Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2663/02.3TAVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: LEI DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
TIR
Nº do Documento: RP201902062663/02.3TAVNG-B.P1
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º789, FLS.38-43)
Área Temática: .
Sumário: I - As leis internas bem como a lei de Cooperação Internacional e a lei do MDE acolhem princípios que foram desenvolvidos pelo Conselho da Europa nas suas convenções sectoriais, e a sua aplicação assume especial relevância no domínio da extradição e da execução do MDE, tais como o da reciprocidade, da dupla incriminação, da subsidiariedade, do ne bis in idem, e sobretudo do da especialidade.
II - O princípio da especialidade traduz-se em “limitar os factos pelos quais o extraditando será julgado, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega”; e visa afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição ou do MDE e se acaba por julgar o extraditado ou detido e entregue por outro que se não invoca.
III - A Lei 65/2003, de 23 de Agosto consagra o princípio da especialidade no seu artigo 7º, n.º l e algumas das suas excepções no n.º 2 do mesmo artigo. Na Lei interna de cooperação internacional em matéria penal, Lei 144/99, este princípio é consagrado no art. 16º, que seguiu de perto o disposto no art. 14º da Convenção Europeia de Extradição, ratificada por Portugal.
IV - No âmbito do MDE o princípio da especialidade é atenuado como decorre do artigo 27º da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao Mandado de Detenção Europeu e do artigo 7º da Lei do MDE – n.º 65/2003 de 23 de Agosto
V - Face ao disposto na Convenção Europeia, que foi a fonte inspiradora do artigo 16º da Lei 144/99, o Estado requerente pode tomar as medidas necessárias com vista à interrupção da prescrição nos termos da sua lei.
VI - No que respeita à excepção prevista no art. 27º, n.º 3 al. c) da decisão-quadro 2005/584, o Ac. do Tribunal de Justiça Europeu (Terceira Secção) de l de Dezembro de 2008 e no processo-crime contra Artur Leymann e Aleksei Pustovarov fixou a seguinte jurisprudência; «A excepção prevista no artigo 27º, n.º 3, alínea c), da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, segundo a qual a regra da especialidade, prevista no artigo 27º, n.º 2, não se aplica caso o procedimento penal não dê lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual da pessoa, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, o consentimento deve ser pedido, em conformidade com o disposto no artigo 27º, n.º 4, da decisão-quadro, e obtido se houver que dar execução a uma pena ou a uma medida privativas da liberdade. A pessoa entregue pode ser sujeita a procedimento penal e condenada por uma infracção dessa natureza antes de ser obtido o consentimento, desde que não lhe seja aplicada uma medida restritiva da liberdade no decurso do processo ou do julgamento relativos a essa infracção”.
VII - A mera prestação de TIR não implica a obrigação de comparência do arguido em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal pelo que nada impede o Estado Português de, através das suas autoridades judiciárias, na pendência da entrega do arguido para outro processo, tomar o TIR ao arguido para efeitos de fazer cessar a contumácia e assim impedir a prescrição do procedimento criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 2663/02.3TAVNG-B.P1
Comarca do Poto
Juízo Criminal de Gondomar.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
No Processo Comum Singular n.º 2663/02.3TAVNG do Juízo Local criminal de Gondomar, Juiz 1, em que é recorrente B…, foi proferido despacho em 18.10.2018, constante a fls. 30 dos presentes autos, 1054 do processo principal, no qual se decidiu: «Como se deixou expresso no despacho de fls. 1034-1038, ao caso em apreço não se aplicam as limitações decorrentes do princípio da especialidade ínsito no n.º 1 do artigo 7º da Lei n.º 65/2003, de 23.08, porquanto se verifica a exceção prevista na al. c) do n.º 2 desse preceito. Por essa razão, prendendo-se a exceção com a al. c) e não com a al. f), mostra-se irrelevante que o arguido tenha afirmado não prescindir do benefício desse princípio.
O despacho é claro, não se lhe vislumbra qualquer nulidade (nem tão pouco a defesa a esclarece), pelo que, a transitar em julgado o despacho, não há nenhuma invalidade a conhecer.
