Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1054/13.5JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: VIOLAÇÃO
CÓPULA
AMEAÇA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP201409101054/13.5JAPRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para prova da cópula violenta ou forçada a que se refere o artº 164º CP não é necessária a existência de lesões físicas nem de vestígios físicos e/ ou biológicos masculinos.
II - A paralisação da vítima devido ao temor causado pela ameaça a que foi sujeita pelo arguido não se confunde com consentimento para o acto.
III - O juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena tem de se fundamentar em factos concretos que apontem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1054/13.5JAPRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim com o nº 1054/13.5JAPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão que condenou o arguido na pena de três anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de violação p. e p. no artº 164º nº 1 al. a) do Cód. Penal.
Inconformado com o acórdão condenatório, dele veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. As lesões e escoriações apresentadas pela vítima, menos de oito horas após os factos sub judice, são, tão só e apenas, uma área de pontuado equimótico, horizontalizada, medindo 2 cm por 1 no membro superior direito e duas equimoses de coloração avermelhada de forma arredondada medindo cada uma cerca de 0,5 cm de diâmetro no membro superior esquerdo – conforme relatório pericial de fls. 425 a 431;
2. A versão dos factos oferecida pela ofendida não encontra suporte no exame médico-legal de perícia sexual a que a mesma foi sujeita menos de oito horas após os factos que relata;
3. A ofendida não apresentava qualquer lesão ao nível da região anal e peri-anal nem a nível da região genital e peri-genital;
4. Também em resultado dos exames complementares de diagnóstico verificou-se a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos. Aliás, em resultado dos exames de Genética e Biologia Forense não foi identificada a presença de qualquer material biológico masculino nas amostras analisadas – zaragatoas peri bucal, peri-vulvar, vestibular, vaginal e do fundo do saco vaginal, bem como das cuecas da ofendida que a mesma declarou aquando do exame médico-legal serem as que usava aquando dos factos;
5. Ora, parece-nos que a ausência total de lesões e de vestígios biológicos consistentes com um ato sexual, nomeadamente a cópula, deveria ter sido valorizada pelo Tribunal a quo;
6. Nos crimes contra sexuais, as declarações da ofendida constituem, em regra, a peça central da acusação. Mas, para que essas declarações mereçam fé mister se faz que sejam uniformes e verosímeis, além de concordantes com outros elementos de prova, de modo a afastar a hipótese de simulação de violação hoc sensu. Certo é, que o teor do relatório médico-legal pericial de natureza sexual junto aos autos a fls. 425 a 431 não permitem confirmar, nem sequer infirmar qualquer contacto sexual;
7. O Tribunal a quo não podia dar como provados que o arguido atirou a ofendida ao “chão e imobilizou-a, segurando-lhe com força os braços com uma mão enquanto com a outra lhe baixou as “leggins” e as cuecas que ela usava, dizendo-lhe que se não colaborasse com ele que a matava, que lhe cortava o pescoço e a atirava ao mar, como já tinha feito com outra. Seguidamente, e contra a vontade da ofendida, o arguido introduziu-lhe o pénis ereto da vagina e com ela copulou”;
8. Ainda que ficasse inalterada a decisão da matéria de facto impugnada – não poderia nem poderá ser diferente a solução em sede de subsunção jurídica: os factos, não preenchendo, como não preenchem, qualquer outro tipo legal de crime, também não se enquadram naquele específico tipo do artº 164º, 1, CP (em resumo, porque não integram violência física adequada para vencer a auto-determinação sexual da ofendida -, ameaça grave ou colocação da vítima em estado pré-ordenado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir);
9. No que especialmente respeita ao crime de violação, o legislador sempre integrou “o uso de violência” como uma das formas de execução da ação. No caso de adultos, só são criminalizadas as atividades sexuais obtidas por meios que afetem a livre vontade de aceitação da vítima, nomeadamente, quando o agente aja «por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral»;
10. Não basta nunca à integração do tipo objetivo de ilícito (…) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar” ato de violação, “isto é, que este ato tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima” “meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada”;
11. Tanto a violência física como a moral, se determinaram a cópula, são elementos constitutivos do crime de violação. “É que a violência moral (consistente, v. g., no perigo de um mal maior para a vítima ou sua família) pode determinar a cópula e, a não ser que se reconduzissem factos deste tipo à noção de “ameaça grave” (com as dificuldades inerentes à determinação do que é “grave” e à respetiva prova), ela ficaria impune (…)
