termos alegados e concluídos, com todas as legais consequências.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil ex vi do art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações, são as seguintes as questões solvendas:
das nulidades da decisão recorrida;
se estão (ou não) reunidos os pressupostos para a concessão da exoneração do passivo restante.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância, com relevo para a decisão do presente recurso, consideraram-se provados os seguintes factos:
1 - Por decisão proferida em 02/06/2011, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante e determinado que os devedores necessitavam do rendimento equivalente a três salários mínimos nacionais para sobreviverem condignamente, devendo ceder ao Exmo. Fiduciário o rendimento que ultrapassasse tal montante.
2 - A liquidação do activo foi declarada encerrada no dia 27/02/2014 e, por despachos proferidos a 22/06/2015 e 06/10/2015 determinou-se e esclareceu-se que o período da cessão se deveria ter por iniciado em Março de 2014.
3 - No primeiro ano da cessão – Março de 2014 a Fevereiro de 2015 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 16.748,51€, mas os devedores só entregaram 7.865,00€;
4 - No segundo ano da cessão – Março de 2015 a Fevereiro de 2016 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 16.684,91€, mas os devedores só entregaram 8.580,00€;
5 - No terceiro ano da cessão – Março de 2016 a Fevereiro de 2017 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 13.065,68€ (a devedora faleceu em Junho de 2016), mas os devedores só entregaram 8.580,00€;
6 - No quarto ano da cessão – Março de 2017 a Fevereiro de 2018 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 15.031,71€, mas o devedor só entregou 8.580,00€;
7 - No quinto ano da cessão – Março de 2018 a Fevereiro de 2019 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 12.787,80€, mas o devedor só entregou 7.865,00€;
8 - A partir do momento em que a devedora faleceu, o rendimento indisponível foi considerado em 1,5 salários mínimos nacionais (metade do que havia sido fixado para o casal).
9 - Entre 16 de Junho de 2011 e até Março de 2014 o devedor entregou ao AI o montante mensal de 715,00€, num total de 24.310,00€, quantia que foi atendida em sede de prestação de contas e rateada pelos credores;
10 - Por acórdão do TRP datado de 26/02/2019 e que confirmou a decisão deste Tribunal, foi decidido que os montantes referidos em 9 foram cedidos durante a fase de liquidação de bens e não poderiam ser considerados rendimento cedido em sede de exoneração.
11 - Os devedores, mesmo durante o período da cessão, e independentemente do rendimento auferido, sempre e só entregaram ao Exmo. Fiduciário o montante mensal de 715,00€.
12 - Por referência ao período da cessão foram apresentadas, pelo Exmo. Fiduciário, as seguintes informações anuais:
 No dia 07/12/2015, a informação relativa ao primeiro ano de cessão e na qual informou que todo o rendimento disponível apurado havia sido cedido;
 No dia 08/02/2017, a informação relativa ao segundo ano de cessão e na qual informou que todo o rendimento disponível apurado havia sido cedido;
 No dia 27/04/2018, a informação rectificada relativa ao primeiro ano de cessão e na qual informou o referido em 3.
 No dia 02/05/2018, a informação rectificada relativa ao segundo ano de cessão e na qual informou o referido em 4.
 No dia 03/05/2018, a informação relativa ao terceiro ano de cessão e na qual informou o referido em 5.
 No dia 04/05/2018, a informação relativa ao quarto ano de cessão e na qual informou o referido em 6.
 No dia 11/03/2019, a informação relativa ao quinto ano de cessão e na qual informou o referido em 7.
13 – Nunca foi requerida a cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1. Das nulidades da decisão recorrida
Nas suas alegações recursórias o apelante advoga, ainda que a título subsidiário, que o ato decisório sob censura enferma de diversas nulidades, que reconduz à previsão das alíneas b) e d) do nº 1 do art. 615º do Cód. Processo Civil, sustentando esses vícios no facto de o Tribunal a quo:
i ) não ter especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
ii) não ter declarado que o recorrente só devia os valores correspondentes ao último ano do período da cessão;
iii) consequentemente, por não decidir que o valor correspondente ao quinto ano do período de cessão se revela exíguo face ao valor já cedido;
iv) por não decidir, consequente e subsidiariamente, em que termos é que a reposição do valor do quinto ano do período de cessão se fará;
v) por tal decisão não ser dotada de uma análise crítica e correta, ou seja, não estar fundamentada, sobre o alcance e valor da integralidade da factualidade que compõe os autos, nomeadamente, sobre a conduta dolosa e o estabelecimento do nexo de causalidade e o consequente prejuízo dos credores;
vi) por não ter considerado o prazo de cinco anos do período como um prazo de caducidade.
Que dizer?
Como é consabido, as nulidades da sentença são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites[1].
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites“ considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do citado art. 615º, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia.
ANTUNES VARELA et alii [2] no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art. 668º Cód. Processo Civil [atual art. 615º do CPC], advertiam que: “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.
Começando pelo primeiro dos vícios assacados ao ato decisório sob censura, o recorrente sustenta que nele não se especificaram os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Tal afirmação corresponde à transcrição do texto legal vertido na al. b) do nº 1 do citado art. 615º, onde se preceitua que “[a] sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Isto dito, afigura-se-nos, desde logo, existir por parte do apelante alguma confusão conceptual no vício que assaca ao ato decisório recorrido.
Com efeito, uma coisa é a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, outra coisa é nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando plasmado no nº 3 do art. 607.º do Cód. Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 615º. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade[3].
Ora, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se mister que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[4], coisa que, manifestamente não ocorre in casu, pois que o juiz a quo, como o evidencia a decisão recorrida, aí discriminou os factos que resultaram provados, como também especificou os fundamentos de direito que estiveram na base da decisão e que culminou com a prolação de um despacho final de recusa de exoneração do passivo restante com fundamento nos arts. 239º, nº 4, al. c), 243º, nº 1 al. a) e 244º, nº 2, todos do CIRE.
Consequentemente o ato decisório recorrido não pode ser havido por não motivado no sentido supra considerado, não incorrendo, pois, no vício de falta de fundamentação.
Idêntica conclusão se impõe relativamente aos demais vícios que o apelante imputa à decisão, vícios esses que, desta feita, reconduz à previsão da regra enunciada na al. d) do nº 1 do art. 615º.
O citado preceito legal prevê, com efeito, a nulidade da sentença quando o juiz não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento.
A referida consequência anulatória encontra-se, assim, especialmente conexionada com o disposto no nº 2 do art. 608º do Cód. Processo Civil, posto que é neste normativo que se mostram definidas quais as questões que o tribunal deve apreciar e quais aquelas cujo conhecimento lhe está vedado. Aí se postula expressamente que, na sentença, o juiz “[d]eve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Portanto, a assinalada nulidade visa, pelo menos em parte, sancionar a inobservância, por banda do Tribunal do princípio do dispositivo, na vertente em que este limita o conhecimento do juiz às questões que foram suscitadas pelas partes, impondo, por via de regra, que o tribunal conheça das questões suscitadas pelas partes e apenas conheça dessas mesmas questões.
A respeito do conceito questões que devesse apreciar, ANSELMO DE CASTRO[5] advoga que tal expressão deve «ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
LEBRE DE FREITAS et alii[6] têm a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois consideram que devendo “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”.
Ainda sobre esta temática mostra plena atualidade a lição de ALBERTO DOS REIS[7] para quem resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.
Na esteira de tal visão das coisas e atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Como assim, também neste conspecto, não se vislumbra a ocorrência, in casu, dos apontados vícios formais, sendo que, ao invés do que advoga o recorrente, na decisão sob censura houve expressa pronúncia sobre as questões (rectius, argumentos) que apresentara no sentido de que apenas seriam devidos, a título de rendimento disponível, os valores correspondentes ao último ano do período da cessão (ou seja, março de 2018 a fevereiro de 2019) - por, na sua perspectiva, se ter registado uma situação de inexigibilidade dessa entrega relativamente a valores referentes aos quatro anos anteriores, por operância de uma causa de caducidade do respectivo direito -, tendo, então, o decisor de 1ª instância concluindo pela inexistência de qualquer causa justificativa desse inadimplemento, sendo certo que, como se referiu, o tribunal não está vinculado à interpretação jurídica defendida pelas partes e também não tem que atender a todos os argumentos apresentados, sobretudo quando não têm sustentação nos factos apurados. Situações destas não revestem natureza de nulidade, configurando, quando muito, erro de julgamento.
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não padece dos vícios apontados.
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IV.2. Da recusa de exoneração
Nas restantes conclusões recursivas, o apelante rebela-se contra a decisão recorrida, na qual se decidiu, uma vez concluído o período da cessão, não se conceder a exoneração do passivo restante.
Que dizer?
Como é consabido, a exoneração do passivo restante constitui um benefício concedido ao devedor pessoa singular[8] declarado insolvente, cujo regime consta dos arts. 235º a 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[9].
Dispõe, com efeito, o art. 235º que “[s]e o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
A lei permite, assim, que o insolvente obtenha a exoneração dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (arts. 235º e 236º), de modo a poder reiniciar a sua vida económica livre das dívidas contraídas.
Este incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo[10] e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente, constituindo, pois, a exoneração uma causa de extinção das obrigações – extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. arts. 837º a 873º).
No entanto, como este resultado é conseguido à custa dos credores, importa seguir com especial atenção a lisura do comportamento do devedor e a sua boa-fé, visto que a medida em causa, gravosa quanto àqueles, só se compreende à luz da ideia de que o insolvente deseja orientar a sua vida de modo a não se envolver de novo em situação geradora de incapacidade de satisfazer pontualmente os seus débitos.
Neste contexto, a atribuição do benefício depende da verificação de um conjunto de requisitos de natureza processual e substantiva que, como refere CARVALHO FERNANDES[11], “são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém”.
Portanto, a exoneração efetiva não decorre imediatamente da liquidação da massa insolvente, implicando outrossim que o devedor deve passar por uma espécie de período de prova (que alguns denominam de período experimental), durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo esse período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício.
Este ponto é tanto mais significativo quanto é certo que na pendência do período de cessão são impostas ao devedor severas obrigações e um comportamento correto, cuja inobservância impede a efetiva exoneração (arts. 243º e 244º), sem prejuízo da afetação, já feita, dos seus rendimentos.
De acordo com o seu desenho legal, o procedimento em causa desenvolve-se fundamentalmente em duas fases: uma primeira fase que, caso não ocorra qualquer causa de indeferimento liminar do pedido formulado pelo devedor, é desencadeada pela prolação do despacho inicial (cfr. art. 239º), que determina que este fica obrigado, designadamente, à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período de cessão[12], ou seja, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo; uma segunda fase que, decorrido o período da cessão (e não haja lugar à cessação antecipada do procedimento nos termos definidos no art. 243º), culmina com a decisão final prevista no art. 244º[13].
No caso vertente, o juiz a quo proferiu despacho (final) de recusa da concessão do benefício, por entender que o insolvente violou os deveres que lhe foram impostos no despacho inicial, maxime o dever de entregar a totalidade do rendimento disponível durante o período da cessão.
O apelante insurge-se contra esse segmento decisório, sendo que, perante a delimitação do objecto do recurso operada nas conclusões recursivas, a questão a apreciar traduz-se em saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos para recusar a exoneração, havendo, assim, que centrar a nossa análise na interpretação dos requisitos estabelecidos no art. 243º, nº 1, al. a) (aplicável, com as necessárias adaptações, ao aludido despacho final por expressa remissão do nº 2 do art. 244º), por ser esse o fundamento da recusa.
Resulta do citado preceito legal constituir motivo de recusa o facto de o devedor, durante o período da cessão, ter “[d]olosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.
Portanto, como deflui do transcrito inciso, nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração releva como causa de recusa do benefício: a lei é terminante em exigir, por um lado, que se trate de um prevaricação dolosa ou com negligência grave e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, a satisfação dos credores da insolvência.
No que tange ao primeiro dos enunciados requisitos considera-se que o insolvente atua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta.
No que respeita à negligência, exige-se a grave negligência, ou seja, uma atuação com elevado grau de imprudência, intolerável e anormal, merecedora de um especial grau de reprovação.
Exige-se outrossim que a violação, com dolo ou grave negligência, da obrigação que vincula o insolvente provoque um concreto resultado: a afectação da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
E para este efeito, ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração em que é necessário um prejuízo relevante (cfr. art. 246 nº 1, in fine), é aqui suficiente um qualquer prejuízo, bastando para preencher a previsão da norma que se deva concluir que o interesse dos credores na satisfação (ainda que parcial) dos seus créditos através da afetação dos rendimentos disponíveis do devedor a essa finalidade, tenha sido afetado em termos que não sejam de considerar irrisórios[14].
