Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
28171/15.4YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
DESCONHECIMENTO DO MODO DE TRANSPORTE
REGIME APLICÁVEL
Nº do Documento: RP2017030628171/15.4YIPRT.P1
Data do Acordão: 03/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º645, FLS.460-468)
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de transporte internacional de mercadorias é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, definindo-se como a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes.
II - Provando-se que as mercadorias foram transportadas de Portugal para o estrangeiro (países europeus), não tendo a autora, no requerimento de injunção, nem a ré na oposição, alegado o modo de transporte, desconhecendo-se se o mesmo foi realizado por via aérea ou por via rodoviária, já que da documentação junta aos autos também nada consta sobre tal matéria, não pode o tribunal em sede de recurso proceder à aplicação da convenção de transporte aéreo internacional de mercadorias ou da convenção de transporte rodoviário internacional de mercadorias, pelo que para a regulação do contrato em apreço haverá que convocar a disciplina geral do contrato de transporte enunciada nos artigos 366.º a 393.º do Código Comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 28.171/15.4YIPRT.P1

Sumário do acórdão:
I. O contrato de transporte internacional de mercadorias é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, definindo-se como a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes.
II. Provando-se que as mercadorias foram transportadas de Portugal para o estrangeiro (países europeus), não tendo a autora, no requerimento de injunção, nem a ré na oposição, alegado o modo de transporte, desconhecendo-se se o mesmo foi realizado por via aérea ou por via rodoviária, já que da documentação junta aos autos também nada consta sobre tal matéria, não pode o tribunal em sede de recurso proceder à aplicação da convenção de transporte aéreo internacional de mercadorias ou da convenção de transporte rodoviário internacional de mercadorias, pelo que para a regulação do contrato em apreço haverá que convocar a disciplina geral do contrato de transporte enunciada nos artigos 366.º a 393.º do Código Comercial.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Em 18.02.2015, “B…, Sociedade Unipessoal, Limitada”, apresentou no Balcão Nacional de Injunções, requerimento de injunção contra “C…, Unipessoal, Limitada”, pedindo a condenação da requerida a pagar à requerente a quantia global de 10.714,41€, correspondente: ao capital de €10.576,16; juros de €36,25, contados até 18/2/2015; e €102,00 de taxa de justiça paga, acrescendo juros vincendos contados desde 19/2/2015 até integral pagamento.
Alegou a requerente, em síntese, que no âmbito de um contrato de prestação de serviços de transitário, incluindo o transporte de mercadorias, prestou serviços à ré, cujo valor adicionado ascende a €10.576,16, não tendo a ré pago essa verba.
Efetuada a notificação do requerimento de injunção à requerida, veio esta apresentar oposição, na qual alegou em síntese: a requerente prestou os serviços de forma defeituosa; oito pacotes destinados a D…, na Bélgica, nunca chegaram ao destino e foram entregues algures em França, desconhecendo-se o paradeiro dessa mercadoria, o que implicou €8.000,00 de prejuízo para a requerida; um pacote destinado a E…, em França, foi entregue em péssimas condições, com o invólucro violado e a mercadoria danificada, com €2.375,00 de prejuízo para a requerida; sete pacotes destinados a F… … G…, em França, foram entregues em péssimas condições, com o invólucro violado, faltando duas peças da referência 108, no valor de €90,00 cada, e oito peças da referência 110, no valor de €125,00 cada, com €1.180,00 de prejuízo para a requerida; estes prejuízos não incluem os custos de reexpedição da mercadoria em falta ou danificada; a requerida reclamou junto da requerente de todos os vício referidos, mas ela não deu o devido tratamento a tais reclamações, limitando-se a exigir o pagamento dos seus créditos.
Os autos foram remetidos à distribuição na Instância Local de Amarante (Secção Cível – J1), passando a ser tramitados como ação especial de cumprimento de obrigações pecuniária emergentes de contrato de valor não superior a 15.000 euros.
Em 20.05.2015 foi proferido despacho, a agendar a audiência final.
Realizou-se a audiência final em 19.11.2015, após o que, em 8.02.2016, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Com fundamento no atrás exposto, condeno a ré a pagar à autora o montante de €3.905,98 euros (três mil novecentos e cinco euros e noventa e oito cêntimos), relativamente aos transportes efectuados correspondentes ao valor das facturas, deduzido da verba acima referida de €6.670,18 euros e relativa à factura ………….
Condeno a ré a satisfazer os juros à taxa legal vencidos sobre as verbas das facturas com excepção da acima referida e a contar das respectivas datas de vencimento e até 18 de Fevereiro de 2015 (data da entrega do requerimento injuntivo).
Condeno a ré a pagar à autora a verba de €51 euros de taxa de justiça suportada pela injunção.
Absolvo a ré do restante pedido, incluindo juros moratórios e taxa de justiça peticionados pela autora.
Custas pela autora e ré, em partes iguais, por ambas terem contribuído para esta lide e sem prejuízo da dispensa de elaboração da conta.».
Não se conformou a autora, e interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
1. Não pode também a Autora, ora Apelante, conformar-se com a solução de direito sufragada pelo tribunal a quo: a douta sentença recorrida afasta a qualificação jurídica do contrato celebrado entre a Autora e a Ré como contrato de transporte internacional de mercadoria e vem qualificá-lo como “(...) um contrato de empreitada.
2. A ora Apelante, é uma empresa que se integra no grupo B…, de origem norte americana mas de dimensão internacional, sendo notoriamente conhecida como uma empresa que opera na área dos transportes (v.g. chegou até a ser um dos patrocinadores dos Jogos Olímpicos). A qualidade da Autora enquanto transportador afigura-se, neste contexto, ser um facto notório que não carece de alegação e prova.
3. Entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de transporte, nos termos do qual a Autora se obrigou perante a Ré a transportar uma determinada mercadoria e a entregá-la no domicílio do destinatário, sendo que o lugar de carregamento e o lugar da entrega estão situados em países diferentes, respectivamente Portugal e França, pelo que tal contrato fica sujeito às normas previstas na referida Convenção para a Unificação de certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, feita em Montreal em 28 de Maio de 1999 e que entrou em vigor no dia 4 de Novembro de 2003.
4. Nos termos do art. 1.º, n. 1, desse instrumento convencional, onde se define o seu âmbito de aplicação, pode constatar-se que a Convenção se aplica a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronaves a título oneroso.
5. Transporte internacional é definido, para efeitos de interpretação desse instrumento, como toda a operação de transporte em que, segundo a estipulação das partes, o ponto de partida e o ponto de destino, independentemente de se verificar uma interrupção no transporte ou transbordo, se situam no território de dois Estados Partes ou de um terceiro Estado, mesmo que este não seja Parte da Convenção.
6. Em termos de aplicação geográfica, a convenção é plenamente aplicável ao litígio sub-judice, na medida em que, quer Portugal – como ponto de partida quer França ou Bélgica – como ponto de chegada – são partes na mesma.
7. Em face do exposto, chega-se à conclusão que o presente litígio deverá ser regulado directamente pelas disposições da Convenção de Montreal, como fonte autónoma de Direito e directamente invocáveis pelos particulares nas suas relações privadas.
8. Ora, nos termos da Convenção os danos e perdas das mercadorias são da responsabilidade da transportadora, desde que o evento causador do dano ocorra durante o transporte aéreo. Acontece que, no caso em apreço nada resultou provado quanto a essa matéria, nem tão pouco a R. formalizou qualquer reclamação relativamente aos danos ocorridos, conforme resultou provado.
9. E, ainda que assim não se entendesse, sempre se deveria aplicar-se in casu as limitações da responsabilidade do transportador estabelecidas na Convenção de Montreal, cuja aplicação está expressamente prevista no rosto da carta de porte e tais normas afastam, enquanto normas especiais, o regime de responsabilidade previsto nos arts. 483.º, 798.º e 564.º do Código Civil.
10. Face ao exposto, o tribunal a quo quando qualificou o contrato em causa como um contrato de expedição, contrato atípico que se reconduz a um contrato de prestação de serviços e é regido pelas regras deste, com exclusão do regime indemnizatório próprio do contrato de transporte, incorreu em erro na determinação das normas aplicáveis, tendo afastado indevidamente as normas fixadas na Convenção.
Pelo exposto e com o mui douto suprimento do Venerando Tribunal da Relação, que desde já se invoca, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, modificada a decisão de direito conforma supra peticionado, considerando-se a acção improcedente, por não provada, e a ré condenada no pedido.
A recorrida não apresentou resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) qualificação jurídica do contrato;
ii) definição do regime legal aplicável;
iii) apreciação dos danos invocados pela recorrida como fundamento para o não pagamento;
iv) apreciação da questão da taxa de justiça.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante provada nos autos, não impugnada:
A) - A autora “B…, Sociedade Unipessoal, Lda.” exerce atividade na área de transitários, incluindo o transporte de mercadorias.
B) – A ré “C…, Unipessoal, Lda.” dedica-se à indústria de confeção têxtil.
C) - A ré acordou com a autora que esta efetuasse o transporte de mercadorias constante das seguintes faturas, no prazo de 30 dias a contar da data da emissão:
- fatura n.º …………, de 30 de Setembro de 2014, no valor de €181,51 euros, de cópia a fls. 81;
- fatura n.º …………, de 28 de Outubro de 2014, no valor de €3.553, 07 euros, de cópia a fls. 64;
- fatura n.º …………, de 28 de Novembro de 2014, no valor de €156,88 euros de cópia a fls. 68; e
- fatura n.º …………, de 30 de Dezembro de 2014, no valor de €6.670,18 euros;
A ré emitiu a fatura …./….. de 5 de Janeiro relativamente a uma taxa de pagamento em atraso, tendo a autora efetuado o transporte das mercadorias.
D) – Porém, os 8 pacotes com o n.º de envio ………………, mencionados entre outros na fatura n.º …………, foram entregues na morada “D…, … Chemin …, ….. …, France” quando a ré indicou como morada de entrega “D…, … Chemin …, …. …[1].
E) – A autora de acordo com as condições de fls. 62 efetuou oficiosamente a correção da morada no que tange ao código postal e país, relativamente a “… Chemin …”, entregando em localidade e país diversos.
F) - Daquele valor total de €10.576,16 euros, a ré nada pagou à autora porque além do cliente da fatura referida em D) nunca ter recebido a mercadoria, tendo os artigos sido entregues noutro país sem sua autorização e tendo a ré perdido alcance deles, existiram artigos que chegaram ao destino com os invólucros rasgados embora não se tenha apurado a que fatura dizem respeito.
G) O recibo de envio prevê “responsabilidade por danos e perdas”, constando da referida cláusula:
«Para informações sobre entrega e garantia, consulte o Guia de Serviços B… Responsabilidade por Danos e Perdas
A menos que seja regida pela Convenção para a Unificação de Determinadas Regras Relacionadas com o Transporte Internacional Aéreo (Convenção de Varsóvia), a Convenção sobre o Contrato para o Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias (Convenção CMR), ou outra lei obrigatória, a responsabilidade da B… por danos, perdas ou atrasos deste envio, está limitada a um máximo de 100 USD (ou o equivalente em moeda local) ou a outro valor estabelecido pelos Termos e Condições de Transporte/Serviço B… para o país de origem deste envio. Não será fornecida qualquer proteção para perdas ou danos deste envio que ultrapasse a quantia relativa à disposição anterior, a menos que o expedidor declare um valor superior para o transporte e pague uma taxa adicional. Se o expedidor declarar um valor superior para o transporte e pagar a taxa aplicável, a responsabilidade ficará limitada aos danos comprovados de valor não superior ao valor declarado. […]».
Factos não provados:
Quanto a esta matéria, consta da sentença que se consideram não provados os seguintes factos: «Os da oposição que não os referidos em F, máxime quais as mercadorias avariadas ou violadas no seu invólucro e a que faturas se reportavam, bem como os concretos prejuízos ocasionados que, aliás, nem podiam ser mensurados e compensados por impossibilidade de reconvenção, nos termos do art.º 7.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 32/2003 de 17 de Fevereiro.».

3. Fundamentos de direito
3.1. Qualificação jurídica do contrato
A Mª Juíza qualificou juridicamente o contrato nestes termos:
«Veio a autora, na presente acção, pedir a condenação da ré no pagamento do preço devido pelos serviços de transporte de mercadorias que efectuou a pedido da ré.
A autora pede que a ré seja condenada a pagar -lhe o montante de €10.576,16 euros, correspondente aos fornecimentos serviços prestados e acrescido de juros vencidos no montante de €36,25 euros.
Antes de tudo o mais, é de reconhecer que entre ambas as partes foi celebrado um contrato de empreitada, definido no art. 1207º do C. Civil, porque uma parte, a autora empreiteira, se obrigou a realizar à outra, a ré, certa obra, com autonomia, mediante um preço que a segunda se obrigou a paga-lhe.».
