Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1311/22.0T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO M. MENEZES
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202302221311/22.0T8OAZ.P1
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tal como o Tribunal Constitucional vem decidindo, o regime de cassação (automática) previsto no artigo 148.º, n.º 2, alínea c), do Código da Estrada, não é inconstitucional, designadamente por violação de princípios consagrados nos artigos 18.º, n.º 2 (proporcionalidade e respetivos subprincípios), 29.º, n.º 5 (proibição do bis in idem), e 30.º, n.º 4 (proibição de efeitos automáticos das penas), da Constituição da República Portuguesa.
II - Da exigência de que o decretamento da cassação prevista na citada norma legal seja «ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução» (n.º 10 do mesmo preceito), não pode retirar-se qualquer exigência de que essa mesma cassação seja sujeita ao sopeso (necessariamente subjetivo) de quaisquer fatores relativos às infrações praticadas e ao respetivo agente.
III - A maior ou menor necessidade que o condutor porventura tenha de exercer a condução rodoviária não releva – também por falta de previsão legal que o consinta – para a conformação das consequências fixadas no citado artigo 148.º, n.ºs 4, alínea c) (cassação do título de condução), e 11 (impossibilidade de obtenção de novo título de condução antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação), do Código da Estrada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º: 1311/22.0T8OAZ.P1
Origem: Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis
Recorrente: AA
Referência do documento: 16611174

I
1. O ora recorrente impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que confirmou decisão por seu turno proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, através da qual se determinou a cassação do título de condução de que o mesmo recorrente é detentor, nos termos previstos no artigo 148.º, n.ºs 4, alínea c), e 10, do Código da Estrada.
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:
«I - RELATÓRIO
AUTORIDADE NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA (ANSR), instaurou o processo de cassação do título de condução contra AA, melhor id. nos autos, nos termos do disposto na al. c) do n.º4 e do n.º10 do art. 148.º do Código da Estrada.
[...]
Organizado o respectivo processo veio, no final a decidir-se pela verificação dos pressupostos previstos na al. c) do n.º4 e do n.º10 do art. 148.º do Código da Estada, determinando a autoridade administrativa a cassação do título de condução n.º ... pertencente ao arguido.
Não se conformando, veio o arguido por requerimento expedido em 16.07.2021, impugnar judicialmente a decisão administrativa, arguindo, em síntese, inconstitucionalidade da al. c) do n.º2 do art. 148.º CE, por violação das disposições previstas nos arts. 29.º n.º5, 30.º n.º4 e 18.º n.º2 CRP, bem assim arguindo que a autoridade administrativa não deu cumprimento do disposto no art. 148.º n.º10 CE, não tendo sopesado as circunstâncias com vista a proferir decisão no caso concreto, imputando automaticidade no procedimento, mais arguindo factualidade relacionada com a necessidade do título de condução por parte do arguido.
[...]

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS
Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. AA é titular da carta de condução n.º ....
2. O arguido foi condenado no P. Sumaríssimo 30/17.3GCOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 04.07.2017, transitada em julgado em 07.09.2017, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. art. 292.º n.º1 e 69.º n.º1 al. a) CP, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5,00 e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 4 meses.
3. O arguido foi condenado no P. Sumário 289/17.6GBOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 15.05.2017, transitada em julgado em 29.01.2018, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. art. 292.º e 69.º n.º1 al. a) CP, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €7,00 e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 10 meses.
4. O arguido foi condenado no P. Abreviado 24/20.1GBOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 10.09.2020, transitada em julgado em 12.10.2020, pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1 al. a) do C.Penal, em referência ao art 152º/3 do CE, na pena de 7 meses de prisão; um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º n.º 1 do C.Penal, na pena de 15 meses de prisão; em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 17 meses de prisão e ao abrigo do disposto nos art.ºs 50.º, nº 1 e 5 e 52.º, nº1, al. b) e c) e nº 3 do Código Penal, foi suspensa a execução dessa pena de prisão, por igual período; foi ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 8 meses, nos termos do art. 69.º n.º 1 al. a) do C. Penal.
5. Em face da condenação sofrida em 2. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
6. Em face da condenação sofrida em 3. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
7. Em face da condenação sofrida em 4. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
8. Na sequência das condenações referidas em 2. e 3. por despacho de 25.01.2021 foi instaurado contra o arguido na ANSR processo de cassação do título de condução n.º ..., ao qual foi atribuído o n.º ..., no âmbito do qual o arguido foi notificado nos termos e para efeitos previstos no art. 50.º RGCOC e apresentou defesa escrita, vindo a final a ser proferida decisão determinando a cassação do título de condução do recorrente, aí se pronunciando sobre os argumentos esgrimidos pelo recorrente na referida defesa escrita, dali resultando, ademais que se dá por integrado e reproduzido que:
“Importa, ainda, referir que atenta a perigosidade intrínseca do comportamento rodoviário assumido pelo condutor, a culminar em duas condenações por crime rodoviário, ambas cominadas com pena acessória de proibição de conduzir, e a premência dos bens jurídicos envolvidos, a cassação do título de condução não ofende de forma intolerável o direito ao trabalho, encontrando-se antes plenamente justificada em face das elevadas exigências preventivas que se verificam neste âmbito.
Acresce que, o facto de o condutor necessitar da carta de condução para o exercício da sua atividade profissional não consubstancia qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, nem obsta à verificação dos pressupostos legais da cassação.
Por último, é de mencionar que o condutor foi regularmente notificado do presente processo de cassação, tendo-lhe sido concedida oportunidade para se pronunciar, por escrito (o que fez), e requerer produção de prova, tendo assim sido cumpridas todas as disposições referentes ao Princípio do Contraditório (Cfr. art. 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, art. 50º do Regime Geral das Contra-ordenaçoes, arts. 175º, e 176º do Código da Estrada), pelo que se indefere o pedido de audição do condutor, sem negação do direito de defesa do arguido.”.

Mais se provou que:
9. O recorrente tem o 9.º ano de escolaridade, é mecânico por conta própria, auferindo rendimentos médios mensais entre €800,00 a €1.000,00, vive em casa própria com a companheira, a qual trabalha, auferindo pelo menos o salário mínimo nacional, vivem com os filhos de 12 anos e 8 meses de idade.

A.2) FACTOS NÃO PROVADOS
a) O arguido é pessoa bem considerada, bem educada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade.
b) O arguido necessita diariamente de titulo que o habilite a conduzir, para poder deslocar-se para o seu local de trabalho, por forma a exercer a sua actividade profissional.
O mais constante da acusação e da defesa integra matéria genérica, conclusiva, de direito ou desprovida de interesse para a boa decisão da causa, razão pela qual não foi atendida da decisão sobre a matéria de facto.

A.3) MOTIVAÇÃO
[...]

B) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Resulta do processo administrativo instaurado ao arguido junto da ANRS decisão a final determinando a cassação do título de condução ... nos termos do disposto na al. c) do n.º4 e do n.º10 do art. 148.º CE.
Ora,
resulta do disposto no art. 121.º-A CE que
“1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos.”.
Por sua vez, nos termos do disposto no art. 148.º CE
“1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2- A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.”
Mais resulta da al. c) do n.º4 do mesmo artigo que
“A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
(…) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.”.
Resulta ainda do n.º10 do mesmo artigo que “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.”.
Resulta ainda dos n.ºs 11 e 12 do mesmo artigo que:
“11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.”.

- DA FALTA DE PROCESSO AUTÓNOMO
Vem o arguido invocar que a autoridade administrativa não deu cumprimento ao disposto no n.º 10 do art. 148.º CE, não tendo em consideração o alegado pelo mesmo em sua defesa, automatizando o procedimento que deu origem à decisão final proferida.
Salvo o devido respeito, não colhe o alegado. Na verdade,
conforme resulta da factualidade dada por provada a ANSR determinou a instauração de processo de cassação do título de condução do arguido, atribuindo-lhe número próprio e no âmbito do qual o arguido foi notificado nos termos e para os efeitos previstos no art. 50.º do RGCOC, apresentou aí a sua defesa, vindo a final a ser proferida decisão de cassação do título de condução, tendo em tal decisão sido apreciados os argumentos esgrimidos na defesa, não tendo a autoridade administrativa entendido necessária audição do condutor, que já o havia feito por escrito.
De modo que se entende que foi instaurado processo próprio, autónomo, cumpridos os formalismos legais, não se vendo sequer, face à defesa escrita do arguido a violação de quaisquer direitos de defesa do arguido, que sempre se mostrariam supridos pela sua audição em juízo e com o presente recurso.

- DA ALEGADA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Argui o recorrente que o art. 148.º n.º2 al. c) (quererá dizer n.º4) CE viola o p. ne bis in idem, previsto no art. 29.º, n.º 5 da CRP, do qual resulta que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Sustenta tal argumento no facto de ao arguido ter sido condenado em penas acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados e por decisão da ANSR, com fundamento nos mesmos factos, vir agora decidida a cassação da sua carta de condução.
Ora, salvo devido respeito, não colhe também neste particular o argumento invocado.
Sobre esta matéria já se pronunciaram os Tribunais Superiores, mormente o TRCoimbra em Ac. de 06.11.2019, P. 4289/18.0T8PBL.C1, in www.dgsi.pt, que neste segmento acompanhamos e por razão de brevidade reproduzimos:
“Da análise do quadro legal resulta com nitidez que com o sistema da carta por pontos teve o legislador o propósito de incutir no espirito dos condutores uma mais completa perceção sobre as consequências das infrações de trânsito, incluindo, agora, para efeitos de cassação do título de condução não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves como outrossim os crimes rodoviários, entre eles a condução de veículo em estado de embriaguez, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor, o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo tribunal pelo cometimento do crime rodoviário.
A questão é, por conseguinte, a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, ou seja, como refere o acórdão do TRP de 06.10.2004(proc. n.º 0345913), “O que está em causa não é um novo sancionamento pela prática daquelas contraordenações (concretas),mas, pelo contrário, o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da condução (…). Existe um mais, que não foi nem podia ser considerado e é, precisamente, esse mais (inidoneidade) a causa da cassação da carta de condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. Às coimas e sanções acessórias já aplicadas acresce agora uma outra sanção que já não pune os factos (as concretas contraordenações) praticados, mas a perigosidade, a ineptidão, a inidoneidade entretanto reveladas. Com a sua conduta, o arguido demonstrou que as sucessivas condenações em coima e em sanção acessória não foram suficientes para o afastar da prática de infrações estradais e, por isso, que é incapaz de conduzir com observância dos preceitos estabelecidos na lei. Em resumo: que é inidóneo para o exercício da condução
De qualquer modo, como, a propósito de um caso similar, salienta o citado acórdão do TRP de 06.10.2004, na situação em apreço “A solução do problema é (...) a mesma, independentemente da posição que se perfilhe para a determinação da «identidade do facto». Seja do ponto de vista naturalístico, seja do ponto de vista normativístico, seja, ainda, do ponto de vista do «concreto pedaço de vida» a consequência é a mesma (…). Não há qualquer violação do ne bis in idem. Os factos não são os mesmos (…), as normas aplicáveis não são as mesmas (…)e o pedaço de vida também não é o mesmo (…)”, pois – prossegue –, “… o facto de o arguido já ter sido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir por cada uma das contraordenações, não impede a aplicação da cassação por esta não violar o princípio ne bis in idem, consagrado na Constituição e aplicável por força do art.º 41.º do D.L. n.º 433/82, de 27/10. Aliás, a condenação por tais contraordenações –o mesmo se diga da condenação pelos dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez – constitui até um pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor”.
Em suma, afastada a verificação de duplicação de factos, distintos que são os fundamentos que conduziram à aplicação das penas acessórias (correspondentes a cada um dos crimes de condução em estado de embriaguez), por um lado, e da medida de cassação da licença de condução, por outro lado, sendo diferentes as finalidades que presidem a umas e outra, conclui-se no sentido de não ocorrer violação do caso julgado e/ou do ne bis in idem.”.
Ora, precisamente no caso concreto em apreço, não se vê também qualquer violação do p. ne bis in idem, pois que os factos em apreço não são os mesmos, nem se trata aqui de apreciar a subsunção às mesmas normas jurídicas.
Na verdade, nestes autos não se trata de apreciar as concretas condutas que conduziram a cada uma das condenações singulares, mas antes, o conjunto daquelas decisões, apreciando a (in)idoneidade do arguido face às decisões proferidas, globalmente consideradas, para o exercício da condução.
Improcede assim o alegado.

- DA ALEGADA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE – ARTS. 30.º N.º4 E 18.º N.º2 CRP
Alega ainda o recorrente que a decisão, ademais de automática, é violadora dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
Ora, resulta do disposto no art. 30.º n.º4 CRP que
“Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.”.
Por sua vez, resulta do disposto no art. 18.º n.º2 da Lei Fundamental que
“2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”.
A este propósito, continuamos a acompanhar o já citado Ac. TRC, que pela sua clareza, continuamos a transcrever:
“A invocada inconstitucionalidade das normas em referência surge sustentada no desrespeito pelo caso jugado e, bem assim, na automaticidade da cassação, pela autoridade administrativa, da licença de condução e ainda na violação dos princípios da necessidade, proporcionalidade e da culpa.
No que ao caso julgado respeita cremos, pelas razões já em momento anterior explanadas, não se verificar a dita inconstitucionalidade, pois conforme resulta do então exposto, não ocorre duplicação de factos; sequer a finalidade que subjaz à aplicação, por ocasião do julgamento pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, da pena acessória de proibição de conduzir coincide com a aquela outra que leva à cassação da licença de condução.
Por outro lado, a cassação da licença encontra justificação num comportamento que representa uma perigosidade acrescida do agente no exercício da condução e na necessidade de reforçar o sistema com uma reação (no caso de natureza administrativa) que vá para além da pena acessória, a qual se veio a revelar insuficiente à sensibilização do infrator no sentido de adequar o exercício da atividade perigosa, em que se traduz a condução, às normas.
Afigura-se-nos, pois, não ser de falar em “automaticidade” quando a medida em causa tem, por um lado, subjacente uma ponderação já anteriormente levada a efeito e, por outro lado, não dispensa o controlo dos pressupostos suscetíveis de conduzir à sua aplicação. Neste sentido, reportando-se ao artigo 148.º do Código da Estrada, por elucidativo, respiga-se do acórdão do TRP de 09.05.2018 (proc. n.º644/16.9PTPRT-A.P1): “Em perfeita harmonia com os preceitos citados, diz o n.º 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
Ou seja, mais uma vez, agora de uma forma implícita, a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, agora de natureza penal. Daí também a perda de pontos ser maior do que relativamente às contraordenações graves e muito graves. Circunstância que na projeção futura que os efeitos de tais condenações possam vir a ter, numa eventual cassação da carta de condução, evidencia o respeito que na atribuição de perda de pontos se teve pelo princípio da proporcionalidade, e nomeadamente na relação que resulta estabelecida entre a quantidade e qualidade das infrações cometidas, enquanto fundamento possível daquela cassação.
(…)
Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. Decisão essa que tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, nomeadamente e também para efeitos de recuperação ou não de pontos, nos termos do disposto no art.º 121.º -A e 148.º, n.ºs 5 e 7 do C.E.”
Em perfeita sintonia com o que se vem de transcrever, podemos pois concluir que todo o sistema da carta por pontos, quer em função da natureza da infrações, quer em função do respetivo número, quer dos pontos (de número variável) a subtrair, dependente da gravidade da infração, não sendo indiferente na apreciação o período de tempo sem que o infrator registe contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária na recuperação de pontos, respeita o princípio da proporcionalidade, encontrando justificação, nos termos sobreditos, numa maior perigosidade, com o que resulta observado o princípio da necessidade.
Quanto à alegada “automaticidade”, da decisão dir-se-á, tal como no último dos arestos citado, que o sistema da carta por pontos, ocorrendo como efeito da(s) infração(ões) cometidas, sem que, por si mesma, assuma natureza sancionatória, permite à administração aferir “se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela”, inserindo-se “tal desiderato no âmbito dos poderes de administração do Estado”. Nesta medida, constituindo embora uma reação automática, não isenta a administração da verificação dos respetivos pressupostos, domínio, como já antes referido, em que assume a maior relevância a natureza dos ilícitos, as vezes por que foram praticados, o número de pontos que, em consequência, resultaram subtraídos, o tempo, entretanto, decorrido capaz de conduzir à respetiva recuperação, não se vendo fundamento na alegação quer da violação da proibição do efeito automático das penas (não está em causa a aplicação de qualquer pena acessória – cf. ponto XV das conclusões), quer do princípio da culpa ou perigosidade.
Em síntese, não resultando violados os princípios e normas que surgem a sustentar a invocada inconstitucionalidade (máxime o artigo 18.º da CRP), inverificada esta, improcede, também nesta sede, o recurso.”.
Ora, também no caso concreto em apreço, não se vêm violados os princípios apontados pelo recorrente.
De resto, sequer o mesmo alegou qualquer factualidade que contrariasse o juízo feito pela autoridade administrativa no sentido de o infirmar e permitir ao Tribunal concluir pela sua idoneidade para o exercício da condução.
Aliás, toda a factualidade provada vai no sentido inverso, não se vendo sequer releve no caso em apreço a maior ou menor necessidade de titularidade de carta de condução pelo arguido, apenas relevando factualidade que revelasse a sua idoneidade para o exercício da condução, o que sequer o mesmo alegou.
Assim, não resta senão julgar o recurso improcedente e manter a decisão da autoridade administrativa.

V- DECISÃO
Nos termos e pelos motivos expostos,
o Tribunal julga o recurso improcedente e, em consequência, mantém a decisão da autoridade administrativa, determinando a cassação do título de condução n.º ..., pertencente ao recorrente AA, ao abrigo do disposto no art. 148.º n.º4 al. c) e 10 do Código da Estada – DL 114/94, de 03.05.
[...]»


3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«a. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária decidiu pela cassação do título de condução titulado pelo Recorrente, no âmbito do processo de cassação n.º ..., por se encontrarem preenchidos os pressupostos do art.º 148.º, n.º 4, al. c) do Código da Estrada,
b. Bem assim como a proibição de concessão de novo título de condução, nos dois anos seguintes à efetivação da cassação do título, ao abrigo do postulado no art.º 148.º, n.º 11 também do Código da Estrada, condenação mantida pelo Tribunal a quo.
c. Tudo isto por, em consequência da subtração de seis pontos por cada processo-crime em que foi condenado, ter o Recorrente ficado sem a totalidade de pontos de que dispunha na sua carta de condução.
d. Sucede que, não consente o aqui Recorrente em que lhe sejam aplicadas tais sanções, em virtude de se tratarem de reações jurídicas de cariz automático, atentatórias dos princípios da proporcionalidade em sentido amplo e da necessidade, previstas nos artigos 30.º, n.º 4 e 18.º, n.º 2 da CRP,
e. Assim como o princípio ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP, por ter a Autoridade Autuante aplicado as mesmas, mesmo após já ter sido o Recorrente alvo das correspondentes reações jurídico-criminais, tendo por base precisamente os mesmos factos, pelo que tal condenação deveria igualmente estar vedada ao Tribunal a quo.
f. Devendo, por força disso, ser o art.º 148.º, n.º 4, al. c) do Código da Estrada considerado inconstitucional, por violar expressamente os postulados hermenêuticos fundamentais suprarreferidos.
g. Com efeito, prevê o art.º 29.º, n.º 5 da CRP que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”,
h. Correspondendo tal preceito a uma das mais liminares e essenciais garantias do processo penal, responsável pela limitação do poder do Estado, através da obstaculização à existência de apreciações plurais, simultâneas ou sucessivas, do mesmo facto.
i. retirando-se do ne bis in idem a impossibilidade de uma mesma conduta ilícita ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez,
j.
k. O que é facto é que, no âmbito dos processos crime n.ºs 30/17.3GCOAZ e 289/17.6GBOAZ, o Recorrente foi já alvo das competentes reações jurídico-criminais, em momento anterior ao da instauração do processo de cassação em epígrafe.
l. Por assim ser, a decisão de apreensão do título que habilita o aqui Recorrente a conduzir, alicerçada no cometimento dos ilícitos já anteriormente valorados pelo Tribunal, viola na íntegra o preceito constitucional em causa.
m. Ademais, sempre será de fazer operar este princípio no caso dos presentes, uma vez que, apesar de não ter a sanção em apreço sido aplicada, em sede de sentença, conjuntamente com uma pena principal, nem por isso deverá ser considerada um mero efeito de uma pena,
n. Porquanto, por um lado, corresponde, ainda, a uma reação jurídica aplicada por uma entidade munida do ius imperi, em consequência da reiteração de um comportamento do Recorrente que é alvo da censura do ordenamento jurídico.
o. E, por outro lado, porque, pese embora, por regra, a doutrina entenda que as penas acessórias não são de aplicabilidade automática, implicando sempre a prévia realização de um juízo de adequação ao caso concreto,
p. o que é facto é que são vários os exemplos no Código Penal de penas acessórias no âmbito das quais o legislador utilizou uma técnica legislativa que indicia claramente uma ideia de «causa/efeito» entre a aplicação de tais penas acessórias, quando em causa esteja a prática de certos tipos de crime, como é o caso dos arts.º 69.º, n.º 1; 69.º-B, n.ºs 2 e 3; e 69.º-C, n.ºs 2 e 3, todos do CP,
q. precisamente à semelhança do que se passa com a sanção de cassação do título de condução, alegadamente aplicada de forma automática e sem ter de ter subjacente qualquer juízo de necessidade ou adequação.
r. Acresce que, a aplicação da sanção de cassação do título de condução é, em si mesma, também violadora do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, consagrado no art.º 30.º, n.º 4 da CRP, desde logo porque, sendo de aplicação puramente vinculativa, como advoga a Autoridade Autuante no despacho que antecede, impede que seja realizado qualquer juízo de idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, constitucionalmente exigidos,
s. Em especial, quer porque, do ponto de vista do princípio da necessidade, que encontra também reflexos no art.º 18.º, n.º 2 da CRP, tal sanção vai para além do estritamente necessário para atingir o fim em vista, por já ter o Recorrente visto serem-lhe aplicadas as competentes penas principais no âmbito dos respetivos processos- crime,
t. Quer porque, após ter sido condenado, o Recorrente não voltou a prevarica, dado que o trânsito em julgado da sentença no primeiro processo-crime ocorreu em data posterior à da prática da segunda infração, que deu origem ao segundo processo-crime, daqui se concluindo que a aplicação de uma pena foi suficiente para que o Recorrente interiorizasse a gravidade da sua conduta e não voltasse a cometer ilícitos desta natureza em momentos posteriores.
u. Mais se diga que o próprio artigo 148.º do Código da Estrada é em si mesmo contraditório, uma vez que, embora da leitura do n.º 4 deste preceito legal se pudesse retirar o caráter absolutamente vinculativo da aplicação das sanções presentes, ao se tomar consciência do teor do seu n.º 10, nos termos do qual “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”, constata-se que não terá sido essa a ratio legis do legislador.
v. Ao invés disso, terá indubitavelmente querido o legislador que a Autoridade Administrativa iniciasse e levasse a cabo um juízo de cognição específico, sopesando casuisticamente todas as circunstâncias que pudessem depor a favor ou contra o Recorrente, o que esta não fez, algo que passou despercebido ao Tribunal a quo.
w. É, de resto, este o único entendimento aceitável, pois que, caso assim não fosse, não se vislumbraria que outra finalidade poderia ser reconhecida à imposição de existência de um processo autónomo nesta sede,
x. Não podendo a lei ser uma mera aplicação silogística de uma premissa a uma conclusão.
y. Por fim, acresce que deve ter-se por excessiva a sanção de cassação do título de condução, bem como de impedimento de obtenção de um novo título pelo prazo de dois anos, por datarem ambas as infrações que constituem o sustentáculo de tal decisão de 2017 e não ter o Recorrente incorrido na prática de quaisquer outras desde essa data.
z. Além disso, o Recorrente carece de forma imprescindível de título que o habilite a conduzir, por forma a deslocar-se para o seu local de trabalho e exercer a sua atividade profissional.»


4. A isto respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, em conclusão:
«1 – A decisão da autoridade administrativa determinou a cassação do título de condução n.º ..., pertencente ao recorrente AA, ao abrigo do disposto no art. 148.º nº4 al. c) e 10 do Código da Estada – DL 114/94, de 03.05, decisão essa confirmada pela Mmª Juiz a quo.
2–Não se vislumbra nenhuma questão de inconstitucionalidade dos princípios legais aplicados, nem existe e nem sequer é invocado nenhum vício ou nulidade de que padeça a sentença recorrida.
3 – Com efeito o Tribunal Constitucional, bem como a diversa jurisprudência dos Tribunais da Relação entendem que não existe nem violação do princípio ne bis in idem, nem de outro qualquer princípio constitucional:
4 - A cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.
5 - É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos. Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148.º do Código da Estrada – (…) –, como porque os critérios relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária.
6 - Em suma, a norma sindicada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmo factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
7 - O sistema de subtração de pontos consubstancia uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar em termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa que habilita a condução ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular, reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução.
8 - O arguido foi condenado no P. Sumaríssimo 30/17.3GCOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 04.07.2017, transitada em julgado em 07.09.2017, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. art. 292.º n.º1 e 69.º n.º1 al. a) CP, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5,00 e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 4 meses.
9 - O arguido foi condenado no P. Sumário 289/17.6GBOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 15.05.2017, transitada em julgado em 29.01.2018, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. art. 292.º e 69.º n.º1 al. a) CP, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €7,00 e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 10 meses.
10 - O arguido foi condenado no P. Abreviado 24/20.1GBOAZ, que correu termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por sentença de 10.09.2020, transitada em julgado em 12.10.2020, pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1 al. a) do C.Penal, em referência ao art 152º/3 do CE, na pena de 7 meses de prisão; um crime de corrupção activa, p. e p. pelo art.º 374.º n.º 1 do C.Penal, na pena de 15 meses de prisão; em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 17 meses de prisão e ao abrigo do disposto nos art.ºs 50.º, nº 1 e 5 e 52.º, nº1, al. b) e c) e nº 3 do Código Penal, foi suspensa a execução dessa pena de prisão, por igual período; foi ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 8 meses, nos termos do art. 69.º n.º 1 al. a) do C. Penal.
11 - Em face da condenação sofrida em 8. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
12 - Em face da condenação sofrida em 9. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
13 - Em face da condenação sofrida em 10. foram subtraídos ao arguido 6 pontos.
14 - Na sequência das condenações referidas em 8. e 9. por despacho de 25.01.2021 foi instaurado contra o arguido na ANSR processo de cassação do título de condução n.º ..., ao qual foi atribuído o n.º ..., no âmbito do qual o arguido foi notificado nos termos e para efeitos previstos no art. 50.º RGCOC e apresentou defesa escrita, vindo a final a ser proferida decisão determinando a cassação do título de condução do recorrente que a final, veio resultar na decisão judicial ora recorrida.
15 - O processo contra-ordenacional [é esta a sua natureza, atento o disposto no art. 148º, nº 13 do C. da Estrada] que deu origem ao presente recurso, na sua fase administrativa, tem por objecto, não a prática de qualquer daqueles crimes e suas consequências, mas o registo de infracções relativas ao exercício da condução, a perda de pontos em virtude das sucessivas penas acessórias até ao total esgotamento do crédito inicialmente concedido, e a consequente inaptidão do recorrente para a condução decorrente do risco causado por aquelas condutas criminosas, para a segurança rodoviária.
16 - Da decisão da autoridade administrativa constam os factos e as provas que consubstanciam a acusação, bem como se encontra a mesma fundamentada de facto e de direito, tal como a sentença ora recorrida.
Deverão, assim, manter-se-ão os factos dados como provados pela 1ª instância e a respectiva decisão condenatória, devendo improceder o recurso interposto pelo arguido.»


5. O Ministério Público junto deste Tribunal (também aderindo) às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando, igualmente, pela improcedência do presente recurso.
6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.
II
7. O presente recurso não merece provimento.
8. 1. O artigo 148.º, n.º 2, alínea c), do Código da Estrada, não é inconstitucional por violação de princípios consagrados nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 5, e 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
9. Esta questão foi já objeto de apreciação por parte do Tribunal Constitucional, que, ultimamente, no seu acórdão n.º 154/2022 (disponível, em texto integral, em https://www.tribunalconstitucional.pt/ tc/acordaos/ 20220154.html), rejeitou ocorrer, no caso, qualquer inconstitucionalidade.
10. Assim, e tal como decidiu o Tribunal Constitucional («ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional», nos termos do preceituado no artigo 221.º da Constituição da República Portuguesa), a norma legal aludida não viola:
— A exigência de idoneidade (veja-se o ponto 8.4 do aresto citado);
— A exigência de necessidade (veja-se o ponto 8.5 do aresto citado);
— A exigência de proporcionalidade em sentido estrito (veja-se o ponto 8.6 do aresto citado);
— A proibição do bis in idem (veja-se o ponto 9 do aresto citado);
— A proibição de efeitos automáticos das penas (veja-se o ponto 10 do aresto citado).
11. Concordando-se inteiramente com a orientação firmada pelo Tribunal Constitucional – cujo juízo, de qualquer modo, sempre se impõe a esta Relação ratione materiae – é assim manifesta a improcedência da pretensão do recorrente quanto à invocada questão (ou questões) de inconstitucionalidade.
12. 2. Da exigência de que o decretamento da cassação prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, seja «ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução» (n.º 10 do mesmo preceito), não resulta a necessidade de sujeitar aquela cassação ao sopeso de quaisquer outros fatores relativos às infrações praticadas e ao respetivo agente.
13. Seria, aliás, absurdo (e, portanto, manifestamente contrário aos cânones da interpretação jurídica: cf. o artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil) aceitar-se que o legislador pretendeu impor à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária a realização de uma tal ponderação sem que o referisse explicitamente: a necessidade de uma construção praeter legem para chegar a tal conclusão, a que o recorrente se dedica nas suas alegações, é indício seguro da falta de fundamento da sua pretensão.
14. A redação do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, é inequívoca, estabelecendo que «[a] subtração de pontos ao condutor tem» (portanto, obrigatoriamente) como efeito, designadamente, «[a] cassação do título de condução [...], sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor» (os sublinhados são nossos).
15. Por outro lado, o n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, como resulta do seu teor, limita-se a estabelecer os moldes em que, procedimentalmente, se decreta a cassação do título de condução, dele não se podendo retirar, assim, a exigência de ponderação de quaisquer critérios materiais a atender na decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
16. Para além disso, nenhuma outra norma legal prevê, ou impõe, como pretendido pelo recorrente – nem o podia, aliás, fazer, considerando a natureza e finalidade do sistema de «pontos» legalmente previsto – que a cassação do título de condução do infrator rodoviário, em casos como o vertente, fique dependente de apreciação casuística, por parte da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, de quaisquer outros requisitos, nomeadamente os que ele refere nas suas alegações, relacionados com a natureza das infrações praticadas e a personalidade do respetivo agente.
17. Seguir o entendimento sustentado pelo recorrente implicaria, na prática, ignorar as considerações (de simplicidade, objetividade e efetividade) que subjazem precisamente ao sistema de «pontos», com perda do seu efeito dissuasor e pedagógico, tal como pretendido pelo legislador; seria introduzir complexidade num procedimento que se pretendeu, deliberadamente, de aplicação simples, sem contaminação de pontos de vista subjetivos e eficaz.
18. 3. Essencialmente pelos motivos acabados de expor, afigura-se-nos manifesto que da necessidade que o recorrente porventura tenha do seu título de condução não decorre, igualmente – por falta de previsão legal que a admita – a possibilidade de se alterar, designadamente morigerando, contra legem, as consequências fixadas no citado artigo 148.º, n.ºs 4, alínea c), e 11, do Código da Estrada, destarte ficando também comprometida a pretensão que, nesse sentido, formula ele aqui.
19. 4. Conforme decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal, o arguido suporta o pagamento de taxa de justiça «quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso».
20. Sendo este o caso, terá, assim, o recorrente, de suportar as custas devidas nesta instância.
21. Considerando, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, a tramitação processual ocorrida, afigura-se adequado fixar em 6 Unidades de Conta a taxa de justiça devida.
III
22. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, negando provimento ao presente recurso, confirmar a decisão recorrida.
23. Custas pelo recorrente (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) Unidades de Conta.

Porto, 22 de fevereiro de 2023.
Pedro M. Menezes
Donas Botto
Paula Guerreiro
(acórdão assinado digitalmente)