Para além desses requisitos, vem-se considerando a necessidade de ocorrência um pressuposto adicional, qual seja a existência de um nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos[15].
Feitos estes considerandos e descendo ao caso concreto, resulta do substrato factual apurado (que não foi alvo de válida impugnação em sede recursória) que:
no primeiro ano da cessão – março de 2014 a fevereiro de 2015 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 16.748,51€, mas os devedores só entregaram 7.865,00€;
no segundo ano da cessão – março de 2015 a fevereiro de 2016 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 16.684,91€, mas os devedores só entregaram 8.580,00€;
no terceiro ano da cessão – março de 2016 a fevereiro de 2017 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 13.065,68€, mas os devedores só entregaram 8.580,00€[16];
no quarto ano da cessão – março de 2017 a fevereiro de 2018 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 15.031,71€, mas o devedor só entregou 8.580,00€;
no quinto ano da cessão – março de 2018 a fevereiro de 2019 – foi apurado rendimento disponível no montante global de 12.787,80€, mas o devedor só entregou 7.865,00€.
Perante a descrita materialidade, resulta claro que não foi cumprida a obrigação estabelecida na al. c) do nº 4 do art. 239º, na medida em que foram entregues ao fiduciário quantitativos inferiores ao rendimento disponível auferido durante o período da cessão.
O apelante considera, contudo, que, malgrado o apontado inadimplemento, não pode afirmar-se a verificação dos requisitos necessários para a prolação de despacho final de recusa, esgrimindo, para tanto, os seguintes argumentos: i) desde 2011 a 2019 entregaram mensalmente a quantia de €715,00, montantes esses que, na sua totalidade, devem ser considerados para efeito de cumprimento do dever de cessão do rendimento disponível; ii) o fiduciário não entregou os relatórios anuais no período legalmente exigível; iii) os credores não requereram a cessação antecipada dentro do prazo consignado no nº 3 do art. 243º, pelo que caducou o direito de exigir o pagamento referente aos 1º, 2º, 3º e 4º anos do período de cessão.
Quid juris?
Começando pelo primeiro dos argumentos aduzidos, é facto que, como resulta dos autos, entre junho de 2011 e março de 2014 (data do início do período de cessão) os insolventes entregaram mensalmente a quantia de €715,00, montante que o casal (e, após o óbito da esposa, apenas o insolvente) continuou a liquidar até fevereiro de 2019.
No entanto, contrariamente ao que sustenta, as entregas realizadas até ao final do mês de fevereiro de 2014 não podem ser levadas em consideração como cumprimento (parcial) da obrigação de cessão do rendimento disponível, sendo que sobre essa matéria já houve um anterior pronunciamento jurisdicional, tendo este Tribunal da Relação (em acórdão datado de 26 de fevereiro de 2019) decidido que as importâncias em causa foram entregues ao administrador da insolvência (não como fiduciário) no âmbito da apreensão dos bens e não enquanto cessão de rendimentos.
Assim, considerando que o aludido aresto transitou em julgado, segue-se, pois, que, relativamente a essa concreta questão, formou-se caso julgado para efeitos endoprocessuais, tornando-se, por isso, imodificável no presente processo.
Sustenta ainda o apelante que o fiduciário não cumpriu o dever (legal) de apresentação anual dos relatórios, sendo que os que apresentou para os períodos de 2014-2015 e 2015-2016 vieram a ser corrigidos já no ano de 2018.
Na decorrência dessas afirmações, pretende extrair uma causa justificativa do seu (confessado) incumprimento de entrega da totalidade das importâncias que nos anos de 2014 a 2016 auferiu para além do rendimento indisponível fixado.
Vejamos, antes de mais, o que adrede resultou demonstrado.
