Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
134/14.4TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO ANTECIPADA
FALTA DE INFORMAÇÃO DOS RENDIMENTOS E PATRIMÓNIO
Nº do Documento: RP20220407134/14.4TJPRT.P1
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se o devedor não informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, pode decretar-se a cessação antecipada da exoneração do passivo restante mesmo que não estejam verificados os requisitos do dolo ou negligência grave e sem que seja necessário provar que isso causou prejuízo aos credores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:134.14.4TJPRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto, apresentou-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante.
Foi declarada a insolvência e proferido despacho a admitir liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante, tendo o rendimento mensal necessário ao sustento da devedora sido fixado na quantia equivalente a um salário mínimo nacional.
No decurso do período da exoneração e face ao teor dos relatórios elaborados pelo Fiduciário, o credor Banco ..., S.A. veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do C.I.R.E., que a insolvente fosse notificada para repor o valor em falta, por conta da fidúcia, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, por violação do preceituado no artigo 239.º, n.º 2, do C.I.R.E., ex vi artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, o que desde logo requeria caso não viessem a ser repostos tais montantes.
A insolvente foi notificada, na sua pessoa e na do patrono nomeado, para, em 10 dias, proceder ao depósito do valor do rendimento disponível calculado, bem como exercer o contraditório quanto à pretensão do referido credor, nada tendo respondido.
O Fiduciário apresentou novo relatório reiterando o que já havia informado nos anteriores de que a insolvente apesar de notificada por si para o efeito não lhe ter fornecido qualquer informação sobre os seus rendimentos ou entregue qualquer rendimento cedido.
A insolvente notificada deste relatório nada respondeu.
Por fim, foi proferido o seguinte despacho:
«[…] Nos presentes autos de processo de insolvência, relativos a AA, o credor “Banco ..., S.A.” veio requerer a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante. Foi observado o contraditório, não tendo o insolvente tomado posição.
Cumpre apreciar.
Importa atender aos seguintes factos:
1) O pedido de exoneração do passivo restante foi deferido liminarmente por despacho proferido em 2 de Abril de 2014.
2) O processo foi declarado encerrado por despacho proferido em 16 de Abril de 2018.
3) Em 5 de Julho de 2018, o Fiduciário remeteu carta à insolvente interpelando-a para apresentar a documentação necessária ao cálculo do rendimento disponível.
4) A insolvente respondeu ao Fiduciário, designadamente informando não quanto à falta de rendimentos e às suas despesas, não apresentando qualquer documentação.
5) Em 2 de Agosto de 2019, o Fiduciário remeteu carta à insolvente interpelando-a para apresentar a documentação necessária ao cálculo do rendimento disponível.
6) A insolvente respondeu ao Fiduciário remetendo a liquidação do IRS do ano de 2018 da própria e do cônjuge no valor de 72.210,90€ e invocando que não dispõe dos recibos de reforma por os mesmos ficarem nos CTT.
7) O rendimento disponível da insolvente foi calculado em 3.326,34€ com referência ao período entre Julho de 2017 e Junho de 2018 e em 3.433,98€ com referência ao período entre Julho de 2018 e Junho de 2019.
8) A insolvente foi notificada, na sequência do despacho proferido em 7 de Julho de 2020, para proceder à entrega do valor apurado no prazo de 10 dias.
9) Não procedeu à entrega e nada requereu.
10) Em 23 de Junho de 2020, o Fiduciário remeteu carta à insolvente interpelando-a para apresentar a documentação necessária ao cálculo do rendimento disponível.
11) A insolvente não respondeu ao Fiduciário.
12) A insolvente foi notificada para tomar posição e não apresentou qualquer justificação para a omissão.
Os factos enumerados resultam assentes pelo teor dos próprios autos e termos do processo.
Constitui, designadamente, fundamento para a cessação antecipada do procedimento de exoneração a violação dolosa ou com culpa grave das obrigações que são impostos ao insolvente com a prolação do despacho de deferimento liminar da exoneração, como é o caso da obrigação de entrega imediata ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão, conquanto tal importe prejuízo para a satisfação dos credores. É o que resulta do disposto nos arts. 239.º, n.º 4, al. c), e 243.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Também o incumprimento da obrigação de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado constitui fundamento para a cessação antecipada, tal como previsto no art. 239.º, n.º 4, al. a), do CIRE, independentemente daquele juízo de prejuízo para a satisfação dos credores. O que bem se percebe: o cumprimento desta obrigação é essencial para habilitar o fiduciário a determinar o valor do rendimento disponível e a apurar o pontual cumprimento da obrigação de entrega desses valores, bem como os credores a controlarem, por sua vez, a actividade do fiduciário. Por essa razão, o incumprimento daquela obrigação de informação tem um tratamento especial, isto é, importa sempre a recusa da exoneração quando, sem fundamento razoável, o insolvente não lhe der cumprimento. É o que decorre do art. 243.º, n.º 3, do CIRE.
Dito por outras palavras: dada a essencialidade do cumprimento desta obrigação, a recusa não está dependente da verificação dos pressupostos da culpa agravada (dolo ou negligência grave) e do prejuízo para a satisfação dos créditos. O que aliás se compreende, pois ao não dar cumprimento a tal obrigação, o insolvente coloca o fiduciário e os credores na impossibilidade de controlar o cumprimento daquela outra obrigação.
Dito isto,
Para além do grave e já reiterado incumprimento da obrigação de entrega do rendimento disponível – do que só se teve por referência o rendimento relativo à pensão e não já outros porque não prestou quaisquer informações –, ascendendo o valor apurado a quantia não desprezível e, por isso, com expressão bastante para constituir um prejuízo para os credores (desde logo, o Estado), mais relevo ainda assume o deliberado incumprimento da aludida obrigação de informação.
Na verdade, nunca cumpriu tal dever perante o Fiduciário mas, mais grave ainda, não o fez, nem apresentou qualquer justificação mesmo após ter sido notificada pelo Tribunal perante a informação dada pelo Fiduciário. É certo que se obteve oficiosamente informação quanto aos valores recebidos a título de pensão, mas: primeiro, a obrigação de informação recai em primeira linha sobre a insolvente, só se desonerando da mesma em caso de absoluta impossibilidade de prestação da informação, o que nunca validamente invocou (poderia requerer perante os CTT ou o Centro Nacional de Pensões registo dos valores recebidos); segundo, fica ainda assim por saber se não auferiu rendimentos a outro título.
Desta forma, impõe que se conclua pela cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Pelo exposto, determino a cessação antecipada do procedimento de exoneração. […]»
Do assim decidido, a insolvente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. A decisão recorrida é nula por falta de fundamentação factual e legal
B. Dado que carece absolutamente de factualidade que sustente e integre a previsão legal para o caso;
C. Pelo que está ferida da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC que vem expressamente arguir para que seja conhecida.
D. A decisão proferida viola o disposto no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, na sua alínea a), porquanto
E. Não está provado nos autos que a insolvente tenha dolosamente incumprido obrigações;
F. Não está provado nos autos que tenha, com negligência grave, incumprido obrigações;
G. Donde não se verifica que haja prejudicado a satisfação dos créditos da insolvência.
H. O credor requerente da cessação antecipada da exoneração não invocou qualquer facto fundamentador do seu pedido;
I. O que estava obrigado a fazer por ser tal fundamentação elemento constitutivo do seu direito;
J. Pelo contrário, consta dos autos factualidade donde se alcança a ingenuidade, lisura e talvez desconhecimento por parte da insolvente;
I. Consequentemente a decisão proferida e ora recorrida viola a lei na medida não estão preenchidos os pressupostos e requisitos essenciais;
L. Pelo que violou a norma do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, devendo ser revogada e substituída por outra que mantenha a em vigor o procedimento de exoneração do passivo restante.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.
ii) Se não estão reunidos os pressupostos para o decretamento da cessação antecipada da exoneração do passivo restante.

III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir constam do relatório que antecede.

IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da decisão recorrida.
A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação.
O vício alegado manifestamente não existe.
A decisão recorrida possui fundamentação de facto pois nela o Mmo. Juiz a quo elenca de modo explícito os factos nos quais baseia a sua decisão.
Esses factos são puramente processuais na medida em que se reportam a notificações e pedido de informações formulados nos autos ou através dos autos pelo Fiduciário e à ausência de resposta da insolvente, razão pela qual a motivação da decisão de jugar provados esses factos por mera remessa para as páginas dos autos que contém as notificações e não contém resposta da insolvente é absolutamente suficiente e incontroversa.
A decisão possui igualmente fundamentação de direito, na medida em que nela são indicadas as normas legais aplicadas e feita a respectiva subsunção aos factos considerados provados, de modo a justificar a decisão à luz do direito aplicável.
Resta reiterar a afirmação indiscutível de que o eventual erro da decisão, o mau julgamento, não se confunde com os vícios da sentença, designadamente a falta de fundamentação que corresponde a uma absoluta ausência de fundamentação que impeça o destinatário de apreender as razões, de facto e de direito, nas quais a decisão se baseia.
Improcede assim, sem mais, esta arguição.
B] da existência de fundamento para a cessação antecipada da exoneração:
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) prevê no título relativo às disposições específicas da insolvência de pessoas singulares um mecanismo, denominado exoneração do passivo restante, através do qual o devedor consegue obter a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Em resultado da exoneração que venha a ser concedida em definitivo, o devedor, findo o período de cinco anos, recupera a plena disponibilidade do seu rendimento e não é mais obrigado ao pagamento aos credores dos créditos destes que não foram pagos pelo produto da liquidação. Os credores, por sua vez, vêm os seus créditos extinguirem-se sem terem sido cumpridos, ficando em definitivo por satisfazer na medida em que a massa insolvente e o rendimento disponível do insolvente cedido durante aquele período de 5 anos não haja sido suficiente para os pagar.
A concessão deste benefício excepcional depende da verificação de um conjunto de requisitos de natureza processual e substantiva, os quais, nas palavras de Carvalho Fernandes, in A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, pág. 276, são «dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém».
É a necessidade de verificação desse merecimento que justifica, aliás, que na pendência do período de cessão o devedor esteja sujeito a «severas obrigações e um comportamento correcto, cuja inobservância impede a efectiva exoneração (art. 243º e 244º), sem prejuízo da afectação, já feita, dos seus rendimentos» (autor cit., loc. cit, pág. 308).
A mesma ideia foi expressa pelo legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que institui esta figura, ao referir-se à mesma como um «benefício» para o devedor e ao dizer que será a «ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar» que «justificará … que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».
A concessão da exoneração compreende sempre dois momentos, caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
A estes dois momentos certos, a lei acrescenta dois outros momentos decisórios eventuais: a cessação antecipada do procedimento e a revogação da exoneração. A exoneração dos créditos pode ser recusada no decurso do período de cinco anos se houver fundamento para fazer cessar antecipadamente o incidente e, apesar de concedida (a final), a exoneração pode ainda ser revogada, no ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que a concedeu, precisamente com os mesmos fundamentos que teriam determinado o indeferimento liminar ou a recusa antecipada de exoneração.
Num primeiro momento, perante o pedido de exoneração e ouvidos os credores e o administrador de insolvência, o juiz pronuncia-se sobre a admissibilidade do pedido de exoneração proferindo o chamado despacho inicial, onde afere da existência das condições mínimas para aceitar o pedido de exoneração. Verificando-se essas condições, o juiz admite liminarmente o pedido, não se verificando tais condições, o juiz indefere-o sem mais.
Para efeito de prolação do despacho de admissão liminar do pedido, o Código define os requisitos a preencher pelo insolvente pela negativa. Em vez de definir os requisitos em resultado de cuja ocorrência o pedido deveria ser admitido liminarmente, as normas legais seguem um percurso inverso: por regra o pedido é admitido sem mais e só assim não sucederá (sendo indeferido) na hipótese excepcional de ocorrer alguma das situações taxativamente indicadas. Estas não são assim elementos constitutivos do direito à exoneração, mas antes elementos impeditivos da (admissão do pedido de) exoneração (no sentido de que impedindo a admissão liminar do pedido, impedem também obrigatoriamente a concessão da exoneração no despacho final).
Estes elementos compreendem aspectos puramente procedimentais e objectivos (prazo, benefício anterior de pedido similar) e aspectos materiais ou substantivos, alguns deles com recurso a cláusulas gerais ou conceitos indeterminados (“perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”, “elementos que indiciem com toda a probabilidade”), cujo apuramento e demonstração é particularmente difícil e complexa, quando as normas não regulam sequer o processo para fazer esse apuramento e demonstração e, pelo contrário, apontam para a decisão mediante simples despacho a proferir na assembleia de credores, ouvidos os interessados.
Em consequência do despacho inicial da exoneração, os insolventes ficam obrigados a cumprir as obrigações decorrentes art.º 239º, nº 4, após o encerramento do processo de insolvência (início do período de cessão), podendo a violação dolosa ou gravemente negligente das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Mas a admissão do pedido (deferimento liminar, nas palavras da lei), não significa que a exoneração esteja concedida ou que o venha a ser necessariamente. Significa apenas que (i) se não for aprovado e homologado nenhum plano de insolvência e (ii) se durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o devedor observar uma série de imposições previstas na lei, será exonerado das suas obrigações insatisfeitas. A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só irá ser feita depois de decorrido esse período de tempo, na chamada decisão final (artigo 244.º do CIRE).
Existe, portanto, a possibilidade de a exoneração ter sido admitida liminarmente, mas não vir a final a concretizar-se. E isso pode ocorrer em duas situações específicas: a cessação antecipada do procedimento de exoneração, em que a exoneração cessa antes mesmo de terminar o prazo da cessão, e a revogação da exoneração, em que a exoneração é anulada depois de já ter decorrido o respectivo prazo.
O artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante nos seguintes moldes:
«1- Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2- O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3- Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las».
O artigo 243.º reporta-se às situações em que durante o período de cinco anos e, portanto, sem esperar a conclusão deste, o juiz pode, a requerimento a requerimento fundamentado de um credor, do administrador ou do fiduciário, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, inviabilizando a futura concessão do benefício.
Por sua vez o artigo 246.º do mesmo diploma prevê a revogação da exoneração nos seguintes termos:
«1- A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
2- A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito.
3- Antes de decidir a questão, o juiz deve ouvir o devedor e o fiduciário
A compreensão destas duas normas demanda que se tenha presente o disposto no n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo o qual o insolvente é obrigado, durante o período da cessão, ao seguinte:
«a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores».
Temos, assim, que a cessação antecipada da exoneração pode ocorrer: i) logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – art.º 243º, nº 4; ii) sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e iii) sempre que, de modo superveniente, se verifique que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
A lei exige que o requerimento seja fundamentado, o que significa que o requerente deve invocar as causas justificativas da pretendida cessação antecipada do procedimento.
No caso, a cessação antecipada foi requerida pelo credor Banco ..., S.A. com fundamento na violação do preceituado no artigo 239.º, n.º 2, do CIRE, ex vi artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, ou seja, na não entrega pela insolvente do valor dos seus rendimentos objecto da cessão.
Estamos, pois, perante um requerimento que invoca um fundamento específico da cessação antecipada requerida, cumprindo aquela exigência legal, a qual, note-se, é somente a de o requerimento possuir fundamentação (o requerente não pode por isso limitar-se a requerer a cessação antecipada, tem de indicar os factos dos quais essa consequência poderá resultar), sem que isso delimite em absoluto os poderes de cognição do tribunal, na medida em que este poderá sempre lançar mão dos factos de que pode conhecer oficiosamente e é livre na subsunção jurídica dos factos.
Com interesse e aplicação ao caso que nos ocupa retira-se das citadas disposições o seguinte regime:
1) Se o insolvente tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º e por esse facto tiver prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência, pode ser determinada a cessação antecipada da exoneração.
2) Esses requisitos aplicam-se especificamente quando o insolvente tiver ocultado ou dissimulado quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título.
3) Porém, se a falha do insolvente for não informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, a cessação antecipada da exoneração pode ser determinada sem que estejam verificados os requisitos do dolo ou negligência grave e sem que seja necessário provar que isso causou prejuízo aos credores.
4) Se o devedor não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar à audiência em que deveria prestá-las, a exoneração só não cessa se o insolvente demonstrar que a sua falha se deveu a motivo razoável ou justificar a falta à audiência.
5) Em qualquer caso, o insolvente tem de ser ouvido antes de ser decretada a cessação antecipada a fim de lhe ser permitido provar que não ocorreu a falha que lhe é atribuída pelo requerente da cessação ou desculpar a sua falha nos termos do ponto anterior.
No caso a decisão recorrida imputa à insolvente duas situações, sendo que ambas as situações têm como fundamento factos praticados no âmbito dos presentes autos que são, por isso mesmo, do conhecimento oficioso do tribunal (artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil) podendo ser considerados na decisão.
A primeira é a não entrega do rendimento cedido relativo aos vários anos do período da exoneração cuja cessão estava determinada. O respectivo montante foi apurado pelo fiduciário levando em conta o valor da pensão de reforma auferida pela insolvente, a qual foi notificada e nada opôs a esse apuramento, tal como foi notificada para efectuar o seu depósito pelo fiduciário e pelo tribunal e não o efectuou, nem forneceu qualquer explicação para o facto.
A segunda é a não prestação, no prazo que lhe foi assinalado nas diversas notificações para o efeito, da informação necessária para determinar o rendimento a ceder no período posterior àquele apuramento.
Como vimos já, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, durante o período da cessão o insolvente é obrigado a «não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado», «entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão».
Por sua vez nos termos do artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a cessação antecipada do procedimento de exoneração deve ser declarada quando «o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência». E será sempre feita cessar «se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações».
Quanto à não entrega do rendimento cedido, temos que a insolvente foi expressamente notificada do relatório que o apurou e não se opôs a esse apuramento e foi expressamente notificada para fazer o depósito e não o fez nem deu qualquer explicação.
Para que esse comportamento constitua fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração é necessário que se trate de uma conduta dolosa ou gravemente negligente do devedor e que dela resulte prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Face às notificações feitas e à ausência de resposta deve considerar-se, à luz das regras da experiência, preenchido o elemento intelectual do dolo, na medida em que para além de não poder deixar de conhecer os seus próprios rendimentos e os deveres da exoneração, a insolvente recebeu as notificações do fiduciário e, aquando da primeira notificação, até lhe respondeu, denotando não ser pessoa impreparada ou iletrada mas não fornecendo as informações solicitadas, o que revela que não podia deixar de ter conhecimento da sua situação. Em função da reiterada falta de resposta às notificações, feitas inclusivamente ao seu mandatário, deve igualmente julgar-se verificado o elemento volitivo do dolo.
No tocante ao prejuízo a sua existência é uma evidência porque se havia rendimento a afectar à satisfação dos créditos e esse rendimento não foi entregue, os créditos não obtiveram a satisfação correspondente.
Refira-se que a norma legal em apreço respeitante à cessação antecipada apenas exige o prejuízo, distinguindo-se do regime que o nº 1 do artigo 246º estabelece para os casos de recusa da exoneração, que exige o dolo (não basta a negligência grave) e um prejuízo relevante (não qualquer prejuízo) [Cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 03-06-2014, proc. 747/11.6TBTNV-J.C1, in www.dgsi.pt, onde se afirma que «a violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, por exemplo, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração: deve tratar-se de um prejuízo relevante (artºs 243 b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE). Realmente, ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação do insolvente resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aquele, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa do insolvente para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, nitidamente mais exigente: esse prejuízo deve ser relevante.»]
Quanto à não prestação das informações solicitadas, recordamos que nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado, designadamente a «informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado».
Trata-se de um dever que se filia na preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida a exoneração, a qual, repete-se, não representa só um benefício para o devedor, representa em simultâneo um sacrifício para os credores que se vêm privados do seu direito em benefício de um particular e sem qualquer contrapartida, o que torna razoável a imposição de deveres de conduta ao devedor, sendo certo que os mesmos são de fácil cumprimento e apenas exigem um escasso grau de diligência e interesse.
Por isso é necessário que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor, para o que está vedado a este ocultá-los ou dissimulá-los e lhe é cominada a obrigação de prestar todas as informações que o tribunal e o fiduciário lhe solicitem, sobre os seus rendimentos e o seu património, mesmo, sublinhe-se, que estas evidenciem a inexistência de rendimentos a ceder em benefício dos credores.
A violação deste dever específico possui um regime próprio.
Enquanto a violação dos demais deveres previstos impostas pelo artigo 239.º, n.º 4, apenas é fundamento de cessação antecipada do procedimento e/ou de recusa da exoneração se, como vimos, o comportamento do devedor for praticado com dolo ou negligência grave e, cumulativamente, acarretar prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, a violação do dever de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, gera a consequência expressamente prevista na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º.
Nos termos desta norma, a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações. O advérbio sempre pretende significar que esta consequência é inevitável, não depende de outros requisitos para além da omissão do dever de informação.
O que os factos nos revelam é que a devedora foi interpelada, pelo fiduciário e pelo tribunal, para prestar informações sobre o seu rendimento e a sua situação patrimonial, inclusivamente através do seu patrono, sendo certo que não pode caber no âmbito dos presentes autos apreciar o zelo com que o patrono exerceu o patrocínio ou as respectivas responsabilidades.
Apesar disso, nem a devedora nem o patrono forneceram qualquer informação ou explicação para o sucedido. Quando foi notificada para se pronunciar, a insolvente podia alegar circunstâncias para tentar demonstrar que o seu comportamento se devia a um motivo razoável e, eventualmente, aproveitar mesmo para prestar as informações em causa e documentá-las, caso em que o tribunal podia, eventualmente, desvalorizar as falhas cometidas e relevar as informações na decisão relativa ao incidente.
Não tendo isso sucedido, verifica-se também por aqui fundamento para decretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Por todas estas razões, o recurso é improcedente.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Não há lugar ao pagamento de custas do recurso por a recorrente e responsável pelas mesmas estar dispensada do seu pagamento.
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Porto, 7 de Abril de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 678)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]