Insurge-se a recorrente quanto à qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes, por entender que se trata de um contrato de transporte.
Provou-se que: A autora “B…, Sociedade Unipessoal, Lda.” exerce atividade na área de transitários, incluindo o transporte de mercadorias (A); a ré “C…, Unipessoal, Lda.” dedica -se à indústria de confeção têxtil (B); a ré acordou com a autora que esta efetuasse o transporte de mercadorias constante das faturas referidas no requerimento de injunção, no prazo de 30 dias a contar da data da emissão (C).
Consta da oposição apresentada pela ré:
«1. Aceita-se o alegado, por corresponder à verdade, na parte que diz que a requerente dedica-se à actividade de transporte de mercadorias.
2. Aceita-se que a requerida contratou a requerente para efectuar o transporte de mercadorias para vários países estrangeiros, nomeadamente Bélgica e França.».
Vejamos o conceito doutrinário de contrato de transporte.
Cunha Gonçalves (Comentário ao Código Comercial Português, 2.º volume, pág. 394[2]) define contrato de transporte como “o que se celebra entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou as suas coisas de um lugar para o outro e aquele que por um determinado preço se encarrega dessa condução”.

Na senda da definição proposta por Cunha Gonçalves, Carlos Alberto Neves Almeida (Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 21), define o contrato de transporte aéreo como “o acordo em que convergem duas vontades opostas mas harmonizáveis celebrado entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou de terceiro, ou coisa certa, de um lugar para o outro utilizando a via aérea e aquele que, de forma onerosa ou gratuita, aceita encarregar-se dessa condução”.
O transporte em discussão nos autos é internacional (efetuado entre países diferentes), designando-se por contrato de transporte internacional de mercadorias a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes. Tal contrato é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário[3].
Face à factualidade provada, não podem restar dúvidas de que o acordo contratual das partes se deverá qualificar como contrato de transporte internacional.
3.2. Regime legal aplicável
Curiosamente, em nenhum dos articulados (requerimento inicial e oposição) as partes alegam qualquer factualidade quanto ao meio de transporte acordado: terrestre, aéreo ou marítimo.
A autora tanto alude nas suas alegações à Convenção para a Unificação de Determinadas Regras Relacionadas com o Transporte Internacional Aéreo, como alude aos arts. 4, 5 e 6 da CMR, querendo referir-se à Convenção CMR, ou Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada – assinada em Genebra em 19/5/1956 e introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei 46.235, de 18/3/1965, vindo a ser alterada em conformidade com o Decreto-Lei 28/88, de 6/9.
No entanto, como se referiu, no requerimento de injunção a autora não alegou o modo de transporte e na oposição a ré também não alegou qual a via utilizada, desconhecendo-se se o transporte foi feito por via aérea ou por via rodoviária.
As faturas emitidas pela autora, os “recibos de envio”, os documentos que retratam busca de paradeiros (“tracking”) ou de efetivo destino das mercadorias questionadas, incluindo “notificações de entrega”, não contêm igualmente qualquer menção sobre o modo de transporte.
Em suma, não existem elementos de factos provados que facultem a aplicação ou da convenção de transporte aéreo internacional de mercadorias ou de transporte rodoviário internacional de mercadorias.
Sem especificação do modo de transporte, embora se prove que se trata de transporte internacional de mercadorias, para a regulação do contrato em apreço não poderemos deixar de convocar a disciplina geral do contrato de transporte celebrado entre comerciantes, ou seja nas normas dos artigos 366.º a 393.º[4] do Código Comercial.
3.3. Apreciação dos danos invocados pela recorrida como fundamento para o não pagamento
Alegou a ré que a autora “não cumpriu nenhum destes deveres a que está adstrita como transitário ou transportador de mercadorias”.
Na sentença apenas se considerou provada a não entrega da mercadoria que se destinava a D…, tendo a autora entregue essa mesma mercadoria numa localidade e num país diversos daqueles que tinham sido indicados pela ré para aquela destinatária, de tal modo que a ré perdeu o alcance dessa mercadoria e a D… acabou por nunca a receber.
Também não se considerou provado na sentença: qualquer incidente ou falha da autora nas entregas das mercadorias destinadas a E… e a F… … G…; que a não entrega da mercadoria destinada a D… a esta última tenha causado prejuízo para a ré de 8.000€.
