Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
80/22.8PBMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: DECLARAÇÕES DE CRIANÇA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Nº do Documento: RP2023030880/22.8PBMAI-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A tomada de declarações para memória futura de criança é sempre presidida e orientada pelo Juiz, podendo este socorrer-se dos técnicos presentes para se garantir a estabilidade emocional da criança na sua audição e a correta colocação e perceção das perguntas, permitindo-se assim reduzir e atenuar a revitimização da mesma, assegurando-se em simultâneo o não atropelo do direito ao contraditório dos demais intervenientes que deverão assistir e esclarecer-se por intermédio dele.
II – Essa diligência em causa é, só por si, o mecanismo por excelência destinado a precaver e a atenuar o calvário da revitimização, salvaguardando que a tomada de declarações sirva para posterior apreciação da prova; neste aspeto, é o Juiz, e não qualquer outra pessoa, quem está particularmente apto a colocar as questões pertinentes essenciais ao apuramento da verdade material dos factos ocorridos, quem está em condições de procurar os factos capazes de serem subsumidos no tipo legal de crime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n º 80/22.8PBMAI-A.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto-J3

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito de processo inquérito, a correr termos no tribunal em epígrafe, por despacho de 11-07-2022, foi decidido proceder à audição de crianças nos termos seguintes:
“Nomeio como defensor aos menores o que vier a ser indicado pelo SINOA. Nomeio como defensor a cada um dos denunciados o que vier a ser indicado pelo SINOA.

Para a audição dos menores AA e BB; nos termos das disposições conjugadas dos arts." 271. do Cód. Pena, art. 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, art. 1 e 33.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, em declarações para memória futura, sem a presença dos denunciados, designo o próximo dia 20/10 às 10,30 horas neste tribunal - cfr. arts. 271° n° 6 do C.P.P. e 352° n° 1 a) do C.P.P..

Os menores serão acompanhados durante as declarações por uma das Srs Técnicas do IM em escala neste Tribunal, face ao protocolo em vigor.

Notifique - cfr. art. 271° n° 3 do C.P.P. Porto.”
*
Inconformado com esta decisão, o recorrente M.P. interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«No âmbito do Inquérito identificado em epígrafe e após diligências de investigação, o titular da acção penal efetuou a seguinte promoção:

Atento o teor da denúncia apresentada a fls. 42 a 44 e 112 a 115 e, sobretudo dos relatórios periciais juntos a fls. 188 e ss., concluso presentes autos ao Mmo. Juiz de Instrução, a quem se promove sejam tomadas declarações para memória futura aos dois menores ofendidos (…) a efetuar diretamente pela Sra. Perita subscritora dos relatórios de psicologia Dra. CC, sob direção do Mimo Juiz de Instrução (que, assim, presidirá tal diligência)
Anotou-se aí que a mãe e padrasto dos menores figuram como denunciados:
Tal promoção deu origem ao seguinte despacho judicial: «Nomeio como defensor aos menores o que vier a ser indicado pelo SINOA.

Para a audição dos menores AA BB; nos termos das disposições conjugadas dos arts. 271º do Cód. Penal em declarações para memória futura, sem a presença dos denunciados, designo o próximo dia 20/10 às 10,30 horas neste tribunal - cfr. arts. 271º nº 6 do Código de Processo Penal e 352º nº 1 a) do Código de Processo Penal.
Os menores serão acompanhados durante as declarações por uma das Srs. Técnicas do IML em escala neste Tribunal, face ao protocolo em vigor»
2)
Ora, importa referir que as Srs. Técnicas do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses estão escaladas para todas as terças e quintas feiras (datas em que, «de atacado», são marcados todas estas diligências), no sentido de, indiscriminadamente, acompanharem quaisquer vítimas em declarações para memória futura (num alegado Protocolo onde o Ministério Público, Titular da Ação Penal, não foi, sequer, consultado) e que tem originado inúmeros silêncios (uma vez que não é, sequer, ensaiado qualquer contacto prévio entre a Técnica escalada e a vítima e/ou o Inquérito).
E acontece, amiúde, que tal silêncio cessa, quando a vítima (até em momento posterior) é chamada para prestar depoimento em ambiente menos formal e perante a Técnica que a tem vindo a acompanhar. Mas que não vale como prova antecipada.

3)
Daí que, o Ministério Publico- acreditando motiva judicial da descoberta da verdade e realização da justiça -proferiu novo despacho (aqui em súmula):

«Investiga-se, nestes autos, a eventual prática - por DD e de EE - de:
-1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152 nº 1 al. d) e nº 2 al. a) do Código Penal (na pessoa da a menor AA); e

-1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152° nº 1 al. d) e nº 2 al. a) do Código Penal (na pessoa do menor BB);
(…)
Sem prejuízo de terem ocorrido outros episódios de violência física ou verbal, direita ou indiretamente, para com os referidos menores, ao início da noite de 27 de Janeiro de 2022, o denunciado agrediu a menor AA, agarrando-a e desferindo-lhe várias bofetadas e pancadas no corpo, com um chinelo e um estojo.

(…)

Também, ao início da noite de 31 de Janeiro de 2022 (e portanto, de inverno) e quando se dirigiam para a residência, o denunciado declarou para os menores que ali só entraria quem ele quisesse, permitindo apenas a denunciada EE o acesso ao respetivo interior.

Deste modo, a mesma instou os menores a sentarem-se junto à porta do prédio.
Nesse momento, os menores estiveram ao telefone com o pai e, quando recolhidos em casa, aperceberam-se de uma discussão entre os denunciados.

A determinado momento, a mãe dos menores declarou-lhes não vos quero ver mais à minha frente, vocês os dois já não são mais meus filhos.

E quando colocados fora de casa pelo DD, a denunciada começou a caminhar, aos gritos, afirmando para os filhos que não queria que estes a tratassem mais por «mãe»».

De seguida, a mesma encaminhou os menores até um apeadeiro e instou os filhos a seguirem a linha de comboio até casa do pai. De noite, sentindo-se abandonados e sem saber o caminho, o BB começou a chorar.
E perante a recusa de ambos os menores, a denunciada regressou à referida residência com os mesmos, ainda que - nessa mesma noite lhes tenha voltado a fazer sentir que os pretendia abandonar chegando a afirmar que os mesmos só serviam para lhe estragar a vida.

Acresce que, em datas ainda não apuradas, a denunciada instou os menores a manterem a versão de que a AA havia sido violada por um tio paterno, pois que se contassem a verdade lhes dava «uma coça», tal como o faria também o denunciado DD.

São estes os factos em apreço, objeto de declarações para memória futura aos menores, os quais já foram sujeitos a perícias psicológicas e de psiquiatria.

De enorme relevância os relatórios de psicologia, onde foram descortinadas ambivalências, inconsistências e eventual manipulação por parte da progenitora.

Por outro lado, para além da mais valia deste exame prévio, importa assegurar as condições de prevenção da vitimização secundária e em concreto em relação a vítimas especialmente vulneráveis (como é o caso) importa atender à regra - aliás importada da Convenção de Istambul que «as inquirições devem ser realizadas pela mesma pessoa» (art. 21° da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro).
Neste caso, impõe-se por um lado, um especial ambiente securizante e, por outro, uma especial preparação por parte do interlocutor dos menores.

Ora, «Como refere Armando Leandro:

"Os princípios de intervenção e decisão têm hoje também consagração jurídica bem conhecida, optando-se, no contexto limitado desta comunicação, por destacar o princípio do primado do superior interesse de cada criança, que constitui, simultaneamente:
-um direito substantivo da criança;
- um princípio fundamental de interpretação, com o significado e que, quando uma disposição legal comporta vários sentidos hermenêuticamente admissíveis, deve prevalecer o sentido que melhor anta a efetividade do superior interesse da criança" (…)

"Importante também é o mútuo reforço, [...], dos efeitos gados do Direito e da Ética, apelando ao aprofundamento de várias éticas, nomeadamente: a ética mínima comum que, na base, no fundamento dos direitos na dignidade humana, agregue [...] todos os que se clamam do humanismo e da democracia; a ética da comunicação; a ética da responsabilidade contemporânea; a ética de serviço, que suplante a lógica lateral do poder, a ética da transdisciplinaridade e da interinstitucionalidade: a ética do cuidado em favor do mais frágil, numa perspetiva que suplantando a visão assistencialista, se oriente pela titularidade de Direitos Humanos"

Recorrendo à Convenção para a Protecção das Crianças contra a exploração sexual (Convenção de Lanzarote), aprovada por Resolução da Assembleia da República nº 75/2012, de 28 de Maio, e, em concreto, ao art. 35%, sobre a audição da criança, ou seja, de «qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos, constata-se a obrigação do Estado no sentido de garantir (entre outros direitos) que a tomada de declarações às mesmas seja efectuada «por profissionais com formação adequada a esse fim».
De facto, o envolvimento de criança na justiça pode criar ume dupla vitimização pelas exigências que esta acarreta e pelos esforços de vítima em desolcultar o acontecimento.”

Importa, pois, considerar esta criança, ou seja, cada criança em concreto, nomeadamente, no seu desenvolvimento cognitivo-emocional. (como testemunha competente»)

"A aceitação da criança" "está condicionada a quatro critérios essenciais (…): a distinção entre a verdade e a mentira e a percepção da responsabilidade de dizer a verdade, a compreensão do evento vivenciado; a capacidade de manter uma recordação não contaminada do evento; e a capacidade de expressão verbal do evento vivido".

Daí o papel essencial dos profissionais especializados (psicólogos) para uma adequada adaptação destes critérios aos necessários protocolos de entrevista e, em concreto, ao Protocolo de Entrevista Forense do NICHD National Institute of Child Health na Human Development), entidade que vem defendendo a «necessidade de especialização de entrevistadores forenses de crianças e a implementação de um sistema e formação continua e de supervisão intensiva destes.

Tal especialização não será de tamanha necessidade para a audição, nos termos dos referidos regimes gerais, de uma testemunha indiferenciada ou de um perito, mas é fulcral para estas vítimas especialmente vulneráveis, importando, pois, reconhecer uma evidência: nem o Juiz, nem o Ministério Público ou Advogados a possuem.» (Violência Doméstica o reconhecimento jurídico da
vítima, Almedina, 2019).
Acresce que:
«Conforme Celina Manita e Carla Machado, em «A Psicologia Forense em Portugal - novos rumos na consolidação da relação com o sistema de justiça: «Recentemente, Oliveira (2011) [concluiu que] "O depoimento para memória futura, que pretendia contribuir para que a criança testemunhasse apenas uma vez, não tem estado a ser concretizado adequadamente, existindo uma grande discrepância ao nível das diligências processuais e da condução da entrevista da criança durante o depoimento (e.g., papel do psicólogo que acompanha a criança, estilo da inquirição e das questões colocadas, espaço onde é feito o depoimento, gravação ou não do mesmo), dados consonantes com os que obteve Peixoto (2011). Se conduzida inadequadamente, a participação da criança no Sistema de Justiça pode resultar numa experiência traumática, insecurizante e desestruturante (…). Toma-se, assim, essencial conciliar a avaliação dos factos, o processo de obtenção de informação/prova e as exigências do sistema legal com o bem-estar e a protecção da criança e evitar a vitimação secundária da criança vítima e testemunha (Alberto, 2004; Carmo, 2010; Pace & Precey, 2002; Ribeiro, 2009)."» (retirado do mesmo livro).
Daí que temos vindo a defender (ob. cit.) «se "nas medidas especiais de protecção" encontramos, como parâmero, que inquirições da vítima devem ser realizadas pela mesma pessoa e que aquela deve ser "assistida, no decurso de acto processual, por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal", não se descortina qualquer impedimento legal a que a inquirição sei feita por um juiz, intermediado por esse mesmo técnico que a acompanha (e pode/deve acompanhar) ao longo de todo o processo.

E que nessa tal inquirição, as perguntas adicionais do Ministério Público e Advogados, sejam, de igual modo, materializada por essa mesma pessoa.

De facto, importa atender à diferente redação do referido regime na audiência de julgamento, porque em acto revestido de solenidade, onde se refere, no art. 349º, que a inquirição de toda e qualquer testemunha (vima ou não) de qualquer tipo de crime, quando menor de 16 anos, levada a cabo apenas pelo presidente».

Já no regime de declarações para memória futura, porque antecipação da produção de prova em ambiente informal, apenas se refere que a inquirição é feita pelo juiz», ao mesmo tempo que oferece a referida possibilidade de «contra-inquirição» directa.
E se a redacção é diferente, diferente é, pois, o ditame estabelecido pelo legislador que, em momento algum, para estas vítimas vulneráveis, refere que devam ser ouvidas «directa e exclusivamente» por Juiz. Pelo contrário, ao fazer intervir critérios específicos para as vítimas vulneráveis, tais regimes gerais deverão ceder perante o princípio da mínima revitimização».
No primeiro caso (da audiência) trata-se de um acto reservado ao Juiz de Instrução (levada a cabo apenas pelo presidente); no segundo caso, trata-se de um acto que embora sob sua direção efetiva - poderá não ser levada a cabo «apenas» pelo Juiz (até porque a lei prevê a direta inquirição pelo Ministério Público e pelos Srs. Advogados) - art. 268º do Código de Processo Penal.
E a título de nota, sempre se dirá agora ser o Juiz quem deve proceder às buscas em escritórios de advogados ou entidades bancárias, mas nem por isso é ele que arromba a porta, abre as gavetas e recolhe a papelada. Orienta, ou seja, preside!

Porque presidir não é, necessariamente, executar.
4)
Em resposta a tal promoção, a Mma. Juiz de Instrução, limitou-se a transcrever parcialmente o (sobejamente conhecido) art. 24º da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro. Sem mais!
Mas mantendo «na Integra» o despacho proferido e desvalorizando todo o teor da referida promoção.
Desvalorizou perante a gravidade dos factos (supra descritos).
Desvalorizou perante o facto de se tratar da tomada de declarações a dois menores (e, portanto, especialmente vulneráveis).
Desvalorizou perante o grau de dependência dos mesmos (ofendidos) em relação à mãe (denunciada).
Desvalorizou perante o teor do relatório de perícia efetuado pela Sra. Psicóloga (Técnica) que já entrevistou os menores.
Desvalorizou o determinado pela Convenção de Istambul (para qualquer vítima de violência doméstica) e pela Convenção de Lanzarote;
Desvalorizou por eventual falta de empatia com estas duas vítimas menores, querendo sujeitá-las a uma tomada de declarações pouco menos formal que a audiência de julgamento, onde olhar para elas - numa mesma sala, a estará a Mma. Juiz, o Ministério Público, os Mandatários dos menores e dos denunciados, o Sr. Funcionário e a tal Técnica escalada, que também lhes é completamente estranha. E se nestas circunstâncias, qualquer adulto, de um qualquer crime, se sentiria inibido, quanto mais os menores! Quanto mais estes menores em processo crime «contra» a mãe!

Daí que se advogue até porque existem salas próprias para o efeito (criadas, então, porque?) - a audição dos menores pela Sra. Psicóloga com quem já estiveram (aquando dos respetivos exames), sob prévia e contemporânea orientação da Mma. Juiz, concedendo-se até que (embora indesejável) permaneça na mesma sala; mas com os restantes intervenientes em compartimento contiguo onde podem assistir à diligência (sem serem vistos) e com a faculdade de, posteriormente, sugerirem os esclarecimentos que considerem relevantes e oportunos.
5)
Citando o Sr. Juiz Desembargador e Diretor-Adjunto do CEJ, Paulo Guerra (no Prefácio ao «Audição da Criança; Guia de Boas Práticas: «Há que encontrar estratégias e mecanismos de garantia dos Direitos da Criança envolvida em procedimentos judiciários, cíveis e penais, tutelares cíveis ou tutelares educativos.

O direito de participação envolve as emoções, devendo as crianças participar activamente quando contam o que sentem, por palavras, jogos ou desenhos.

Há que fazer apelo à boa prática de adopção da audição d criança com ajuda de técnicos especializados, quer em acto judicial designado para o efeito, quer aproveitando a audição que eventualmente tenha sido realizada mediante perícia ou Audição Técnica Especializada.

Temos como certo que ouvir as crianças não implica somente fazer perguntas, mas antes observar, estar disponível, criar espaço, liberdade e transmitir respeito. Há que nos consciencializar da importância do silêncio enfrentam no sistema judiciário, tais como os interrogatórios repetidos, os ambientes e procedimentos intimidatórios, a ausência de formação particularmente especializada dos profissionais que as entrevistam, a morosidade não natural dos processos.»
E aqui reitera-se o que se disse sobre o NICHD (National Institute of Child Health na Human Development)
6)
Ao não aplicar o determinado pelo art. 18º da Convenção de Istambul:
Ao não aplicar o art. 6º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Ao não aplicar o art. 22º da referida Lei;
Mas também:
Ao limitar-se a transcrever o nº 5 do art. 24º da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro, a Mma. Juiz ignorou um segmento importantíssimo da norma, ou seja, o nº 3 que determina que «A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das resposta, importante a tal ponto de esta obrigação/dever (por contraposição ao nº seguinte, que refere «em regra») se encontra também espelhado no art. 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
São estes os princípios basilares para o evitamento da vitimização secundária das vítimas de violência doméstica e das vítimas especialmente vulneráveis (máxime, vítimas menores), perante os quais a (mera) formalidade de quem faz as perguntas e um mero acordo de escala de Técnicas de Apoio à Vítima (Psicólogas) deverão inequivocamente ceder.
Ao determinar que a apoio dos menores deverá ser feito por alguém que os mesmos não conhecem (e só vão conhecer, ou melhor, ver, na própria diligência);

ao determinar inquirição deverá ser efetuada/concretizada por si, numa leitura meramente formalista da norma, que a conduzirá a «dar a palavra» ao Ministério Público e aos Advogados;
a Mma. Juiz de Instrução efetuou uma errada interpretação do art. 24º da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro, porque a amputou do seu ² 3 e não a correlacionou com os princípios fundamentais das citadas Convenções (diretamente aplicáveis) e com os arts. 6º e 22º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro.
Acresce que o Ministério Público também pugna pela declaração de invalidade do despacho proferido a fls. 259 por evidente falta de fundamentação, nos termos do art. 97º nº 1 al. b) e nº 5 do Código de Processo Penal.
No entanto, e com mais autorizada apreciação, V. Exas. farão INTEIRA JUSTIÇA.
Promove-se o presente recurso seja instruído com cópias de fls. 42 a 44 v., 67 a 68 v, 110 a 110 v, 193 a 196, 198 a 201, 212, 221, 241 a 242, 245 a 252, 259 e deste recurso.»
*
Não houve resposta.

Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, aderindo à resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, emitiu parecer igualmente no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente e a decisão recorrida mantida.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

Despacho Judicial da Mª Juiz de Instrução que indeferiu a tomada de declarações para memória futura de dois menores, AA e BB, a efetuar diretamente pela Sra. Perita, subscritora dos relatórios de psicologia, sob direção do M.º Juiz de instrução.
*
Factos a considerar:
Despacho do M.P. que antecedeu a decisão revidenda.
“Atento o teor da denúncia apresentada a fls. 42 a 44 e 112 a 115 e, sobretudo, dos relatórios periciais juntos a fls. 188 e ss., conclua os presentes autos ao Mmo. Juiz de Instrução, a quem se promove sejam tomadas declarações para memória futura aos dois menores ofendidos:
- AA; e
-BB;
a efetuar diretamente pela Sra. Perita subscritora dos relatórios de psicologia (Dra. CC), sob direção do Mmo. Juiz de Instrução (que, assim, presidirás tal diligência).
Anote-se que figuram como denunciados:
- DD; e
- EE.
Porto, 03/08/2022”

Despacho da Mª Juiz de instrução alvo de recurso.
“Nomeio como defensor aos menores o que vier a ser indicado pelo SINOA.

Nomeio como defensor a cada um dos denunciados o que vier a ser indicado pelo SINOA.
Para a audição dos menores AA e BB; nos termos das disposições conjugadas dos arts. 271º do Cód. Penal, art. 24. da Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro, art. 1 e 33.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, em declarações para memória futura, sem a presença dos denunciados, designo o próximo dia 20/10 às 10,30 horas neste tribunal - cfr. arts. 271° n° 6 do C.P.P. e 352° n° 1 a) do C.P.P...
Os menores serão acompanhados durante as declarações por uma das Srs. Técnicas do IML em escala neste Tribunal, face ao protocolo em vigor.
Notifique - cfr. art. 271° n° 3 do C.P.P.”

Trecho da promoção do M.P. reiterando a promoção anterior.
“(…)que a inquirição de toda e qualquer testemunha (vitima ou não) de qualquer tipo de crime, quando menor de 16 anos, e levada a cabo apenas pelo presidente já no regime de declarações para memória futura, porque antecipação da produção de prova em ambiente informal, apenas se refere que a inquirição é feita pelo juiz, ao mesmo tempo que oferece a referida possibilidade de contra- inquirição directa.
E se a redacção é diferente, diferente é, pois, o ditame estabelecido pelo legislador que, em momento algum, para estas vítimas vulneráveis, refere que devam ser ouvidas directa e exclusivamente por Juiz. Pelo contrário, ao fazer intervir critérios específicos para as vítimas vulneráveis, tais regimes gerais deverão ceder perante o principio da mínima revitimização,
Face as considerações aduzidas, conclua os presentes autos a Mma. Juiz de Instrução, reiterando-se a promoção de fls. 212.
Porto, 08/10/2022”

AUTO DE DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA

“Data: 20-10-2022 | Sala: 1.22 | Hora de início: 11:16

Juiz de Direito: Dra. FF Procuradora da República: Dra. GG

Escrivã Auxiliar: HH

Sendo a hora marcada, publicamente e de viva voz, identifiquei os presentes a de Inquérito (Atos Jurisdicionais), e de imediato procedi à chamada de todas as pessoas que nele devem intervir, após o que comuniquei verbalmente à Mm Juiz de Direito os presentes, a saber:

PRESENTES:

Menor: BB

Patrona do Menor: Dra. II (a qual se encontrava de escala presencial Tribunal tendo sido nomeada, para o acto, atenta a impossibilidade de comparência da Sra JJ - cfr. requerimento de fis.304)
Defensor Oficioso do denunciado DD: Dr. KK, CP n.º ... (o qual protesta juntar substabelecimento em dois dias)
Defensora oficiosa da denunciada EE: Dra. LL
Perita do INML: Dra. MM

Previamente ao início da presente diligência foi dado conhecimento à Mma. Direito de que os menores se encontravam acompanhados pela Sra. Dra. NN Psicóloga do Centro de Acolhimento ... onde os menores se encontram institucionalizados, tendo sido autorizada a presença da mesma na tomada de declarações dos menores.

Nos termos do disposto nos arts 271°, n° 6, 363° e 364°, todos do C.P. Penal, pela Mm Juiz de Direito foi ordenado que se procedesse à gravação áudio das declarações uma vez que o Tribunal dispõe de meios técnicos idóneos para assegurar a sua reprodução integral, dando assim início à presente diligência:

Menor: BB, filho de OO e de EE, estado civil: Solteiro, nascido em .../.../2012, nacional d Portugal, domicilio: Centro de Acolhimento ..., Valongo, Travessa ..., ... Valongo

Sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento (nº 3 do art 138 declarou: ser filho da denunciada EE e enteado do denunciado DD.

Verificado o condicionalismo previsto no nº 1. do art° 134º, do C.P. Penal, advertido nos termos do nº 2 da mesma disposição legal e declarou: desejar prestar declarações.

As declarações do menor, tiveram início pelas 11:18 horas e término pelas 11:55horas, tendo a diligência decorrido com registo áudio, encontrando-se gravadas no sistema integrado de gravação digital.

Foram solicitados esclarecimentos ao menor pela Mm. Juiz, pela Digna Magistrada do Ministério Público, pela Il. Patrona do menor e pelo Il. defensor oficioso do denunciado DD.

Findas as declarações para memória futura do menor foram tomadas as declarações da menor AA, que se seguem:
AUTO DE DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA

Data: 20-10-2022

| Sala: 1.22 | Hora de início: 11:58 Juiz de Direito: Dra. FF

Procuradora da República: Dra. GG Escrivã Auxiliar: HH

Sendo a hora marcada, publicamente e de viva voz, identifiquei os presentes autos de Inquérito (Atos Jurisdicionais), e de imediato procedi à chamada de todas as pessoas que nele devem intervir, após o que comuniquei verbalmente à Mm Juiz de Direito o rol dos presentes, a saber:

PRESENTES:

Menor: AA
Patrona da Menor: Dra. PP
Defensor Oficioso do denunciado DD: Dr. KK, CP n.° ... (o qual protesta juntar substabelecimento em dois dias)
Defensora oficiosa da denunciada EE: Dra. LL
Perita do INML: Dra. MM
Psicóloga do Centro de Acolhimento ...: Dra. NN

Nos termos do disposto nos arts 271°, n° 6, 363° e 364°, todos do C.P. Penal, pela Mm Juiz de Direito foi ordenado que se procedesse à gravação áudio das declarações, uma vez que o Tribunal dispõe de meios técnicos idóneos para assegurar a sua reprodução integral, dando assim início à presente diligência:

Menor: AA, filha de OO e de EE, estado civil: Solteiro, nascida em .../.../2013, nacional de Portugal, domicilio: Centro de Acolhimento ..., Valongo, Travessa ..., ... Valongo
Pelas 12:00 horas, foi a presente diligência interrompida para troca de sala uma vez que a menor manifestou vontade em prestar declarações apenas na presença da Mma. Juiz.

Após aferir da disponibilidade das salas existentes no 4° piso (salas fechadas com vidro espelhado), foi a diligência transferida para as referidas salas, tendo-se verificado existir problemas informáticos no acesso ao CITIUS solicitando-se intervenção urgente dos Srs. Informáticos que compareceram no local.

Quando eram 12:30 horas, não estando ainda solucionada a questão e após a Il. Patrona da menor informar o Tribunal da sua indisponibilidade em continuar a aguardar uma vez que tinha uma diligência agendada para as 13:30 horas, a Sr. Juiz foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Face ao adiantado da hora e à informação que antecede dou a presente diligência sem efeito não se designando por ora data para realização da mesma.
Notifique.
Logo, foram todos os presentes devidamente notificados.
A presente diligência terminou pelas 12:35 horas”

Decidindo.
Se bem se compreende pretende o recorrente que as declarações para memória futura de crianças seja acompanhada pelos peritos que anteriormente as ouviram em sede de relatório de avaliação psicológica e com a mínima intervenção do juiz de instrução, devendo as perguntas ser realizadas por aqueles, admitindo até que o juiz e demais intervenientes processuais não estejam presentes, mas ocultados por espelhos.
Entende que foi feita pelo tribunal a quo uma errada interpretação do artigo 24.º da Lei n.º130/2015 de 4 de Setembro, porque a amputou do seu n.º3, e não a relacionou com os princípios das convenções diretamente aplicáveis e com o os artigos 6.º e 22.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro.
Conforme se verifica do processado que faz parte dos presentes autos de recurso, o menor BB, de 10 anos de idade, foi já ouvido em declarações para memória futura, constando da respectiva ata que o mesmo esteve acompanhado na diligência pela psicóloga do Centro de Acolhimento onde o menor está institucionalizado e pela Sra. Perita do INML, Dra. MM.
Por sua vez, a menor AA não chegou a ser ouvida em declarações para memória futura porque tendo a AA manifestado a vontade de prestar declarações apenas na presença da Mª Juiz de Instrução, não foi possível disponibilizar sala nesse dia para continuação da diligência.
Regem relativamente a esta matéria os seguintes normativos:

artigo 67.º-A do CPP Vítima
1 - Considera-se:
a) 'Vítima':
i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;
ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte;
iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
c) 'Familiares', o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima;
d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos.
2 - Para os efeitos previstos na subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 integram o conceito de vítima, pela ordem e prevalência seguinte, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e os ascendentes, na medida estrita em que tenham sofrido um dano com a morte, com exceção do autor dos factos que provocaram a morte.
3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.
4 - Assistem à vítima os direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima.
5 - A vítima tem direito a colaborar com as autoridades policiais ou judiciárias competentes, prestando informações e facultando provas que se revelem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Por sua vez, dispõe a Lei 130/2015 de 4-9,
Artigo 17.º
Condições de prevenção da vitimização secundária

1 - A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
2 - A inquirição da vítima e a sua eventual submissão a exame médico devem ter lugar, sem atrasos injustificados, após a aquisição da notícia do crime, apenas quando sejam estritamente necessárias às finalidades do inquérito e do processo penal e deve ser evitada a sua repetição.

Também a Lei 112/2009 de 16-9, no seu artigo 33.º- declarações para memória futura- prevê que:
Artigo 33.º
Declarações para memória futura

1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Feita a contextualização dos factos e das regras legais aplicáveis em causa no recurso interposto pelo M.ºP.º, subscreve-se parecer que se transcreve:
- os relatórios psicológicos juntos a estes autos e resultantes de perícia psicológica realizada aos menores no INML concluem que existem dúvidas por parte da perita-subscritora relativamente à capacidade de testemunhar das duas crianças/ vítimas, pelas razões aí elencadas.
- ainda assim o M.ºP.º em 1ª instância considerou que seria de tomar declarações em tribunal a estas crianças.
- as crianças em causa tem processo de promoção pendente e foi-lhes aplicada medida de promoção e protecção de acolhimento institucional.
- o inquérito criminal pendente foi instaurado por denúncia-crime relativamente a crime de violência doméstica praticado contra as duas crianças pela progenitora e companheiro desta.
- as duas crianças já foram ouvidas sobre os factos em sede da perícia psicológica e revelaram incapacidade de se demarcarem da influência de terceiros, da sua progenitora, mostrando-se confusos e em sofrimento emocional.
- conforme decorre do artigo 33.º da lei 112/2009 de 16-9, o juíz de instrução pode a requerimento, nomeadamente, do M.ºP.º recolher as declarações antecipadas das crianças/vítimas, estando também nesta decisão a ponderação sobre a viabilidade da criança depor e a sua situação de sofrimento emocional e de possível dupla vitimização.
Não obstante, sempre se diz que as crianças/vitimas devem ser especialmente protegidas, conforme determina a lei e as convenções internacionais sobre a matéria e a tal protecção não estando alheio o juízo sobre a pertinência da sua audição e a forma como essa audição irá decorrer, tendo-se alguma reserva sobre a boa decisão assumida sobre a primeira.
Quanto à forma de concretizar tal audição, pode-se afirmar que o despacho recorrido obedeceu ao determinado por lei, percebendo-se, como veio a acontecer, e se encontra documentado, que a gestão sobre a diligência pode, e deve, sempre ser reajustada, no momento em que está a decorrer, o que veio depois a suceder no caso da tomada de declarações à menor AA.
Por outro lado, permitiu-se que a Sra. psicológica do Centro de Acolhimento onde se encontram as duas crianças estivesse presente na diligência, assim como uma perita/psicológica do INML.
A interlocutora directa das crianças seria a Mª Juiz de Instrução, como determinam as Leis já citadas.
Ou seja, a lei é clara relativamente a quem preside à diligência e faz a audição da criança.
A coadjuvação de tal diligência com técnicos psicólogos justifica-se no sentido de garantir que a saúde mental e estado emocional da criança não seja alterado ou prejudicado, podendo haver interrupção ou suspensão da diligência ao mínimo sinal de que isso possa ocorrer.
A audição feita às crianças em sede de perícia em psicologia forense visa atestar da respectiva capacidade de relatarem os factos, de os compreenderem, de os reproduzirem, de se distanciarem de relatos ou influências de adultos de referência, ou outros, de perceberem o impacto do que contam, caso seja mentira, ou verdade.
A audição feita pelo juiz ou M.ºP.º visa concretamente o apuramento rigoroso e fidedigno dos factos, mas parte das premissas e avaliações anteriores que não pode e deve dispensar, para além da garantia do bem-estar psicológico e emocional das crianças no momento em que depõem.
A psicologia forense e a técnica de inquirição para fins judiciais complementam-se mas não se substituem, estando a primeira ao serviço da boa concretização da segunda.
