Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
665/21.0GDGDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: RECOLHA DE VESTÍGIOS BIOLÓGICOS
AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO
COMPETÊNCIA DO JUIZ
Nº do Documento: RP20240207665/21.0GDGDM-A.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - De acordo com o disposto no art.8.º, n.º1, da Lei n.º5/2008, de 12 de fevereiro, em caso de o arguido não dar consentimento para a recolha de vestígios biológicos para posterior determinação dos perfis de ADN, a determinação do exame é da competência do juiz, que, após ponderação, decide da necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
II -Tem de constar em auto próprio o consentimento do arguido para a recolha de vestígios
biológicos ou a sua recusa, ainda que, neste caso, se negue a assinar o respetivo auto.”
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 665/21.0GDGDM-A.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
Nos autos de inquérito n.º665/21.0GDGDM, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12/2 que determinasse a recolha de amostra de ADN aos arguidos, com vista à interconexão do perfil de arguido.
A Exma.Juíza de Instrução Criminal proferiu despacho em que indeferiu o requerido.
Inconformado, a Exma.Magistrada do Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões:
1º) Nos presentes autos denunciam-se factos suscetíveis de integrarem os crimes de condução sem habilitação legal e com álcool, simulação de crime e consumo/trafico de produtos estupefacientes;
2º) Cujos autores só podem ser identificados através da recolha de amostras de ADN aos arguidos para comparação com os vestígios biológicos recolhidos;
3º) Os arguidos recusaram sujeitarem-se a tal recolha, por forma verbal, porquanto recusaram assinar qualquer documento nesse sentido;
4º) O MP solicitou ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal que nos termos do art.8.º n.ºl da Lei 5/2008 determinasse a recolha de amostra de ADN dos arguidos, com vista à sua comparação com os vestígios biológicos recolhidos no local do crime;
5º) O Mmo. Juiz indeferiu tal requerimento com o fundamento que, antes de mais, se deveria obter o consentimento dos arguidos;
6º) Conforme resulta do auto de noticia, fls. 6, 4º paragrafo, os arguidos recusaram assinar qualquer auto de consentimento de se sujeitarem ao referido meio de prova e verbalmente transmitiram tal recusa à Autoridade Policial;
7º) Pelo que, não tem o despacho do Mmo Juiz agora sob censura qualquer razão para indeferir o requerimento do M°P°;
8º) Tanto mais, porque é da competência do Mmo JIC apreciá-lo, e mostram-se verificados todos os requisitos de que o art.º 8.º n.ºl da Lei 5/2008 faz depender para o seu deferimento, inclusive os requisitos da adequação e da proporcionalidade;
9º) E assim, ao indeferir o requerimento do MP, violou o Mmo. Juiz o disposto no supra referido art.º 8.º n.ºl da Lei n° 5/2008;
10°) E por via disso, deve tal despacho ser revogado.
11°) E substituído por outro, que deferindo o referido requerimento, determine a recolha de amostras de ADN aos arguidos, com vista à sua comparação com os vestígios biológicos recolhidos no local do crime;
Os arguidos não apresentaram resposta ao recurso.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que concordando com a argumentação constante do recurso interposto, pronunciou-se pelo seu provimento.
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“O Ministério Público veio nos termos e para os efeitos do disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, requerer que determine a recolha de amostra aos arguidos, com vista à interconexão do perfil de arguido.
Dispõe o artº 3º nº1 als a) e iii) da Lei 67/2017 de 9/8 que (…) “são sujeitos a identificação judiciária os indivíduos (…) constituídos arguidos(…) mediante despacho judicial ponderadas as necessidades de prova”.
Por sua vez o disposto no artº 4º do mesmo diploma legal refere que:
Nº 1 “A recolha de amostras-referência é feita por pessoal certificado para o efeito por determinação da autoridade judiciária ou da autoridade de polícia criminal à qual a investigação se encontre delegada, após constituição de arguido(…)
Nº 2 “A recolha é precedida de informação ao visado sobre os motivos da diligência, devendo este consentir na realização da mesma”.
Nº 3 “Em caso de recusa a autoridade judiciária competente pode ordenar a sujeição à diligência nos termos do disposto no Código de Processo Penal quanto à sujeição a exame”.
Por outro lado, dispõe o artº 172º nº1 do C.P.P. que “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão de autoridade competente”.
Refere o nº 2 do citado preceito legal que “É correspondentemente aplicável o disposto no nº2 do artº 154º ”o qual menciona que “quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e á reserva da intimidade do visado”.
Da conjugação dos indicados preceitos legais resulta que, a decisão da autoridade judiciária competente, neste caso do JIC, pressupõe a prévia constituição de arguido e a recusa por parte deste (falta de prestação de consentimento) para a realização do exame.
Dos autos não resulta que os arguidos não tenham prestado o respetivo consentimento para a realização do exame pretendido.
Assim, a autorização requerida é prematura podendo até resultar num ato inútil, se os arguidos vierem a prestar o respetivo consentimento.
Pelo exposto, e uma vez que se não mostram preenchidos os pressupostos legais para aplicação do artº 172º do C.P.P., indefere-se o requerido na promoção que antecede.
Devolva.”

Apreciação
É entendimento uniforme da jurisprudência que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Lidas as conclusões, a questão que se coloca é a de saber se assiste razão à Juíza de Instrução Criminal em não determinar a recolha de ADN aos arguidos, com fundamento em não resultar dos autos que os arguidos recusaram dar consentimento para a realização do exame pretendido.
O nosso processo penal prevê vários meios de obtenção de prova, através dos quais as autoridades judiciárias recolhem os meios de prova e são estes que permitem, a final, a formação da convicção do julgador.
Entre os meios de obtenção de prova, contam-se os exames, dispondo o art.171.º, n.º1 do C.P.Penal “Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspecionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.”
Ora, a colheita de vestígios biológicos (saliva) através de uma zaragatoa bucal para recolha do ADN do arguido constitui, nos termos e para os efeitos do citado art. 171.º do C.P.Penal, um exame e, por isso, um meio de obtenção de prova.
Por outro lado, dispõe o art.172.º, n.º 1, do C.P.Penal que “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”
A Lei n.º5/2008, de 12 de fevereiro, é o diploma que regula a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, pelo que cabe atender ao que a mesma dispõe para a realização do exame para colheita de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN.
O art.8.º, n.º1, da citada Lei estabelece “A recolha de amostra em arguido em processo criminal pendente, com vista à interconexão a que se refere o n.º 2 do artigo 19.º-A, é realizada a pedido ou com consentimento do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento escrito, por despacho do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.”
Em caso de o arguido não dar consentimento para a recolha de vestígios biológicos para posterior determinação dos perfis de ADN, a determinação do exame é da competência do juiz, que, após ponderação, decide da necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
O recorrente alega que os arguidos recusaram sujeitar-se à recolha dos vestígios biológicos, por forma verbal, porquanto recusaram assinar qualquer documento nesse sentido (3ªconclusão).
In casu, compulsando os autos principais na plataforma Citius, constata-se que consta do auto de notícia que os arguidos se recusaram a autorizar a recolha de vestígios biológicos através de zaragatoa bucal, assim como da recolha das impressões digitais, mas não referindo que se recusaram a assinar qualquer documento relativo à recolha de vestígios biológicos.
O auto de notícia relata o que os arguidos disseram aos militares da GNR e foram juntos ainda os autos de constituição de arguido e de prestação de TIR, não assinados pelos arguidos, por se terem recusado a tanto.
Porém, não basta constar do auto de notícia que os arguidos verbalizaram que não davam consentimento para recolha do ADN, assim como para recolha das impressões digitais, uma vez que se recusaram a assinar o auto de constituição de arguido e a prestação de TIR. Ao invés, tem de constar em auto próprio o consentimento de cada arguido para a recolha de vestígios biológicos ou a sua recusa, ainda que, neste caso, se negue a assinar o respetivo auto.
Em termos processuais, não está formalizado o não consentimento dos arguidos para recolha do ADN.
Por isso, tem razão a Exma.Juíza de Instrução Criminal ao indeferir o requerimento apresentado pelo Ministério Público por entender que não se mostra, por ora, preenchido o requisito de recusa de consentimento dos arguidos para recolha de vestígios biológicos de forma a caber ao juiz determinar a realização do exame.
Nesta conformidade, improcede o recurso.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e por consequência confirmam a decisão recorrida.
Sem custas.
(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)

Porto, 7/2/2024
Maria Luísa Arantes
José Quaresma
Castela Rio