Resultou provado apenas que houve mercadorias que chegaram ao destino com os invólucros rasgados, mas nem se apurou se esses incidentes se reportam a transportes integrados nas cinco faturas reclamadas pela autora, nem se provou se aos invólucros rasgados corresponderam mercadorias avariadas ou violadas.
Seja nas mercadorias destinadas a D…, seja nas mercadorias destinadas a E…, seja ainda nas mercadorias destinadas a F… … G…, não se provou que a ré, de qualquer modo, tenha tido algum prejuízo.
O “recibo de envio” emitido pela autora quanto à mercadoria destinada a D… tem data de 18/12/2014 (fls. 10 e 11) e reporta-se a oito pacotes, cujo peso total é de 69,6 quilos, mas com peso “facturável” de 72 quilos, à razão de 9 quilos por pacote.
Esse recibo de envio vale como guia de transporte, para os efeitos dos artigos 369.º e 370.º do Código Comercial. Os oito pacotes tinham os seguintes números de seguimento: ………………, …………….., ………………, ………………, ………………, ………………, ……………… e ……………...
O recibo de envio prevê “responsabilidade por danos e perdas”.
Consta da referida cláusula (fls. 11):
«Para informações sobre entrega e garantia, consulte o Guia de Serviços B…. Responsabilidade por Danos e Perdas
A menos que seja regida pela Convenção para a Unificação de Determinadas Regras Relacionadas com o Transporte Internacional Aéreo (Convenção de Varsóvia), a Convenção sobre o Contrato para o Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias (Convenção CMR), ou outra lei obrigatória, a responsabilidade da B… por danos, perdas ou atrasos deste envio, está limitada a um máximo de 100 USD (ou o equivalente em moeda local) ou a outro valor estabelecido pelos Termos e Condições de Transporte/Serviço B… para o país de origem deste envio. Não será fornecida qualquer proteção para perdas ou danos deste envio que ultrapasse a quantia relativa à disposição anterior, a menos que o expedidor declare um valor superior para o transporte e pague uma taxa adicional. Se o expedidor declarar um valor superior para o transporte e pagar a taxa aplicável, a responsabilidade ficará limitada aos danos comprovados de valor não superior ao valor declarado. […]».
Como se referiu, apesar de a recorrente aludir à Convenção para a Unificação de Determinadas Regras Relacionadas com o Transporte Internacional Aéreo e à Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, acaba por não especificar qual dessas convenções iria regular o transporte daqueles oito pacotes, nem nada refere sobre o concreto modo como iriam ser transportados.
Alega a recorrente:
«8. Ora, nos termos da Convenção os danos e perdas das mercadorias são da responsabilidade da transportadora, desde que o evento causador do dano ocorra durante o transporte aéreo. Acontece que, no caso em apreço nada resultou provado quanto a essa matéria, nem tão pouco a R. formalizou qualquer reclamação relativamente aos danos ocorridos, conforme resultou provado.
9. E, ainda que assim não se entendesse, sempre se deveria aplicar-se in casu as limitações da responsabilidade do transportador estabelecidas na Convenção de Montreal, cuja aplicação está expressamente prevista no rosto da carta de porte e tais normas afastam, enquanto normas especiais, o regime de responsabilidade previsto nos arts. 483.º, 798.º e 564.º do Código Civil.
10. Face ao exposto, o tribunal a quo quando qualificou o contrato em causa como um contrato de expedição, contrato atípico que se reconduz a um contrato de prestação de serviços e é regido pelas regras deste, com exclusão do regime indemnizatório próprio do contrato de transporte, incorreu em erro na determinação das normas aplicáveis, tendo afastado indevidamente as normas fixadas na Convenção.».
Dispõe o artigo 383.º do Código Comercial:
«O transportador, desde que receber até que entregar os objectos, responderá pela perda ou deterioração, que venham a sofrer, salvo quando proveniente de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário.
§ 1.º O transportador pode, com respeito a objectos sujeitos por natureza a diminuição de peso ou medida durante o transporte, limitar a sua responsabilidade a uns tanto por cento ou a uma quota parte por volume.
§ 2.º A limitação ficará sem efeito, provando o expedidor ou o destinatário não ter a diminuição sido causada pela natureza dos objectos, ou não poder esta, nas circunstâncias ocorrentes, ter atingido o limite estabelecido.».
A cláusula de limitação de responsabilidade que se transcreveu parcialmente é válida, face ao que dispõe o parágrafo 1.º da norma citada, não tendo a ré provado o circunstancialismo previsto no parágrafo 2.º, suscetível de a afastar.
Tal cláusula limita a responsabilidade máxima da autora por danos ou perda da mercadoria a 100 dólares do Estados Unidos da América, dado que a ré não alegou nem provou ter declarado um valor superior: “a responsabilidade da B… por danos, perdas ou atrasos deste envio está limitada a um máximo de 100 USD […] a menos que o expedidor declare um valor superior para o transporte e pague uma taxa adicional”.
Em suma, a autora responde junto da ré pela perda ou deterioração da mercadoria, nos termos do art.º 383.º do Código Comercial, até ao limite referido.
Essa responsabilidade afere-se por cada expedição unificada e não pelo número de pacotes, o que equivale, no caso em apreço, a uma responsabilidade máxima única de 100 dólares, não a oito responsabilidades máximas de 100 dólares cada uma.
No recibo de envio não é declarado o valor da mercadoria, o que confirma a limitação de responsabilidade da autora a 100 dólares.
A limitação de responsabilidade da autora a 100 dólares, no caso de danos ou perdas da mercadoria, é estipulação lícita, porquanto o art.º 370 n.º 6 do Código Comercial prevê na guia de transporte a “fixação da indemnização por que responde o transportador, se a tal respeito tiver havido convenção”.
Para afastar a limitação da responsabilidade máxima da autora a 100 dólares, a ré teria de declarar expressamente o valor da mercadoria expedida, pagando acréscimo à autora pelo alargamento da responsabilidade desta.
Reitera-se que no instrumento que titula a expedição unificada da mercadoria destinada a D… não se indicou o correspondente valor, só se identificando a mercadoria como “têxteis” (fls. 10).
A sentença dispensa a ré de pagar o valor total da fatura …………, reduzindo o correspondente saldo final de 6.670,18€ ao capital peticionado de 10.576,16€, para condenar a ré na diferença de 3.905,98€ [10.576,16€-6.670,18€=3.905,98€].
Salvo todo o respeito devido, tal operação revela-se incorreta, na medida em que a fatura …………. é instrumento de cobrança de dezenas de outros transportes feitos pela autora à ré e se reporta ao total de 205 pacotes, entre os quais se incluem os 8 pacotes destinados a D…[5].
Na fatura …………., esse transporte de 8 pacotes tem como referência unificada o mencionado número de seguimento ……………… (com os supra referidos 72 quilos), especificando-se gasto variável de 940,83€ [832,59€+108,24€], desconto básico de 620,95€ [549,51€+71,44€] e saldo de 319,88€ [283,08€+36,80€]. Ainda é debitada, para a mesma expedição unificada, a verba de 5,30€, por “correcção de morada”, mas não se justifica tal cobrança em relação a mercadoria que acabou por não ser entregue ao destinatário indigitado.
Como os oito pacotes destinados a D… não foram entregues a esta, a autora não pode cobrar à ré o custo do respetivo transporte, o que significa uma redução de 325,18€ [319,88€+5,30€] ao saldo final de 6.670,18€ daquela fatura.
Acresce que a mercadoria inserta nos oito pacotes se perdeu, seja para o efeito de nunca ser recebida pela D…, seja para o efeito de nunca ter sido retornada à ré.
Essa perda da mercadoria implica responsabilidade da autora junto da ré no valor de 100 dólares, conforme limite de responsabilidade convencionado pelas partes para a expedição unificada dos oito pacotes.
Cem dólares equivalem a 94,38€, segundo a cotação do dólar dos Estados Unidos da América em 0,94375€.
Em suma, e como se refere em nota anterior, a fatura n.º ………… diz respeito a 205 pacotes, integrando-se neste número os 8 pacotes destinados a D…, com a referência ………………. (fls. 73 e 74), havendo que destacar para dedução: o valor de €319,88 (valor do transporte dos 8 volumes); o valor de €5,30 referente à incorreta ‘correção de morada’ e o valor de €94,38, referente à indemnização estipulada.
Concretizando, ao capital de €6.670,18 da fatura ………… reduzir-se-ão as seguintes quantias parcelares: €319,88 [valor devido pelo transporte dos 8 pacotes]; €5,30 [valor referente à “correção de morada”]; e €94,38 [valor máximo convencionado para a responsabilidade da autora por danos], alterando-se o capital da condenação para €10.156,60 [(181,51€+3.553,07€+156,88€+14,52€) + (6.670,18€-319,88€-5,30€-94,38€)].
3.4. A questão da taxa de justiça
A ré foi condenada a pagar à autora uma parcela de € 51,00 correspondente a metade da taxa de justiça paga com a interposição da injunção.
Decorre do disposto no artigo 25.º, n.º 1 e n.º 2 al. b) do Regulamento das Custas Processuais, que deverá a autora reclamar nos autos, a título de custas de parte, as taxas de justiça que pagou.
*
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, ao qual concedem parcial provimento e, em consequência, em alterar o dispositivo da sentença recorrida, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 10.156,60€ (dez mil cento e cinquenta e seis euros e sessenta cêntimos), acrescendo juros nos seguintes termos:
a) sobre a parte do capital de 181,51€ acrescem juros contados desde 30/10/2014 até 31/12/2014 à taxa anual de 7,15%, desde 1/1/2015 até 30/6/2016 à taxa anual de 7,05% e desde 1/7/2016 a taxa anual de 7%, seguindo-se, até efetivo pagamento, as taxas de juro fixadas nos termos do parágrafo 4 do art. 102 do código Comercial;
b) sobre a parte do capital de 3.553,07€ acrescem juros contados desde 27/11/2014 até 31/12/2014 à taxa anual de 7,15%, desde 1/1/2015 até 30/6/2016 à taxa anual de 7,05% e desde 1/7/2016 à taxa anual de 7%, seguindo-se, até efetivo pagamento, as taxas de juro fixadas nos termos do parágrafo 4 do art. 102 do código Comercial;
c) sobre a parte do capital de 156,88€ acrescem juros contados desde 28/12/2014 até 31/12/2014 à taxa anual de 7,15%, desde 1/1/2015 até 30/6/2016 à taxa anual de 7,05% e desde 1/7/2016 à taxa anual de 7%, seguindo-se, até efetivo pagamento, as taxas de juro fixadas nos termos do parágrafo 4 do art. 102 do código Comercial; - Sobre a parte do capital de 14,52€ acrescem juros contados desde 6/1/2015 até 30/6/2016 à taxa anual de 7,05% e desde 1/7/2016 à taxa anual de 7%, seguindo-se, até efetivo pagamento, as taxas de juro fixadas nos termos do parágrafo 4 do art. 102 do código Comercial;
d) sobre a parte do capital de 6.250,62€ acrescem juros contados desde 29/1/2015 até 30/6/2016 à taxa anual de 7,05% e desde 1/7/2016 à taxa anual de 7%, seguindo-se, até efetivo pagamento, as taxas de juro fixadas nos termos do parágrafo 4 do art. 102 do código Comercial.
*
A autora pagará custas, na primeira e segunda instância, calculadas sobre o valor tributário de 419,56€, ao passo que a ré pagará custas, na primeira e segunda instância, calculadas sobre o valor tributário de 10.156,60€ (cfr. art.º 12 n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).
*
O presente acórdão compõe-se de dezassete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
*
Porto, 6 de março de 2017
Carlos Querido
Alberto Ruço
Correia Pinto
___
[1] Faz-se esta pequena correção na redação, face ao teor do documento junto aos autos a fls. 73 e 74, onde se especificam os 205 pacotes que dizem respeito à fatura n.º …………., integrando-se nesse grupo os 8 pacotes destinados a D…, com a referência ………………. Ou seja, a fatura em apreço reporta-se ao total de 205 pacotes, nos quais se integram os 8 pacotes destinados a D….
[2] Citação recolhida em Código Comercial, Código das Sociedades, Legislação Complementar Anotados, Abílio Neto, 11.ª edição, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda., 1993, pág. 168.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 15.05.013, 9268/07.0TBMAI.P1.S1, no âmbito do Processo n.º 15.05.013, 9268/07.0TBMAI.P1.S1 (acessível no site da DGSI).
[4] Nada obsta à integração na previsão legal do artigo 366.º do CCom., dado que não se trata de transporte marítimo ou ferroviário e deve ter-se em atenção que à data da elaboração do Código Comercial, no ano de 1888, não se conhecia o avião nem o transporte aéreo.
[5] Vide fls. 73 e 74, onde se especificam os 205 pacotes que dizem respeito à fatura n.º …………, integrando-se nesse grupo os 8 pacotes destinados a D…, com a referência ……………….