12. Ora, resulta das declarações da própria ofendida que foi conversando com o arguido “depois perguntei de onde ele era e ele disse que não dizia” “à tarde ia para uma festa que havia em …, que se eu quisesse arranja-me fichas para os carrinhos de choque” Conforme consta da gravação digital com a referência nº 20140305110034_172415_65 aos minutos 34:20 e 36:10, fazendo-lhe várias perguntas para que mais tarde o pudesse identificar, salvo o devido respeito por melhor opinião, não nos parece o comportamento de alguém que esteja tomado por um real temor, tão elevado que a constrange à cópula;
13. No entendimento da decisão recorrida, os factos “provam que o arguido constrangeu, por meio de violência física que exerceu na pessoa da vítima a sofrer e praticar consigo cópula vaginal”;
14. No que respeita à alegada cópula vaginal, não se provou qualquer tipo de resistência por parte da vítima. Ou, pelo menos, uma resistência que o arguido tivesse tido necessidade de vencer através do uso de violência. O que não aconteceu conforme declarações da ofendida constantes da gravação digital com a referência nº 20140305110034_172415_65, ao minuto 33:50;
15. O agente só comete aquele crime quando a concretização da execução do ato sexual, ainda que tentado, tem de se debater, de alguma forma, com a pessoa da vítima, só então se podendo falar em violação;
16. Debate esse, do agente vs. Vítima cuja existência não emergiu no decurso da audição das declarações da ofendida, quando, lembra-se, faz parte do tipo é a necessidade de o agente ter de se debater contra a resistência da vítima;
17. A violência constitui uma forma de atuação em que para a realização do ato pretendido se usa da força física sobre a vítima de modo a coagi-la à prática do mesmo. “O dissenso (ausência de permissão) da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platónica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consegue vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito não há violação”;
18. Rodriguez Devesa, ponderando a mesma questão, ajuíza assim: “A violação consuma-se, como ensinou Carrara, no concurso de duas vontades em conflito. Por isso é característico deste delito não apenas o emprego da vis physica” (ou de outros processos coativos), “mas também uma resistência séria e mantida por parte da vítima durante o curso da ação violenta”;
19. Não se provou que “O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que atuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida …”
20. Caso não ocorra “resistência” a passividade da vítima é suscetível de ser tomada pelo agressor como consentimento, o que excluiria o dolo, não sendo o crime de violação do artº 164º nº 1 punível a título de negligência;
21. Se o agente atua convencido de que a objeção da vítima … não é séria, o dolo não deve ser afirmado”;
22. Um indivíduo como o arguido que apresenta funcionamento inteletual e cognitivo de nível baixo, compatível com Atraso Mental, que constitui anomalia psíquica de gravidade, que diminui a capacidade de avaliação e autodeterminação do arguido para a prática dos presentes factos, não reconhece qualquer resistência nem vê qualquer temor na pessoa que faz perguntas acerca da sua morada, na pessoa a quem pede em casamento e espera encontrar mais tarde na festa da aldeia;
23. A lei é clara: só existe violação se a vítima oferece um mínimo de resistência e se esse “não” é inequívoco através do comportamento da vítima de forma a não restar qualquer dúvida ao potencial agressor sexual que a relação sexual efetivamente não é consentida;
24. Ora as perguntas da ofendida acerca do arguido, a conversa sobre a festa, não seriam interpretadas pelo arguido como um comportamento cooperante, ou no mínimo como um comportamento de resistência ao contacto entre os dois?
25. A ausência de resistência após os primeiros contactos entre a ofendida e o arguido, aliás a conversa que a ofendida enceta com o arguido, questionando-o acerca da sua morada … terá convencido o arguido que aquela não colocava qualquer objeção aos contactos que estavam a ocorrer entre ambos;
26. Será exigível ao homem médio que a ofendida que enceta uma conversa com o suposto agressor sexual durante a suposta agressão sexual veja isso como uma resistência inequívoca?
27. Será exigível essa mesma determinação a um sujeito com um atraso mental como é o caso do arguido?
28. Impõe-se a absolvição do arguido, na medida em que a matéria de facto provada não preenche os elementos objetivos do tipo do crime de violação;
29. Por cautela de patrocínio, ainda que ficasse inalterada a decisão do tribunal a quo, sempre quanto à pena e a sua concreta medida, não ficou demonstrado qualquer facto que densifique quaisquer reservas em matéria de prevenção geral ou especial impeditivas da suspensão da pena de prisão que eventualmente se mantenha ao arguido;
30. Não tem qualquer base sólida a argumentação do Tribunal a quo segundo a qual a ausência de arrependimento ou qualquer forma de reparação do mal do crime e a ausência de outra justificação para o cometimento do crime para além da satisfação de instintos libidinosos;
31. Pelo contrário, o arguido encontra-se socialmente enquadrado, conta com o apoio da família e tem a seu cargo a contribuição para o sustento da sua mãe e irmã deficiente;
32. Ou seja, é possível concluir-se, com elevado grau de segurança, que a ameaça de uma pena de prisão assegura com eficácia os fins da pena de prisão em especial bem como a plena reintegração social do arguido;
33. Impõe-se pois a suspensão da pena de prisão que eventualmente possa ser aplicada.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela sua improcedência[1].
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. No dia 20-5-2013, cerca das 12 horas, o arguido circulava com a sua bicicleta de montanha de cor azul com listas brancas, que lhe foi apreendida e que se encontra descrita e examinada a fls. 306, na antiga linha de comboio de …, Póvoa de Varzim, que atualmente serve de ciclovia.
2. Ao chegar ao local assinalado na reportagem fotográfica de fls. 68 e 69, na freguesia …, encontrou C…, com 20 anos de idade, que ali seguia apeada, à sua frente, com uma bicicleta pela mão.
3. Nessa altura o arguido saiu da bicicleta em que se fazia transportar, aproximou-se da C…, agarrou-a por trás e tapou-lhe a boca com uma mão.
4. Quando ela conseguiu perguntar-lhe o que ele queria, o arguido respondeu-lhe que queria "cona".
5. A ofendida tentou fugir mas o arguido puxou-lhe com força os cabelos, agarrou-a e começou a beijá-la na boca e a apalpar-lhe o corpo, designadamente os seios, metendo-lhe a mão por baixo da roupa.
6. Depois atirou-a ao chão e imobilizou-a, segurando-lhe com força os braços com uma mão enquanto que com a outra lhe baixou as "leggins'' e as cuecas que ela usava, dizendo-lhe que se não colaborasse com ele que a matava, que lhe cortava o pescoço e que a atirava ao mar, como já tinha feito a outra.
7. Seguidamente, e contra a vontade da ofendida, o arguido introduziu-lhe o pénis ereto na vagina e com ela copulou.
8. Mercê da referida agressão sofreu a C…, além de dores nas regiões anatómicas atingidas, uma área de pontuado equimótico, horizontalizada, medindo 2 cm por 1 cm de maiores dimensões no terço inferior da face anterior do braço direito e 2 equimoses de forma arredondada, medindo cada uma 0,5 cm de diâmetro, no terço médio da face posterior do braço esquerdo, lesões estas que foram causa direta e necessária de 8 dias de doença sem afetação da capacidade para o trabalho geral e sem afetação da atividade formativa, conforme resulta do relatório de exame médico de fls. 425 e segs., que se dá por integralmente reproduzido.
9. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que atuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
10. O arguido apresenta funcionamento intelectual e cognitivo de nível baixo, compatível com «Atraso Mental», ligeiro a moderado, que constitui anomalia psíquica de gravidade.
11. As limitações que o arguido apresenta, do ponto de vista intelectual e cognitivo, não lhe retiram a capacidade de avaliação e autodeterminação para a prática de crimes de índole sexual com utilização de violência sobre a vítima - “violação” - tendo a noção de bem e mal.
12. Porém e devido a tais limitações psíquicas, a capacidade quer de avaliação quer de autodeterminação do arguido para a prática dos presentes factos encontravam-se diminuídas em grau, pelo menos, moderado.
13. O descrito comportamento ilícito do arguido não é típico nem potenciado, em termos de perigosidade da sua repetição, pela anomalia psíquica de que padece.
14. Das demais condições pessoais do arguido.
- O arguido frequentou a formação escolar até aos catorze anos, então idade limite do ensino obrigatório, e cedo revelou dificuldade na aprendizagem, pelo que não adquiriu competências de escrita nem de leitura, e no termo da formação iniciou a inserção laboral no sector da construção civil, onde se manteve e adquiriu competências pelo exercício regular.
- Até à data dos factos residia na casa de morada de família, com a mãe e uma irmã, adulta, portadora de debilidade mental e outros problemas ao nível da saúde.
- A dinâmica relacional familiar era ocasionalmente perturbada por atitudes de conflito e actos de agressão dirigidos pelo arguido à mãe, sob influência do consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
- No exercício laboral como servente, o arguido auferia cerca de 600€ mensais, a que acrescia a remuneração pela colaboração na actividade de cargas e descargas que prestava aos sábados no mercado municipal, e contribuía de modo irregular para a economia familiar.
- No tempo livre frequentava estabelecimentos de restauração na área da residência, onde a par de outros elementos da comunidade foi referenciado como consumidor abusivo de bebidas alcoólicas, contudo, notado que o comportamento não interferia no desempenho regular da prestação laboral, âmbito em que era considerado trabalhador assíduo e esforçado.
- No meio social o arguido e a família são conhecidos, sendo ele alvo de estigmatização, quer pelo consumo etílico abusivo, quer pelo conhecimento da tipologia do facto que lhe está imputado.
- Ao nível comunitário o arguido foi ainda referenciado como eventual portador de perturbação, que poderá explicar comportamentos que anteriormente terá manifestado, conotados socialmente com alegadas atitudes de assédio sexual, mas que não tiveram consequências sociais nem jurídicas para ele.
- O arguido recorria habitualmente ao contacto com prostitutas para práticas sexuais.
- O grupo familiar do arguido manifesta ao arguido apoio e disponibilidade para o ajudar na concretização do processo de reinserção.
- O arguido, que na fase inicial do cumprimento da medida de coacção de prisão preventiva não reconheceu como abusivo o consumo de bebidas alcoólicas que tinha até ser preso, por entender não prejudicar a sua postura a algum nível, actualmente e decorridos quase nove meses abstinente de consumo, já avalia que o comportamento etílico que apresentava seria problemático porque compulsivo.
- No cumprimento da medida de coação o arguido tem apresentado uma postura de respeito face ao normativo institucional e adaptada no relacionamento com os funcionários e os pares.
- A estigmatização social de que o arguido é alvo ampliou-se depois do conhecimento da situação jurídico-penal a que está sujeito e do tipo de ocorrência que a determinou, contudo sem sinais de rejeição à sua presença.
- O consumo abusivo de bebidas etílicas está atualmente resolvido pela abstinência a que está obrigado, processo que o arguido reconhece como mudança positiva, e que carece de consolidação, que em meio livre aconselha a supervisão e acompanhamento em unidade de saúde específica.
- Não tem antecedentes criminais
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A matéria de facto dada por provada corresponde ao declarado pela testemunha/ofendida C…, a qual relatou os factos descritos na acusação ocorridos no dia 20-5-2013, cerca das 12 horas, na antiga linha de comboio, que atualmente serve de ciclovia, de forma a merecer a confiança e necessária certeza do Tribunal quanto à veracidade de tais factos que relatou.
Para a formação da convicção do Tribunal quanto à veracidade do relatado pela testemunha/ofendida, foi atendida a forma como esta prestou depoimento, com uma espontaneidade e autenticidade que se nos afiguraram inquestionáveis, assim como a riqueza de pormenores do sucedido, num relato sentido e próprio de quem foi vítima de um crime contra a sua autodeterminação sexual, tendo identificado em audiência o arguido, assim como o havia já feito em reconhecimento pessoal - conforme auto de fls. 147 e 148 auto - de forma inequívoca e sem qualquer hesitação como sendo a pessoa que nas descritas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação a violou.
Foi ainda determinantes a formação da convicção do Tribunal, enquanto indicadores da veracidade do relatado pela vítima,
- O teor do relatório médico-legal perícia de natureza sexual junto aos autos a fls. 425 a 431 e demais documentação clínica junta aos autos, da qual resulta que a ofendida apresentava quando ainda nesse dia 20-5-2013, pelas 19.58h., se dirigiu à urgência hospitalar, toda uma série de lesões e escoriações, nomeadamente ao nível dos membros inferiores que se mostram próprias de quem foi manietada pela força, e cuja natureza é compatível com o relatado pela vítima, conforme se conclui ainda do citado relatório de perícia de natureza sexual.
- As declarações das testemunhas D… e E…, amigas da ofendida, que relataram que pelas 14h. a C… lhes ligou a dizer que precisava de ajuda pois tinha acabado de ser violada.
- Auto de fls. 306 quanto às características da bicicleta em que o arguido se fazia transportar e que se correspondem ao descrito pela ofendida.
- Reportagem fotográfica de fls. 68 e 69.
Considerado o conjunto das provas vindas de referir; o facto de a vítima ter logo procurado por auxílio médico e apresentado queixa-crime, não se nos suscitou qualquer dúvida na veracidade do relatado pela C… assim como no facto de ter sido o arguido o autor de tais factos.
No que se refere às condições pessoais do arguido, foi considerado o teor do relatório de psiquiatria forense junto a fls. 618 e ss.; o certificado de registo criminal e o relatório social juntos aos autos.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3].
De acordo com as conclusões do recurso, são as seguintes as questões que o recorrente pretende ver reapreciadas:
- saber se foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 6, 7 e 9 da matéria de facto provada;
- se a matéria de facto provada se enquadra no tipo do artº 164º nº 1 do Cód. Penal;
- se a pena de prisão aplicada ao recorrente deverá ser suspensa na sua execução.
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Alega o recorrente que o tribunal recorrido não poderia ter considerado provado que «depois atirou-a ao chão e imobilizou-a, segurando-lhe com força os braços com uma mão enquanto com a outra lhe baixou as “leggins” e as cuecas que ela usava, dizendo-lhe que se não colaborasse com ele que a matava, que lhe cortava o pescoço e a atirava ao mar, como já tinha feito com outra. Seguidamente, e contra a vontade da ofendida, o arguido introduziu-lhe o pénis ereto na vagina e com ela copulou.»
E sustenta tal afirmação no facto de as lesões apresentadas pela ofendida não demonstrarem que a mesma foi manietada e que a versão dos factos apresentada pela ofendida não encontra suporte no exame médico-legal de perícia sexual, já que a mesma não apresentava qualquer lesão ao nível da região anal e peri-anal, nem a nível da região genital e peri-genital, verificando-se ainda a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos masculinos.
Como resulta da motivação de facto do acórdão sob recurso, “para a formação da convicção do Tribunal quanto à veracidade do relatado pela testemunha/ofendida, foi atendida a forma como esta prestou depoimento, com uma espontaneidade e autenticidade que se nos afiguraram inquestionáveis, assim como a riqueza de pormenores do sucedido, num relato sentido e próprio de quem foi vítima de um crime contra a sua autodeterminação sexual, tendo identificado em audiência o arguido, assim como o havia já feito em reconhecimento pessoal […] de forma inequívoca e sem qualquer hesitação como sendo a pessoa que nas descritas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação a violou”.
Baseou-se ainda o tribunal no “teor do relatório médico-legal perícia de natureza sexual junto aos autos a fls. 425 a 431 e demais documentação clínica junta aos autos, da qual resulta que a ofendida apresentava quando ainda nesse dia 20-5-2013, pelas 19.58h, se dirigiu à urgência hospitalar, toda uma série de lesões e escoriações, nomeadamente ao nível dos membros inferiores que se mostram próprias de quem foi manietada pela força, e cuja natureza é compatível com o relatado pela vítima, conforme se conclui ainda do citado relatório de perícia de natureza sexual”.
Do trecho da motivação supra transcrito conclui-se que o tribunal coletivo efetuou a análise da prova de acordo com o princípio da livre convicção da prova (artº 127º do C.P.P.), devidamente conjugado com as regras da experiência comum. O tribunal baseou-se, não só no depoimento da ofendida C…, mas também no teor da prova documental produzida, designadamente no relatório médico-legal de perícia de natureza sexual junto a fls. 425 a 431, que considerou determinantes enquanto indicadores da veracidade daquele depoimento.
A respeito da impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte:
Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006[4] e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[5].
E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26 de Novembro de 2008[6] «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[7].
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
Ora, o que o recorrente parece pretender é que este Tribunal de recurso faça um novo julgamento e que julgue de acordo com a sua (do arguido recorrente) própria convicção, e não segundo as regras de experiência e a livre convicção do Tribunal a quo.
Nessa senda, limita-se o recorrente a contrapor a sua versão dos factos àquela que foi a apreciação da prova efetuada pelo tribunal a quo, sendo que tal ato de decisão pertence em exclusivo ao Tribunal, que apreciou a prova.
Alega o recorrente que, do relatório médico legal, não resulta, em sua opinião, que a ofendida tenha sido manietada, pelo que a versão desta não encontra suporte no referido relatório. Parte assim o recorrente da premissa errada de que qualquer ato de manietar provoca direta e necessariamente lesões físicas, o que não corresponde à verdade. O agente pode conseguir impedir qualquer movimento de defesa da vítima, prendendo-lhe ou agarrando-lhe as mãos, sem que lhe cause quaisquer lesões físicas visíveis, embora possa provocar dor. No entanto, no caso sub judice, não foi o que aconteceu. O próprio relatório médico-legal refere a ocorrência de “área de pontuado equimótico, horizontalizada, medindo 2 cm por 1 cm de maiores dimensões, no terço inferior da face anterior do braço direito” e “duas equimoses de coloração avermelhada e de forma arredondada, medindo cada uma 0,5 cm de diâmetro, no terço médio da face posterior do braço esquerdo”, lesões essas que, devidamente conjugadas com o relato da ofendida (cuja espontaneidade e autenticidade se afiguraram inquestionáveis ao tribunal a quo), levaram o tribunal coletivo a concluir que o arguido “imobilizou a ofendida, segurando-lhe com força os braços com uma mão”, ou seja, manietando-a[8], utilizando a expressão do recorrente.
Não existe, por isso, qualquer fundamento para censurar a decisão do tribunal coletivo quanto à matéria de facto.
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Sustenta ainda o recorrente que não apresentando a ofendida qualquer lesão ao nível anal e peri-anal, nem a nível genital e peri-genital e resultando dos exames complementares de diagnóstico a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos (não tendo sido identificada a presença de qualquer material biológico masculino), tal ausência é incompatível com a cópula violenta e forçada, pelo que o tribunal a quo não podia dar como provados os factos constantes dos pontos 6 e 7 da MFP[9] [«depois atirou-a ao chão e imobilizou-a, segurando-lhe com força os braços com uma mão enquanto que com a outra lhe baixou as “leggins” e as cuecas que ela usava, dizendo-lhe que se não colaborasse com ele que a matava, que lhe cortava o pescoço e que a atirava ao mar, como já tinha feito a outra». «Seguidamente, e contra a vontade da ofendida, o arguido introduziu-lhe o pénis ereto na vagina e com ela copulou»].
Antes de mais, importa salientar que a verificação de lesões físicas, ainda que nas regiões genitais, não é imprescindível para que se possa afirmar a ocorrência de cópula violenta e forçada.
Alias, da matéria de facto provada resulta que a violência física utilizada pelo arguido (ressalvado o próprio ato da cópula), consistiu em atirar a ofendida ao chão e segurar-lhe com força os braços com uma mão, atos que não têm a virtualidade de provocar lesões nas regiões do corpo referidas.
Relevante, porém, para conseguir obter os seus intentos, parece-nos ter sido a ameaça feita pelo arguido à ofendida de que “se não colaborasse com ele a matava, que lhe cortava o pescoço e que a atirava ao mar, como já tinha feito a outra”.
Como resulta do próprio depoimento da ofendida C…, foi a ameaça de morte feita pelo arguido que lhe provocou receio, acabando por não lhe opor resistência, sendo compreensível por isso a ausência de lesões nas regiões anais e peri-anais ou genitais e peri-genitais.
Quanto à ausência de vestígios físicos e/ou biológicos (não tendo sido identificada a presença de qualquer material biológico masculino), como resulta das conclusões do relatório de perícia de natureza sexual de fls. 425 a 431, “importa assinalar que a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos não significa que a agressão sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios”.
Aliás, o recorrente coloca-se numa perspetiva incorreta se, ao invocar a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos, pretende aludir à ausência de sémen.
Com efeito, a verificação dos elementos objetivos do tipo de ilícito, considerada a teleologia do artº 164º do Código Penal, apenas exige a penetração, sendo indiferente que tenha ou não havido “emissio seminis”. Como se refere no Ac. do STJ de 11.01.1995[10] “a cópula é apenas a penetração da vagina pelo pénis, como modo de gerar o perigo de gravidez, sem que, no entanto, tal perigo seja elevado à categoria de elemento do tipo, mas apenas como ratio legis, sendo indiferente que tenha havido ou não "emissio seminis", pois que no momento da ejaculação já está violado o bem jurídico protegido".
Assim, para a verificação do preenchimento do tipo de ilícito em causa e atendendo à essência do bem jurídico protegido – a autodeterminação sexual da vítima – a norma incriminadora contenta-se com a introdução do pénis na vagina, total ou parcialmente, independentemente da existência de vestígios biológicos, designadamente sémen. A ser de outra maneira, não poderiam ser agentes do crime os incapazes de orgasmo, os que se dedicassem à prática do chamado coitus interruptus e até os que utilizassem preservativos, sem que se descortine uma razão válida de política criminal para sustentar tal distinção[11].
Conclui-se, assim, que a ausência, quer de lesões físicas quer de vestígios físicos e/ou biológicos masculinos, não são suficientes para a afirmação de ausência de cópula violenta ou forçada, pelo que improcede mais este fundamento do recurso.
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Alega ainda o recorrente que os factos provados não se enquadram no tipo específico do artº 164º do Cód. Penal, porquanto não integram violência física adequada a vencer a autodeterminação sexual da ofendida, ameaça grave ou colocação da vítima em estado pré-ordenado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir.
Vejamos:
Dispõe o artº 164º nº 1 do Cód. Penal que “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois, para esse fim, o ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, é punido com pena de prisão de três a dez anos”.
Como sabido, o crime de violação é um crime de execução vinculada na medida em que o tipo exige, para a realização do evento que descreve, certos meios ou formas específicas de atuação.
No caso do nº 1 do artº. 164º do Cód. Penal, que é o que aqui nos interessa, os meios de execução são a violência, a ameaça grave ou colocação da vítima em estado de inconsciência ou em situação de impossibilidade de resistir.
Os meios de execução que aqui importa abordar sumariamente são os da violência e da ameaça grave.
Classicamente, nesta área dos crimes sexuais, o conceito de “violência” é restringido ao uso de força física sobre a vítima, de modo a coagi-la à realização do ato pretendido[12].
Modernamente, o conceito de violência (mesmo nos crimes sexuais) deve ser integrado não só de forma a incluir o uso da agressão física, mas também o uso da agressão psíquica, abrangendo-se qualquer manifestação de uma conduta ativa ou omissiva[13], adequada a obter o resultado pretendido, o qual é conseguido contra a vontade do sujeito passivo (traduzindo-se numa pressão anímica exercida sobre a vítima), anulando, ainda que parcialmente, a sua vontade ou colocando-o numa situação de inferioridade que o impede de reagir como queria.
Claro que se pode dizer que a agressão psicológica já é intimidação, ameaça. Mas, o entendimento de um conceito alargado de violência tem subjacente a lesão de direitos que estão garantidos à pessoa, na sua dimensão jurídica, devendo aqui ser aferida por referência ao bem jurídico em causa, que é a liberdade sexual da vitima, liberdade que, por aquele meio, é constrangida ou limitada de forma eficaz[14].
Poderá, assim, configurar-se violência mesmo que não haja reação ou resistência por parte da vítima – o que importa é que sejam utilizados meios que impedem a formação da vontade ou a liberdade de determinação da vítima[15].
Sempre se deverá ter presente que, um conceito mais ou menos alargado de violência, não deve afastar o bem jurídico, isto é, há que ter em atenção que o direito penal apenas tem legitimidade para atuar, nesta área, relativamente a condutas coativas da liberdade sexual da vitima por, aí, nessas situações, se tratar de uma lesão insuportável das condições comunitárias essenciais da livre auto-realização sexual.
Por seu turno, “ameaçar” é anunciar o propósito de fazer mal a alguém, sendo certo que a ameaça grave cria no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, injusto ou justo, capaz de, no caso concreto, paralisar a reacção[16].
A ameaça supõe também a coação psicológica e traduz-se na perturbação da liberdade interior de decisão e da liberdade de ação da vítima. A gravidade objetiva do mal radica na sua idoneidade para provocar na vítima um estado de temor tal, que seja induzida a escolher, como saída menos gravosa, a realização da cópula, coito anal ou coito oral pretendido pelo agente[17].
No caso dos autos, perante os factos dados como provados não há dúvida que o arguido dolosamente, através de ameaça grave (que consistiu precisamente em dizer-lhe que “se não colaborasse com ele que a matava, que lhe cortava o pescoço e que a atirava ao mar, como já tinha feito a outra”) conseguiu perturbar a liberdade interior de decisão e de ação da vítima, agindo de forma idónea a provocar-lhe um estado de temor tal (precisamente porque temeu que aquele concretizasse a ameaça de morte, como alegava já o ter feito) que foi induzida a escolher a saída menos gravosa (acedendo então ao propósito do arguido), dessa forma conseguindo o arguido realizar cópula com ela.
Não fora essa ameaça, que foi grave, atenta a aptidão para afetar a vontade da vítima, e o arguido não conseguiria realizar a dita cópula com a ofendida.
Perante as circunstâncias em que o arguido agiu sobre a vítima, não há dúvida que a ameaça por ele usada foi grave e adequada a obter o resultado pretendido (cópula).
A paralisação da vítima, naquelas circunstâncias, ficou a dever-se ao temor com que ficou de vir efetivamente a morrer, razão pela qual não se pode confundir essa atitude da ofendida com qualquer consentimento, como sustenta o recorrente.
Aliás, nem sequer se pode afirmar que o arguido entendeu a atitude de passividade, ou de “ausência de resistência” da ofendida como consentimento para a cópula. Não tendo o arguido prestado declarações em audiência de julgamento, desconhece-se a forma como interpretou o comportamento da ofendida, em especial as perguntas que esta lhe fez sobre a sua morada [segundo a ofendida, a pergunta visava a sua futura identificação perante as autoridades]. Se, simultaneamente com a formulação de tal pergunta, a ofendida assumisse um comportamento ativo de colaboração no ato sexual, seria possível concluir (a um homem médio colocado na real situação do arguido) que aquela passara a consentir livremente no ato iniciado contra a vontade.
Não foi, porém, isso que aconteceu, de acordo com a matéria de facto provada.
Não ocorrendo assim qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido, pelo que se verificam todos os pressupostos do crime de violação pelo qual o arguido foi condenado.
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Quanto à suspensão da execução da pena de prisão:
Pretende o recorrente que a pena de prisão seja suspensa na sua execução por se encontrar socialmente enquadrado, contar com o apoio da família e ter a seu cargo a contribuição para o sustento da mãe e irmã deficiente.
O artº 50º do Cód. Penal atribui ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido[18].
Como se salientou no Ac. do STJ de 08.05.97 (Proc. nº 1293/96) “facto essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Ponto é que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição. “O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expetativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos”[19].
A defesa de bens jurídicos é um propósito geral que informa todo o sistema penal, não privativo das penas, pelo que se tem que ligar tal propósito, em matéria de fins das penas, à prevenção geral dita positiva. Importa pois saber, antes de mais nada, se nessa tarefa que compete ao Estado de gerir a indignação social, provocada junto de quem teve conhecimento do cometimento do crime, importa saber se a aludida suspensão se justifica no presente caso.
Depois, e já em matéria de prevenção especial, só se deverá optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime. Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se pois de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso[20].
No caso em apreciação, não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção familiar e profissional do arguido, tanto quanto se revela nos autos. Nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, já que não lhe são conhecidos antecedentes criminais. Contudo, no meio social, o arguido é alvo de estigmatização, quer pelo consumo etílico abusivo, quer por conotação com atitudes de assédio sexual.
As necessidades de prevenção geral de integração impõem, no caso, uma pena efetiva, só desse modo se evitando uma perda da confiança posta no sistema repressivo penal pela comunidade, designadamente pela população local.
Impõe-se que a comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação às exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral, isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. Em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral hão-de funcionar como limite ao que, de uma perspetiva de prevenção especial, podia ser aconselhável.
Ora, o arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais, agiu com bastante intensidade dolosa e mostrou-se insensível à liberdade e auto-determinação sexual da vítima. Como se refere na decisão recorrida, praticou os factos “em plena luz do dia, em local destinado à utilização pública/ciclovia”.
Os atos praticados pelo arguido revelam uma personalidade em relação à qual não é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o recorrente da criminalidade.
Aliás, o juízo de prognose favorável teria de se fundamentar em factos concretos que apontassem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de atos ilícitos. Na situação em apreço, verifica-se que o arguido se recusa a assumir a sua responsabilidade pelos atos que praticou e não manifestou qualquer arrependimento, designadamente através da reparação do mal provocado.
Entende-se, por isso, que o arguido não pode beneficiar da pena de substituição prevista na lei.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando consequentemente o douto acórdão recorrido.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s – artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 10 de Setembro de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Pese embora a resposta não se mostre integralmente impressa nos autos, tal conclusão resulta da versão junta em suporte digital.
[2] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] Proferidos nos Procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e disponíveis in www.dgsi.pt
[5] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, Proc. nº 02ª4324, rel. Afonso Correia, também disponível in www.dgsi.pt
[6] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs.
[7] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 09.07.2003, Proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, disponível in www.dgsi.pt).
[8] Manietar significa “impossibilitar o movimento, geralmente atando ou prendendo as mãos” – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa.
[9] Leia-se “matéria de facto provada”.
[10] In CJAcsSTJ, Ano III, Tomo I, pág. 178 e ss.
[11] Cfr., neste sentido, AFJ nº 5/2003, in DR, I Série-A de 17.10.2003, p. 6971.
[12] Assim se entendia no domínio do CP 1886 (cf. art. 393), onde se fazia referência expressa à violência física. Ensinava BELEZA DOS SANTOS, RLJ, nº 2271, p.370, que, essa “violência física” ou coação física, tinha de ser exercida diretamente sobre a vítima, traduzindo-se na subjugação pela força, obrigando a vítima a suportar a cópula que ela não queria consentir. Porém, com o CP de 1982, abandonou-se a expressão "violência física". Poderá, por isso, defender-se que o legislador preocupou-se mais com a importância da "energia" que recai sobre a vítima, do que propriamente com a sua origem.
[13] Uma conduta omissiva integradora do conceito de violência (violência psíquica) será, por exp., o caso de não se fornecer alimentos enquanto não for feito o que se exige.
[14] A violência é relevante quando se concluir que, na ausência da violência, o ato sexual de relevo em causa não teria sido realizado
[15] Aliás a doutrina também costuma distinguir, pelos efeitos psicológicos provocados no sujeito passivo, dois tipos de violência: a vis compulsiva (quando o coagido é capaz de tomar uma decisão segundo a sua própria vontade, apesar dessa vontade ser pressionada) e a vis absoluta (quando o coagido não é capaz de opor resistência à ação do sujeito ativo).
[16] Como diz VEGA RUIZ, citado pela Des. Maria do Carmo S. Dias no AcRP de 15.06.2011 (que aqui seguimos de perto), La violación en la doctrina y en la jurisprudencia, p.83, "dentro do contexto de uma ameaça é evidente que a pessoa atacada responde animicamente de acordo com os seus mais íntimos reflexos e de acordo com as suas mais íntimas fraquezas e medos."
[17] CARLOS SUÁREZ RODRÍGUEZ, El delito de agresiones sexuales asociadas a la violación, p.195, escreve que " constitui intimidação típica toda a prolação de uma mensagem intimidatória intensa, mediante a qual o sujeito ameaça o outro de causar-lhe um mal grave, futuro e verosímil em qualquer dos seus interesses, se não acede ao trato ou contacto sexual".
[18] Cfr. Figueiredo Dias “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, RLJ, Ano 124º, pág. 68 e “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, § 518, págs. 342/343.
[19] V. Ac. do STJ de 28.07.2007, Proc. nº 1488/07, rel. Consº. Rodrigues da Costa, louvando-se na lição de Figueiredo Dias, supra cit..
[20] Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 344.