Assim, em conformidade com o ponto nº 12 dos factos provados, por referência ao período da cessão foram apresentadas, pelo fiduciário, as seguintes informações anuais:
No dia 07/12/2015, a informação relativa ao primeiro ano de cessão [março de 2014 a fevereiro de 2015] e na qual informou que todo o rendimento disponível apurado havia sido cedido;
No dia 08/02/2017, a informação relativa ao segundo ano de cessão [março de 2015 a fevereiro de 2016] e na qual informou que todo o rendimento disponível apurado havia sido cedido;
No dia 27/04/2018, a informação rectificada relativa ao primeiro ano de cessão e na qual informou [que, afinal, o rendimento disponível se cifrou no montante global de €16.748,51, mas os devedores só entregaram €7.865,00];
No dia 02/05/2018, a informação rectificada relativa ao segundo ano de cessão e na qual informou [que, afinal, o rendimento disponível ascendeu ao montante de €16.684,91, mas os devedores só entregaram €8.580,00];
No dia 03/05/2018, a informação relativa ao terceiro ano de cessão [março de 2016 a fevereiro de 2017] e na qual informou [que o rendimento disponível se cifrou no montante global de €13.065,68, mas os devedores só entregaram €8.580,00];
No dia 04/05/2018, a informação relativa ao quarto ano de cessão [março de 2017 a fevereiro de 2018] e na qual informou [que o rendimento disponível ascendeu ao montante global de €15.031,71, mas o devedor só entregou €8.580,00];
No dia 11/03/2019, a informação relativa ao quinto ano de cessão [março de 2018 a fevereiro de 2019] e na qual informou [que o rendimento disponível se cifrou no montante global de €12.787,80, mas o devedor só entregou €7.865,00].
É facto que, em conformidade com o que se dispõe no art. 240º, nº 2, o fiduciário deve, anualmente, a contar da sua nomeação, prestar informação sucinta sobre os rendimentos cedidos e o estado dos pagamentos por ele feitos, informação essa que deve ser enviada ao juiz e a cada um dos credores da insolvência.
Ora, ao invés do que sustenta o apelante, o fiduciário remeteu, ainda que com atraso, informação referente a todos os anos do período da cessão. E se é certo que o mesmo veio a corrigir posteriormente a informação que fizera verter nos relatórios apresentados para os períodos de 2014-2015 e 2015-2016, menos certo não é que o apelante não põe sequer em crise que essa rectificação não esteja correta, aceitando, pois, terem sido entregues, nos períodos em causa, montantes inferiores ao correspondente rendimento disponível.
Como assim, não se vislumbra em que medida se possa extrair do atraso registado na apresentação das informações e na incorreção verificada no apuramento dos rendimentos disponíveis referentes aos períodos de 2014-2015 e 2015-2016 uma qualquer causa que desonere o devedor do cumprimento da obrigação estabelecida no art. 239º, nº 4 al. c), tanto mais que foi oportunamente notificado do despacho inicial no qual se fixou o rendimento disponível (conformando-se com o valor aí estipulado, dado que não interpôs recurso desse segmento decisório), sendo certo igualmente que o insolvente, melhor do que ninguém, é que sabe, em cada momento, qual o rendimento disponível que auferiu e que deveria entregar ao fiduciário. Aliás, neste conspecto, não será despiciendo sublinhar que, como deflui dos autos, desde, pelo menos, janeiro de 2016 o fiduciário fizera saber ao mandatário do apelante que o montante que vinha sendo entregue mensalmente não correspondia ao rendimento disponível.
Significa isto que, contrariamente ao que o apelante preconiza, o que releva para efeito de concessão da exoneração do passivo restante não é saber se os relatórios anuais foram ou não tempestiva e correctamente apresentados pelo fiduciário[17], mas antes se, no período da cessão, o insolvente cumpriu as injunções que lhe foram impostas no despacho inicial.
Resta, assim, apreciar o último argumento que o recorrente apresenta no sentido de justificar a inexistência de fundamento para a não concessão da exoneração, qual seja o facto de, na sua perspectiva, ter ocorrido a caducidade do direito prevista no nº 2 do art. 243º, já que, relativamente à ausência de entrega da totalidade do rendimento disponível referente aos anos de 2014 a 2018, nem os credores nem o fiduciário requereram a cessação antecipada do procedimento de exoneração dentro do ano seguinte à data em que tiveram ou poderiam ter tido conhecimento dessa omissão de entrega.
Dispõe o citado preceito legal que “o requerimento [a solicitar a cessação antecipada] apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova”.
A transcrita disposição normativa integra-se no procedimento que permite a qualquer um dos credores, ao administrador da insolvência (se estiver ainda em funções) ou ao fiduciário (caso tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor) requerer, ainda antes de terminado o período da cessão, a cessação antecipada da exoneração do passivo restante nas situações tipicamente previstas nas als. a) a c) do nº 1 do mesmo artigo.
Questão que, então, se coloca é a de saber se – como defende o apelante – a circunstância de nenhuma das pessoas para tanto legitimadas ter requerido, dentro do aludido prazo, a cessação antecipada com fundamento na não entrega da totalidade do rendimento disponível referente ao período compreendido entre março de 2014 e fevereiro de 2018, implica a caducidade do direito de ser exigida a entrega dos montantes em falta, não podendo, outrossim, essa omissão ser relevada negativamente aquando da prolação da decisão final da exoneração.
Com o devido respeito, não se nos afigura que possa sufragar-se tal entendimento.
Com efeito, na economia do preceito, o decurso do prazo[18] de um ano sobre o conhecimento (ou cognoscibilidade) de factos susceptíveis de integrar a previsão normativa de alguma das referidas alíneas do nº 1 do art. 243º tem tão-somente como consequência a inviabilidade de o legitimado requerer, com base nesses factos, a cessação antecipada do procedimento de exoneração, não resultando daí qualquer causa (substantiva) de inexigibilidade do cumprimento da obrigação inobservada no período em causa, ou seja, no que ao caso importa, isso não significa que o devedor fique definitivamente desonerado do dever de entrega do rendimento disponível que nesse período temporal não entregou ao fiduciário. O dever de entrega subsiste durante todo o período da cessão (cfr. arts. 237º, al. d) e 239º, nºs 2 e 4) não podendo, pois, ver-se no facto de os credores e/ou o fiduciário não requererem a cessação antecipada qualquer causa legítima de justificação de não entrega do rendimento disponível em falta ou sequer de limitação dos montantes que a esse título deverão ser entregues ao fiduciário.
De contrário, sairia desvirtuada a finalidade do despacho final de exoneração a que se alude no art. 244º.
Na verdade, como já anteriormente se sublinhou, é no termo do período da cessão que o juiz (que, note-se, não pode oficiosamente recusar antecipadamente a exoneração - exceção feita à hipótese contemplada no nº 4 do art. 243º, isto é, no caso de estarem integralmente satisfeitos todos os créditos da insolvência ainda antes do decurso do prazo de cinco anos) irá ponderar, na presença dos elementos factuais disponíveis, se o devedor/insolvente é merecedor da concessão desse benefício por ter revelado, durante todo esse período, um comportamento demonstrativo de boa-fé, mormente cumprido diligentemente as obrigações que lhe foram impostas no despacho inicial. Dito de outro modo: o momento adequado para avaliar, concreta e definitivamente, se o insolvente é ou não merecedor do benefício excepcional em causa, é o momento da prolação da decisão final, pois só então se terão os elementos suficientes para avaliar da sua boa-fé, diligência e propósitos de vida futura.
Registe-se, aliás, que o aludido prazo quinquenal assume natureza de prazo fixo - não dependente, pois, do prudente arbítrio do julgador -, tendo sido estabelecido em benefício dos credores, por se considerar ser esse um período adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos, sendo de ressaltar que a própria lei (art. 239º, nº 5) faz prevalecer a cessão do rendimento disponível “sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor”.
Nesse contexto, a cessão temporária do rendimento disponível durante todo esse período é uma condição da exoneração do passivo restante e representa, no equilíbrio dos interesses em presença, o esforço mínimo que a lei exige ao devedor para legitimar aos olhos dos credores a libertação definitiva quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, permitindo-lhe um novo arranque em termos económicos.
A tudo acresce que a exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de excepção, pois que por via do mesmo se confere ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores. Daí que essa excepcionalidade exige que a sua concessão só possa ser concedida ao devedor que durante todo o período da cessão tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adoptado, à ponderação e protecção dos interesses dos credores, e ao integral cumprimento dos deveres para ele emergentes do art. 239º e fixados no despacho inicial.
Ora, face ao comportamento do apelante a que supra se aludiu, traduzido num comportamento de não entrega da totalidade do rendimento disponível durante todo o período da cessão, em claro prejuízo dos credores, não pode deixar de se considerar que se colocou à margem dessa situação de excepcionalidade com base exclusiva na qual poderia reconhecer-se-lhe a faculdade de se exonerar do passivo restante.
Os argumentos em que estruturou o seu recurso não podem, pois, ser atendidos, havendo de concluir pelo carácter, pelo menos, gravemente negligente da sua conduta no que especialmente tange à obrigação de entrega do rendimento disponível a que estava vinculado.
Na verdade, de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, julga-se irrecusável que não podia razoavelmente ignorar a sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível, sendo patente e ostensiva a inobservância dessa obrigação porquanto desde o início do período da cessão nunca entregou ao fiduciário a totalidade desse rendimento sem que tenha apresentado qualquer justificação válida para o efeito, sendo que, como se referiu, melhor do que ninguém, seria ele quem, em cada momento, sabia qual o concreto quantum que deveria entregar.
Acresce que também não se pode deixar de concluir que a violação (reiterada) daquela obrigação prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência, já que a não entrega do rendimento em falta (€32.848,61) privou os credores de poderem receber parte do montante dos seus créditos, inexistindo razão válida que legitime a impetrada extensão do aludido prazo (fixo) quinquenal.
A violação dos deveres repercute-se diretamente nos valores a entregar aos credores e consequentemente na medida do seu ressarcimento e nisso se traduz o prejuízo sofrido pelos credores, sendo que essa realidade revela indubitavelmente a verificação do apontado nexo causal entre a violação das obrigações impostas e esse prejuízo.
Flui de quanto vem de referir-se que nenhuma censura merece a decisão recorrida ao concluir pela recusa da exoneração do passivo restante.
***
IV- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente (arts. 303º e 304º).

Porto, 14.07.2020
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
__________________
[1] Cfr., sobre a questão e por todos, CASTRO MENDES, in Direito Processual Civil, vol. III, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, págs. 297 e seguintes.
[2] In Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 686.
[3] Cfr., por todos, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 220 e seguinte, LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 297 e RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 194.
[4] Assim ANTUNES VARELA et alii, ob. citada, pág. 670.
[5] In Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 142.
[6] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 704.
[7] In Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143. No mesmo sentido militam ainda ANTUNES VARELA et alii, ob. citada, pág. 688.
[8] Não se distinguindo, para este efeito, entre o titular e o não titular de empresa.
[9] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[10] Registando, contudo, que não são afetadas pela exoneração as dívidas de alimentos, as resultantes de responsabilidade civil por facto ilícito doloso, de responsabilidade criminal e contraordenacional e as dívidas tributárias (art. 245º, nº 1).
[11] In A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 276.
[12] Obrigação essa que se compreende por si, se se tiver presente que esse será o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património do insolvente com vista à satisfação daqueles créditos (art. 242.º, nº 1).
[13] Note-se que o prazo de 10 dias aí estabelecido para proferir a decisão assume natureza de prazo impróprio, uma vez que a sua inobservância não gera qualquer consequência no processo, sem prejuízo do disposto no art. 156º, nºs 4 e 5 do Cód. Processo Civil.
[14] Cfr., neste sentido e inter alia, acórdão desta Relação de 8.02.2018 (processo nº 499/13.5TJPRT.P1), acessível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr., por todos, LUÍS M. MARTINS, in Recuperação de Pessoas Singulares, vol. I, 2ª edição, Almedina, págs. 156 e seguinte.
[16] De acordo com o despacho inicial os insolventes deveriam entregar ao fiduciário as importâncias que excedessem o montante correspondente a três salários mínimos nacionais, sendo que após o óbito da insolvente (ocorrido em 30.06.2016) ficou o insolvente constituído na obrigação de entregar as quantias que excedessem o valor correspondente a uma vez e meia do salário mínimo nacional.
[17] Sem prejuízo, naturalmente, da apreciação que o incumprimento desses deveres informacionais por banda do fiduciário possa eventualmente merecer para os efeitos do disposto no art. 59º ex vi do nº 2 do art. 240º.
[18] Sendo que, por mor da regra vertida no art. 343º, nº 2 do Cód. Civil, compete ao devedor/insolvente o ónus da prova de o prazo ter já decorrido.