Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2275/21.2T9GDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: AVERIGUAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE
COMPARÊNCIA DE TESTEMUNHA SOB DETENÇÃO
Nº do Documento: RP202110122275/21.2T9GDM-A.P1
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O direito do pretenso pai à liberdade não é superior ao direito da criança à sua identidade, podendo aquele ser detido para comparência em diligência de prova quando tal se justifique à luz do critério legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2275/21.2T9GDM-A.P1

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:
No âmbito do processo de Averiguação Oficiosa de Paternidade/Maternidade com o nº 2482/20.5T9GDM que corre termos Ministério Público - Procuradoria da República da Comarca de Coimbra- Procuradoria do Juízo Local Cível e Criminal de Cantanhede, foi expedida carta precatória solicitando a notificação pessoal através do competente OPC de B… e, caso se verifiquem os necessários pressupostos legais, a emissão das necessários mandados de condução.
No cumprimento da carta precatória 2275/21.2T9GDM, foi B… notificado pessoalmente, sob cominação, para comparecer nos Serviços do Ministério Público afetos à 2.º Instância Central da Família e Menores do Porto – Núcleo de Gondomar para prestar declarações, aquele não compareceu nem justificou a falta no prazo legal.
Veio a digna Procuradora da República, nos autos de averiguação oficiosa da paternidade, pedir ao Senhor Juiz do Juízo de Família e Menores de Gondomar, o seguinte:
-A condenação do indigitado pai em multa; e
-A emissão de mandados para comparência daquele, nos Serviços do Ministério Público, a fim de ser ouvido nos Serviços do MP, ouvido no âmbito do processo de averiguação oficiosa de paternidade.
Sobre esta pretensão recaiu despacho de 14 de julho de 2021, que que indeferiu a emissão de mandados de comparência do pretenso progenitor e a sua condenação em multa.
A Magistrada do MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do menor C…, veio interpor recurso de tal despacho, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida violou os artigos 26º, 36º, 67º, 68º, 69º e 27º, nº3, al. f) todos da CRP; artigo 7º, nº 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque em 26/01/1990, aprovada por Portugal e publicada no D.R., I serie de 12/9/1990; artigo 33º do RGPTC; e artigo 417º, nº 2, do CPC.
2. O MP não pode concordar, enquanto legal representante do menor, com o despacho do Mmo. Juiz que indeferiu a emissão de mandados de comparência do pretenso progenitor e a sua condenação em multa.
3. É que sufragando o entendimento do Mmo. Juiz podemo-nos deparar com uma situação em que o MP recebe a certidão da Conservatória do Registo Civil (com a paternidade omissa), marca a inquirição da mãe, a mãe falta, e o MP arquiva de imediato a AOP, porque nada mais pode fazer e não tem ao seu dispor qualquer outro meio que lhe permita recolher elementos para o estabelecimento da paternidade.
4. Ora, artigo 33º do RGPTC está inserido no Capítulo II- Disposições Processuais Comuns, as quais se aplicam a todos os processos especiais do Capítulo III, composto por nove secções, constituindo a averiguação oficiosa da maternidade ou da paternidade a secção VI.
5. Assim, se o fundamento do indeferimento se prende com a inexistência de previsão legal expressa que permita a intervenção do juiz nos atos para quais a sua competência é exclusiva, creio que o mesmo é facilmente resolúvel, com a aplicação subsidiária das regras do Código de Processo Civil – artigo 417º, nº 2, face ao disposto no artigo 33.º do RGPTC.
6. Pois, se não se entender assim, onde fica o superior interesse desta criança, designadamente o direito à identidade.
7. O direito do pretenso pai à sua liberdade (ao ser coercivamente obrigado a comparecer em tribunal, simplesmente, para prestar declarações) – artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa – não é superior ao direito do menor à sua identidade pessoal – artigo 26.º, n.º 1, do Diploma Fundamental.
8. Todo o ser humano tem o direito de conhecer a sua origem biológica, os seus ascendentes e estabelecer ou ver reconhecidos os vínculos de filiação. Ora, coartando-se o pretenso progenitor ao dever de colaborar com a descoberta da verdade biológica está-se a impedir o direito desta criança à sua identidade pessoal.
9. Por outro lado, também é defensável considerar-se o processo de averiguação oficiosa de maternidade e de paternidade como um processo especial das Secções de Família e de Menores, onde a instrução e a decisão pertencem ao Ministério Público e tão só.
10. Uma vez que do artigoº 6.º, al. i), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, resulta que compete às Secções de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Comarca em matéria tutelar cível proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade. Assim, não se atribui esta competência aos serviços do Ministério Público, mas sim às ditas Secções.
11. Tal interpretação também não se afigura desproporcionada ao que está previsto na lei, pois o mais importante é assegurar que a todas as crianças, ou seja recém-nascidos, com paternidade omissa, neste caso o C…, tenha assegurado o seu direito a identidade, independentemente da interpretação que se possa fazer das normas vigentes
Nestes termos e melhores de direito, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, deve o presente recurso proceder, decidindo-se pela revogação do douto despacho, impugnado nos termos expostos, o qual deverá ser substituído por outro no qual se condene o pretenso progenitor em multa processual e se ordene a emissão de mandados de comparência contra o mesmo, a fim de o fazer comparecer nesta secção de Família Menores, em data a designar.”

Não houve contra-alegações.

II-OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso consiste unicamente em saber se devem ser emitidos os mandados de comparência do pretenso progenitor faltoso e a sua condenação em multa.

III-FUNDAMENTAÇÃO:
Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais supra mencionados no relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS
Visam os autos que correm termos nos Serviços do Ministério Público averiguar oficiosamente a paternidade da criança C…. A progenitora indicou como indigitado pai B….
Este, notificado pessoalmente para comparecer nos serviços do Ministério Público, para prestar declarações, sob cominação, não compareceu nem justificou a falta.
A Digna Procuradora requereu emissão de mandados de comparência do pretenso progenitor e a sua condenação em multa.
O Senhor Juiz do Tribunal de Família e Menores de turno, indeferiu a pretensão do Ministério Público, essencialmente por duas ordens de razões:
A primeira porque, apesar dos processos tutelares cíveis terem a natureza de jurisdição voluntária (art. 12º do RGPTC), a legislação atual retirou à averiguação oficiosa de maternidade ou de paternidade o seu carácter de processo judicial das secções de Família e de Menores, onde a instrução e a decisão final pertencem ao Ministério Público, reforçando mesmo o seu carácter administrativo. Conclui não estarmos perante um processo judicial, mas administrativo, pelo que a natureza do processo não permite a emissão de mandados de comparência.
A segunda razão, é por entender que não existem normas especiais que habilitem a emissão dos mandados de condução sob custódia, afastando a aplicabilidade aos processos de averiguação oficiosa de maternidade ou de paternidade, do 508º nº 1 do CPC, porque a mesma pressupõe a comparência de pessoa que tenha a qualidade de testemunha a um ato concreto, audiência de julgamento, o que não ocorre na situação em apreço, sendo que o art. 33nº 1 do RGPTC não permite a remissão para o art. 417º nº 2 do CPC, porque a não ser assim, tal entendimento equivaleria a fazer do artigo 33 nº 1 do RGPTC uma norma atributiva de competência, o que manifestamente não é.
Vejamos.
A averiguação oficiosa da paternidade não constitui um processo judicial.
Com efeito, a averiguação oficiosa da maternidade ou da paternidade constitui uma providência tutelar cível, nos termos do art. 3.°, i), do Regime Geral do Processo Tutelar Civil, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, que entrou em vigor em 08 de Outubro de 2015, a seguir designado por RGPTC.
Operou-se uma desjudicialização destes processos de averiguação oficiosa, com atribuição de competência exclusiva ao Ministério Público para a sua decisão e instrução, deixando o juiz enquanto titular de órgão jurisdicional de ter qualquer intervenção no processo (cfr. arts. 17º nº2, 60º e 62º do RGPTC.
Assim, a tramitação a movimentação dos respetivos processos são feitas exclusivamente nas secções de processos dos serviços do Ministério Público, pelos oficiais de justiça próprios da carreira do Ministério Público, conforme se dispõe no art. 3.ºnº. 3 do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 47/86, de 15 de outubro).
A decisão final sobre a viabilidade ou inviabilidade da ação de investigação da paternidade é exclusiva do Ministério Público, sendo que de tal despacho não pode haver recurso judicial, sendo o seu controle feito por via da reapreciação hierárquica, sem qualquer intervenção do juiz – arts. 62º e 63º do RGPTC.
O processo de averiguação oficiosa de maternidade ou de paternidade destina-se essencialmente à propositura eventual de uma ação pelo próprio Ministério Público. É esta circunstância a razão de ser da norma que atribui ao Ministério Público a competência para a instrução de tais processos.
Constituindo a emissão de mandato de comparência sob custódia ato de natureza judicial, porque contende com os direitos de liberdade das pessoas, apenas pode fundar-se em decisão judicial, sendo que o titular do processo de averiguação- o Ministério Público -não tem competência para tal.
Só assim não será se existir norma expressa que habilite a emissão de tais mandatos no âmbito dum processo de tal natureza.
É o que acontece por exemplo, em processo penal.
O artigo 116º do CPP expressamente prevê que em caso de falta de comparência de qualquer pessoa regularmente notificada, o juiz a condene em multa, prevendo o nº 2 da mesma norma que o juiz pode ordenar oficiosamente ou a requerimento a detenção de quem tenha faltado injustificadamente pelo tempo indispensável á realização da diligência.
Por sua vez, o artigo 273º do CPP confere mesmo ao Ministério, em ato de Inquérito a possibilidade de emissão de mandato de comparência.
Resta então apurar se no caso em apreço existe norma idêntica que habilite a emissão de mandatos e condenação em multa.
O art. 60º nº 1 do RGPTC dispõe o seguinte:
“A instrução dos processos de averiguação oficiosa para investigação de maternidade ou de paternidade ou para sua impugnação incumbe ao Ministério Público, que pode usar de qualquer meio legalmente admitido.” (sublinhado nosso).
Para além desta norma conferir poderes amplos de investigação ao Ministério Público para usar dos meios de prova legalmente admitidos, o art.33º do RGPTC estabelece a aplicação subsidiária das regras de processo civil que não contrariarem os fins da jurisdição de menores.
Ou seja, todas as questões não expressamente reguladas pelo RGPTC serão resolvidas através das regras previstas no Código de Processo Civil, devidamente adaptadas e cuja solução não contrarie os fins da jurisdição de menores.
Coloca-se a questão de saber se o Ministério Público, no âmbito da instrução que dirige, tendo em vista a descoberta da verdade biológica, (com a finalidade de eventualmente ir a propor uma eventual de uma ação) e a quem são atribuídos poderes de utilização de todos os meios probatórios legalmente admissíveis, para o efeito, pode ou não recorrer aos meios coercivos, legalmente previstos que têm em vista tornar efetivos tais meios probatórios.
Quer a condenação em multa, quer a passagem de mandatos de comparência constituem meios coercivos que a lei processual (penal e civil) coloca á disposição do julgador, quando se revelam necessários em determinadas situações concretas expressamente previstas na lei, para tornar efetivos tais meios de prova.
Na lei processual civil, que é a que ora nos interessa, por constituir direito subsidiariamente aplicável aos Processos Tutelares Cíveis, como vimos, o art. 417º do C.P.C estabelece um especial dever de colaboração para a descoberta da verdade a todas as pessoas, sejam ou não partes na causa. E prevê a condenação em multa “daqueles que recusem a colaboração devida, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis” (art. 417º nº 2 do CPC).
E o art. 508º nº 4 do CPC, prevê a emissão de mandados para assegurar a comparência de testemunhas em audiência de discussão e julgamento, sem prejuízo condenação em multa.
Pressupõe que a pessoa cuja comparência coerciva se pretende assegurar tenha a qualidade de testemunha e, por outro, que a sua presença seja necessária num concreto ato – a audiência de discussão e julgamento – que é presidido pelo juiz, num processo judicial.
Estas normas processuais prevêem mecanismos processuais, de índole coerciva destinados a evitar a falta de colaboração daqueles a quem a lei impõe o dever de colaboração, para dessa forma se evitar inviabilização da prova, e em última análise a descoberta da verdade, atribuindo ao juiz a competência para os aplicar.
A possibilidade de recurso àqueles meios coercivos, não se mostra especialmente prevista, já que o art. 60º nº 1 do RGPTC dispõe apenas que na instrução dos processos de averiguação oficiosa para investigação de maternidade ou de paternidade ou para sua impugnação o Ministério Público pode usar de qualquer meio legalmente admitido.
Assim sendo, entendemos que tal constitui caso omisso, sendo aplicável o art. 33º do RGPTC que permite a aplicação daquelas normas processuais cíveis, que não contrariam a jurisdição de menores, devidamente adaptadas.
Subscrevemos assim o entendimento de Tomé d´Almeida Ramião, in RGPTC anotado e Comentado, Quid Iuris pg 246, quando afirma o seguinte: “A solução preconizada não obsta que, em caso de necessidade de intervenção do juiz no âmbito da instrução do processo, nomeadamente condenar em multa ou fazer comparecer sob detenção, mediante a emissão dos respetivos mandatos de condição, a testemunha faltosa, tal como sucedia no âmbito da OTM, o processo lhe seja remetido para esse concreto efeito tendo em conta o disposto nos art. 33º nº1, art. 417º nº 2 do CPC, nº 3 do art. 123º da LOSJ , e art. 302º da CRP”.
Tal como refere o Ministério Público nas suas conclusões recursivas, o direito do pretenso pai à sua liberdade (ao ser coercivamente obrigado a comparecer em diligencia processual, simplesmente, para prestar declarações) – artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa – não é superior ao direito do menor à sua identidade pessoal – artigo 26.º, n.º 1, do Diploma Fundamental.
Assim sendo e porque se verifica o necessário circunstancialismo previsto quer no art. 417º nº 2 do CPC e 508º nº 4 do CPC, aplicáveis aos autos, por força das normas supra citadas, impõe-se a revogação da decisão proferida, que deverá ser substituída por outra, com a condenação da testemunha faltosa em multa, e emissão dos competentes mandados de comparência nos Serviços do Ministério Público, em data e diligência processual a indicar.

V-DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em jugar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, pela falta de competência a diligencia processual não justificada, condene a testemunha em multa e emita os competentes mandatos de detenção para comparência na diligência a designar.
Sem custas.

Porto, 12.10.2021
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró