Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8292/12.6TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: AGENTE INFILTRADO
ACÇÃO ENCOBERTA
AGENTE PROVOCADOR
MÉTODO DE PROVA PROIBIDO
Nº do Documento: RP201405078292/12.6TDPRT.P1
Data do Acordão: 05/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REENVIADO O PROCESSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O regime legal das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal encontra-se previsto na Lei 101/2001, de 25 de Agosto.
II – São definidas como sendo as «(...) que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Policia Judiciária (...) com ocultação da sua qualidade e identidade.
III – Segundo Germano Marques da Silva “os agentes informadores e infiltrados não participam na prática do crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa, e, por isso, é de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investigação”.
IV - As acções encobertas apenas são admissíveis no âmbito da prevenção e repressão dos crimes mencionados no artigo 2º da citada lei e desde que obedeçam aos requisitos previstos no artº 3º, ou seja, “devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidade quer à gravidade do crime em investigação”.
V – O agente provocador é aquele que “actuando sob uma falsa identidade e sem revelar a sua verdadeira qualidade, fazendo-se assim passar por aquilo que não é, convence outrem a cometer um crime”.
VI – O agente provocador é agente do próprio crime e, por isso, as provas assim obtidas são recondutíveis aos “métodos proibidos de prova” a que alude a última parte da alínea a) do n° 2 do art. 126 do CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 8292/-12.6TPDPRT.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal colectivo) n.º8292/12.6TDPRT.P1 do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial da Maia o arguido B… foi submetido a julgamento e a final foi proferido acórdão de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Pelo exposto, acorda-se em:
a) Declarar a nulidade da prova obtida nos autos através da ação encoberta organizada e levada a cabo pela Policia Judiciária no dia 10.01.2013, que culminou com a detenção do arguido, nos termos do disposto nos art.ºs 122.º, 126.°, n.º 1 e n.º 2, al. a), do C.P.Penal, ex vi dos artigos 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, 5.º e 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 3.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
b) Consequentemente, absolver o arguido B… da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do D.L. nº 15/93, de 22/01, e mapa anexo à portaria n.º 94/96, de 24 de Março, pelo qual foi acusado.
*
Declara-se perdida a favor do Estado a cocaína apreendida.
*
Sem custas.

(…)
*
Inconformada, a Magistrada do Ministério Público interpôs recurso, no qual retira da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…)
I – Existe contradição insanável na fundamentação, e entre esta e a decisão proferida, enquanto vício da decisão, previsto nos termos da alínea b) do nº 2 do artº 410º do CPP, que deverá determinar o reenvio para novo julgamento, nos termos do disposto no artº 426º, nº1, do CPP.
II - Assim, a referida contradição insanável na fundamentação verifica-se, quando no douto acórdão recorrido, se dá como provado, por um lado, o que consta dos pontos 17, 18, e 19, e por outro, se dá como não provado a factualidade, como tal referida em 7, 8, e 9 do mesmo acórdão;
III - Existe ainda contradição insanável na fundamentação, quando o douto acórdão recorrido concluiu existir nulidade de toda a prova produzida através de ação encoberta, que no entendimento aí sufragado, inquinaria toda a prova produzida, à luz do disposto nos artigos 122º, 126º, nº1 e nº 2, al. a), do CPP, ex vi artº 32º, nº 8 da CRP, 5º e 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e artº 3º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e simultaneamente manter como provados todos os factos que constam como tal nos pontos 1 a 27 da fundamentação do acórdão recorrido.
IV - Por último, verifica-se ainda existir contradição entre a fundamentação, perante os factos que assim persistem como provados, apesar da declarada nulidade de toda a prova produzida, consubstanciando assim a prática pelo arguido do crime de tráfico de estupefacientes p.p no de artº 21º, nº1 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e a decisão absolutória que foi proferida.
V – As provas produzidas em audiência, concretamente, as referidas informações policiais, os relatórios de diligências externas relativos às operações de vigilância, e os elementos nela recolhidos, corroborando as declarações que o arguido prestou perante o Mmº Juiz de instrução Criminal, lidas em audiência de julgamento dentro do condicionalismo do artº 357º, nº1, do CPP, a própria natureza da droga em si, e a sua quantidade, são elementos probatórios mais do que suficientes para ter como provada a factualidade que ficou a constar no douto acórdão recorrido, sob os pontos 1, 2, 3, e 4 da " matéria de facto não provada", e para, em relação aos pontos 6, e 8 da mesma, ter como provado, por um lado, que o arguido com a sua atuação, pretendia obter proventos económicos, e por outro que pretendia proporcionar a outros revendedores, concretamente aos referidos D… e C…, a droga apreendida. Assim, deverá tal matéria de facto ser tida como provada, alterando-se o que a esse respeito ficou a constar do douto acórdão recorrido.
VI – Porque não foi feita prova que sustenta as afirmações que ficaram a constar dos pontos 15 e 16 da "matéria de facto provada", da fundamentação de facto do acórdão recorrido, deverá também ser alterada, nessa parte, a matéria de facto, dando-se como não provada a factualidade correspondente.
VII - Sem prejuízo do que assim se deixa dito, sempre caberá acrescentar que, tendo o arguido referido já aquando da sua contestação, a alegada existência de uma ação encoberta ilegal, sempre poderia nessa altura - artº 4º, nº 1 e 2, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto - ter sido requerida pela defesa ou determinado, oficiosamente pelo Tribunal, a junção do relato da ação encoberta, que se alegava ter existido com vista à comprovação da sua alegada ilegalidade, e ao esclarecimento das dúvidas e suspeitas referidas no acórdão recorrido, mas sempre após um prévio e necessário ajuizamento da sua indispensabilidade em termos probatórios relativamente ao objeto do processo ( artº 4º, nº1, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto)
VIII - Os factos que assim devem ser tidos como provados nos autos, no seguimento da alteração da matéria de facto que se sustenta nos termos supra expostos, consubstanciam efetivamente a prática pelo arguido do crime pelo qual vinha acusado, ou seja, o crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artº 21º, nº1, e Tabela 1-B do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e Mapa Anexo à Portaria nº 94/96, de 24 de Março.
IX - Em qualquer caso, bastava a factualidade tida como provada pelo tribunal recorrido - e que foi como tal mantida apesar da nulidade probatória declarada - para que devesse considerar-se o arguido como incurso na prática, em autoria material, do referido crime de tráfico de estupefacientes pelo qual vinha acusado, uma vez que os factos assim tidos como provados integram todos os elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido nos termos do artº 21º, nº1 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
X – Sem prejuízo de se considerar que a prova produzida em julgamento não permite estabelecer como provada a que consta como tal nos pontos 15º e 16º da "matéria de facto provada", no acórdão recorrido, deve entender-se que tal factualidade não é suficiente para que se possa afirmar, como se faz no acórdão recorrido, ter havido uma ação encoberta - ou seja, a intervenção de um agente da Policia Judiciária, ou de um terceiro atuando sob controlo daquela Polícia - artº 1º, nº 2, da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto
XI - Em todo o caso, nunca será de mais sublinhar que a intervenção do agente infiltrado no contexto de uma ação encoberta, levada a cabo pela Polícia Judiciária, enquanto meio de investigação criminal e de obtenção de prova, enquanto situada nos limites previstos expressamente na lei - atualmente a Lei 101/2001, de 25 de Agosto - é um meio legítimo de obtenção de prova.
XII - Fora do quadro de legalidade assim definido ficarão apenas as ações encobertas que não hajam sido precedidas da prévia autorização do magistrado do Ministério Público competente, e da sua comunicação ao Juiz de Instrução Criminal (artº 3º/3 da mesma Lei), ou as situações em que a atuação do agente encoberto seja reconduzível à figura do agente provocador.
XIII - No caso dos autos, estamos perante um tipo de crime - tráfico de estupefacientes - que, para além de desde sempre ter sido considerado como um tipo de atividade criminosa onde o recurso à ação encoberta, através do agente infiltrado, foi tido como forma legítima de obtenção de prova - cfr. os anteriores artigos 59º e 59º-A, do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro - está hoje claramente contemplada no "catálogo" de crimes que, de acordo com o disposto no atual artigo 2º, alínea j) da Lei 101/2001, de 22 de Agosto, delimitam o âmbito da aplicação das ações encobertas.
XIV - Tendo isso presente, haverá ainda de atender que, mesmo a admitir existirem elementos de facto suficientes para concluir ter havido uma ação encoberta, em momento algum se vislumbra, perante esses mesmos factos, que a atuação dos agentes da Polícia Judiciária, tal como ali é descrita, se haja desenvolvido fora do quadro legal traçado pela referida Lei 101/2001, de 22 de Agosto.
XV – E, da mesma forma, mesmo ponderando os factos tal como eles foram tidos como provados no douto acórdão sob recurso, e socorrendo-nos dos critérios orientadores a que antes se fez referência, de forma alguma se pode concluir ter o arguido atuado como atuou, sob coação ou instigação de elementos da Policia Judiciária, ou de alguém sob seu controlo, com vista à prática do crime que comprovadamente cometeu.
XVI – Assim, neste contexto, sempre teria de concluir-se inexistir, em função do que o próprio tribunal recorrido teve como provado, qualquer nulidade na produção da prova produzida, por referência ao disposto nos artigos 122º e 126º, nº1, e nº 2, alínea a) do CPP.
XVII – Por outro lado, também não constitui fundamento para a afirmação da referida nulidade probatória, a referência contida no douto acórdão recorrido, da existência de uma "encenação", decorrente de os Inspetores da Polícia Judiciária negarem a existência de uma ação encoberta que o tribunal, com base na prova produzida, concluiu ter existido.
XVIII - Inexiste, em função do exposto, fundamento legal para que o tribunal recorrido tivesse concluído como concluiu, ao afirmar a nulidade de toda a prova produzida através de ação encoberta, por referência ao disposto nos artigos 122º, 126º, nº1 e nº 2, al. a), do CPP, ex vi artº 32º, nº 8 da CRP, 5º e 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e artº 3º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
XIX - Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido fez errada aplicação, e como tal violou, o disposto nos artº 122º, 126º, nº 1 e 2, al. a do CPP, violando igualmente, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 1º, 2º, al.j), 3º, e 4º, todos da Lei101/2001, de 25 de Junho.
XX- Deve, como tal o arguido ser condenado pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artº 21º nº1, e Tabela 1-B do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e Mapa Anexo à Portaria nº 94/96, de 24 de Março, sendo que na pena a aplicar não poderá deixar de ser ponderado o elevado grau de ilicitude decorrente da natureza e quantidade da droga apreendida, pelo que, a pena a aplicar não deverá ser inferior a 6 (seis) anos de prisão.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exªs, como sempre suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso, e consequentemente:
1 – Tendo em consideração o exposto nos supra mencionados pontos 1.1, 1.2, e 1.3, e por contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão - artº 410º, nº 2, al. b), do CPP - deverá ser determinada a repetição do julgamento relativamente aos factos que constam como provados no pontos 1 a 27 da fundamentação do acórdão recorrido, para o que deverão os autos ser reenviados ao Tribunal a quo, tudo conforme o disposto no artº 426º nº 1 , do Código Processo Penal;
2 - Se assim não se entender, deverá ser o mesmo revogado quando declara a nulidade de toda a prova produzida, e, considerando a mesma, alterar-se a matéria de facto, dando-se como provado:
- Que o arguido B… faz parte de uma organização internacional de tráfico de produtos estupefacientes que transporta tais produtos da América Latina com destino à Europa, nomeadamente em Portugal;
- Que foi para se encontrarem com o arguido B… e para combinarem o local e hora da entrega da mala que provinha do Voo … e que seria levantada pelo arguido, que C… e D… se deslocaram de Espanha a Portugal;
- Que O C… e D… deslocaram-se de Espanha a Portugal também no dia 9.01.2013;
- Que nos dias 8 e 9 de Janeiro de 2013, foram dadas pelo C… e pelo D… informações ao arguido do local onde estaria a mala e fornecida a descrição da mesma, para que a pudesse facilmente localizar e transportar;
- Que o arguido pretendia proporcionar a outros revendedores, elementos de uma rede organizada a operar em Espanha, concretamente aos referidos D… e C…, a cocaína apreendida;
- Que a cocaína apreendido ao arguido, se destinava, conforme era do seu conhecimento, a ser vendida ou distribuída;
- Que o arguido com a sua atuação, pretendia obter proventos económicos.
3- Da mesma forma deverá dar-se como não provado que:
- Pelo menos o Inspetor chefe da Polícia judiciária, E…, conhecia a identidade da pessoa ou das pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até junta da papelaria “F…” onde o arguido entrou e comprou um jornal; e que:
- Tal transporte e a subsequente colocação do carro de bagagens do aeroporto com a mala junta da referida papelaria foram decididos, planeados e organizados por responsáveis da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária, com vista a que o arguido pegasse, como pegou, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala e fosse, subsequentemente detido.
4 - E alterada a matéria de facto nos termos sobreditos, deverá concluir-se pela revogação do douto acórdão recorrido na parte em que absolve o arguido B…, condenando-se o mesmo, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21º, nº1 e Tabela I-B do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e Mapa anexo à portaria nº 94/96, de 24 de Março, em pena de prisão, nunca inferior a seis (6) anos;
5 - Mesmo a considerar-se não dever ter lugar a anulação do julgamento, e o reenvio dos autos para a sua repetição, nem haver lugar a alteração da matéria de facto nos termos sustentados, sempre, haveria de concluir-se inexistir a nulidade probatória declarada pelo tribunal recorrido, e consequentemente, e com base nos factos que ali são tidos como provados, revogar-se o douto acórdão recorrido na parte em que absolve o arguido B…, condenando-se este pela prática em autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21º, nº1 e Tabela I-B do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e Mapa anexo à portaria nº 94/96, de 24 de Março, em pena de prisão, nunca inferior a seis (6) anos.
Assim se fazendo
JUSTIÇA
(…)

O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhando o recurso do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso merece integral provimento.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP pelo arguido foi apresentada resposta na qual reafirma ter existido um “um procedimento ilegal e provocatório sem enquadramento legal, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
Matéria de facto provada.
Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A partir de meados de Dezembro de 2012, as autoridades Espanholas informaram a Policia Judiciária do Porto que se encontravam a investigar o cidadão português C…, residente em Espanha, por haver suspeita de o mesmo pertencer a organização internacional dirigida à prática do crime de tráfico de produtos estupefacientes, sediada em Madrid, e por haver, também, suspeita de se encontrar a efetuar contactos com o arguido de modo a que este recolhesse uma mala de viagem com cocaína que iria chegar ao Aeroporto …, proveniente de … - ….
2. A chegada dos produtos estupefacientes esteve prevista para o dia 27 de Dezembro de 2012 e para o dia 3 de Janeiro de 2013, contudo foi adiada por dificuldades operativas na ….
3. No dia 8 de Janeiro de 2013, C… e D… deslocaram-se de Espanha a Portugal, tendo-se deslocado para as proximidades da pastelaria “G…”, propriedade do arguido, estabelecimento onde o referido D… chegou a entrar.
4. No dia 10 de Janeiro de 2013, pelas 5:50 horas, o arguido encontrava-se no aeroporto … em frente à saída de passageiros.
5. O arguido chegou a estar sentado no café snack bar “H…”, numa das mesas situadas próximo das escadas para o piso superior ali existentes.
6. Do local onde se encontrava avistava-se diretamente o ponto de saída para o átrio dos passageiros chegados do interior da alfândega do aeroporto.
7. Após, e de modo a não levantar suspeitas quanto à sua atuação, o arguido dirigiu-se a uma papelaria “F…” situada no interior do aludido aeroporto e comprou um jornal.
8. Quando saiu da papelaria, o arguido pegou num carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala que lhe havia sido descrita e que continha, no seu interior, 16 embalagens que acondicionavam de 15.882,64 gramas de cocaína.
9. O referido carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala foi deixado em frente da vitrina da papelaria “F…”, para o arguido ali pegar nele.
10. Em seguida, o arguido, na posse de tal mala, dirigiu-se para a praça de táxis.
11. A referida mala havia sido transportada no voo …, do dia 9 de Janeiro de 2013, às 16:40 horas, proveniente de … e com destino ao Aeroporto ….
12. A referida mala, tipo “Troley”, de cor preta e tiras vermelhas, com ticket de controlo de bagagem de porão com o número …………, vinha envolta em plástico protetor e tinha como elementos identificativos os dizeres manuscritos “Sr: I…” e um cartão amarelo/dourado com os dizeres “J…”.
13. A Diretoria do Norte da Policia Judiciária tinha conhecimento de que a referida mala era transportada no referido voo, bem como das suas características e elementos identificativos.
14. Elementos da Diretoria do Norte da Policia Judiciária acompanharam o trajeto da referida mala, vigiando-a, desde o avião até junto à papelaria situada no interior do aludido aeroporto onde o arguido entrou e comprou o jornal.
15. Pelo menos o inspetor chefe da Policia Judiciária, E…, conhecia a identidade da pessoa ou das pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até junto da papelaria “F…” onde o arguido entrou e comprou um jornal.
16. Tal transporte e a subsequente colocação do carro de bagagens do aeroporto com a mala junto da referida papelaria foram decididos, planeados e organizados por responsáveis da Diretoria do Norte da Policia Judiciária, com vista a que o arguido pegasse, como pegou, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala e fosse, subsequentemente, detido.
17. No dia 16 de Fevereiro de 2012 foi detido no aeroporto o passageiro K… com cerca de 9 kg de cocaína.
18. A cocaína apreendido ao arguido, conforme era do seu conhecimento, destinava-se a ser vendida e/ou distribuída.
19. Atuou o arguido com intenção de obter proventos económicos com a recolha da mala no aeroporto.
20. O arguido conhecia as características, natureza e efeitos da cocaína.
21. O arguido sabia que a sua detenção e o seu transporte é ilícito e proibido e não obstante, quis atuar e atuou da forma descrita.
22. O arguido agiu voluntária e conscientemente, conhecendo a natureza e características do produto estupefaciente que possuía e transportava, bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.
23. Antes do dia 10.01.2013, a Policia Judiciária já havia identificado o arguido como suspeito.
24. Antes do dia 10.01.2013, a Policia Judiciária já sabia, previamente, que a mala tinha sido enviada e que iria ser levantada, até entrar na posse do arguido para mais tarde ele a entregar a alguém.
25. O arguido estacionou o veículo de marca “Volvo”, matricula ..-..-ZP, registado em nome do L…, no parque do hotel “M…”.
26. O arguido sabia e estava consciente da ilegalidade do levantamento da mala, que lhe poderia acarretar graves prejuízos pessoais.
27. Existe um banco frente à papelaria “F…”, junto à saída dos passageiros, banco esse situado a cerca de 8 a 10 metros de distância.
28. O arguido tem um filho, com 12 anos.
29. Tem o 6º ano como habilitações literárias.
30. É empresário.
31. Ganhava mais ou menos 700 euros por mês.
32. Adquiriu a casa onde vive com a mulher e o filho com recurso ao crédito bancário.
33. A mulher sofre de uma incapacidade não concretamente apurada.
34. Por sentença de 19.092012, o arguido foi condenado na pena de 220 dias de multa à taxa diária de € 6,00, pela prática, em 4.09.2008, de um crime de falsificação de boletins, atas ou documentos e de um crime de recetação, p. e p., respetivamente, pelos art.ºs 256.º, n.º 1, al. e), e 231.º, do C.Penal.
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2.2. Matéria de facto não provada.
Não se provou que:
1. O arguido B… faz parte de uma organização internacional de tráfico de produtos estupefacientes que transporta tais produtos da América Latina com destino à Europa, nomeadamente Portugal.
2. Foi para se encontrem com o arguido B… e para combinarem o local e hora da entrega da mala que provinha do Voo … e que seria levantada pelo arguido, que C… e D… se deslocaram de Espanha a Portugal.
3. O C… e D… deslocaram-se de Espanha a Portugal também no dia 9.01.2013.
4. Nos dias 8 e 9 de Janeiro de 2013, foram dadas pelo C… e pelo D… informações ao arguido do local onde estaria a mala e fornecida a descrição da mesma, para que a pudesse facilmente localizar e transportar.
5. Ficou indiciado no processo n.º 276/12.0JAPRT, que correu termos nesta comarca, que os cerca de 9 kg de cocaína que no dia 16 de Fevereiro de 2012 transportava K… tinham como destino o proprietário de uma confeitaria da região do Porto, que tal estabelecimento comercial se denominava “G…”, se situava na Póvoa de Varzim e era propriedade do ora arguido.
6. Era para outros revendedores, designadamente, elementos de uma rede organizada a operar em Espanha, que o produto estupefaciente apreendido ao arguido se destinava, conforme era do seu conhecimento.
7. Eram grandes e consideráveis os proventos económicos que o arguido pretendia obter.
8. O arguido pretendia vender e /ou distribuir a cocaína aprendida.
9. O arguido pretendia transacionar ou proporcionar a outros a cocaína apreendida.
10. A atuação do arguido foi pontual e teve unicamente o objetivo de prover às dificuldades económicas por que passava na altura dos factos.
11. O arguido foi instigado fortemente por pessoas facilmente identificáveis, tendo recusado inicialmente, por várias vezes.
12. No parque do hotel “M…” já se encontrava um outro veículo, com o condutor, o qual foi um dos dois elementos fundamentais que instigaram o arguido.
13. Foi nesse veículo que o arguido foi transportado pelo seu condutor até à gare do aeroporto, no setor da saída de passageiros.
14. Enquanto permaneceu sentado no café snack bar “H…” o arguido esteve sempre acompanhado daquele individuo.
15. Tal indivíduo permaneceu sempre em contacto por telemóvel (SMS) com alguém.
16. Em determinado momento, antes da chegada de um indivíduo que, vindo do interior com o carrinho e a mala posteriormente apreendida, aquele deu ordem ao arguido para ir sentar-se no banco frontal à papelaria “F…”, junto à saída dos passageiros.
17. Passados uns minutos, aquele mesmo indivíduo, que permaneceu sempre sentado na mesa da “H…”, fez-lhe sinal com a cabeça, apontando-lhe a chegada de um individuo alto e magro, vestido de castanho.
18. O arguido viu sair este indivíduo do interior e, após percorrer o corredor aberto da saída de passageiros, colocar o carrinho e a mala em frente da vitrina junto da papelaria “F...”.
19. Tal indivíduo entrou na papelaria.
20. O arguido entrou na papelaria logo após tal individuo também ali entrar.
21. O arguido viu o referido indivíduo de perfil.
22. O arguido viu o individuo que o transportara até ao aeroporto sair pela parte traseira da “H…”.
23. Já antes tinha combinado com ele que se reencontrariam no parque do hotel “M…”.
24. Os elementos da Policia Judiciária vinham acompanhados de fotógrafos que tudo registaram.
*
3. Motivação da decisão de facto.
Nos termos do disposto no art.º 374.º, n.º 2, do C.P.Penal, o Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
Em sede de valoração da prova, a regra primacial é a constante do art.º 127.º, do mesmo código, segundo a qual a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal”.
Este princípio da livre apreciação da prova traduz-se na ideia de que “o Tribunal baseia a sua decisão sobre a realidade de um facto na íntima convicção que formou a partir do exame e da ponderação das provas produzidas”[1].
Assim, quanto aos factos provados e não provados, a decisão teve por base a análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência, designadamente:
=> As declarações do arguido B…, que, espontaneamente, de relevante, confessou ter-se, efetivamente, deslocado ao aeroporto … no dia 10 de Janeiro de 2013, ter-se dirigido à papelaria ali situada, onde comprou um jornal, de modo a não levantar suspeitas, e ter pegado, quando saiu da mesma, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala na posse da qual foi abordado na praça de táxis. Nessa parte as suas declarações não suscitaram qualquer dúvida, sendo que a demais prova produzida confirmou inequivocamente o declarado. Convenceu, também, o arguido na parte em confirmou ter deixado o papel manuscrito de fls. 371 à mulher antes de sair para o aeroporto, esclarecendo que a Dra. N… ali referida tinha sido sua advogada num processo de falsificação. Analisando tal manuscrito, extrai-se que o arguido sabia perfeitamente que ia praticar um ato ilegal e que corria o risco de ser detido, não convencendo minimamente quando começou por referir desconhecer que na mala era transportada droga, considerando as explicações dadas. Todavia, importa referir que acabou por confirmar que lhe passou efetivamente pela cabeça que o que estava na mala podia ser droga.
Também não convenceu o arguido na parte em que referiu que o C… e o D…, referidos na acusação, eram apenas seus clientes da padaria, considerando as explicações dadas. Com efeito, e para além do mais, confirmou que aqueles lhe telefonavam, sendo, pois, estranho o comportamento relatado no relato de vigilância externa de fls. 322 a 325 (ignoraram-se). Porém, apesar de estranho, o relatado comportamento, por si só e apesar de suspeito, não permite concluir que combinaram a entrega da mala, como vinha referido na acusação. Acresce que dúvidas se suscitaram quando o arguido referiu que quem lhe deu as indicações da mala foram outras pessoas (O… e P…), que identificou pormenorizadamente, em particular o P…, e com os quais disse ter negociado o levantamento da mala no aeroporto, pelo preço de € 3.000,00, que acabou por aceitar, nos termos que enunciou detalhadamente. Tais dúvidas avolumaram-se, aliás, pelo teor do papel manuscrito de fls. 371, onde o arguido informa a mulher, para além do mais, que saiu com o P…, com quem afirma ter-se deslocado ao aeroporto, onde lhe terá explicado que a mala vinha num carrinho. Com efeito, porque razão informaria o arguido que saía com o P… se não fosse verdade? Dúvidas suscitam, pois, nesse parte as declarações do arguido, dúvidas essas que, todavia, não nos permitem, porém, concluir que os factos se passaram efetivamente como relatado pelo arguido. Suscitam, todavia, juntamente com outras provas que se analisarão, sérias reservas quanto à versão relatada na acusação e expressamente negada pelo arguido no sentido de que foi com o C… e o D… que combinou os pormenores da entrega da mala.
=> O depoimento da testemunha Q…, inspetor da Polícia Judiciária e titular do inquérito. Referindo expressamente que não estava no aeroporto aquando da detenção do arguido (disse estar na base a controlar as escutas), referiu que, pelo que lhe foi dito, os colegas não viram quem deixou o carrinho. Com particular relevo, para além de confirmar que o aeroporto dispõe de um sistema de videovigilância (com filmagens do interior e exterior), esclarecer que a equipa da Polícia Judiciária que estava no aeroporto era formada pelos inspetores que constam do relato de diligência externa (estando, também, presente um polícia espanhol), referir que os colegas foram para o aeroporto com o objetivo de controlar o arguido, sendo que a operação foi montada de véspera, disse, ainda, saber que a mala vinha no voo … e que o arguido a iria levantar. Ainda com relevo, confirmou haver pessoas suspeitas que trabalham no aeroporto. Também com relevo, esclareceu que o O…, referido pelo arguido, foi um indivíduo que deteve no início da sua carreira e que o P…, também referido pelo arguido, é pessoa referenciada no tráfico, pensando que usa muletas. Algumas reservas suscitou, porém, o depoimento da referida testemunha. Com efeito, para além de ter procurado responder de forma evasiva a perguntas que visavam esclarecer o que terá ocorrido no aeroporto desde a saída da mala do avião até a mesma ter sido deixada no local onde foi recolhida pelo arguido, confirmou que não pediram imagens do local onde estava o carrinho (não dando, todavia, explicação minimamente lógica quanto à razão para não ter sido pedido), e disse que há coisas que não podem ser expostas neste inquérito, o que abriria sempre a porta a legítimas suspeitas de que muita coisa está a ser escondida quanto ao efetivamente ocorrido no aeroporto. Aliás, diretamente questionado pela defesa sobre a existência de uma ação encoberta, referiu que não lhe cabe a ele responder a essa questão, fugindo à pergunta.
=> O depoimento da testemunha S…, inspetor da Polícia Judiciária, que se encontrava no aeroporto no dia dos factos, esclarecendo que sempre no exterior do mesmo e que a operação foi preparada e planeada. De relevante e em síntese, para além de confirmar os elementos da Policia Judiciária que na ocasião estavam no aeroporto, relatou (o que não suscitou dúvidas, considerando, designadamente, a demais prova produzida que o corrobora) o circunstancialismo da abordagem do arguido na praça dos táxis, esclarecendo tê-lo visto apenas quando saia do aeroporto e se dirigia para o táxi, trazendo uma mala, vindo já outros colegas que se encontravam no interior do aeroporto no seu encalce. Ainda de relevante, confirmou que a operação foi preparada previamente, o que explicou devidamente.
=> O depoimento da testemunha T…, inspetor da Policia Judiciária, que, também, se encontrava no aeroporto, mais concretamente na zona das “chegadas”, no dia em que o arguido foi detido. Em síntese, para além de confirmar, igualmente, os elementos da Polícia Judiciária que na ocasião se encontravam no aeroporto (alguns no interior), confirmar que a Polícia Judiciária tem um inspetor no aeroporto, onde dispõe de um gabinete, e de esclarecer que foi destacado para a operação pelo inspetor chefe E…, com particular relevância, confirmou expressamente que havia indicação de que o arguido iria proceder ao levantamento de uma mala e que tinha conhecimento do voo onde era transportada a mala. Relatou como o arguido, que viu pela primeira vez numa cadeira junto às chegadas, próxima da saída principal, entrou na papelaria, onde comprou o jornal, e pegou, quando saiu, no carrinho com a mala, que descreveu. Mais relatou como o arguido foi abordado na praça de táxis, tendo sido ele a segurar na mala quando esta estava a ser colocada na bagageira do táxi. Confirmou, também, ter ido buscar o carro do arguido junto à “U…”, esclarecendo que o fez por indicação daquele. Na parte supra referida, depôs de forma que não suscitou dúvidas, considerando o conhecimento direto dos factos relatados e os esclarecimentos prestados. Não convenceu, porém, na parte em que referiu não ter visto como chegou o carrinho ao local onde foi recolhido pelo arguido. Com efeito, sabendo a testemunha, como, aliás, os demais inspetores destacados para o local, que o arguido iria recolher uma mala e sabendo, também, o voo em que a mesma chegava, seria normal, como, aliás, acontece normalmente, que tivesse sido montada uma operação policial com o objetivo de identificar quem transportaria a mala e a entregaria ao arguido. Não tendo sido montada qualquer operação nesse sentido é evidente que a Policia Judiciária controlava a mala e a colocação do carrinho onde era transportada no local onde foi recolhido pelo arguido, como se explicará mais detalhadamente à frente.
=> O depoimento da testemunha E…, inspetor chefe da Polícia Judiciária, que, igualmente, se encontrava no aeroporto no dia dos factos, concretamente, segundo esclareceu, nas instalações do aeroporto, junto ao gabinete da Polícia Judiciária, na parte da chegada dos passageiros e de onde é possível ver a chegada dos passageiros e a recolha das bagagens (local de onde poderia imanar as ordens aos inspetores da Policia Judiciária que se encontravam no aeroporto). Em síntese, referindo que sabiam que em princípio a mala chegaria naquele voo (depois, acabou por dizer que a mala havia embarcado) e que seria o arguido a recolher a mesma, disse, porém, que não sabiam os pormenores de como a recolha iria acontecer, tendo, por isso, disposto as pessoas nos termos em que o fez e pedido a colaboração da Alfândega. Referiu, também, que a vigilância incidiu apenas no exterior do aeroporto e na aerogare (estando todos os inspetores colocados para fora do local de controlo de passageiros), e que no exterior do aeroporto estava, também, um colega da polícia espanhola. Confirmou ter sido feito um “briefing” onde se explicou a operação e explicou como foram dispostos os inspetores, esclarecendo que os que ficaram no interior (todos eles na zona pública do aeroporto) tinham como missão vigiar todos os movimentos do arguido, sendo o único objetivo da Polícia Judiciária detê-lo. Afirmou que não viram quem deixou o carro e a mala antes de recolhida pelo arguido, no que não convenceu minimamente. Com efeito, para além de responder de forma evasiva às perguntas destinadas a esclarecer tal situação, para além de não dar explicações coerentes e lógicas, chegou mesmo ao cúmulo de tentar não responder, sustentado, quanto a uma das questões, que a mesma não seria relevante para o Tribunal. Importa, também, referir que a testemunha afirmou várias vezes que não sabiam qual seria a mala e que não conhecia nem lhe foram transmitidas as características da mesma (muito embora, tenha acabado por referir não ter presente que as autoridades espanholas lhe tenham transmitido algo de relevante relativamente à mala), o que é expressamente desmentido na exposição dos factos feita pelas autoridades polícias espanholas de fls. 380 a 420. Acresce ter resultado evidente do seu depoimento (designadamente da disposição que disse ter feito dos inspetores) que não se preocupou minimamente com o que poderia ocorrer no interior do aeroporto desde a saída da mala do avião, o que, salvo o devido respeito, seria inexplicável se não soubesse efetivamente o que ali se estava a passar e tivesse o necessário controlo. Por outro lado, considerando as regras da experiência comum, e sabendo a Policia Judiciária, como a testemunha acabou por confirmar, que a mala chegaria naquele concreto voo (dado que foi informado que havia embarcado) e que seria o arguido a recolher a mesma, não faria qualquer sentido ter disposto os inspetores nos termos em que o fez (no perímetro exterior do aeroporto e na aerogare), descurando o interior do aeroporto, o que inviabilizaria que fosse apurada a identidade da pessoa ou pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até ao local onde foi deixada e recolhida pelo arguido. Veja-se que a testemunha, que chefiava a operação, nem sequer se preocupou, como confirmou, em solicitar imagens à AE… dos passageiros do avião, das pessoas a recolherem as bagagens e do percurso desde o avião, ou pelo menos desde o local da recolha das bagagens, até ao local onde o carro com a mala foi deixado. Se tal não foi feito é porque a Polícia Judiciária não tinha qualquer interesse ou em identificar essa pessoa, o que seria particularmente grave, ou porque controlava toda a operação do transporte da mala desde o avião, operação que estava previamente planeada e tinha como objetivo a detenção do arguido, não havendo qualquer outro suspeito a deter. Como é óbvio, apenas esta segunda hipótese se verificou, o que resulta particularmente claro da demais prova produzida, que se apreciará exaustivamente mais à frente quando abordarmos a questão da existência ou não de uma qualquer ação encoberta. Para além do referido, esclareceu a testemunha que a mala esteve para chegar uma semana antes, mas por qualquer razão não veio, pelo que a operação foi adiada por uma ou duas semanas, o que é confirmado por outra prova constante dos autos. O mesmo acontece quanto à comunicação dos CTT da Povoa do Varzim relativa à chegada de uma encomenda, cujo conteúdo verificaram, e foi devolvida. Finalmente, identificou a mala em causa, o que não suscitou dúvidas considerando as fotografias da mesma, que confirmou, e esclareceu que lhe foi comunicado quando o arguido chegou ao aeroporto e que se sentou numa das explanadas de café que ali existem.
=> O depoimento da testemunha V…, inspetor da Polícia Judiciária, que, também, estava presente no aeroporto no dia dos factos e participou na busca à casa do arguido. Esclarecendo que se encontrava no interior do aeroporto, a controlar e visionar o arguido durante todo o tempo em que este ali esteve, relatou detalhadamente o que visionou (designadamente que viu o arguido sentado num banco de espera e, depois, entrar na papelaria). Porém, referiu não ter visto chegar a pessoa que trazia a mala, que apenas já viu com o arguido, no que não convenceu. Com efeito, e sendo certo que visionou o arguido à distância necessária para ver tudo o que fazia, como esclareceu, sendo certo, como afirmou, que as chegadas (junto das quais se encontrava), têm uma baia, teria necessariamente que ver quem deixou a mala no local onde foi recolhida, tanto mais que todos os agentes sabiam previamente que ele iria recolher uma mala e o local onde o fez era no enfiamento da livraria onde o arguido se encontrava. Finalmente, confirmou o seguimento do arguido até ao táxi e a abordagem que ali foi feita, o que é exaustivamente atestado pela demais prova produzida.
=> O depoimento da testemunha W…, inspetor da Polícia Judiciária, que, também, se deslocou para o aeroporto no dia dos factos. De relevante e em síntese, mostrando conhecimento direto dos factos relatados, confirmou que esteve sempre no exterior do aeroporto, junto a uma das saídas, já na rua, tendo apenas visto o arguido quando se dirigia para junto do táxi, onde foi intercetado.
=> O depoimento da testemunha X… inspetor da Polícia Judiciária, que, também, se deslocou para o aeroporto no dia dos factos. De relevante e em síntese, mostrando conhecimento direto dos factos relatados, confirmou que esteve sempre no exterior do aeroporto, já na rua, apenas tendo visto o arguido quando já se dirigia para o táxi. Mais confirmou que chegou ao local por volta das 5:00 horas da manhã, que ficou a cerca de 200 metros da porta principal e que ali estava, também, um colega espanhol.
=> O depoimento da testemunha Y…, inspetor da Polícia Judiciária, que, também, se deslocou para o aeroporto no dia dos factos e participou na busca à casa do arguido. De relevante e em síntese, mostrando conhecimento direto dos factos relatados, confirmando ter estado sempre no exterior do aeroporto, junto a uma das saídas, já na rua, a cerca de 50/100 metros da zona dos táxis, relatou a interceção do arguido, que viu ir para junto do táxi, onde foi intercetado, apenas o tendo visto nesse momento. Ainda de relevante, referiu ter indicação para abordar o arguido quando ele saísse do aeroporto.
=> O depoimento da testemunha Z…, inspetora da Polícia Judiciária, que, também, se deslocou para o aeroporto no dia dos factos e participou na busca à casa do arguido. De relevante e em síntese, mostrando conhecimento direto dos factos relatados, confirmando que esteve no interior do aeroporto, onde seguiu os passos do arguido a partir de certa altura, relatou os mesmos (chegou a ver o arguido num dos cafés e na parte das cadeiras onde se esperam os passageiros e depois entrar na livraria, não se recordando de o ver acompanhado de ninguém). Referiu que quando o arguido saiu da livraria dirigiu-se a um carrinho que estava no exterior da livraria (mais próximo da livraria do que do quiosque de gomas) e disse que não se apercebeu de quem trouxe o carrinho antes de o arguido pegar nele. Porém, também não convenceu nesta parte. Com efeito, teria necessariamente que ver quem deixou a mala no local onde foi recolhida, considerando as características do mesmo, considerando que todos os agentes sabiam previamente que o arguido iria recolher uma mala, considerando que o local onde foi deixado o carro ficava necessariamente no enfiamento da livraria onde o arguido se encontrava (o que resulta do depoimento da testemunha e da inspeção feita ao local) e considerando que havia pelo menos mais três inspetores da Polícia Judiciária a visionar o local nesse momento, o que resulta inequivocamente da prova produzida. Finalmente, confirmou, a abordagem do arguido, a que assistiu, e a recolha do veículo do arguido, em local por ele indicado.
=> A informação de serviço de fls. 5 a 8, relativa à detenção em flagrante delito de K… e extraída do processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal.
=> A informação de serviço de fls. 25 a 27, retirada daqueles mesmos autos de processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal.
=> O documento de fls. 28 a 32, assinado pelo inspetor Q…, testemunha nestes autos, documento esse também retirado processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal.
=> A informação de fls. 41.
=> O documento de fls. 42.
=> A ficha de registo automóvel de fls. 43.
=> As fotografias de fls. 44 e 45, importando, desde já, destacar que o destinatário que consta da encomenda não é o arguido mas sim um tal “AB…”.
=> As fotocópias de fls. 46, relativas a documentos da encomenda fotografada a fls. 44 e 45.
=> A informação de serviço de fls. 47, também assinada pelo inspetor Q…, testemunha nestes autos, e relativa ao processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal, onde aquele refere expressamente que o suspeito estava a contar com três funcionários ou ex-funcionários do aeroporto ….
=> A ficha de registo automóvel de fls. 48.
=> Os documentos de fls. 49 e 50.
=> A informação de serviço de fls. 55 e 56, também relativa à encomenda referida.
=> As fotografias de fls. 57 a 58, relativas à mesma encomenda.
=> As informações dos CTT relativas a essa mesma encomenda, de fls. 60 a 64.
=> O Mail de fls. 65, também relativa a tal encomenda.
=> A informação de serviço de fls. 251 e 252, datada de 27.12.2012 e elaborada pelo inspetor chefe E….
=> O relato de diligência externa de fls. 253, de 26.12.2012, relativo à vigilância da padaria-pastelaria do arguido, em …, Povoa do Varzim.
=> O Mail de fls. 254, remetido pela Guardia Civil de Pontevedra para o inspetor E…, informando que no dia 26.12.2012, pelas 14:00 horas, C…, conduzindo o veículo ..-..-LM se deslocou à Povoa de Varzim com o objetivo de contactar o arguido, tendo estacionado aquele veículo e entrado na casa n.º .., na zona conhecida por …. Tal é estranho, dado que isso significa que foi a Policia Espanhola ou alguém que com ela colaborou que presenciou aquele circunstancialismo em solo português, sendo que apenas no dia 27.12.2012 as autoridades policiais espanholas solicitaram a colaboração com a Policia Portuguesa e a realização de uma operação conjunta.
=> A comunicação da Guardia Civil espanhola de fls. 255 e 256.
=> A fotografia de fls. 259, relativamente à qual importa destacar estar rasurada à mão a matrícula da viatura fotografada, o que não tem qualquer explicação e apenas pode ter sido feito por alguém com aceso ao processo, cuja identidade se desconhece.
=> Os fotogramas de fls. 320 e 321, relativos ao arguido e ao dia 2.01.2013, sendo, pois, evidente, que nessa data já estava a ser seguido pela Polícia Judiciária.
=> O relato de diligência externa de fls. 322 a 325, relativo ao dia 8.01.2013, e as fotografias que o ilustram, de fls. 326 a 329. No que diz respeito a esta diligência, importa destacar que não foi presenciado qualquer contacto entre o arguido e os ali referidos D… e C…, resultando, pelo contrário, que quando o D… entrou no estabelecimento e encontrando-se o arguido B… no logradouro da pastelaria, aparentemente, se ignoraram, não havendo contacto entre eles. Acresce que quando o D… saiu do estabelecimento, ficando no logradouro em atitude de espera, o arguido cruzou-se com ele e novamente se ignoraram. É certo que chegaram a estar os dois ao mesmo tempo no interior do estabelecimento. Porém, e porque não se procedeu ao controlo do que aconteceu no interior, como é esclarecido no relato, não podemos concluir que ali se contactaram. É certo que não deixa de ser estranho que o arguido e o referido D… não se tenham sequer cumprimentado, dado que o arguido referiu que o conhecia como cliente. Todavia, por si só, tal facto nada nos permite concluir.
=> O relato de diligência externa de fls. 330 e 331, relativa ao dia 10.01.2013, a partir das 5:00 horas, e as únicas fotografias que o ilustram, de fls. 332.
=> O auto de busca e apreensão de fls. 333.
=> As fotografias da mala apreendida ao arguido de fls. 334, 335 e 336.
=> Os elementos identificativos da mala de fls. 337 e 338.
=> As fotografias de fls. 339 a 343.
=> O auto de revista pessoal de fls. 345.
=> O recibo de fls. 346.
=> O auto de busca e apreensão de fls. 347 e os documentos de fls. 348 a 353.
=> Os documentos manuscritos de fls. 353 a 364.
=> As cadernetas bancárias de fls. 365, 366 e 367.
=> O auto de busca e apreensão de fls. 368 e 369.
=>… Os manuscritos de fls. 370 a 373 e os documentos de fls. 374, importando destacar o manuscrito de fls. 371, que o arguido disse ter escrito para a mulher e de onde resulta que saiu com o P… e que se lhe acontecesse alguma coisa para a mulher ligar à Dra. AC…, que disse ser a sua advogada. A referência ao P… corrobora a sua versão de que este o teria transportado ao Aeroporto e esteve com ele no interior do mesmo.
=> A exposição dos factos das autoridades policiais espanholas de fls. 380 a 420.
=> As fotografias de fls. 507 e a identificação de viatura de fls. 509.
=> O auto de exame direto de fls. 659, relativo à mala de viagem apreendida.
=> O relatório de exame pericial de fls. 668 e 766 e o aditamento de fls. 669, 786 e 796.
=> As fotografias de fls. 910 a 920, que retratam o átrio do aeroporto …, com particular destaque para as fotografias de fls. 916, 917 e 920, de onde é possível concluir que é perfeitamente visível toda a parte frontal da papelaria “E…”, onde o arguido entrou, parte frontal essa onde recolheu o carro com a mala, como foi confirmado por inspetores da Polícia Judiciária que o vigiavam.
=> O termo de entrega de fls. 941, do veículo Volvo, matrícula ..-..-ZP, a AD….
=> informação da AE… de fls. 948, a informar, quanto ao pedido de envio de imagens das camaras de videovigilância do aeroporto, no período em causa, que já não existe qualquer registo de imagem, sendo que o arquivo de imagens apenas é permitido pelo período máximo de 30 dias.
=> A informação da AF… de fls. 960.
=> Os documentos de fls. 978 e 979.
=> O auto de inspeção ao local, que consta da ata de fls. 1001 e 1002.
Para além do já referido, que por si só já seria suficiente, entendemos, todavia, ser oportuno aprofundar o exame crítico da prova que nos levou a dar como provado, para além do mais, que a Diretoria do Norte da Policia Judiciária tinha conhecimento de que a referida mala era transportada no referido voo, bem como das suas características e elementos identificativos; que elementos da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária acompanharam o trajeto da referida mala, vigiando-a, desde o avião até junto à papelaria situada no interior do aludido aeroporto onde o arguido entrou e comprou o jornal; que pelo menos o inspetor chefe da Policia Judiciária, E…, conhecia a identidade da pessoa ou das pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até junto da papelaria “E…” onde o arguido entrou e comprou um jornal; e que tal transporte e a subsequente colocação do carro de bagagens do aeroporto com a mala junto da referida papelaria foram decididos, planeados e organizados por responsáveis da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária, com vista a que o arguido pegasse, como pegou, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala e fosse, subsequentemente, detido.
Para o efeito, importa considerar o teor da informação de serviço de fls. 5 a 8, relativa à detenção em flagrante delito de K… e extraída do processo n.º 276/12.0JAPRT, deste Tribunal, de onde resulta inequivocamente ser possível à Polícia Judiciária controlar e vigiar qualquer passageiro (designadamente com o auxilio da Autoridade Tributária e Aduaneira e do SEF), designadamente na zona da recolha das malas.
O mesmo resulta inequivocamente do teor do documento de fls. 28 a 32, assinado pelo inspetor Q…, testemunha nestes autos, documento esse também retirado processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal. Com efeito, o mesmo refere que, naquele dia e previamente à detenção de K…, “com a colaboração do colega da PJ, funcionários do SEF e da Alfândega, todos de serviço na altura no aeroporto, foi montado um dispositivo de vigilância entre o avião em causa e as saídas da aerogare”.
A ser assim, e considerando os factos em causa, não faria qualquer sentido para que no caso concreto a Polícia Judiciária não tivesse montado o dispositivo de vigilância idêntico, providenciado por controlar os passageiros do voo onde foi transportada a mala, não tivesse providenciado por controlar e identificar quem recolhia a bagagem, tanto mais que sabia que a mala vinha no voo em causa e conhecia as respetivas características e tivesse providenciado que a mala não desaparecesse antes de chegar ao local onde chegou, designadamente no percurso até ali. Se não o fez foi, pura e simplesmente, porque não o quis fazer e porque, obviamente, sabia quem recolheria a mala e a deixaria no local combinado com o arguido e porque, também obviamente, sabia que a mesma ali chegaria em segurança. Todavia, tal foi omitido ao Tribunal, o que desacredita toda a investigação e a versão dos factos apresentada quer pela testemunha Q…, quer pela testemunha E…, que, obviamente, estavam a par de toda a situação, como não podia deixar de ser. Aliás, estranho seria que não controlassem devidamente toda a bagagem, tanto mais que havia informação de que um funcionário no aeroporto do Porto estava incumbido de retirar a mala de cocaína apreendida aquando da detenção de K… antes de a mesma chegar ao tapete, como resulta da informação de serviço de fls. 25 a 27, retirada daqueles mesmos autos de processo 276/12.0JAPRT, deste Tribunal.
Acresce que também da informação de serviço de fls. 251 e 252, datada de 27.12.2012, resulta que nessa data já a Polícia Judiciária sabia que o arguido iria receber uma mala com apreciável quantidade de cocaína proveniente da … e que aquele contava com a colaboração de um funcionário do aeroporto …, que retirava a mala do interior daquele aeroporto, entregando-a, depois, no exterior, para o arguido a transportar para Espanha. Incompreensível, seria, pois, que a Polícia Judiciária não tivesse montado qualquer vigilância logo à saída do avião e ao descarregamento da bagagem, tendo antes sido montada a vigilância com particular incidência no exterior do aeroporto (veja-se que as testemunhas S…, W…, X…, Y… foram todas colocadas no exterior, quando é certo que o arguido se encontrava no interior, tal como a mala, e seria a este que alguém necessariamente entregaria mala).
A convicção do Tribunal é, também, reforçada pelo relato de diligência externa de fls. 330 a 331.
Com efeito, havendo já informação de que o arguido se poderia deslocar para junto das instalações do Aeroporto … a fim de receber avultada quantidade de produto estupefaciente e tendo sido montado um dispositivo de controlo e segurança, todavia, o que em qualquer circunstância não deixaria de ser estranho, relatando-se no relato todos os movimentos do arguido desde a sua chegada ao aeroporto, não existe uma única fotografia que documente esses seus movimentos. Teria sido fácil fazê-lo, mas a Polícia Judiciária optou, o que sempre seria, para além de estranho, incompreensível, por não o fazer, quando teve outra opção noutras vigilâncias bem menos relevantes dado que não seria nessas ocasiões entregue a droga nem seria suposto identificar quem a entregaria, como aconteceu nos dias 2.01.2013 e 8.01.2013. E mais estranho seria ainda fotografar apenas a parte final da operação no aeroporto, já com o arguido na praça de táxis. Ora, se a Polícia Judiciária dispunha de equipamento para tirar essas únicas fotografias, poderia ter tirado outras previamente e bem mais relevantes caso pretendesse identificar a pessoa que fez a entrega da mala. E mais estranho seria ainda não terem sido pedidas as filmagens à AG…, de onde poderia ser fácil visualizar quem deixou o carro junto à papelaria. Não o tendo feito, como é óbvio, a Polícia Judiciária sempre pretendeu que não fosse identificada a pessoa que fez a entrega e nunca com isso se preocupou, pois tal foi acordado e devidamente planeado. É que se não soubesse quem ali colocaria a mala, a operação teria sido, como foi noutras ocasiões, montada logo a partir do avião, o que não foi feito, como esclarecido pelo inspetor chefe E….
Finalmente, a convicção do Tribunal relativamente àquele factualismo, é, igualmente, reforçada pelo teor da exposição dos factos das autoridades policiais espanholas de fls. 380 a 420, concretamente o último parágrafo (fls. 419 e 420). Com efeito, ali é expressamente referido que o inspetor E… comunicou ao instrutor do processo que corria em Espanha que no voo procedente de … (…) com chegada prevista às 5:55 horas portuguesas, teria chegado uma mala com as mesmas características que as referidas nas conversas telefónicas dos suspeitos no processo que corria em Espanha. Mais é referido que após uma análise superficial da mala, com cerca 20,450 kg de peso e um forte cheiro a cocaína, realizou-se uma vigilância sobre a referida mala, da qual resultou que pelas 7:15 horas portuguesas a dita mala foi recolhida pelo identificado B…, que foi detido nesses momentos pela Policia Judiciária do Porto nas imediações do aeroporto. Resulta, pois, evidente que, contrariamente ao referido pelo inspetor chefe E…, a mala foi efetivamente vigiada desde a sua chegada ao aeroporto (aliás, até foi pesada e foi objeto de uma análise superficial), sendo que até já eram conhecidas as suas características previamente, o que desacredita por completo o depoimento do inspetor chefe E…. Aliás, sendo reconhecida a elevada competência técnica e investigatória da Polícia Judiciária Portuguesa, não faria qualquer sentido que esta, sabendo da chegada da mala no avião em causa (o que foi confirmando por aquele), não tivesse providenciado por fazer o seu acompanhamento até ser recolhida pela pessoa que já, também, se sabia que o iria fazer. No mínimo, se tal tivesse acontecido, estaríamos perante um flagrante exemplo de amadorismo da polícia portuguesa, defeito que manifestamente não lhe pode ser atribuído, bem pelo contrário.
No que diz respeito à situação pessoal, familiar e profissional do arguido, para além das declarações do arguido, foi, ainda, relevante:
=> O depoimento da testemunha AG…, amigo de infância do arguido, desde há cerca de 17/18 anos. De relevante e em síntese, confirmou a situação profissional e familiar do arguido.
=> O depoimento da testemunha AH…, amigo e fornecedor do arguido, que já conhece há cerca de 10 anos. De relevante e em síntese, confirmou, também, a situação profissional e familiar do arguido.
=>O depoimento da testemunha AI…, amigo do arguido há cerca de 30 anos. De relevante e em síntese, confirmou, também, a situação profissional e familiar do arguido.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, foi considerado o respetivo CRC.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as questões:
.Saber se o acórdão recorrido enferma do vício da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;
.Impugnação da matéria de facto;
.Violação do artº 127º do CPP;
. Saber se os factos integram a prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artº 21ºdo DL 15/93 de 22/1;
. Se a matéria provada não permite a conclusão da existência de uma acção encoberta;
Se inexiste a nulidade probatória afirmada na decisão recorrida;
A estas questões crescem as questões colocadas pelo Exmº Procurador Geral Adjunto nesta Relação, de saber se a decisão recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artº 410º nº2 al.a) do CPP, já que “não emerge da factualidade provada que a mala tenha sido recolhida do avião e transportada até junto da papelaria “E…” por alguém da PJ ou por um terceiro por aquela controlado de forma a obter prova contra o arguido; (…) devendo ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, ainda que circunscrito à questão de saber se existiu (ou não) qualquer acção encoberta sem controlo da autoridade judiciária e, caso afirmativo, em que acção (ou acções) a mesma se traduziu em concreto.”
Saber se se verifica a nulidade relativa prevista no artº 120º, nº2 alínea d) do CPP, por violação do dever de investigação oficiosa estabelecido no artº 340º do CPP.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
A Magistrada do Ministério Público, alega que a decisão recorrida enferma dos vícios da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
Alicerça a recorrente tais vícios, “quando se dá como provado por um lado o que consta dos pontos 17,18 e 19, e por outro, se dá como não provado a factualidade, como tal referida em 7,8, e 9 do mesmo acórdão.”
Como decorre da motivação de recurso, terá sido por lapso que em sede de conclusões se faz referência ao ponto 17 dos factos provados, quando se queria fazer antes referência ao ponto 8 da matéria de facto.
Assim e sob os pontos 8, 18 e 19 foi dado como provado que:
“8.Quando saiu da papelaria, o arguido pegou num carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala que lhe havia sido descrita e que continha, no seu interior, 16 embalagens que acondicionavam 15.882,64 gramas de cocaína.
.18. A cocaína apreendida ao arguido, conforme era do seu conhecimento, destinava-se a ser vendida e/ou distribuída.”
.19. Actuou o arguido com intenção de obteve proventos económicos com a recolha da mala no aeroporto.
.20. O arguido conhecia as características, natureza e efeitos da cocaína.
.21. O arguido sabia que a sua detenção e o seu transporte é ilícito e proibido e não obstante, quis actuar e actuou da forma descrita;
.22.O arguido agiu livre voluntária e conscientemente, conhecendo a natureza e características do produto estupefaciente que possuía e transportava, bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.”
E sob os pontos 7,8, e 9 foi dado como não provado que:
“.7.Eram grandes e consideráveis os proventos económicos que o arguido pretendia obter.
.8.O arguido pretendia vender e/ou distribuir a cocaína apreendida.
.9.O arguido pretendia transacionar ou proporcionar a outros a cocaína apreendida..”
O vício da contradição insanável como todos os vícios previstos no artº 410º nº2 do CPP é um vício relativo à matéria de facto e a respectiva existência tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.[2]
O referido vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ocorre “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.
Ou nas palavras de M.Simas Santos e M.Leal Henriques, “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al.b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”. Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379
Com o devido respeito por posição contrária, afigura-se que a matéria provada sob os pontos 8,18 e 19 e a matéria não provada sob os pontos 7,8 e parte do ponto 9, não se mostra incompatível entre si e como tal contraditória.
Na verdade, dizer que o arguido tinha conhecimento que a cocaína apreendida destinava-se a ser vendida e/ou distribuída e que o “ arguido actuou com intenção de obter proventos económicos com a recolha da mala no aeroporto”, não está em contradição com dar como não provado que “o arguido pretendia vender e/ou distribuir a cocaína apreendida” ou que “pretendia transacionar a outros a cocaína apreendida,”pois são proposições que espelham diferentes realidades. Num lado dá-se como provado o conhecimento do arguido, relativamente ao destino da cocaína, - de ser vendida e distribuída- e no outro dá-se como não provado a intenção de o arguido pretender vender ou distribuir a mesma, isto é de ser ele a proceder a tais actos.
Já quanto ao segmento proporcionar da matéria dada como não provada sob o ponto 9, afigura-se assistir razão à Magistrada recorrente, porquanto ainda que não se tivesse provado que o arguido pretendia vender e distribuir o produto apreendido, o conhecimento de que esse era o destino do mesmo, pressupõe factualmente que pelo menos o arguido iria proporcionar a outras pessoas a cocaína apreendida, pois que de outro modo, não poderia saber que se destinava a ser vendida ou distribuída.
De todo o modo nesta parte a contradição não se revela insanável, uma vez que tendo havido impugnação da prova, face às declarações prestadas pelo arguido, nos termos do artº 431º b) do CPP sempre seria possível modificar a matéria de facto.
Alega também a Magistrada recorrente que “Existe ainda contradição insanável na fundamentação, quando (…) conclui existir nulidade de toda a prova produzida através de acção encoberta, que no entendimento aí sufragado, inquinaria toda a prova produzida à luz do disposto no artº 32º, nº8 da CRP. 5º e 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e artº 3º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e simultaneamente manter como provados todos os factos que constam como tal nos pontos 1 a 27 da fundamentação do acórdão recorrido” e ainda “existir contradição entre a fundamentação perante os factos que assim persistem como provados, apesar da declarada nulidade de toda a prova produzida, consubstanciando assim a prática pelo arguido do crime de tráfico de estupefacientes p.p. no artº 21º nº1 do DL nº15/93 de 22 de Janeiro e a decisão absolutória proferida.”
Como supra se referiu os vícios do artº 410º nº2 do CPP são sempre vícios da matéria de facto. Ora e mais uma vez com o devido respeito, a Digna Magistrada recorrente ao invocar a fundamentação de direito, para demonstrar o vício da contradição invocado, está tão só a discordar da solução jurídica constante da decisão recorrida e como tal a invocar o vício previsto no artº 410º nº nº2 al .b) do CPP fora dos pressupostos legais.
Porém a improcedência dos vícios nos termos em que foram invocados no recurso não significa que a decisão recorrida não enferme dos vícios prevenidos no artº 410º nº 2 do CPP, designadamente do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artº 410º nº2 al.a) do CPP invocado pelo Srº Procurador Geral Adjunto.
Os vícios do artº 410º nº2 do CPP são de conhecimento oficioso conforme Jurisprudência fixada pelo STJ “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artº 410º nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”[3]
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, ocorre quando a decisão de direito proferida não encontre na matéria de facto provada uma base sólida e consistente que a suporte: traduz-se, pois, numa insuficiência dos factos provados para a conclusão jurídica exposta no texto da decisão recorrida [nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2004, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, tomo II, pp. 166-167]. Ou como se refere no ac. do STJ de 3 de Julho de 2002, proferido no proc. 1748/02-5ª Rel. Armando Leandro “O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al.a) do nº2 do artº 410º do CPP, é o que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados, por força da referida relevância para a decisão.”
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste pois numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, impedindo que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 21 de Junho de 2007, ao aí se expor que a insuficiência decorre “da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronuncia, segundo, o artº 339º nº4, do CPP.
Na verdade, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão de recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; “ [4]
Ora a decisão de direito recorrida concluiu pela existência de uma acção encoberta organizada e levada a cabo pela judiciária e daí retirou como consequência a nulidade da prova nos termos, do disposto nos «artsº 122º, 126º, nº1 e nº2, al.a) do CPP, ex vi artigos 32º nº8 da CRP, 5º e 12ºda Declaração Universal dos Direitos do Homem e 3º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
Dispõe o artº 126º do CPP:
1.São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção o, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2. São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
(…)”.
O regime legal das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal encontra-se previsto na Lei nº101/2001 de 25de Agosto.
Antes da entrada em vigor da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, estava apenas prevista nos artºs 59º e 59º- A, ambos do DL nº 15/93, de 22/1, alterado pela Lei nº 45/96, de 3 de Setembro [Lei do combate ao tráfico de estupefacientes] e no artº 6º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, alterada pela Lei nº 90/99, de 10 de Julho [Lei do combate à corrupção e criminalidade económico –financeira], a figura do agente infiltrado, com a consequente validade das provas assim obtidas.
Porém, a Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, para além de ter revogado os preceitos supracitados (vd. artº 7º), veio estabelecer o regime das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal, definindo estas como sendo as «(…) que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Policia Judiciária (…) com ocultação da sua qualidade e identidade» - vd. artº 1º, nº 2).
No entanto, as acções encobertas apenas são admissíveis no âmbito da prevenção e repressão dos crimes mencionados no artigo 2º da citada lei e desde que obedeçam aos requisitos previstos no artº 3.
Assim dispõe-se no artº 3º nº1 da citada Lei que «As acções encobertas devem ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório, e proporcionais quer àquelas finalidade quer à gravidade do crime em investigação.» dispondo-se nos termos do artº 3º, nº 3, da citada Lei que «A realização de uma acção encoberta no âmbito do inquérito depende de prévia autorização do competente Magistrado do Ministério Público, sendo obrigatoriamente comunicada ao juiz de instrução e considerando-se a mesma validada se não for proferido despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes».
Acontece que a nível doutrinal e jurisprudencial, sempre foi traçado o limiar da legalidade, da intervenção dos funcionários de investigação criminal ou de terceiros por eles controlados, com base na distinção entre o agente provocador e o agente infiltrado.
O Prof. Germano Marques da Silva ensina que «…a provocação não é apenas informativa, mas é formativa; não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e o próprio criminoso. A provocação, causando o crime, é inaceitável como método de investigação criminal, uma vez que gera o seu próprio objecto.
Por sua vez, Manuel Augusto Alves Meireles considera como agente provocador aquele que «actuando sob uma falsa identidade e sem revelar a sua verdadeira qualidade, fazendo-se assim passar por aquilo que não é, convence outrem a cometer um crime. Esta farsa leva o provocado a executar o que de outra forma não cometeria». E prossegue o mesmo autor: «A pensar-se no resultado desta actuação como prova, teremos que concluir que a liberdade de vontade e de decisão do agente foram afectadas significativamente; quando pensa que, v.g. está a celebrar um negócio, embora ilícito, de facto está a constituir prova contra si mesmo». [5]
Já para Fernando Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, a actuação do agente provocador «faz “nascer” e “ alimenta” o delito o qual não seria praticado não fosse a sua intervenção».
E, prosseguem os mesmos autores, «sendo o agente provocador, como é, agente do próprio crime, este é sempre inadmissível face à ordem jurídica portuguesa. A lei em circunstância alguma o prevê: nem a Constituição da República, nem o Código do Processo Penal».
E concluem:
«Acresce que, as provas assim obtidas são ainda recondutíveis aos «métodos proibidos de prova», face ao disposto na última parte da alínea a) do nº 2 do art. 126 do CPP – utilização de meios enganosos – sendo, por isso, nulas, não podendo ser utilizadas (nº 1 do artº 126), a não ser para o seguinte e exclusivo fim: proceder criminalmente contra quem as produziu (agente provocador), nos termos do nº 4 do mesmo preceito legal». [6]
Diferentemente do agente provocador, e como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, já «os agentes informadores e infiltrados não participam na prática do crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa, e, por isso, é de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investigação».
E acrescenta o mesmo Prof.:
“ Dizemos no limite, ou seja, quando a inteligência dos agentes da justiça ou os meios sejam insuficientes para afrontar com sucesso a actividade dos criminosos e a criminalidade ponha gravemente em causa os valores fundamentais que à Justiça criminal cabe tutelar.»[7]
Manuel Augusto Alves Meireles, que faz uma distinção com base no grau de participação entre agentes encobertos e agentes infiltrados, quanto a estes últimos refere, também, que «o epicentro da actuação do agente infiltrado é obter a confiança do(s) agente(s) do crime, tornando-se aparentemente num deles, para, desta forma, ter acesso a informações, planos, processos, confidencias …que, de acordo com o seu plano, constituirão as provas necessárias à condenação».[8]
Porém, esclarece este autor que “ o agente infiltrado poderá na sua actividade de infiltração, e de acordo com o plano traçado, ser um verdadeiro comparticipante. Entendemos, no entanto que apenas poderá revestir uma forma de autoria e uma forma de participação: co-autoria e cumplicidade respectivamente. No que respeita à participação, apenas lhe é permitido, dentro do seu campo de actuação prestar «auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso» (artigo 26º nº1, do CP). Correspectivamente, nunca poderá ser ele a instigar ou a determinar ao crime, sob pena de se converter num verdadeiro agente provocador, pois, a provocação sendo uma forma não autorizada de investigação policial, e não estando autorizada por lei consumiria a infiltração.”[9]
E, ainda, a propósito da figura do agente infiltrado, escrevem os já citados autores AJ…, AK… e AL…:
“Agente infiltrado é, pois, o funcionário de investigação criminal ou terceiro, por exemplo, o cidadão particular, que actue sob o controlo da Policia Judiciária que, com ocultação da sua qualidade e identidade, e com o fim de obter provas para a incriminação do suspeito, ou suspeitos, ganha a sua confiança pessoal, para melhor o observar, em ordem a obter informações relativas às actividades criminosas de que é suspeito e provas contra ele(s), com as finalidades exclusivas de prevenção ou repressão criminal, sem contudo, o(s) determinar à prática de novos crimes».[10]
No caso dos autos, o tribunal concluiu que ocorreu uma acção encoberta. E conclui com base na seguinte matéria dada como provada sob os pontos 13, 14,15 e 16 dos factos provados, designadamente:
“.15. Pelo menos o Inspector chefe da Polícia Judiciária, E…, conhecia a identidade da pessoa ou das pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até junto da papelaria “E…” onde o arguido entrou e comprou um jornal.
.16. Tal transporte e a subsequente colocação do carro de bagagens do aeroporto com a mala junto da referida papelaria foram decididos, planeados e organizados por responsáveis da Directoria do Norte da Polícia Judiciária, com vista a que o arguido pegasse, como pegou, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala e fosse, subsequentemente detido.”
Porém a matéria provada apenas nos permite saber que a polícia judiciária teve intervenção no transporte da mala que continha a cocaína, desde o avião até junto da papelaria, não esclarecendo porém qual foi essa concreta intervenção e quais os concretos actos que a polícia judiciária praticou e mais do que isso, em que concretos actos determinou o arguido à prática do crime.
E o apuramento dessa factualidade revela-se imprescindível, para se poder apreciar, se a dita intervenção ocorreu de acordo com o estabelecido para as acções encobertas na lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e se a mesma se consubstanciou na actuação de agente encoberto ou infiltrado e por isso legal, ou se pelo contrário a mesma se caracterizou como a actuação de um agente provocador e por isso ilegal e proibida nos termos supra expostos.
Torna-se pois necessário apurar como bem realça o Srº Procurador Geral Adjunto nesta Relação se existiu ou não uma acção encoberta por parte da Polícia Judiciária, e em caso afirmativo em que concreta acção ou acções a mesma se traduziu.
A omissão de apuramento destes factos relevantes à decisão de direito a proferir, configura a existência do caracterizado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto no artº 410º nº2 al.a) do CPP.
Aliás, é a própria lei 101/2001 que estabelece o regime das acções encobertas, que prevê a efectivação do relato da intervenção do agente encoberto, cfr. Artº 3º nº6 , e a sua junção aos autos se a mesma se reputar absolutamente indispensável em termos probatórios, o que sempre poderá ser apreciado e decidido em sede de audiência com vista à prestação de depoimento nos termos do artº 4º nº1 e 4 da referida Lei caso o mesmo se revele necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa nos termos do artº 340º nº1 do CPP.
Como escreve Isabel Oneto,[11] «a elaboração do relato afigura-se um momento processual de grande relevância para a aferição da conformidade da acção encoberta com a autorização concedida: nesta medida não é a observância de uma mera formalidade, mas uma peça processual crucial.» (negrito nosso)
Note-se que Pinto de Albuquerque distingue entre a acção encoberta com agente com identidade fictícia e acção encoberta com agente sem identidade fictícia, entendendo que “a prestação de prova pelo agente encoberto (mas sem identidade fictícia) no processo, incluindo a audiência de discussão e julgamento, não apresenta especialidades.”[12]
A verificação do apontado vício da insuficiência da matéria de facto, prejudica a apreciação da invocada nulidade relativa prevista no artº 120º, nº2 alínea d) do CPP, por violação do dever de investigação oficiosa estabelecido no artº 340º do CPP, já que tal nulidade apenas acarretaria a verificar-se a nulidade do acórdão ao passo que o vício verificado determina um novo julgamento.
Mas este não é o único vício de que enferma a decisão recorrida. Na verdade lida a fundamentação de facto, extrai-se da mesma que o tribunal não ficou convencido com o teor dos depoimentos das testemunhas inspectores da polícia judiciária, designadamente do inspector chefe da polícia judiciária, na parte em que estas afirmaram não ter visto chegar a pessoa que trouxe a mala apreendida para a frente da Papelaria E…. Compreendendo embora a perplexidade do tribunal, face ao teor desses depoimentos, e as razões expressas na motivação para não dar credibilidade aos mesmos, contudo dessa falta de credibilidade não podia o tribunal dar como provado o facto contrário, isto é de que “pelo menos o inspector chefe da Polícia Judiciária, E…, conhecia a identidade da pessoa ou pessoas que transportou ou transportaram a mala desde o avião até junto da papelaria “F…” onde o arguido entrou e comprou um jornal” facto provado sob o ponto 15, como não podia retirar face à prova que elencou que “Tal transporte e a subsequente colocação do carro de bagagens do aeroporto com a mala junto da referida papelaria foram decididos, planeados e organizados por responsáveis da Directoria do Norte da Polícia Judiciária, com vista a que o arguido pegasse, como pegou, no carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala e fosse, subsequentemente detido.”
Como bem alega a Digna Magistrada recorrente “a forma evasiva como aqueles inspectores da Polícia Judiciária responderam às questões que, insistentemente, lhes foram colocadas sobre tal matéria, deixam de facto dúvidas sobre o que se terá passado, desde que a mala é descarregada do porão do avião, até ao momento em que foi recolhida pelo arguido. (…) Mas essas duvidas e suspeitas (…) não legitimam a conclusão da prova de qualquer realidade concreta suspeitada.”
Ao dar estes factos como provados com base na prova que elencou incorreu o tribunal no vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artº 410º nº2 al.c) do CPP, já que se evidência da simples leitura da decisão um engano que não passa despercebido ao comum dos leitores. Sendo que este vício se verifica precisamente quando perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200
Para além disso, ao dar como provado sob o ponto 8 dos factos provados que “Quando saiu da papelaria, o arguido pegou num carro de bagagens do aeroporto onde se encontrava a mala que lhe havia sido descrita e que continha, no seu interior, 16 embalagens que acondicionavam 15.882,64 gramas de cocaína”, (sublinhado nosso) e ao ter dado como não provado sob o ponto 4 dos factos provados que “Nos dias 8 e 9 de Janeiro de 2013, foram dadas pelo C… e pelo D… informações ao arguido do local onde estaria a mala e fornecida a descrição da mesma, para que a pudesse facilmente localizar e transportar” conforme constava da acusação o tribunal incorreu no vício da contradição insanável da fundamentação previsto no artº 410º nº2 al.b) do CPP, pois que se a mala não lhe havia sido descrita, nem da fundamentação consta a motivação para aquele facto, é contraditório dar como provado tal facto.
Uma última nota, para referir que o vício da insuficiência supra apontado porque relativo à questão de saber se existiu ou não uma acção encoberta por parte da Polícia Judiciária, e em caso afirmativo em que concreta acção ou acções a mesma se traduziu e em que medida tais actos foram ou não determinantes do arguido à prática dos factos descritos, sob os pontos 3 a 11 e 17 a 22, afecta os factos estruturantes da decisão recorrida, não podendo ser suprido por esta Relação nos termos do artº 426º nº1 do CPP e como tal determina o reenvio do processo para novo julgamento à totalidade do objecto do processo, com vista à sanação dos vícios apontados, prejudicando as demais questões colocadas no recurso.
*
*
III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em decretar, nos termos dos artº 426º nº1 e 426º-A, ambos do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo.

Sem tributação

Porto, 7/5/2014
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
______________
[1] Vide Carlos Matias, revista “Sub Judice”, nº 4, pag. 148.
[2] Cfr. Ac.STJ de 24 de Março de 2004, proc.03P4043 (relator Henriques Gaspar)
[3] Ac. 19/10/95, DR- 1ª série de 28/12/95.
[4] Proc.07P2268, (relator Simas Santos), in DGSI.pt.
[5] Cfr. “O Regime das provas obtidas pelo agente provocador em processo penal”, Almedina, pág. 203.
[6] Cfr. “Lei e Crime”, Almedina, pág. 261.
[7] Cfr. Ob. cit., pág. 192.
[8] Cfr. Ob. cit. pág. 164.
[9] Ibidem.
[10] Cfr. Ob. cit., pág. 264.
[11] O agente infiltrado: contributo para a compreensão do regime jurídico das acções encobertas, Coimbra Editora, 2005, pág.195.
[12] Paulo Pinto de Albuquerque “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da Republica e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 66o