Notifique
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O recurso foi liminarmente admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 28.11.2018 – fls. 37 destes autos de recurso.
Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral adjunto emitiu Parecer no sentido de que a não se modificar o regime de subida do recurso deverá ser negado provimento ao recurso.
No despacho liminar entendeu-se ser de manter o regime de subida do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, n.º2, do CPP, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido - artigo 412.º, n.º 1, do CPP -, que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, é a seguinte a questão a apreciar e decidir.
- Saber se a prestação de TIR pelo arguido em 27.09.2018, violou o princípio ou regra da especialidade estabelecido no art. 7.º, da Lei n.º 65/2003, de 23.08.
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2. Factualidade.
1. O Despacho de 24.09.2018, tem o seguinte teor:
«O arguido B…, acusado da prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelo artigo 218º, n.º 1 do Código Penal, foi declarado contumaz em 15-07-2008, situação em que se mantém.
O procedimento criminal, conforme despacho de fls. 991-992, não está prescrito.
Tendo-se tomado conhecimento que o arguido se encontrava detido no EP de Vale de Sousa desde 15-01-2018 em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 657/01.5PAVCD do juízo central criminal de Vila Nova de Gaia-J2 após cumprimento de mandado de detenção europeu para o efeito, foi solicitado ao EP a tomada de TIR ao mesmo, o qual não foi prestado por recusa do arguido invocando "não prescindir de especialidade" (fls. 981, 1001/1002 e 1027).
Nos termos do artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23.08:
"1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.
2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:
a). A pessoa entregue, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado membro de emissão não o fizer num prazo de 45 dias a contar da extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regressar a esse território após o ter abandonado;
b). A infracção não for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade;
c). O procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual;
d). A pessoa entregue seja sujeita a pena ou medida não privativas da liberdade, nomeadamente uma sanção pecuniária ou uma medida alternativa, mesmo se esta pena ou medida forem susceptíveis de restringir a sua liberdade individual;
e). A pessoa, previamente à sua entrega, tenha nela consentido e renunciado ao beneficio da regra da especialidade perante a autoridade judiciária de execução;
f). A pessoa, após ter sido entregue, tenha renunciado expressamente ao beneficio da regra da especialidade no que diz respeito a determinados factos praticados em data anterior à sua entrega;
g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.
g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega.
Seguindo de perto jurisprudência das Relações de Évora e Lisboa (acórdãos de 24-05-2018 relatado pelo M.mo Juiz Desembargador Dr. António Condesso e de 04-01-2007 relatado pelo M.mo Juiz Desembargador Dr. Ribeiro Cardoso, ambos consultados em www.dgsi.pt), com a qual se concorda, «o princípio da especialidade - inato ao instituto tradicional da extradição, que traduz a limitação do âmbito penal substantivo do pedido, cuja abrangência se encontrava vedada e circunscrita aos factos motivadores do pedido de extradição - surge como uma garantia da pessoa procurada e como limite da acção penal ou da execução da pena ou da medida de segurança e representa uma segurança jurídica de que não será julgada por crime diverso do que fundamenta o Mandado de Detenção Europeu (MDE), ou que não cumprirá sanção diversa da que consta do MDE.
O princípio da especialidade - que restringe o poder do Estado requerente de processar, de julgar, deter ou sujeitar a restrição da liberdade da pessoa extraditada ou entregue aos factos que fundamentaram o pedido e a decisão de extradição - preenche a lista de vários princípios que ornam o instituto da extradição, inscritos na Convenção Europeia de Extradição - art. 14.° - e perdura no âmbito do MDE, embora configurado a uma maior celeridade e eficácia da cooperação judicial penal no espaço da União, e, consequentemente, uma diminuição da garantia da protecção dos direitos das pessoas procuradas.
O art. 7.º da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto (lei interna de implementação da Decisão Quadro do Mandado de Detenção Europeu), consagra princípio da especialidade, nos termos supra transcritos.
Todavia, o legislador português - imbuído no espírito de eficácia e celeridade processual e na ideia da descoberta da verdade e de realização da justiça como factores determinantes para a edificação do espaço penal europeu, cujo elemento segurança se sobrepõe à liberdade individual e colectiva, e no desiderato da economia de meios materiais e de recursos jurídicos - estabeleceu, na esteira das Convenções de Bruxelas de 1995 e de Dublin de 1996, limites ao princípio da especialidade, podendo este ser desterrado por factores de localização da pessoa, de direito material e de volição (subjectiva) da pessoa entregue ou a entregar.
No que respeita ao factor de direito material, a regra da especialidade quebra-se por as consequências jurídicas da infracção não consignarem uma privação da liberdade, não obstante a poderem restringir, e por as medidas a aplicar no procedimento penal não poderem restringi-la [alin. b) e c) do n.°2 do art. 7. da Lei n.° 65/2003].
[...] Com efeito, o que se pretende tutelar é o direito à liberdade individual na sua acepção clássica, isto é, a liberdade física da pessoa, com o sentido que tem no art. 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na interpretação que lhe é dada pelo TEDH, e que serviu de matriz ao art. 27.º da nossa Lei Fundamental.
Assim, o direito à liberdade significa, como decorre do contexto global do citado art. 27.º da Lei Fundamental, o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar. A Constituição não contém uma disposição consagrando um direito à liberdade em geral; não garante a liberdade em geral mas sim as principais liberdades em que ela se analisa (cf. Vital Moreira e Gomes Canotilho, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a edição revista, a pág. 184)."
Afigura-se-nos, no caso dos autos, que, nos termos referidos, nada impede o prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido pelos factos constantes da douta acusação pública, uma vez que não foi requerida ao arguido qualquer medida de coacção restritiva da sua liberdade individual para além da sua sujeição a TIR, que é uma medida imposta directamente pela lei em todos os casos em que se opere a constituição como arguido, ou seja, conatural ao estatuto de arguido (cf. art. 196 n.º l, 58, 60 e 61 do CPP).
Por isso, e salvo opinião diversa, a invocação do princípio da especialidade para evitar a constituição formal como arguido e a prestação de novo TIR necessárias à cessação da contumácia não pode lograr acolhimento, já que estamos perante uma situação de quebra da regra da especialidade.
Assim, entendendo não ser convocável o princípio da especialidade, determino que, após trânsito deste despacho, se solicite ao EP a constituição formal do arguido nessa qualidade nos termos dos artigos 58º e 61º CFP e a tomada de TIR: caso o mesmo se recuse a assinar, deverá ser lavrada nota do incidente, atestada por duas testemunhas, valendo como notificação. Notifique ao MP, ao arguido e à Ilustre Defensora.»
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2º. A este despacho seguiu-se a tomada do TIR, a 27.09.2018, e a arguição pelo recorrente de nulidade do despacho ora transcrito, cuja decisão é a decisão recorrida.
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3.- Apreciação.
Como vimos a questão posta é a de saber se a prestação de TIR pelo arguido em 27.09.2018, violou o princípio ou regra da especialidade estabelecido no art. 7.º, da Lei n.º 65/2003, de 23.08.
O recorrente sustenta tal violação, pois na sua óptica não pode aplicar-se a al. c) do n.º2 do artigo 7º.
- Pois este é taxativo a dizer que quando o procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual.
- E o crime pelo qual o Recorrente está acusado, é o crime de burla qualificada e prevê uma moldura penal de pena de prisão até cinco anos ou pena de multa de 600 dias.
Para concluir que a referida alínea jamais pode ser aplicada ao caso concreto atendendo a que o Recorrente está acusado por um crime com medida restritiva da liberdade.

Vejamos.

As nossas leis internas quer a lei de cooperação internacional quer a lei do MDE acolhem princípios que foram desenvolvidos pelo Conselho da Europa nas suas convenções sectoriais, e a sua aplicação assume especial relevância no domínio da extradição e da execução do MDE. Falamos do princípio da reciprocidade, da dupla incriminação, da subsidiariedade, do ne bis in idem, e sobretudo do da especialidade.

No que especificamente diz respeito ao princípio da especialidade, ele visa afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição ou do MDE e se acaba por julgar o extraditado ou detido e entregue por outro que se não invoca.

Começou-se por se ver nele o interesse da proteção da soberania dos Estados. Pois, ir para além daquilo que o Estado requisitado autorizara e concedera, significava, por parte do Estado requerente, o desprezo pelas condições impostas pelo Estado requerido, e, nessa medida, por este mesmo. Daí que tal desrespeito pudesse ser tido como ofensa à própria soberania do Estado requerido.

O interesse na proteção da soberania do Estado requerido foi depois combinado, ou mesmo completamente substituído, pela proteção dos interesses do próprio extraditado. A ponto de o princípio da especialidade ser situado no âmbito dos direitos do homem. Nesta abordagem humanista do princípio, a especialidade será uma regra a observar em obediência ao costume internacional, verdadeiro direito consuetudinário internacional, valendo mesmo na falta de disposições convencionais que a ela aludam.

Houve já quem radicasse o princípio na al. a) do nº 3 do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. Anna Zaïri in “Le Principe de la Specialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme”, L.G.D.J., 1992, pág. 19 e segs., apud Cruz Bucho, Pereira, Mário Mendes Serrano in “Cooperação Internacional Penal I, Extradição, Transferência de Pessoas Condenadas”, C.E.J., pag.40).

A Lei 65/2003, de 23 de Agosto consagra o princípio da especialidade no seu artigo 7º, n.º1 e algumas das suas excepções no nº2 do mesmo artigo.

Na Lei interna de cooperação internacional em matéria penal, Lei 144/99, este princípio é consagrado no art. 16º, que seguiu de perto o disposto no art. 14º da Convenção Europeia de Extradição, ratificada por Portugal.


Como se afirma no relatório explicativo da Convenção 144/99, sobre as medidas conservatórias permitida no n.º2, do artigo 14º da Convenção, devemos permitir estas medidas «pois que um Estado teria podido tomá-las se o indivíduo acusado não tivesse sido extraditado».- vide Droit Pénal Européen, Jean Pradel Geert Corstens, Editions Dalloz 1999, pág. 153.

Sobre as obrigações do Estado requerente no domínio do princípio da especialidade, segundo a Convenção Europeia de 1957, a doutrina francesa tem vindo a pronunciar-se no sentido de que são legítimos ao Estado requerente todos os atos judiciários que não impliquem a presença ou um papel ativo do interessado. Pelo contrário, serão nulos todos os atos que impliquem a presença do interessado, quer ela seja ativa como um interrogatório ou mesmo uma intimação para comparência ou quer ela seja passiva, como na detenção ou prisão preventiva - vide autores e obra citada na mesma pág. 153.

Sublinha-se, assim, que face ao disposto no referido artigo da Convenção Europeia, que foi a fonte inspiradora do artigo 16º da Lei 144/99, o Estado requerente pode tomar as medidas necessárias com vista à interrupção da prescrição nos termos da sua lei.

Por outro lado, no âmbito do MDE verifica-se que o princípio da especialidade é atenuado como decorre do artigo 27º da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao Mandado de Detenção Europeu e do artigo 7º da Lei do MDE- nº 65/2003 de 23 de Agosto, que tem a seguinte redação:
1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.
2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:
(…)
b) A infracção não for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade;
c) O procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual;
d) A pessoa entregue seja sujeita a pena ou medida não privativas da liberdade, nomeadamente uma sanção pecuniária ou uma medida alternativa, mesmo se esta pena ou medida forem susceptíveis de restringir a sua liberdade individual;
(…)
No que respeita à exceção prevista no art. 27º, n.º3 al. c) da decisão-quadro 2005/584, o Ac. do Tribunal de Justiça Europeu (Terceira Secção) de 1 de Dezembro de 2008 e no processo-crime contra Artur Leymann e Aleksei Pustovarov fixou a seguinte jurisprudência:
«A excepção prevista no artigo 27.º, n.º 3, alínea c), da Decisão-quadro 2002/584 relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, segundo a qual a regra da especialidade, prevista no artigo 27.º, n.º2, não se aplica caso o procedimento penal não dê lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual da pessoa, deve ser interpretada no sentido de que, no caso de uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue, o consentimento deve ser pedido, em conformidade com o disposto no artigo 27.º, n.º4, da decisão-quadro, e obtido se houver que dar execução a uma pena ou a uma medida privativas da liberdade. A pessoa entregue pode ser sujeita a procedimento penal e condenada por uma infracção dessa natureza antes de ser obtido o consentimento, desde que não lhe seja aplicada uma medida restritiva da liberdade no decurso do processo ou do julgamento relativos a essa infracção. A excepção prevista no artigo 27.°, n.º 3, alínea c), não se opõe, porém, a que a pessoa entregue seja sujeita a uma medida restritiva da liberdade antes de obtido o consentimento, desde que essa medida seja legalmente justificada por outras acusações constantes do mandado de detenção europeu.»

Também a jurisprudência portuguesa já se pronunciou no sentido de que: «…nos termos e para os efeitos prevenidos no art. 27.º n.º3, alin. c) da referida Decisão Quadro e do art. 7.º n.º 2, alin. c) da Lei n.º 65/2003, nada impedia o prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido, ora recorrente, pelos factos constantes da douta acusação pública, uma vez que não foi requerida, nem aplicada ao arguido qualquer medida de coacção restritiva da sua liberdade individual, para além da sua sujeição a TIR que é uma medida imposta directamente pela lei em todos os casos em que se opere a constituição como arguido, ou seja, conatural ao estatuto de arguido (cf. art. 196 n.º1, 58, 60 e 61 do CPP)»- Ac. do TRL de 04.01.2007, Proc. 1007/2007-9 e no mesmo Sentido o Ac-. do TRE de 24.05.2018, proc. n.º 170/12.5TABNV.E1

Decorre dos autos que o aqui recorrente encontra-se detido por via da execução de um MDE de que o Estado emissor é o Estado Português. O referido MDE não foi emitido por via do procedimento criminal em causa nestes autos.

Decorre igualmente que ao arguido não foi aplicada, no âmbito dos presentes autos, uma medida de coacção diferente do TIR, não se encontrando, por isso, privado da liberdade nem tendo sido, para tanto, privado da liberdade.

Ora se é verdade que o princípio ou regra da especialidade, restringe o poder do Estado requerente de deter ou julgar, ou sujeitar a pessoa entregue a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, também é verdade que a simples Prestação do TIR quando o arguido se encontrava detido no E.P. por lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva no âmbito de outro processo [repete-se processo para o qual fora executado um MDE do Estado Português], não sujeitou, para tal efeito, o arguido a qualquer restrição da sua liberdade pessoal.

Se a al. c) do n.º2 do artigo 7º da Lei do MDE tivesse a interpretação que o recorrente lhe empresta, na sua argumentação, de remeter para a punibilidade da infracção no âmbito de cujo procedimento criminal se tomou TIR ao arguido; isto é para a o crime alegadamente praticado e suas consequências, não se compreenderia a existência simultânea das duas alíneas do n.º2 do art. 7º: as als. c) e b) [esta sim remete para a infracção praticada e as suas consequências para arredar de imediato do âmbito de protecção do princípio da especialidade as infracções que não forem puníveis com pena ou medida de segurança privativas da liberdade].
Com efeito, a al. c) não usa a mesma linguagem que a al. b) e “uma medida restritiva da liberdade”, para efeitos da interpretação das duas alíneas, não é a mesma coisa “que pena ou medida de segurança privativas da liberdade”; “A infracção” não é a mesma coisa que “O procedimento penal”, referindo este apenas ao procedimento pelo crime.

A mera prestação de TIR não implica a obrigação de comparência do interessado em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal [nas palavras da lei “qualquer medida restritiva da liberdade”], tanto assim que o Estado Português poderia tê-la tornado efetiva, independentemente do MDE, nomeadamente através de uma carta rogatória.

Assim, verificamos que nada impedia o Estado Português de através das suas autoridades judiciárias, na pendência da entrega do arguido para outro processo, tomar o TIR ao arguido para efeitos de fazer cessar a contumácia e assim impedir a prescrição do procedimento criminal, não tendo havido para o efeito qualquer restrição da sua liberdade.

Tal prestação de TIR não equivale a uma extensão não autorizada dos limites abrangidos pela entrega do arguido ao abrigo do MDE emitido pelo Estado Português e executado por um Estado Membro.

Concluindo não foi violada a regra ou princípio da especialidade.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida - artigo 513º, nº 1, do CPP, e artigo 8º, nº 9 e tabela III anexa, do RCP - em 3 (três) U.C.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do C.P.P.
Porto, 06 de Fevereiro de 2019.
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares