Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
746/13.3GDGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: CRIME DE EVASÃO
BEM JURÍDICO
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
Nº do Documento: RP20161207746/13.3GDGDM.P1
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 700, FLS.262-275)
Área Temática: .
Sumário: I – No crime de evasão o bem jurídico protegido insere-se na autonomia do Estado visando completar a protecção da administração na realização da justiça, e de modo especifico a segurança da custodia oficial.
II – São elementos objectivos de tal ilícito que o agente seja alguém que se encontra legalmente privado da liberdade e que se tenha evadido ou seja se tenha retirado voluntariamente da situação de privação de liberdade em que se encontrava.
III – A expressão “ pessoa legalmente privada da liberdade” abrange também toda a pessoa sujeita a medida de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência no domicilio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 746/13.3GDGDM da Comarca do Porto, Gondomar, Instância Local, Secção Criminal, Juiz 1

Relator - Ernesto Nascimento
Adjunto – José Piedade

Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença, através da qual, no que ao caso releva, foi o arguido B… condenado na pena de 10 meses de prisão efectiva, pela prática de um crime de evasão, p. e p. artigo 352.º/1 C Penal.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido – pugnando pela alteração do decidido e pela sua absolvição – apresentando as conclusões que se passam a transcrever:

1. a decisão ao condenar o arguido num crime de evasão constituiu uma violação do princípio ne bis in idem;
2. além da agravação de uma medida de coacção, prevista no artigo 203.º, não se encontra suporte legal para a condenação por um crime de evasão quando haja violação de uma medida de coacção;
3. tendo o arguido violado a medida de coacção que lhe foi imposta, só uma consequência no C P Penal é prevista: a agravação da medida de coacção;
4. agravação essa que ocorreu;
5. pelo exposto, o tribunal não interpretou, nem aplicou, corretamente o artigo 352.º C Penal, por não se verificar preenchido o tipo;
6. ainda no que diz respeito à douta sentença, a mesma está ferida de nulidade;
7. dá a mesma como provado que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e penalmente punível e que forçosamente levaria à prática de um crime de evasão;
8. o que o arguido não sabia, nem poderia saber, já que tal cominação não lhe foi transmitida e nem se encontra legalmente prevista;
9. apesar de o ter dado como provado, percorrendo a douta sentença, não encontramos fundamentação para a sua decisão, como seria de esperar atento o disposto no artigo 374.º/2 C P Penal;.
10. e, por isso, é nula ut 379.º/1 alínea b) C P Penal;
11. ainda que não se atenda à motivação da defesa no que há falta da prática do crime diz respeito e à nulidade da sentença por falta de fundamentação, a pena aplicada é excessiva;
12. o curto período de tempo em que esteve ausente da habitação, o regresso voluntário à mesma, bem como a atenuação especial prevista no artigo 352.º/2 C Penal, devem ser tidas como relevantes para a medida concreta da pena;
13. ponderadas as circunstâncias concretas do caso e a postura do arguido ao longo do tempo em que esteve detido, a pena mínima de um mês cumpriria as necessidades de prevenção geral e especial;
14. assim, a decisão recorrida violou o artigo 40.º, 41.º, 71.º e 72.º C Penal, devendo ser revogada nos termos reclamados.

I. 3. Respondeu o Magistrado do MP pugnando pela improcedência do recurso.

II. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer, igualmente, no sentido do não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente Acórdão.

III. Fundamentação

III. 1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, a questão suscitada no presente resume-se, tão só a de saber se,

a sentença é nula;
existem erros de julgamento;
os factos provados integram o tipo legal de evasão e,
a pena foi fixada de harmonia com os critérios legais.

III. 2. Vejamos, então, para começar, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.

Factos provados

Por despacho judicial proferido em 13 de Dezembro de 2012, no âmbito do processo de inquérito com o NUIPC 360/12.0PEGDM, que correu termos na 2.ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Gondomar, foi determinado que o arguido B… ali aguardasse os ulteriores trâmites processuais sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na sua habitação, com recurso a meios de vigilância electrónica, sendo que até que se mostrassem preenchidos todos os requisitos necessários para que se iniciasse a execução de tal medida de coacção foi determinado que aquele aguardasse sujeito à medida de coacção de prisão preventiva. Tomou, então, aí, pessoalmente, o arguido conhecimento de que se não podia ausentar da sua habitação só o podendo fazer a título excepcional e após obter prévia autorização judicial para o efeito.
Em 21 de Dezembro de 2012, pelas 21,20 horas, na rua …, n.º …, em …, foi dado início à referida medida de coacção, tendo para tanto sido colocada numa das pernas do arguido um Dispositivo de Identificação Pessoal, pertença da sociedade “C…, Limitada” a fim de possibilitar a monitorização à distância do cumprimento da dita medida de coacção que se protelou no tempo até pelo menos o dia 23 de Outubro de 2013, data em que foi promovida a imposição ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva.
Na verdade, no dia 21 de Outubro de 2013, cerca das 15,42 horas, o arguido, sem dispor de qualquer autorização judicial para se ausentar da sua residência, de forma não concretamente apurada rebentou as duas braceletes de borracha que acoplavam o dispositivo de identificação pessoal em redor de uma das suas pernas e, após, saiu para o exterior da sua residência, tendo tripulado o motociclo com a matrícula ..-..-NB, da sua pertença, até à Avenida …, n.º …, em …, Gondomar, na tentativa de abordar a sua ex-companheira, D… que há cerca de três semanas sobre aquela data, havia terminado o relacionamento amoroso que mantinham.
D…, após avistar o arguido na Avenida … contactou, de imediato, com o posto da G.N.R. de … que fez deslocar uma patrulha até à Avenida …, n.º …, onde aquela se encontrava.
Um dos elementos da patrulha após tomar conta da ocorrência seguiu apeado pela Avenida … onde a cerca de 30 metros do número de polícia … avistou o arguido que, de imediato, se colocou em fuga, em passo acelerado, tendo-lhe, então, procedido à apreensão do seu motociclo que se encontrava aparcado na Avenida …, junto ao estabelecimento de farmácia denominada “E…”.
Apenas cerca das 20,00 horas é que o arguido retomara à sua residência tendo pelas 20,45 horas lhe sido recolocado o dispositivo de identificação pessoal.
Sabia o arguido que a sua descrita conduta era proibida e penalmente punível, porém apesar de tal saber quis actuar de forma livre, deliberada e consciente com o propósito de se furtar à estrita permanência na sua residência, e, consequentemente, à privação da sua plena liberdade pessoal, válida e legalmente imposta por decisão judicial, não obstante saber que não se poderia ausentar, por qualquer forma, daquela residência sem prévia autorização judicial para tal, que naquele momento não detinha, o que logrou alcançar, violando com a sua conduta, a segurança da custódia estadual.
O arguido foi já condenado:
- no âmbito do processo comum colectivo n.º 45/04.1SFPRT do 2º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, por acórdão proferido em 08-02-2006 e transitado em julgado em 16-06-2008, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão pela prática, em Abril de 2004, de dois crimes de roubo na forma consumada, um crime de roubo na forma tentada, um crime de detenção ilegal de arma, um crime de condução sem habilitação legal e um crime de resistência e coacção sobre funcionário, no âmbito do qual lhe foi concedida liberdade condicional em 09-06-2010 que foi posteriormente revogada em 26-06-2014;
- no âmbito do processo comum singular n.º 925/10.5PTPRT do 3º Juízo de Pequena Instância Criminal do Porto, por sentença proferida em 16-03-2011 e transitada em julgado em 05-04-2011, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de inibição e conduzir por 3 meses pela prática, em 28-08-2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, penas já extintas, respectivamente, pelo pagamento e cumprimento;
- no âmbito do processo comum colectivo n.º 3839/10.5TAGDM do 1º Juízo Criminal de Gondomar, por acórdão proferido em 24-01-2012 e transitado em julgado em 13-02-2012, na pena de 8 meses de prisão substituída por 240 dias de multa à taxa diária de € 5,00 pela prática, em 06-10-2010, de um crime de detenção de arma proibida, tendo cumprida a pena de prisão;
- no âmbito do processo comum colectivo n.º 360/12.0PEGDM do 1º Juízo Criminal de Gondomar, por acórdão proferido em 02-07-2013 e transitado em julgado em 02-01-2014, na pena única de 5 anos de prisão pela prática, em 03 e 13-03-2012, de um crime de detenção de arma proibida, um crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação na forma tentada e um crime de resistência e coacção sobre funcionário.
B… é o primogénito da prole de quatro descendentes da união dos progenitores, agregado de origem fixado em …, onde decorreu sem incidentes o seu processo social de desenvolvimento da personalidade até à idade de dezasseis anos, momento em que frequentava o 10º ano de escolaridade e começaram a observar-se problemas de conduta e de desinteresse na formação escolar com prejuízo da assiduidade e da realização académica. Chegou a frequentar um curso de formação profissional na área de electrotecnia, todavia desistiu e abandonou.
Passou então a desempenhar actividades laborais primeiramente como empregado de hotelaria seguidas do desempenho das funções de aprendiz de mecânico de motos, em oficina própria, sem contudo ter disposto de um vínculo contratual ou de uma remuneração fixa acabando igualmente por abandonar o enquadramento laboral.
Apesar da iniciativa do progenitor de o inscrever na bolsa de emprego do Centro de Emprego de Gondomar, B… permanecia acomodado à situação de inactividade e de procura de uma alternativa ocupacional regular estruturada privilegiando o convívio com pares associados ao consumo de estupefacientes e outras actividades desviantes e anti-sociais coincidentes com a estruturação de uma carreira criminal persistente, diversificada e reactiva às autoridades demonstrando indiferença com adequação social desde Abril de 2004.
Assim, confrontando-se com dois períodos de privação da liberdade, não cumpriu com as imposições da liberdade condicional nem com as obrigações inerentes à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação fiscalizada por meios electrónicos de controlo à distância (OPHVE).
Durante o período de liberdade condicional B… foi condenado nas penas de 50 dias de multa à taxa diária de €5.00 e de 8 meses de prisão, substituídos por 240 dias de multa à taxa diária de €5.00 por ter cometido os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e de detenção de arma proibida.
De anterior relacionamento afectivo, B… tem um filho menor, aos cuidados dos avós paternos.
À data de ocorrência dos factos a que se reporta o presente processo, B… integrava o agregado de origem, domiciliado na Rua …, … 4º Esq. …. - … …, entretanto alterado em 07-05-2013 no decorrer da OPHVE, com a respectiva autorização judicial, para a morada dos autos, Rua …, …, ….
O arguido perspectiva integrar o seu agregado familiar, composto pela companheira D…, com quem mantêm relacionamento há cerca de 6 anos, activa como empregada de restauração de casino. O casal projecta reactivar o negócio de prestação de serviços de estética, uma vez que o estabelecimento F…, localizado em galeria comercial sito na Av. …, n.º …, Loja ., ….-… …, permanece equipado.
As relações de proximidade aos familiares e os laços afectivos ao filho e à companheira são mantidas por um regime regular de visitas manifestando os seus familiares a disponibilidade para o continuarem a apoiar e reintegrar no agregado.
B… encontra-se preso no EPP desde 24-10-2013, por agravamento da medida de coacção imposta no processo 360/12.0PEGDM. Em 31-07-2014 foi ligado ao processo 3839/10.5TAGDM para cumprir a revogação da substituição da pena de prisão por pena de multa. Entretanto, em 29-03-2015, foi ligado ao processo 45/04.1SFPRT para cumprir o remanescente de dois anos, um mês e cinco dias, por revogação da liberdade condicional de 26-06-2014. O termo está previsto ocorrer em 04-05-2017.
A conduta prisional empreendida pelo arguido foi sancionada por duas vezes em 21 e 22/01/2014, por linguagem ofensiva com um elemento da segurança e por utilização de telemóvel. Desde então, B… tem assumido um compromisso resolutivo do anterior estilo de vida criminal investido na adequação disciplinar e na habilitação com o ensino superior frequentando o 1º ano do curso de Gestão.
Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

O Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida, tendo por pilar o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Em audiência o arguido admitiu todos os factos dados como provados, adiantando que retirou o dispositivo de vigilância electrónica para procurar a namorada com quem se tinha zangado e para ir à praia, o que fez.
Mais referiu que apenas desengatou o dispositivo, o que, nessa parte, não colheu; como é sabido e óbvio, os dispositivos de vigilância são concebidos para não serem retirados, pelo que não bastava uma acção simples do arguido para o “desengatar”. Pelo contrário, mostra-se comprovado que o dispositivo foi danificado pelo arguido aquando da sua retirada (cfr. fls. 271 e 306), o que necessariamente implicou força e destruição.
Baseou-se ainda o Tribunal no aditamento ao auto de notícia de fls. 8-11 quanto à intervenção da autoridade policial nesta ocasião e circunstâncias de apreensão do motociclo, no auto de apreensão de fls. 97, no registo do ..-..-NB em nome do arguido a fls. 19, na certidão do auto de interrogatório e da sentença do processo n.º 360/12.0PEGDM de fls. 21-57 e 233-267, nos relatórios da EVE de fls. 268-273, no certificado de registo criminal de fls. 390-395 e no relatório social de fls. 407-410.

III. 3. As questões suscitadas, pela ordem de precedência lógica e, não necessariamente, pela dada pelo arguido.

III. 3. 1. A nulidade da sentença.
Defende o arguido que a sentença é nula, por carecer de fundamentação, invocando para tanto o disposto no artigo 379.º/1 alínea a) C P Penal.
Estrutura o arguido esta sua tese no facto de considerar que foi erradamente julgado com provado que "sabia o arguido que a sua descrita conduta era proibida e penalmente punível, porém apesar de tal saber quis atuar de forma livre, deliberada e consciente com o propósito de se furtar à estrita permanência na sua residência, e, consequentemente, à privação da sua plena liberdade pessoal, válida e legalmente imposta por decisão judicial, não obstante saber que não se poderia ausentar, por qualquer forma, daquela residência sem prévia autorização judicial para tal, que naquele momento não detinha, o que logrou alcançar, violando com a sua conduta, a segurança da custódia estadual".
Isto porque, o que ele sabia, tal como na altura lhe foi transmitido, é que a violação da obrigação da medida de coacção que lhe fora aplicada, teria como cominação o agravamento dessa medida e, contrariamente ao que se dá como certo, não sabia que com a violação da obrigação da permanência na habitação cometia um crime.
Nem o poderia saber pois que jamais lhe foi efectuada tal advertência e além do mais, não o poderia saber, também, porque não está legalmente previsto que a violação da obrigação de permanência na habitação, origine a prática de um crime de evasão.
A única cominação que o artigo 203.º C P Penal prevê é a agravação de tal medida, que de resto viu acontecer no caso, com a aplicação de pisão preventiva.
Donde, carece a sentença de fundamentação que permita concluir que o arguido sabia que a violação da obrigação de permanência na habitação poderia originar a condenação por um crime de evasão, tal como previsto no artigo 352.º C Penal.
E, como prevê o artigo 374.º/2 C P Penal, as sentenças devem conter os motivos de facto e de direito que, fundamentam a decisão.
Desconhece, totalmente, a defesa qual foi a fundamentação que levou o douto tribunal a dar como provado que o arguido sabia que poderia incorrer num crime de evasão e desconhece, porque não existe.
Em termos genéricos a exigência de fundamentação é imposta para que se fique a conhecer qual foi o efectivo juízo que subjaz e sustenta o acto decisório, designadamente, quais os factos acolhidos e, qual a interpretação de direito perfilhada, assim se permitindo o seu controlo pelos interessados, bem como, pela instância jurisdicional superior.
O artigo 374º/2 C P Penal assinala como requisito da sentença, entre outros, “a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
E o artigo 379º/1 C P Penal comina com a nulidade a sentença que, não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º - alínea a).
O Tribunal Constitucional, de resto, através do Ac. 680/98, no processo nº. 456/95, de 2.12.98, in DR II série nº. 54 de 5.3.99, ainda a propósito da redacção primitiva do artigo 374º/2, antes da alteração introduzida através da Lei 59/98 de 24 de Agosto, que no caso concreto, fez acrescentar a expressão ”exame crítico”, julgou inconstitucional a referida norma, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados na 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no artigo 205º/1 da Constituição da República, bem como quando conjugada com o artigo 410º/2 alíneas a), b) e c) do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32º/1 da Constituição da República.
Se assim se devia entender com a anterior redacção, muito mais razão existe agora, com a introdução do termo “análise crítica”.
Deve-se entender que o requisito contido no artigo 374º/2 C P Penal, “se traduz na indicação dos elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência e exige não só a indicação das provas ou meio de prova que serviram para formar a convicção do tribunal mas, fundamentalmente, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão. Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados - thema decidendum - nem os meios de prova - thema probandum - mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o artigo 410º/2 C P Penal e extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”, cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 228 e ss.
A motivação da matéria de facto deve, assim, ser de molde a não suscitar dúvidas sobre os meios de prova e as razões que criaram a convicção do tribunal, relativamente aos factos julgados, como provados ou como não provados.
A razão de ser de tal vício prende-se, como parece, da mesma forma patente, com o facto de a falta de análise crítica da prova impedir que o recorrente tenha a possibilidade de em concreto, directa, fundada e eficazmente, demonstrar as razões da sua discordância – a não ser com generalidades – sobre o julgamento da matéria de facto, que não esteja alicerçado, de todo - sequer, com frases feitas ou fórmulas abstractas - sem que se surpreenda, de resto, qualquer preocupação de convencimento dos destinatários.
Definidos os pressupostos e parâmetros que devem presidir ao julgamento sobre a matéria de facto, importará agora apreciar se no caso vertente, da mera leitura da decisão recorrida, se consegue saber qual foi o raciocínio lógico que levou à afirmação como provados dos factos de cujo julgamento o arguido, afinal, discorda.
Cremos, sinceramente, que sim.
Com efeito, ali se refere que, em audiência o arguido admitiu todos os factos dados como provados, desde logo.
Ficando assim, assegurada o fim em vista com a exigência legal – o de garantir que na decisão se tenha seguido um processo lógico e racional, na apreciação da prova e, se possa concluir por que a sentença não seja uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras das regras da experiência comum.
O tipo de fundamentação utilizado respeita, pois, indesmentivelmente, o determinado na lei, não sendo caso, manifestamente, de violação de tal norma.
De resto, constitui realidade diversa - que se não confunde com a falta de análise crítica - a divergência e a discordância com a que o tribunal levou a cabo, que o arguido, bem evidencia, quando alega que não lhe foi comunicada senão a advertência da agravação da medida de coacção e que não podia, ser de resto, porque não existe, pela simples razão de que a sua conduta não é criminalmente punível.
Confundindo – indesculpável e inconsequentemente - a afirmação do elemento subjectivo com o facto de não existir advertência, no caso, para a prática de um crime, que, de resto, entende não se verificar, pois que defende que a OPHVE não integra a noção de privação da liberdade para efeitos do tipo legal do crime de evasão.

Donde e, em conclusão, a decisão recorrida não padece da apontada falta de fundamentação atinente com a análise crítica da prova – e a discordância da afirmação do elemento subjectivo não tem a virtualidade de a integrar de todo - uma vez que obedece às exigências de fundamentação a que faz menção o n.º 2 do artigo 374º do CPP, razão pela qual não padece da nulidade invocada e prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º C P Penal.

Improcede, assim, este segmento do recurso.

III. 3. 2. O que o recorrente, desta forma, inequivocamente, demonstra é a sua discordância com a afirmação do elemento subjectivo – sem, no entanto, pretender alterar, como seria suposto, o sentido da decisão sobre a matéria de facto, pois que, afinal, expressamente assume, desde logo, no intróito do recurso, que apenas impugna a matéria de direito e, atinente com as seguintes questões: a errada qualificação pela falta de preenchimento do tipo, a falta de fundamentação da decisão recorrida, bem como a questão da medida concreta da pena.
Por isso, desde logo, não cumpre, de todo – nem o pretendeu fazer, sequer, minimamente - o ónus de impugnação especificada a que alude o artigo 412.º/3 e 4 C P Penal.
Isto porque, com se sabe, não obstante, hoje, nos termos do artigo 428º C P Penal, as Relações conhecerem de facto e de direito, não basta para que a Relação conheça da matéria de facto que a prova haja sido documentada, o que hoje acontece, sempre, obrigatoriamente, de resto.
A decisão, da 1ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada nos termos do artigo 431º alínea b) C P Penal, isto é, quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412º/3 e 4 do mesmo diploma.
Como é sabido o artigo 412º C P Penal é relativamente exigente em relação aos requisitos formais a observar no recurso, quer este verse sobre matéria de facto, quer quando incida sobre a matéria de direito.
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tem de dar satisfação cabal aos ónus contidos nos nºs. 3 e 4 do artigo 412º C P Penal, que dispõe que:
“3. quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) as provas que devem ser renovadas.
4. quando as provas tenha sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º/2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
A razão de ser da exigência deste procedimento, está relacionada com o facto de que o recurso sobre matéria de facto não configura um novo julgamento destinado a reapreciar toda a prova produzida perante a primeira instância e documentada no processo, antes se destina a remediar erros de julgamento, que devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros.
A Lei 48/2007 de 2AGO, que conferiu a redacção acabada de descrever ao preceito em causa, mudou profundamente o regime da impugnação da matéria de facto, visando, por um lado, tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem, decisão diversa da recorrida e, por outro, colocar fim à transcrição dos registos gravados.
A exigência de na motivação do recurso sobre a matéria de facto, se dever especificar os concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, deve ser, nesta conformidade, entendida, como, apenas se satisfazendo, com:
a indicação do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que se considera incorrectamente julgado e,
a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida .
Será insuficiente, no que a este último requisito, se refere, a indicação genérica de um determinado depoimento.
O recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Esta exigência de concretização visa impor a quem recorre a obrigação de relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
No caso de depoimentos prestados em audiência, a referência ao suporte magnético apenas se cumpre com a indicação do nº. da “volta” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento ou agora que a gravação em feita em cd, com a indicação do tempo em que consta o trecho de depoimento, que se pretende salientar.
No entanto e a este propósito, pode-se entender como suficiente a simples transcrição dos segmentos da prova pessoal em causa.
Com efeito, o STJ veio a entender, através do Acórdão 3/2012 e assim, a fixar jurisprudência, assumidamente dando-se prevalência ao substancial em detrimento do formal – donde mesmo para os casos em que na acta constem o início e o termo da gravação de cada declaração - no sentido de que, “visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para os efeitos do disposto no artigo 412º/3 alínea b) C P Penal, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.
No entanto, nada disto foi feito - nem pretendido fazer, pelo arguido.
Assim, não pode o arguido, sequer, ver o tribunal de recurso debruçar-se sobre a questão da verificação ou não do elemento subjectivo, que o teria que ser através do expediente da impugnação da matéria de facto – expediente, de que, o arguido manifesta e inquestionavelmente, não quis lançar mão.
Donde, em conclusão, não pode, por estas razões de ordem processual e procedimental, sequer o tribunal conhecer da questão – não suscitada, nem na forma, nem, essencialmente, pelo conteúdo, onde poderia/deveria ter sido enquadrada - da sua discordância em relação à verificação do elemento subjectivo do tipo de evasão.
Assim e, porque também se não verifica qualquer dos vícios da decisão – outra via para se conseguir obter a alteração/modificação da matéria de facto – previstos no artigo 410.º/2 C P Penal, do conhecimento oficioso, como se sabe, então ter-se-á que ter como definitivamente fixada a matéria de facto definida na decisão recorrida.

III. 3. 3. Subsunção dos factos ao direito

III. 3. 3. 1. Elemento subjectivo de cuja afirmação o arguido discorda, como vimos, que, a um passo diz que desconhece, por não ter sido advertido, senão para a possibilidade de agravação da medida de coacção e, que, a outro passo, refere que a sua apurada conduta não integra a previsão de qualquer tipo legal e mormente daquele pelo qual vem condenado – de evasão.
Apreciemos então, o que afinal se reconduz, não tanto a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida – que o arguido, como vimos integrou, a um passo, infundadamente, no vício da nulidade da sentença, por falta de fundamentação e, não como seria suposto, em sede de impugnação da matéria de facto e erros de julgamento - mas, antes e, segura e decisivamente, a uma possível deficiente compreensão da realidade, espelhada na materialidade apurada na redacção final dada ao julgamento da matéria de facto e, por via disso e, por arrastamento, a um possível erro na subsunção dos factos ao Direito.
Considera, então o arguido que, no caso concreto, não é possível qualificar os factos que lhe são imputados e que foram dados como provados como integrando a prática de um crime de evasão, defendendo que a violação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação apenas tem como consequência a agravação do seu estatuto coactivo.
Isto porque, se encontrava a aguardar os ulteriores trâmites do processo 360/12.0PEGDM, sujeito à obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo, contudo, violado essa obrigação, donde, não incorreu na prática do aludido crime de evasão, mas sim e, tão só, na violação de uma obrigação que lhe foi imposta, especialmente prevista no artigo 203.º C P Penal, donde decorre, a possibilidade de imposição de outra ou outras medidas de coacção – o que aconteceu, de resto, pois que, desde 24/10/2013 que se encontra em prisão preventiva, consequência do agravamento da medida de coacção que lhe havia sido imposta, nos termos já referidos.
A cominação para a violação de uma medida de coacção é clara: a existir, é a sua agravação. E, por outro lado, ao ser considerado o incumprimento da obrigação da permanência na habitação como um crime de evasão, estar-se-á sancionar duplamente uma mesma conduta, o que violaria, sem sombra de dúvidas o princípio "ne bis in idem".
E, ademais, defende o arguido nem sequer se pode defender que a obrigação de permanência na habitação se enquadra numa efectiva privação da liberdade para os efeitos do artigo 352.º C Penal.
A favor deste seu entendimento invoca decisão deste tribunal, que em 16/03/2011 decidiu que "não comete o crime de evasão do artigo 352.º C Penal aquele que, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, viola essa obrigação, abandonando a casa onde cumpria a medida."
Assim, conclui que na decisão recorrida se interpretou incorrectamente a norma prevista no artigo 352.º C Penal, pelo que deve ser absolvido do crime de evasão por não se encontrarem preenchidos os elementos do tipo.

III. 3. 3. 2. Apreciando.

No caso, ao arguido, por despacho judicial, no âmbito do processo 360/12.0PEGDM, foi-lhe aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica (OPHVE) prevista no artigo 201.º C P Penal, tendo, porém, rebentado as duas braceletes de borracha que acoplavam o dispositivo de identificação pessoal, em redor de uma das suas pernas e - sabendo que não o podia fazer - saiu para o exterior da sua residência.
A questão reside, então, em saber, desde logo, se o arguido se encontrava, efectivamente, privado da sua liberdade.
Isto porque, o artigo 352.º/1 C Penal prevê que “quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até dois anos”.
Esta norma está inserida no capítulo dedicado aos crimes contra a autoridade pública e na secção intitulada de, tirada e evasão de presos e do não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal.
No dizer de Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense, o bem jurídico protegido por esta incriminação não é outro senão a segurança da custódia oficial, um dos níveis de refracção do bem jurídico mais lato que abarca todos os crimes contra a administração pública: a autonomia do Estado visando completar a protecção da administração realização da justiça.
Por isso, não só reportada a decisões finais mas ainda, a outras que surjam no decurso do processo penal vg. a detenção ou as medidas de coacção detentivas, que por visarem satisfazer as necessidades que as determinou, não pode o sistema deixar de prover ao seu efectivo acatamento.
Até à alteração legislativa operada no C Penal através do Decreto Lei 48/95 de 15MAR, a previsão do crime de evasão, artigo 392.º, tinha a seguinte redacção:
“1 - Quem, encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei, de detenção, internamento, ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando a sua remoção ou transferência, se evadir, será punido com prisão até 2 anos.
2 - Se a evasão tiver lugar de um estabelecimento que funcione em regime aberto a pena será de prisão até 4 anos.
3 - Se a evasão tiver lugar de um estabelecimento que funcione em sistema de segurança média, a pena será de prisão até 3 anos.
4 - Se o facto for cometido com violência ou por meio de ameaças contra as pessoas ou mediante arrombamento a pena será de prisão de 2 a 4 anos.
5 - Se a violência ou as ameaças forem exercidas por meio de armas ou contra um grupo de pessoas, a pena será de prisão de 3 a 5 anos.
6 - A pena poderá ser reduzida de metade quando o agente se entregue, antes da condenação, à autoridade competente.
7 - A tentativa é punível”.
Desta evolução legislativa, o que se destaca, são alterações meramente formais: a substituição da expressão “pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reacções criminais privativas de liberdade” por “pessoa legalmente privada da liberdade” – redacção que se destinou a abranger também as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, a prisão preventiva e a obrigação de permanência no domicílio.
Assim se retomando, de resto a redacção que constava do Projecto inicial apresentado pelo Prof. Eduardo Correia.
No dizer de Simas Santos e Leal Henriques, in C Penal, 2.º vol, 1110, procurou-se instituir “um regime mais simples e claro”, em que se censuram apenas aquelas situações de evasão da responsabilidade do próprio recluso que importa efectivamente conter, apud Ac STJ de 3.3.98, in CJ, I, 215.
São, portanto, elementos objectivos do tipo legal de evasão que o seu agente seja alguém que se encontra legalmente privado da liberdade e que se tenha evadido, ou seja, se tenha retirado voluntariamente da situação de privação de liberdade em que se encontrava.
Condição fundamental e, únicos pressupostos, são, assim, por um lado, a legalidade da privação da liberdade e, por outro, o seu afastamento voluntário, por parte do arguido.
Para alguém cometer o crime de evasão p. e p. pelo artigo 352.º/1 C Penal é necessário estar, então, efectivamente, privado da sua liberdade, desde logo.

III. 3. 3. 3. Em termos de regras de interpretação, dispõe o artigo 9º/1 C Civil, que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos jurídicos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Por outro lado, dispõe o nº. 2 da mesma norma que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, nº. 3 da mesma norma.
Na interpretação das normas jurídicas, o argumento literal, não deve ser desprezado e deve-lhe mesmo ser concedido peso decisivo, na tarefa, por vezes árdua, (o que não será, contudo – cremos - o caso) de procurar o sentido da norma querido pelo legislador.
O texto é o ponto de partida da interpretação, quando o sentido para que nos remete não seja paradoxal.
Por um lado, apresenta-se com uma função negativa:
a de eliminação daqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras da lei, e, por outro,
com uma função positiva, nos seguintes termos:
“primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador;
quando, como é de regra, as normas, fórmulas legislativas, comportam mais que um significado, então a função positiva do texto produz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis; e que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita; ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto, nem sempre exacto, de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento”, cfr. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, 2000, 182.
A interpretação tem como escopo fundamental a determinação da chamada “voluntas legislatoris”.
Para tanto o intérprete deve socorrer-se de 2 elementos distintos:
o elemento gramatical - o texto da lei e,
o elemento lógico – o espírito da mesma lei.
Se se deve começar pela análise do elemento gramatical, mas pode não bastar, como da mesma forma não basta o elemento lógico. Nenhum deles, de resto, se basta a si próprio na tarefa de interpretação.
Na análise do elemento gramatical o intérprete começará por determinar o significado verbal das expressões usadas – segundo os critérios linguísticos, a conexão dos vários termos e períodos e concluirá por arrancar de todo esse aglomerado de palavras, um ou vários sentidos.
Na hipótese de o texto admitir apenas um sentido, devemos reputá-lo, em princípio, como tradutor da verdadeira vontade real do legislador.
No entanto, as mais das vezes o texto da lei comporta, desde logo, mais do que um sentido.
Há que recorrer, então ao elemento lógico, que permite corrigir, esclarecer ou consolidar as sugestões dadas pelo texto legal ou que permite vencer os obstáculos criados pelo texto das normas mais obscuras.
O elemento lógico tem a ver com a razão de ser da lei, com os motivos que a devem ter determinado e tem em devida conta a sua conexão com outras normas jurídicas e obriga muitas vezes a recorrer aos próprios princípios que estão na base de todo o sistema jurídico.
O elemento lógico subdivide-se em 3 elementos distintos:
o racional, o sistemático e o histórico.
O racional consiste na razão de ser da lei, na ratio legis, no fim para que a norma foi promulgada e ainda nos motivos históricos e nas circunstâncias exteriores que a determinaram – occasio legis.
O elemento sistemático ao qual o intérprete deve recorrer, importa o não perder de vista o facto de que nenhuma disposição legal constitui uma regra isolada dentro do sistema jurídico. Relaciona-se sempre com as outras normas afins e paralelas, sobretudo com as que se integram no mesmo instituto, ou com as que regulam problemas logicamente relacionados.
O elemento histórico tem por objecto as diversas leis que versado sobre a mesma matéria, hajam vigorado antes da disposição, cujo sentido se procura determinar, bem como os trabalhos em que se tenha inspirado o legislador e os diversos elementos – projectos, actas, relatórios, comentários, relativos à elaboração da lei.

III. 4. Descendo ao caso concreto.

III. 4. 1. O elemento gramatical, o racional, o sistemático e o histórico, cremos, que impõem, a conclusão de que o legislador ao utilizar a expressão “pessoa legalmente privada de liberdade” não pode ter deixado de querer abranger, quem o está por decisão que ordene,
- prisão, detenção ou internamento de imputáveis ou inimputáveis, adultos ou jovens - incluindo as decisões tomadas quando estiver em curso processo de extradição ou expulsão,
- internamento preventivo em hospital psiquiátrico e obrigação de permanência na habitação, prevista nos artigos 44.º e 62.º C Penal, cfr, neste sentido C Penal, parte geral e especial, de Miguez Garcia e Castela Rio.
Que a expressão “pessoa legalmente privada de liberdade” está utilizada com o sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência no domicílio, entendeu, desde logo, expressamente o Prof. Figueiredo Dias, in Actas da Comissão de Revisão do C Penal, 1993, 440.
No mesmo sentido se pronuncia, de resto, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C Penal, 2008, 829, “por decisões privativas de liberdade deve entender-se todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias. Também está incluída a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coacção seja como pena”.
Dúvida séria, não temos, portanto, que, na situação concreta, o arguido incorreu na prática do crime de evasão pelo qual se encontrava acusado e pelo qual veio a ser condenado.
Estão preenchidos, quer os elementos objectivos - o estado de privação de liberdade e a modificação desse estado, por iniciativa do detido - quer o subjectivo – a título de dolo directo, pois que estão verificados os elementos, intelectual, volitivo e emocional, já que o próprio arguido assumiu, de forma clara e inequívoca, que saiu de casa e, que estava bem ciente que não o podia fazer.

III. 3. 4. 2. E agora a questão da punição desta conduta a título de crime de evasão.

Desde logo parece evidente que se estivesse em reclusão, nada impedia que a par da responsabilidade criminal, decorrente da evasão, da mesma forma, o arguido ficava sob a alçada disciplinar - a perseguir e, eventualmente, a sancionar pelos serviços prisionais.
São interesses, contextos e consequências jurídicas de níveis e patamares diversos, que impõem tal solução.
Já não mereceria tratamento em termos de estatuto processual, pela simples e singela razão de que já não era mais possível agravar a medida de coacção de prisão preventiva.
Da mesma forma, não será pelo facto de, decorrente da violação da medida de coacção, por se ter ausentado de casa, que vendo por esse facto, no imediato, agravada a medida de coacção, com a aplicação da prisão preventiva - que, no entanto, não é de aplicação automática, depende da gravidade do crime imputado e dos motivos da violação, cfr. artigo 203.º/1 in fine C P Penal - que impede que a mesma factualidade, o mesmo evento, a mesma ocorrência, possa conduzir a esta resposta, que seja considerada como integrado a factualidade típica do crime de evasão do artigo 352.º/1 C Penal.
No processo, de natureza processual, com o natural agravamento das necessidades cautelares e, aqui de natureza substantiva, enquanto resposta sancionatória ao preenchimento da factualidade típica de um crime.
Sem qualquer violação do princípio ne bis in idem, que como se sabe impede, tão só, que alguém seja condenado, sancionado, mais que uma vez pelos mesmos factos. Com efeito, o arguido apenas está a ser punido, criminalmente, por uma vez – neste processo. Já que naquele outro onde ocorreu a violação da medida de coacção e por causa dela, o que acontece é coisa substancialmente diversa – viu agravada a medida de coacção, pelo facto de ter desrespeitado a que lhe tinha sido aplicada, sempre, como é sabido, segundo a regra “rebus sic stantibus”.

Improcede, pois também, este segmento do recurso.

III. 3. 5. A medida da pena.

III. 3. 5. 1. Aquando da operação de determinação da medida da pena aplicada ao arguido, invocou-se na decisão recorrida – por remissão para os fundamentos aduzidos a propósito da questão da escolha da espécie da pena, na alternativa entre prisão e multa - o pertinente em termos de dogmática penal e princípios gerais atinentes à pena e ponderou os factores concretos aplicáveis:
“(…)depõe contra o arguido a culpa elevada (dolo); o uso da força para concretizar os seus intentos; o desrespeito, por motivos fúteis, da autoridade do Estado; o tempo alargado em que se manteve afastado da custódia do Estado.
Tinha já vários antecedentes criminais, nomeadamente em pena de prisão longa por crimes violentos; manteve-se ligado a práticas criminais, com cometimento de crimes no decurso de liberdade condicional e revogação desta; aliás, cometeu os factos ora em causa quando gozava de liberdade condicional à ordem de outro processo.
Deste modo, atendendo às circunstâncias expostas, não esquecendo a confissão que fez dos factos, julga-se adequada a fixação da pena em 10 meses de prisão.
Atendendo ao absoluto desrespeito pela autoridade pública demonstrado pelo arguido, aliás na senda de crimes de violência contra a autoridade que vinha cometendo (resistência e coacção sobre funcionário), e aos seus antecedentes criminais, em que as penas de prisão e liberdade condicional não serviram para evitar o cometimento deste crime, a que acrescem infracções disciplinares em meio prisional, entendemos que a pena terá que ser de cumprimento efectivo.
O mínimo que se exigia a alguém com esse histórico criminal era que respeitasse as regras impostas pela medida de coacção que lhe foi imposta e o arguido, à menor solicitação, até para passar algum tempo na praia (!), optou por incumpri-las, revelando absoluto desprezo pelas mesmas”.

III. 3. 5. 2. As razões do arguido.

Por fim, o arguido entende que a pena de 10 meses de prisão, que lhe foi aplicada, é excessiva, defendendo a sua redução para o patamar mínimo da moldura abstracta, de 1 mês, invocando, por um lado, a confissão e, por outro, o curto espaço de tempo em que se encontrou foragido e o facto de ter regressado de livre e espontânea vontade, ciente do erro que cometera, tendo a ausência decorrido sem incidentes – o que, em sua opinião, deve ser valorado.
Invoca a norma contida no n.º 2 do artigo 352.º C Penal, que prevê a atenuação especial da pena, se o agente se entregar espontaneamente às autoridades – cujos termos estão definidos no artigo 73.º/1 a) C Penal, operando-se, no caso, a redução do limite máximo da moldura abstracta, a 16 meses de prisão.
Não resulta, no caso concreto, uma dimensão alarmante, ainda que grave seja ter violado a obrigação a que se encontrava obrigado, mas atentas as circunstâncias, o que se pretende é a aplicação da pena no seu limite mínimo.
Ainda que, não seja o seu primeiro encontro com o sistema judicial, conforme consta do seu relatório social, a conduta prisional do arguido desde o inico de 2014, pauta-se pela procura de um futuro melhor, cfr. relatório social "... B… tem assumido um compromisso resolutivo do anterior estilo de vida criminal investido na adequação disciplinar e na habilitação com o ensino superior frequentando o 1.º ano do curso de Gestão" e ciente da necessidade de alterar o rumo à sua vida, o arguido com a ajuda do curso que frequenta, pretende reactivar juntamente com a sua companheira, o negócio de prestação de serviços de estética.
Por estes factos e atenta a mudança de rumo que o arguido imprimiu no seu percurso, quer por um lado a estabilidade social e pessoal, por outro lado o comportamento adequado no EP e a inclusão num curso de gestão, conclui pela redução da pena ao patamar mínimo, de 1 mês, tendo a decisão recorrida, ao assim não entender e decidir, violado os artigos 40.º, 41., 71.º 72.º C Penal.

III. 3. 5. 3. Apreciando.

III. 3. 5. 3. 1. A atenuação especial da pena.

O crime de evasão é aplicável uma pena de prisão entre 1 mês e 2 anos, cfr. artigos 352.º/1 e 41.º/1 C Penal - no caso, fixou-se a pena em 10 meses de prisão.
No n.º 2 do artigo 352.º prevê-se, no entanto uma circunstância modificativa atenuante especial - “se o agente espontaneamente se entregar às autoridades até à declaração de contumácia, a pena pode ser especialmente atenuada”.
Quando “o agente se entregue” esta era a expressão utilizada na versão original do C Penal de 1982. E, então, a pena poderia ser reduzida a metade, cfr. n. 6 do artigo 392.º
Assim, desde logo, com a revisão do texto legal, operada pela Lei 48/95, concretizou-se a ideia de que não valia qualquer entrega e determinou-se a quem teria que ser feita, para desencadear o efeito de atenuação da pena - tinha que ser às autoridades.
Se a atenuação especial da pena é obrigatória no regime geral – “o tribunal atenua especialmente a pena ” já, no caso do crime de evasão, a atenuação especial é facultativa – “a pena pode …”.
Curiosamente na versão original do C Penal de 1982, também a expressão utilizada no então artigo 73.º era que o tribunal “pode atenuar” e veio a ser substituída por “o tribunal atenua”, na apontada revisão legislativa.
Alteração que não pode deixar de ser vista e interpretada como uma tentativa de clarificação e de reforço da ideia de que verificados os pressupostos legais, a atenuação constitui um dever a que o tribunal se não pode furtar. Trata-se de um poder vinculado, de um poder/dever.
A respeito de se dizer “pode”, quando no regime geral do artigo 72.º C Penal se diz que “o tribunal atenua especialmente a pena”, alguma diferença o legislador quis fazer entre ambas as situações, deve ler-se, ali “deve”, pois que se assim não fora de pouco adiantariam estes fundamentos particulares de atenuação especial, em relação à regra geral contida no artigo 72.º C Penal.
Parece, porém, que o “pode” evita a concessão do prémio ou benefício em casos nos quais - e não serão raros - apesar de haver oportuna entrega às autoridades, falta o mérito atinente e tem a vantagem de observar o princípio da apreciação concreta das circunstâncias, cfr. C Penal, anotado e comentado, Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette.

O princípio basilar que regula a atenuação especial da pena, em geral, é, como se sabe, a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.
A atenuação especial corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da(s) atenuante(s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
A atenuação especial representa, pois, um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.
Como ensina Figueiredo Dias [1] “as situações a que se referem as diversas alíneas do n.º 2 do artigo 72.º C Penal não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena”.
Aquelas situações não têm o efeito automático de atenuar especialmente a pena, só o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido.

O que se trata em qualquer dos casos afinal - atenuação, geral ou especialmente prevista - é de privilegiar o crime nos casos em que o dano o prejuízos, esteja ressarcido, por acção voluntária do agente e - para além, deste fundamento utilitário e pragmático - também, naturalmente, tem presente e como fundamento, uma mitigação da culpa, porque - no caso do crime de evasão, o agente através da sua apresentação às autoridades, voluntária e espontaneamente - acaba por vir a revelar uma certa inadequação do facto à sua personalidade, ou pelo menos, de arrependimento, bem como, ainda, no campo da ilicitude, através da diminuição da danosidade social do seu comportamento, em razão da vontade de proceder à sua reintegração pessoal na situação em que se encontrava antes da sua conduta delitiva.
Donde, este comportamento deve provir da iniciativa do arguido – por mais facticamente condicionada que seja - deve constituir um acto voluntário e espontâneo do agente – pois que só tal comportamento será adequado a relevar para a medida da culpa.
Como resulta do elenco dos factos provados, que se têm como definidos e definitivos e agora intangíveis, nenhuma destas alegadas circunstâncias ali está retratada.
O que aconteceu foi que,
o arguido se ausentou de casa cerca das 15.42 horas e foi ter com a ex-companheira;
que após o avistar avisou a GNR;
que se deslocou ao local;
um dos elementos que compunha a patrulha seguiu no encalço do arguido e, acabou por o avistar;
tendo o arguido fugido a pé, deixando o motociclo em que se fizera transportar;
foi para a praia - segundo disse o arguido;
cerca das 20 horas regressou a sua casa e,
pelas 20,45 horas foi recolocado o dispositivo de identificação pessoal – que tinha retirado.

Cremos bem que a situação dos autos - alguém que se ausenta do domicílio onde tem fixada a obrigação de permanência e aí regressa, depois de ir falar com a ex-companheira e ir passear até à praia, não merece beneficiar da apontada atenuação especial da pena - desde logo não se apresenta às autoridades, única forma, a que o legislador atribui efeitos, de colocar termo à sua clandestinidade e situação antijurídica.
E regressar à casa onde habita, constitui, de resto, em situações normais, o que seria de esperar, sem que daí resulte qualquer indício de que por esse facto haja tentado inverter a situação em que se colocou. Foi afinal o regresso à sua zona de conforto, que, afinal nada tem de extraordinário e, por isso, não merece especial tratamento, mormente em seu benefício.
E se assim é, na ratio e na essência da norma, o arguido não pode beneficiar deste tratamento mais favorável, se está provado que, afinal voltou, foi para casa – local, é certo onde estava a cumprir a pena que abruptamente interrompeu - o que não pode merecer o mesmo tratamento do que entregar-se e, fazê-lo, decisivamente, às autoridades.
Donde, o caso concreto, não assume os contornos delineados no texto legal.
Não ocorre assim, nem a exigida mitigação da sua culpa ou da ilicitude ou ainda da necessidade da pena - pressuposto da aplicação da norma invocada.
Donde, não pode o arguido beneficiar da atenuação especial da pena, por falta de prova do requisito da sua apresentação, voluntária e espontânea, da sua iniciativa, às autoridades.
Mesmo considerando o seu regresso a casa – pois então, para onde podia voltar?? - tal facto não é de molde a deixar transparecer, sequer – menos a evidenciar - que estejamos perante qualquer caso especial que justifique a atenuação especial da pena.
Isto é o facto de o arguido ter entretanto regressado a casa, onde estava a cumprir a medida de coacção, só por si não tem, não assume, o carácter atenuativo, excepcional, que a lei exige.
Com efeito o que a lei pretende com este poder/dever é conceder um benefício àquele que depois de se evadir e assim se colocando numa situação antijurídica, vem a ela colocar termo, antes de ser declarado contumaz, mediante a entrega espontânea às autoridades.
Esta norma é premial de uma certa entrega espontânea e resolve-se com a atenuação especial da pena, facultativa.
Desde logo – se tivessem a virtualidade, que cremos não evidenciar, só por si, ou mesmo, todas elas juntas - as circunstâncias invocadas pelo arguido não são de molde a deixar transparecer, sequer, menos a evidenciar, que estejamos perante qualquer caso especial que justifique a atenuação especial da pena.
Assim, não será caso de fazer desencadear nem uma diminuição acentuada, da ilicitude do facto ou da sua culpa, tão pouco, da necessidade da pena.
Em conclusão, não tem a situação dos autos, o efeito atenuante que o arguido pretende.

III. 3. 5. 3. 2. A medida da pena.

No entanto, se, é certo que as circunstâncias – todas elas e, não só o regresso a casa - invocadas não têm aquela pretendida virtualidade, serão, no entanto, de ponderar, em sede da operação de determinação da medida da pena, pois que traduzem uma diminuição da ilicitude da conduta do arguido, na estrita medida em que coloca termo à ausência e demonstra vontade de voltar a ficar inserido no âmbito processual em que estava antes - a valer, então, como atenuante geral e assim, influindo na determinação da medida concreta da pena, nos termos do disposto no artigo 71º do Código Penal
Fixada assim, a moldura penal abstracta de prisão de 1 mês a 2 anos – e, já não a resultante da atenuação especial, que nos termos do artigo 73.º/1 alíneas a) e b) C Penal operaria uma redução do limite máximo de 1/3 e do limite mínimo ao mínimo legal, seja uma moldura de prisão de 1 mês, à mesma, até 1 ano e 4 meses.

A propósito da discordância do arguido em relação à medida da pena aplicada – que tem por excessiva - devemos referir o seguinte.
Como é sabido a questão da medida da pena não é do conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena, o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71º C Penal, estando vinculado aos módulos – critérios de escolha da pena constantes do preceito. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O dever jurídico, substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena.
Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada.
Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.
Como sabemos, há muito está ultrapassada a fase da consideração, como ponto de partida para a determinação da medida concreta da pena, o do ponto médio da sua moldura abstracta – que, de resto, da decisão recorrida não resulta haja sido aplicado, expressamente ou, tenha estado subjacente e, aplicado de forma implícita, à operação de determinação da medida da pena - bem como, consolidado está o entendimento de ser esta a matéria onde transparece e se assume na plenitude, a arte de julgar, como ponto incontornável de partida e de chegada e que a operação de determinação da medida da pena se faz em função dos critérios gerais de medida da pena, seja, a culpa do agente e as exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
As circunstâncias factuais determinativas da medida concreta da pena são apenas aquelas que constam da decisão da matéria de facto – maxime dos factos provados - sem prejuízo de o significado preciso de alguma expressões circunstanciais poder eventualmente conjugar-se com a motivação da convicção formada pelo tribunal.
Dispõe o artigo 71º/1 C Penal, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e exigências de prevenção”.
Por outro lado, as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e por outro lado a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa, artigo 40º/1 e 2 C Penal.
Deve, então, a medida concreta da pena ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, nos termos concretizados no n.º 2 do artigo 71.º C Penal.
Culpa e prevenção são assim os dois termos de um binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida da pena.
Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena, através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Só finalidades relativas de prevenção geral e especial e não finalidades absolutas de retribuição e expiação justificam a intervenção do sistema penal.
Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 121: “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”
Em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa. A culpa é condição necessária mas não suficiente, da aplicação da pena
O princípio da culpa, não se fundamenta em qualquer concepção retributiva da pena, antes sim no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal e “é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização”, cfr. Prof. Figueiredo Dias – in ob. cit. § 56.
A função da culpa no sistema punitivo assume-se “numa incondicional proibição de excesso, constituindo o limite inultrapassável: de quaisquer exigências preventivas”, cfr Prof. Figueiredo Dias, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 109 e ss.
Citando, ainda o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 227, “a medida da pena há-de ser dada pela tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz nas expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada”.
“O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, dando tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime, ligada ao princípio da eminente dignidade da pessoa humana, limita de forma inultrapassável a medida da pena, sem deixar de atender aos fins da prevenção geral e especial.
A culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura, que funciona ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena”, ibidem, 215.
O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina, ainda, o Prof. Figueiredo Dias, “aquele que comete à culpa a função, única, mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral, de integração, a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dento da referida “moldura de prevenção”, que sirva melhor as exigências de socialização ou, em casos particulares, de advertência ou segurança do delinquente” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, 186-187.
As circunstâncias e critérios do artigo 71º C Penal devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

III. 3. 5. 3. 2. 1. Vejamos.

Importaria que o arguido fizesse uma ponderação em concreto dos factores que pudessem conduzir aos efeitos pretendidos.
Ao arguido incumbia, naturalmente, alegar e situar quais as circunstâncias que foram subavaliadas e situar quais as que foram sobrevalorizadas - que não estejam ajustadas aos enunciados fins das penas, contidos no artigo 40º/1 C Penal ou que violem os critérios legais de determinação da medida concreta das penas, contidos no artigo 71º C Penal.
E, fê-lo com as apontadas circunstâncias de onde pretendia ver a pena especialmente atenuada.
Será que, do que vem de ser exposto, destas considerações, destes factores, destas circunstâncias, deste ponto de partida, se pode afirmar que na decisão recorrida se chegou a um resultado absolutamente díspar, incongruente e manifestamente desajustado, exagerado e desproporcionado - como pretende o arguido?
Será que os mesmos fundamentos de facto e a mesma justificação de Direito, pode suportar, de forma coerente e articulada, uma redução da pena?
Cremos, efectivamente que sim.
A propósito da fixação e determinação da medida concreta da pena, no caso em apreço, há que convocar os seguintes argumentos:
o diminuto grau de ilicitude do facto - a traduzir, de resto, uma situação absolutamente paradigmática para situações similares de OPHVE, com o danificar - através do uso da força, necessariamente, de resto - seriamente, do dispositivo de identificação pessoal que tinha colocado no corpo, sendo certo por outro lado, que, em sede de consequências da evasão, veio ao fim de 4 horas a regressar a casa, sem que conste haja qualquer incidência durante o, assaz reduzido, lapso de tempo em que esteve ausente;
a culpa do arguido, de normal intensidade a nível de dolo directo e não mitigada por qualquer circunstancialismo – a raiar, mesmo a indigência e futilidade, já que a justificação dada para os factos se prende, segundo verbaliza o arguido, com a sua pretensão de falar com a sua ex-companheira, por causa de uma questão relacionada com um contrato de arrendamento de uma habitação, chegando a referir - atente-se na ligeireza de espírito e futilidade da motivação, que ainda “teve tempo de espairecer” na zona da praia, em Gaia, revelando um absolutamente censurável desprezo pelo cumprimento das obrigações a que estava adstrito.
A este propósito convém – a fim de esclarecer a afirmação de que, a actuação do arguido com dolo directo, que é o mais elevado grau de censura jurídico-penal - salientar que apesar da actuação do arguido ter presente o dolo directo, tal não traduz, nem os factos provados evidenciam, se possa quantificar a culpa como de elevada intensidade – como foi, afinal, entendido.
Dolo directo não significa dolo intenso. Não significa intenção criminosa de grande intensidade. Significa, tão só, que o agente actuou com vontade dirigida à realização do facto. De resto, a singela, simples e básica, materialidade provada evidencia, também, aqui, uma mediana, absolutamente normal, intensidade dolosa, no cometimento dos factos. Estamos assim, perante um caso absolutamente paradigmático, sem nada de realce que o distinga da normalidade em relação à forma de cometimento deste crime, quer a nível da ilicitude, quer da culpa;
a confissão, no caso sem qualquer relevo, de resto, em termos de contribuição para a descoberta da verdade;
as absolutamente normais necessidades de prevenção geral e, já mais elevadas, necessidades de prevenção especial, evidenciadas pelo facto de o arguido, ao tempo, ter já sido condenado pela prática de dois crimes de roubo, um crime de roubo na forma tentada, dois crimes de detenção ilegal/proibida de arma, dois crimes de condução sem habilitação legal e um crime de resistência e coacção sobre funcionário.

III. 3. 5. 3. 2. 2. Ora, face a tudo isto e, dentro da apontada moldura penal abstracta, de prisão de 1 mês a 2 anos, cremos bem que a pena de 10 meses é merecedora da crítica que o arguido lhe faz.
Com efeito, tendo presente o que vem de ser exposto, considerando-se,
que a moldura de prevenção seria de 4 meses de prisão (limite mais baixo não satisfaria, no caso, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, face à inerente e paradigmática forma de cometimento dos factos em si mesmos e ao modo, absolutamente normal da sua execução, sem consequências dignas de nota) e,
o limite máximo não deveria ir para além dos 12 meses de prisão, limite que ainda satisfaria as exigências de prevenção,
depois, fazendo funcionar a elevada exigência de prevenção especial, a nível, já não, de mera advertência, dentro desta sub-moldura, a pena concreta aplicada, 10 meses de prisão, ultrapassa a intensidade da culpa do arguido - a título de dolo directo e de normal intensidade, recorde-se.
Cremos bem que medida da culpa do arguido justifica a aplicação de pena menos severa, que, da mesma forma, se mostra susceptível de assegurar, quer, o normal interesse da prevenção geral, quer, o mais premente, de prevenção especial e, ainda, de representar uma suficiente censura do facto e, por outro lado, em simultâneo, de constituir uma ajustada, adequada, mais criteriosa e, proporcional ao grau de ilicitude, diminuto e, da culpa, mediana.
Assim, em resumo, dado ser susceptível – em via de recurso - de correcção, o procedimento e as operações de determinação da medida da pena (vg. o desconhecimento ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação da medida da pena, a falta de indicação de factores relevantes para tal operação, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis), temos que no caso concreto, a operação efectuada na 1ª instância, essencialmente, quanto ao limite e medida da culpa, impõe a formulação da apontada correcção.
Donde, tem justificação, dentro dos parâmetros enunciados, a operação de correcção ao quantum exacto da pena, fixada – com a sua redução para os 6 meses de prisão, mais adequada, mais criteriosa e adequada à medida da culpa do arguido e, seguramente, susceptível de assegurar, ainda, os apontados interesses da prevenção geral e especial.

Naturalmente – nem o arguido por tal solução pugna – que não pode esta pena concreta ser substituída por qualquer uma outra pena, por a tal se oporem, de forma manifesta e ostensiva, as apontadas finalidades das penas, em face dos antecedentes criminais que o arguido ostenta.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em conceder, apenas, parcial, provimento ao recurso apresentado pelo arguido B…, em função do que se reduz a pena concreta, para os 6 meses de prisão, pelo cometimento do crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º/1 C Penal.

Sem tributação.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2016-Dezembro-07
Ernesto Nascimento
José Piedade
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[1] Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 302.