Nem seria compreensível que a um psicólogo coubesse a tarefa de proceder como apurador de factos para preenchimento de recolha probatória, não sendo essa a sua missão como técnico especializado de saúde mental.
A audição da criança dentro da dinâmica da investigação criminal é a recolha de prova e apuramento de factos criminosos imputáveis a terceiro.
A tal propósito, não obsta que esse apuramento de factos tenha como limite da minimização do impacto dessa investigação na vitima-criança, nem esse apuramento deverá ser feito à custa da sua estabilidade emocional e psicológica, o que justificou e justifica todos os mecanismos de protecção previstos em vários diplomas e decorrentes dos princípios consignados em convenções internacionais.
A amplitude de apuramento dos factos do ponto de vista clínico é necessariamente diferente e sem qualquer condicionalismo quanto à sua natureza.
Por último, de referir que a protecção das crianças/vítimas de VD também se faz através da punição dos responsáveis pelos crimes de que foram vítimas e esse propósito não deve ser descurado, apesar de conciliado com a especial protecção a que têm direito.
Mais se adianta que o tribunal a quo protocolou a presença de técnicos de INML, técnicos especializados e com experiência na audição das crianças, pelo que não se vê a necessidade de impor a presença na diligência a quem previamente os tenha já ouvido para efeitos de elaboração de relatórios periciais, até porque tais perícias revestem natureza diferente da diligência de declarações para memória futura, podendo até gerar situações de entorpecimento no andamento célere do processo, por necessidade de conciliação de agendas que aqueles peritos também têm de assegurar no Instituto.
E seguramente a tomada de declarações é sempre presidida e orientada pelo Juiz, podendo este socorrer-se dos técnicos presentes para se garantir a estabilidade emocional da criança na sua audição e a correta colocação e perceção das perguntas, permitindo-se assim reduzir e atenuar a revitimização da mesma, assegurando-se em simultâneo o não atropelo do direito ao contraditório dos demais intervenientes que deverão assistir e esclarecer-se por intermédio do juiz. E tudo sem que se coloque em questão os ajustamentos que se considerarem pertinentes ao bom andamento da diligência, como fez o tribunal a quo, ao perceber e permitir que uma das crianças quisesse falar sozinha somente na presença da juíza e ainda ao permitir a presença da Srª técnica da Instituição onde as mesmas se encontram acolhidas, mostrando que observou, esteve disponível, criou espaço, liberdade e transmitiu respeito para com elas.
Como se vê não se mostram violados os artigos 18º da Convenção de Istambul, os arts. 6º e 22º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro e o art. 24º, n º 35 da Lei nº 130/15 de 04 de setembro.
Não é demais lembrar que os poderes de disciplina e direção da audiência pertencem em exclusivo ao juiz que preside a diligência e é ele que no momento concreto, ouvidos os presentes e segundo o seu sensato critério e com poder de decisão individual, decide a melhor forma de se proceder à inquirição, estabelecendo em função da presença da concreta criança (mais extrovertida, menos extrovertida, mais instável emocionalmente ou não, incomodada ou não com a presença dos demais intervenientes) o modo e a forma como vai depor, adaptando a audiência às circunstâncias, podendo no momento decidir, se assim o entender, pelo uso de salas próprias para o efeito que tenham sido criadas, com os restantes intervenientes em compartimento contiguo onde podem assistir à diligência (sem serem vistos) e com a faculdade de, posteriormente, sugerirem os esclarecimentos que considerem relevantes e oportunos.
Acresce ainda que a diligência em causa, declarações para memória futura, é ela, só por si, o mecanismo por excelência destinado a precaver e a atenuar o calvário da revitimização, salvaguardando que a tomada de declarações sirva para posterior apreciação da prova. Ora, neste particular aspeto é o juiz e não outro qualquer quem está particularmente apto a colocar as questões pertinentes essenciais ao apuramento da verdade material dos factos ocorridos, quem está em condições de procurar os factos capazes de serem subsumidos no tipo legal de crime.
Finalmente importa ainda referir que não existe falta de fundamentação. O despacho da Srª juíza a quo não só remeteu para o anteriormente decidido e não tinha que se pronunciar concretamente sobre todos e cada um dos argumentos apresentados pelo M.P em promoção anterior, como invocou o art. 24º, n º 1 da Lei n º 130/15 de 04.09, justificando que a técnica designada para assistir estava especialmente habilitada. Dele se extrai que mantinha o anteriormente decidido, a inquirição das crianças com a presença das técnicas sociais protocoladas.
Não foi violado o art. 97º nº 1 al. b) e nº 5 do Código de Processo Penal.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo M.P.

Sem custas pelo recorrente.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 08 de março de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.