Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
854/13.0TAMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ACTA DA DISSOLUÇÃO SOCIAL
FALSA DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE PASSIVO
Nº do Documento: RP20150325854/13.0TAMAI.P1
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A relevância criminal da declaração falsa de inexistência de passivo inserta em acta de deliberação social com vista à dissolução da sociedade apenas poderá ser aferida em concreto.
II - Demonstrando-se que:
- a vontade determinante e subjacente a tal declaração foi a de prejudicar terceiros,
- existiam activos no património social que permitam a satisfação dos créditos dos terceiros que foram partilhados e dissipados, estará preenchido o conceito de “facto juridicamente relevante” da al.d) do nº 1 do artº 256º CP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 854/13.0TAMAI.P1
Secção Criminal
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunta: Maria Dolores Sousa

Processo: Instrução n.º 854/13.0TAMAI/2º Juízo Criminal da Maia
Comarca – Porto
Matosinhos - Instância Central – 2ª Secção Instrução Criminal-J2

Arguidos
B… (recorrente)
C…

Assistente
D…

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de inquérito n.º 854/13.0TAMAI, da 2ª Secção dos Serviços do Ministério Público da Maia, finda a investigação, foi proferido despacho de arquivamento, de harmonia com o disposto no art. 277º n.º 1, do Cód. Proc. Penal, nos seguintes termos: (transcrição)
“Os presentes autos tiveram início com participação de fls. 2 apresentada por D… contra B… e C… onde acusa estes de, na qualidade de sócios da sociedade denominada "E…, Lda.", com sede na Rua …, …., R/C, …, Maia, terem declarado, em 19 de Junho de 2012, que a mesma tinha qualquer activo ou passivo, razão pela qual deliberaram a dissolução daquela sociedade, facto que registaram em 22 de Junho de 2012, quando a mesma sociedade devia a D…, pelo menos, 3.500,00 €, valor referente a rendas em atraso.
Os factos tal como descritos, e em abstracto aferidos, são passíveis de figurar um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256º n.º l, alínea d) do Código Penal.
Deu-se curso ao inquérito.
Foram realizadas as diligências de inquérito que se mostraram necessárias e das mesmas é possível dar como assente a seguinte matéria fáctica:
• B… é sócio, desde 19 de Maio de 2000, da sociedade comercial por quotas "E…, Lda.", doravante referenciada apenas por "E…", com sede na Rua …, …., R/C, Moreira, Maia, e C… é igualmente sócio desta sociedade desde 29 de Maio de 2012.
• No dia 1 de Novembro de 2003 foi celebrado contrato de arrendamento comercial entre D… e a E…, representando esta os então sócios gerentes, o aqui arguido B… e C…, de um imóvel sito na Rua …, n.º …., r/c, …, Maia, fixando-se a renda anual de 8.400,00 €, dividida em duodécimos de 700,00 €.
• Aquela sociedade não pagou a renda relativa aos meses de Maio de 2011 até Setembro de 2011.
• Por essa razão foi intentada por D… acção declarativa de condenação, que correu termos sob o número 1503/12.0TBMAI, no 2º juízo de competência cível do Tribunal da Maia, acção essa que foi julgada procedente, e condenou aquela sociedade no pagamento de 8.400,00 € a D…, decisão esta que transitou em julgado em 22 de Janeiro de 2013.
• Em 19 de Junho de 2012, o arguido B… e o arguido C…, na qualidade de sócios da E…, deliberaram a dissolução e liquidação imediata desta sociedade e aí declararam que a mesma não possuía, à data, qualquer activo ou passivo.
• Com base nesta deliberação registaram em 22 de Junho de 2012 a dissolução e encerramento da sociedade E….
Isto posto, cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 256º n.º l, alínea d) do Código Penal: "quem com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa".
O bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documento é a fé pública, olhando esta como a confiança exigida no tráfico jurídico negocial. Com este crime o legislador quer tutelar a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita a prova documental. Pretende proteger-se a verdade da prova susceptível de emanar do documento[1].
A falsidade pode ser material ou intelectual.
Na falsidade material o próprio documento é forjado, total ou parcialmente, ou quando se alteram os elementos de um documento já existente.
Na falsidade intelectual, também designada de ideológica, o documento não reproduz aquilo que se destina comprovar - há uma desconformidade entre o declarado e aquilo que consta no próprio documento, sendo este, materialmente genuíno.
No caso da alínea d) do n.º l do artigo 256º do Código Penal, que é situação abstractamente aplicável aos presentes autos, estamos perante a falsidade intelectual.
Aqui, para que se verifique o tipo objectivo do ilícito em apreciação, é necessário que a declaração, além de falsa, seja juridicamente relevante, ou seja, ter a virtualidade de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica[2].
Ora, reportando-nos ao nosso caso, temos uma declaração feita pelos sócios da "E…", aqui arguidos, declaração de inexistência de passivo daquela sociedade, quando na realidade, à data dessa declaração, deviam a D…, pelo menos, 3.500,00 €, correspondentes aos meses de renda em dívida de Maio a Setembro de 2011.
Trata-se deste modo, sem dúvida, de uma declaração inexacta mas caberá a mesma no crime de falsificação aqui em apreciação? Desde já se avança que a resposta é negativa.
A este respeito chamamos ainda à colação o artigo 1020º do Código Civil e os artigos 160º n.º 2, 162º, 163º e 164º do Código das Sociedades Comerciais.
O artigo 1020º do Código Civil dispõe que "encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação."
Ou seja, precisamente para proteger terceiros, em particular os credores sociais, estipulou-se que a decisão de dissolução e de encerramento da sociedade não lhes pode ser aposta.
Isto significa que a declaração prestada pelos arguidos na deliberação de 19 de Junho de 2012, apesar de desconforme com a realidade no que toca à existência de passivo da sociedade, não é uma declaração juridicamente relevante pois não é pela mesma ter sido tomada que se possa contrariar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar. Aquela deliberação não constituiu um meio de prova passível de ser usado para afastar a existência de eventuais créditos.
Na verdade, nem a dissolução, nem a liquidação, nem até mesmo a partilha da sociedade podem impedir um credor de reclamar o seu crédito uma vez que os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento de débitos que não tenham sido liquidados.
Como tem sido firmado em vasta jurisprudência[3], "as declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar, são da mera responsabilidade daqueles... Trata-se de uma declaração rés inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais".
Assim, inexistindo uma declaração juridicamente relevante, no sentido de que os arguidos tenham agido intencionalmente com o propósito de causar prejuízo ao D… - ao declarar que a sociedade não tinha activo, nem passivo -, ou a outras pessoas, ou ao Estado, e ainda não se provando que os mesmos alcançaram para si ou para terceiro benefício ilegítimo, nem que actuaram com esse propósito, outra solução não resta do que arquivar os autos por não estarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo de crime.
Deste modo, determino o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277º n.º l do Código de Processo Penal.
(…)”.
2. O queixoso D… requereu, então, a constituição como assistente e, concomitantemente, a abertura de instrução, visando a pronúncia dos arguidos B… e C… pela prática do aludido crime de falsificação, previsto e punível pelo art. 256º n.º 1 d), do Cód. Penal, imputando-lhes os seguintes factos: (transcrição)
«67. Após o conhecimento da existência de um débito pela sociedade E…, L.da ao Assistente, os denunciados, agindo em comunhão de esforços, promoveram um plano destinado ao não cumprimento das obrigações e a causar prejuízo a esta;
68. Os denunciados deliberaram e aprovaram a dissolução da sociedade, afirmando que a mesma não dispunha de qualquer activo ou passivo, conforme balanço do dia 31.12.2011.
69. O que fizeram mediante uma "Deliberação Unânime por Escrito";
70. Com base em tal documento os denunciados submeteram a registo a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade E…, L.da, a qual foi registada mediante a AP. ../……..;
71. O que determinou o cancelamento da matrícula da referida sociedade e a extinção da sua personalidade jurídica;
72. Os denunciados tinham plena consciência que faltaram à verdade quando afirmaram a inexistência de qualquer activo e/ou passivo na "Deliberação Unânime por Escrito" e, ao contrário do que fizeram apor no documento que elaboraram, bem sabia que a citada sociedade continuava a dever o montante referido no ponto 10), a que acresceriam juros de mora até ao efectivo e integral cumprimento;
73. Com esta conduta os denunciados prejudicaram a denunciante;
74. O objectivo dos denunciados foi o não cumprimento da obrigação a que a sociedade estava obrigada, impossibilitando o credor, ora Assistente, de ver ressarcido o seu crédito na sua totalidade;
75. Os denunciados, ao proferir as declarações que conduziram à dissolução da sociedade e à extinção da sua personalidade jurídica, agiram com o único intento de não cumprir com a sua obrigação e prejudicar a denunciante;
76. Ao terem praticado estes actos, os denunciados agiram de forma livre, voluntária e espontânea, tendo como única pretensão prejudicara denunciante, o que conseguiram, estando conscientes que estariam a agir contra a lei.».
3. Admitido o requerimento e declarada aberta a instrução, foram realizadas as diligências tidas por necessárias e convenientes e, realizado o debate instrutório, foram os arguidos C… e B… pronunciados nos termos apontados pelo assistente.
4. Inconformado com o decidido o arguido B… interpôs recurso finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
“1. Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória proferida pelo 2° Juízo Criminal da Maia que após arquivamento proferido pelo Ministério Público, pronunciou o recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p pelo artigo 256º n.º 1 alínea d) do CPP.
2. O recurso tem por principal motivação a discussão das soluções em matéria de direito consagradas na decisão instrutória, nomeadamente saber-se se a conduta que é imputada ao recorrente preenche os elementos típicos do crime de falsificação de documento previsto no artigo 256º n.º 1 d) do CP.
3. Afirmando-se na decisão instrutória (por remissão para a narração dos factos feita pelo Assistente no RAI – 67º a 77º) que a conduta do recorrente destinou-se a prejudicar aquele evitando a cobrança tal não tem, na situação em apreço, qualquer relevância jurídica para a assistente pelo que não estamos perante um facto juridicamente relevante sendo atípica a atuação do agente.
4. A falsificação de documentos prevista no artigo 256º do CP abrange quer a falsificação material, quer a falsificação ideológica sendo que na falsificação material assistimos a uma modificação (total ou parcial) do documento, enquanto na falsificação ideológica o documento é inverídico e tanto é inverídico o documento que é diferente do declarado, como o documento que, embora conforme com a declaração, incorpora um facto falso juridicamente relevante (falsificação intelectual ou falsidade em documento).
5. São três os elementos nucleares constitutivos do crime de falsificação: a) modificação de documento por uma das formas previstas na lei, b) a conduta deverá ser operada com intenção fraudulenta c) suscetível de causar prejuízo a terceiros ou obter um benefício indevido/executar, facilitar encobrir a pratica de outro crime.
6. No caso de dissoluções e liquidações de sociedades, uma vez extintas as mesmas, os anteriores sócios continuam responsáveis perante terceiros pela liquidação das dívidas que não tenham sido pagas como se não tivesse havido liquidação (art. 1020º do C. Civil e arts. 163º e 164º do CSC) pelo que a conduta do recorrente não é suscetível e causar qualquer prejuízo ao Assistente.
7. Da narração dos factos feita nos termos dos artigos 287º n.º 2 e alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do CPP resulta que o recorrente terá realizado uma declaração inexata, (a inexistência de passivo[4]), quando na realidade existiria um crédito de que o Assistente seria titular pelo que estaríamos perante uma falsificação ideológica caso o facto, além de falso, fosse igualmente juridicamente relevante.
8. Contudo, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse existido a liquidação (Artigo 1020° do Código Civil), pelo que se poderá dizer que perante terceiros - especialmente os credores sociais - quer a decisão de dissolução quer a de encerramento da liquidação é rés inter alios acta e não lhes pode ser oposta[5].
9. A conduta imputada é pois atípica pelo que deveria ter sido proferido despacho de não pronúncia.
10. Ao pronunciar-se o arguido o Tribunal a quo violou, ou pelo menos fez uma errada interpretação dos artigos 255º alínea a) e 256º n.º 1 alínea d) do CP e 308º do CPP.”.
5. Admitido o recurso, por despacho de fls. 379, respondeu o Ministério Público sustentando, sem alinhar conclusões, a tese subjacente ao despacho de arquivamento e, por conseguinte, a não pronúncia dos arguidos, sem, contudo, não deixar de referenciar as divergências jurisprudenciais existentes na matéria em causa.
6. Neste Tribunal da Relação do Porto o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto elaborou douto parecer, onde conclui pela procedência do recurso, acompanhando a tese do Ministério Público da 1ª instância.
7. Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.
8. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, que decorreu com observâncias das formalidades legais, nada obstando à decisão.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo), são as conclusões, extraídas pelo recorrente da sua motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso.
In casu, a única questão suscitada é a de saber se a declaração inverídica sobre a inexistência de passivo que os arguidos, enquanto sócios da firma "E…, L.da", exararam em acta com vista à dissolução e liquidação imediata dessa sociedade é susceptível de fundamentar a imputação do crime de falsificação.
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2. A fundamentação da decisão instrutória, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
“(…)
A fls. 154/158, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos autos, nos quais são arguidos B… e C… e ofendido D…, sendo que este último, na participação criminal a fls.24/31, imputava factos aos arguidos susceptíveis de, em abstracto, integrarem a prática de 1 (um) crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º do Código Penal.
O Ministério Público, naquele despacho, entende que a declaração prestada pelos arguidos na deliberação de 19 de Junho de 2012, apesar de desconforme no que toca à existência de passivo da sociedade, não é uma declaração juridicamente relevante, pois não é pela mesma ter sido tomada que se possa contrariar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar, na medida em que o credor pode sempre vir reclamar o seu crédito, uma vez que os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento de débitos que não tenham sido liquidados nos termos dos artigos 1020º do Código Civil e 160º, n.º2, 162º, 163º e 164.º do Código das Sociedades Comerciais.
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Inconformado com o despacho de arquivamento, veio o ofendido/Assistente, requerer a abertura de instrução a fls. 198/210, com vista à prolação de despacho de pronúncia quanto ao crime denunciado, tendo deduzido “Acusação Particular”, a fls.208/210.
Para tal alega, em síntese, que há nos autos recolha de indícios que permitam apontar os arguidos como suspeitos da prática de 1 (um) crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º do Código Penal, designadamente que o facto falso que os arguidos fizeram constar na deliberação de 19 de Junho de 2012 (de que a sociedade não tem qualquer activo nem passivo) é juridicamente relevante, desde logo por ter sido com base na mesma que os arguidos, posteriormente, procederam à dissolução e liquidação da sociedade, actuação que propicia a dissipação de qualquer activo existente, acrescentando que os arguidos, com a sua conduta, visavam o não cumprimento da obrigação a que a sociedade estava obrigada, perante o assistente, de pagamento das rendas, o que causa prejuízo ao assistente.
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Como diligências de prova complementar, requereu o assistente a inquirição das testemunhas indicadas a fls. 210.
Tais diligências foram deferidas a fls. 247.
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Procedeu-se à realização de debate instrutório, o qual decorreu com observância de todas as legais formalidades, nos termos previstos nos artigos 297º e seguintes do Código de Processo Penal, como decorre da respectiva acta.
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Nos termos do artigo 308º, n.º 3, do Código de Processo Penal, verifica-se que o tribunal é competente e o assistente tem legitimidade para requerer a abertura da instrução.
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Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem ao mérito da causa e que cumpra conhecer.
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Das Finalidades da Instrução
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, nas palavras do legislador “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (cfr. artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Nos termos do n.º 2 do referido artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução configura-se, pois, como uma fase sempre facultativa e destinada a questionar a decisão de acusação ou de arquivamento.
Dispõe o n.º 1 do artigo 308.º do mencionado diploma legal que “se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Assim, deverá o Tribunal proferir despacho de não pronúncia do arguido quando conclua pela insuficiência de indícios, plasmada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, bem como quando se verifique a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Relativamente à prolação do despacho de pronúncia, ela deverá sustentar-se na existência de indícios suficientes da prática do crime pelo arguido.
Tendo em conta o critério enunciado no n.º 2 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, são indícios suficientes os que se verifiquem quando deles resulte a possibilidade razoável de ao arguido vir se aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, isto é, quando seja mais provável, face aos indícios recolhidos, a condenação do que a absolvição do arguido em sede de julgamento (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, Coimbra Editora, 1974, página 133).
Impõe-se, deste modo, que a decisão instrutória assente num suporte factual fortemente indiciador sobre a verificação ou não da infracção. Sobre este ponto refere o Professor Figueiredo Dias que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, in Direito Processual Penal, 1.º, 1974, página 133.
Tem entendido a Jurisprudência que são bastantes os indícios quando se trata de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
Na verdade, por indícios suficientes entendem-se, pois, suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido por ele responsável. Porém, não é necessária certeza da existência da infracção, não se impondo a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento, mas os factos indiciados devem ser suficientes e bastantes, de forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo-se um juízo de probabilidade (cfr. neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 1961, Bol. 105.º, página 439).
Devem, pois, os indícios ser reputados de suficientes quando, das diligências efectuadas durante o inquérito e instrução, resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e que é o arguido o seu agente.
Nesta fase do processo, o objectivo a alcançar não é a demonstração da realidade dos factos, mas tão só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, isto porque as provas a reunir não são pressuposto de uma decisão de mérito, mas de uma decisão processual da prossecução dos autos para julgamento (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 20 Outubro 1993, in Colectânea de Jurisprudência, IV, página 261, e de 31 de Março de 1993, in CJ, II, página 66).
Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para o efeito de prolação do despacho de pronúncia, quando:
- Os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;
- Se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento, ou
- Quando se pressinta que da discussão em audiência de discussão e julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.
Estaremos, então, perante indícios suficientes quando se verifique uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (cfr. Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, páginas 38 e 39).
Nas palavras de Germano Marques da Silva “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova no sentido da certeza moral da existência de indícios do crime basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.” (cfr. “Curso de Processo Penal”, Volume III, 1994, página 183).
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Tendo por base os conceitos legais acabados de expor, cumpre apurar se, em face da prova recolhida até ao momento, se indicia suficientemente a prática, pelos arguidos, dos factos que lhes são imputados pelo assistente e se, face aos mesmos, há razoável probabilidade de lhes vir a ser aplicada, em sede de julgamento, uma pena ou medida de segurança, nos termos dos artigos 308º, n.º 1, 286º, n.º 1 e 283º, n.º 2 do C.P.P.
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Da prova recolhida em sede de inquérito e instrução
A fls. 24/31 consta “Participação Criminal”, apresentada pelo assistente contra os arguidos, do teor da qual resulta, em síntese que, os arguidos, na qualidade de sócios da sociedade “E…, Lda.”, não obstante a referida sociedade ser devedora ao assistente de quantia de € 8.400,00 a título de rendas em atraso (em virtude de um anterior contrato de arrendamento celebrado entre a sociedade “E…, Lda.” e o assistente, tendo a mesma sido condenada, por sentença transitada em julgado, a pagar ao assistente aquele valor), declararam, em 19 de Junho de 2012, que a mesma não tinha qualquer activo ou passivo, tendo em seguida, com base nessas declarações, deliberado a dissolução da sociedade, facto que registaram em 22 de Junho de 2012.
O teor da referida “Participação Criminal”, apresentada pelo assistente, encontra-se corroborada pelo teor dos documentos juntos a fls. 35 (cópia de “Deliberação Unânime por Escrito”, do teor da qual resulta “B… (…) e C… (…) sócios da sociedade E…, Lda (…) tomam a deliberação infra por escrito: (…) Deliberam a dissolução e liquidação imediata da sociedade, por se considerar que a mesma actualmente não dispõe de qualquer activo ou passivo, conforme balanço do dia 31-12-2011(…)”, encontram-se apostas, no mesmo documento, duas assinaturas com os seguintes nomes: “B…” e “C…”), 45/50 (Certidão Permanente da Conservatória do Registo Predial/Comercial da Maia, do teor da qual consta, na inscrição AP. ../…….. 11:59 UTC – “Dissolução e encerramento da liquidação”) e 64/67 (Certidão de sentença no processo n.º 1503/12.0 TBMAI, do teor da qual resulta: “Decisão (…) Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção procedente e em consequência condenar a ré E…, Lda. a pagar ao autor D… a quantia de Eur. 8.400,00 (oito mil e quatrocentos euros).”), por sua vez articulados com o depoimento das testemunhas F…, a fls. 105 e 256/257 (amigo e vizinho do assistente, referiu que os arguidos arrendaram um imóvel ao assistente tendo rendas em dívida), G…, a fls. 106 e 256/257 (amigo do assistente, sobre a matéria dos autos disse ter conhecimento que os arguidos tinham arrendado um imóvel ao assistente, onde exerciam a sua actividade profissional e ainda que tinham rendas por pagar) e H… a fls.152/153 (técnica oficial de contas da sociedade “E…, Lda.” – o que é confirmado pelo documento de fls. 92, que consiste em ofício da Autoridade Tributária do teor do qual resulta ser esta testemunha a única T.O.C. daquela sociedade, tendo-o sido até à dissolução da mesma em 22-06-2012 - fez a constituição da sociedade e também a sua dissolução em 2012. Disse que na altura da dissolução a empresa já não laborava e que, quanto à existência de activo/passivo, foi-lhe dito pelo arguido B… que a sociedade não tinha quaisquer créditos nem débitos, tendo a mesma acreditado. Em relação ao contrato de arrendamento, disse saber da existência do mesmo em função de recibos de renda que chegavam ao gabinete de contabilidade onde trabalhava).
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Cumpre, antes de mais, referir que o Juiz de Instrução Criminal está limitado pelas razões de facto e de direito expostas pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, ao abrigo do princípio da vinculação temática dos poderes de cognição do Tribunal, pelo que, será a partir daquele requerimento e respectivos fundamentos que o Tribunal irá apreciar da existência ou não de indícios suficientes.
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Dos factos indiciados e subsunção ao direito
Cumpre, neste momento, verificar se, da prova recolhida em sede de inquérito e de instrução, resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime que lhes é imputado pelo assistente.
O crime pelo qual os arguidos vêm acusados encontra-se previsto no artigo 256.º, do Código Penal nos termos do qual, e na parte que ora releva, comete o crime de “Falsificação de Documento quem “com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: (….) d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante”.
Por sua vez, o artigo 255º do Código Penal, com a redacção introduzida pela da Lei n.º 59/2007, de 04-09, sob a epígrafe “Definições legais”, prevê que “Para efeito do disposto no presente capítulo considera-se: a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
Segundo Helena Moniz (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 199, pág. 667), documento é “a declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizado num objecto que possa constituir meio de prova”.
Trata-se assim de uma noção bastante mais ampla do que a inscrita no âmbito do direito civil e que permite desde logo considerar como documento qualquer meio técnico que integre uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante.
Quanto ao bem jurídico tutelado, importa, antes de mais, referir que a actividade do falsificador, na medida em que quebra a relação que se interpõe entre aparência e realidade, atenta contra o crédito de que goza o documento, isto é, contra a confiança que a generalidade das pessoas deposita em que a sua aparência corresponda à realidade.
O bem jurídico tutelado com a presente incriminação reconduz-se assim à segurança e fiabilidade/credibilidade dos documentos no tráfico jurídico, ou seja, o que se protege é fé pública, entendida como a confiança necessária ao tráfico jurídico, especialmente no tráfico jurídico probatório.
Trata-se de um crime de perigo abstracto, pois o perigo não constitui elemento do tipo, é um crime em que o perigo é presumido pela lei independentemente da sua configuração e verificação efectiva no caso concreto.
Nesta medida, para que a conduta do agente integre este tipo legal de crime basta que o documento seja falsificado, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico, bastando a probabilidade de com a sua conduta lesar a confiança que a sociedade deposita nos documentos (i.e., no tráfico jurídico com documentos).
“Por isso é também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessária a produção de qualquer resultado. (…) O documento constitui o objecto da acção (…) e o crime está consumado com a simples falsificação”, cfr. Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, volume II, páginas 681 e 682.
*
In casu, face à prova recolhida em sede de inquérito e instrução, resulta suficientemente indiciado que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na participação criminal, para as quais se remete, os arguidos declararam, no documento junto a fls. 35, que consiste em cópia de “Deliberação Unânime por Escrito”, o seguinte: “Deliberam a dissolução e liquidação imediata da sociedade, por se considerar que a mesma actualmente não dispõe de qualquer activo ou passivo, conforme balanço do dia 31-12-2011(…)”.
Importa ainda referir que o documento mencionado, porque se reconduz a uma declaração corporizada em escrito, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, integra a noção penal de documento.
Também resulta suficientemente demonstrado que a sociedade “E…, Lda.”, contrariamente ao declarado pelos sócios naquela declaração, tinha passivo, uma vez que era devedora de rendas ao assistente, cfr. Certidão de sentença no processo n.º 1503/12.0 TBMAI, a fls. 64/67, do teor da qual resulta: “Decisão (…) Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção procedente e em consequência condenar a ré E…, Lda. a pagar ao autor D… a quantia de Eur. 8.400,00 (oito mil e quatrocentos euros).”), bem como o depoimento das testemunhas F…, a fls. 105 e 256/257 (amigo e vizinho do assistente, referiu que os arguidos arrendaram um imóvel ao assistente tendo rendas em dívida), G…, a fls. 106 e 256/257 (amigo do assistente, sobre a matéria dos autos disse ter conhecimento que os arguidos tinham arrendado um imóvel ao assistente, onde exerciam a sua actividade profissional e ainda que tinham rendas por pagar).
Pelo exposto, encontra-se suficientemente demonstrado nos autos que os arguidos fizeram a declaração que consta do documento junto a fls. 35 e que a mesma, porquanto faz constar que a sociedade “E…, Lda.” “actualmente não dispõe de qualquer activo ou passivo, conforme balanço do dia 31-12-2011”, atesta facto falso, por não corresponder à verdade, atenta a existência do crédito do assistente para com aquela sociedade, que a tornava devedora deste último.
Aqui chegados, a questão que cumpre resolver, atentos os fundamentos de arquivamento invocados pelo Ministério Público, é se o facto (falso) que os arguidos fizeram constar no mencionado documento é ou não “facto juridicamente relevante” para efeitos de preenchimento do tipo objectivo de ilícito em análise, previsto na alínea d), do n.º 1, do artigo 256º, do Código Penal.
Desde logo, refira-se que o segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal - “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” - apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento.
Por outro lado, para o efeito do disposto na mesma norma, nomeadamente, no que respeita ao alcance da expressão “facto juridicamente relevante”, a relevância jurídica existe sempre que o facto inscrito no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício.
Consequentemente, “a mentira" inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que a declaração corporizada em escrito seja idónea para provar facto juridicamente relevante, como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256, n.º 1 al. d) do C. Penal.
E, assim, a falsidade existe mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar ou dos que são essenciais para a validade do documento, neste sentido vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-12-2011, no processo n.º 40/08.1TAPNH.C1.
No caso sub iudice, a alteração no mundo do Direito traduz-se na posterior possibilidade de dissolver a sociedade, extinguindo a pessoa colectiva.
Por outro lado, os arguidos tinham consciência das aptidões da declaração prestada, tanto que logo inscreverem no registo comercial (dois dias após declararam não haver património nem passivo) o acto de dissolução, como se alcança da respectiva certidão, o que não pode deixar de se entender como sintomático dos fins visados.
Não poderiam, portanto, deixar de prever e querer o benefício que advinha da dissolução, benefício esse traduzido, por exemplo, na aparência que, ao inscreverem o facto no registo, davam a terceiros de uma realidade diferente daquela existente; na extinção das suas funções e responsabilidades como gerente; a previsível influência sobre terceiros na reclamação de créditos; na extinção da responsabilidade criminal ou contra-ordenacional da sociedade arguida, responsabilidade criminal essa que poderia, por exemplo nos crimes fiscais, reverter para as suas próprias pessoas no pagamento de multas; nas impossibilidades que criavam que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, insolvência essa que poderia ter consequências directas para as suas pessoas, entre outras.
Por estes motivos, entende este Tribunal que, não obstante os arguidos, na qualidade de antigos sócios, continuarem responsáveis perante terceiros pelo pagamento de débitos que não tenham sido liquidados, nos termos dos artigos 1020º do Código Civil e 160º, n.º2, 162º, 163º e 164.º do Código das Sociedades Comerciais, a declaração pelos mesmos prestada na deliberação de 19 de Junho de 2012, que consta do documento a fls. 35, é uma declaração juridicamente relevante.
A questão é controvertida, tendo dado origem a diferentes posições jurisprudenciais:
Veja-se e este propósito acórdão da Relação do Porto de 19/10/2010, "As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar - são da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se de uma declaração res inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais."
Também noutro acórdão, da mesma Relação de 21/4/2010, e partindo do disposto no artigo 1020° do código civil, onde se dispõe que «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação», se escreveu "Com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protcção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem em muitos casos malevolamente. Destarte, com propriedade se poderá dizer que perante terceiros - especialmente credores sociais quer a decisão de dissolução quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oposta."
Neste sentido, veja-se, entre outros, Acórdãos da Relação do Porto de 4 de Maio de 2011 e 14 de Abril de 2010 e Acórdão da Relação de Coimbra de 19 de Junho de 2013, consultáveis em www.gde.mj.pt.
Em sentido contrário, ao qual aderimos, veja-se acórdão da Relação de Coimbra de 20.12.2011 em cujo sumário se pode ler “"Para o efeito do disposto na al. d), do n.º 1, do art. 256º, do C. Penal, nomeadamente, no que respeita ao alcance da expressão "facto juridicamente relevante", a relevância jurídica existe sempre que o facto inscrito no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício."
Tratando de situação em tudo idêntica à subjacente à factualidade em discussão, consigna-se nesse acórdão: «O crime de falsificação de documentos constitui um crime de perigo, ou seja, após a falsificação documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo - ob cit pag 681. Trata-se de um crime de perigo abstracto, (o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador) pois como se alude no citado Comentário Conimbricense (p. 681) "... para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo (de violação do bem jurídico); basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico - verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual?».
Continuando: «É também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger. Mas se considerarmos a actividade do agente, isto é, o acto de falsificar o documento, podemos considerar que se trata de um crime material de resultado.»
«Assim, ao nível do tipo objectivo, o documento é falso quando não corresponde à realidade, como ocorre com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).»
«Na falsificação intelectual, a declaração é conforme com a vontade, todavia contra a verdade dos factos - contra a vontade real - como ensina Helena Moniz (O Crime de Falsificação de Documentos, pág. 191).
E mais adiante: «Na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido vide, Helena Moniz "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667" e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra. de 13-05-2009. Processo: 457/07.9TASCD.C1 (JusNet 2903/2009), Relator: DR. JORGE DIAS e de 07-02- 2007.N° 1540/05.0TAA VR.C1 (JusNet 300/2007). Relator: DR. ESTEVES MARQUES, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, Processo: 1289/06.7TAVCT.G1 (JusNet 7567/2009), Relator: TERESA BALTAZAR, in www.dqsi.pt).»
Para concretizar: «Consequentemente, "a mentira" inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que "a declaração corporizada em escrito ...", seja "... idónea para provar facto juridicamente relevante ....", como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256º, n.º 1 al. d) do C. Penal. (Acórdão Rei Coimbra, de 2 Mar. 2011, Processo 909/09.6TALRA.C1 - Relator: CALVARIO ANTUNES).
Neste enfoque e por se prefigurar como conceito operativo essencial para o enquadramento legal do acto em apreço, torna-se claro a essencial idade da definição do que seja "facto juridicamente relevante".
Para o efeito, chamamos à colação o raciocínio discorrido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo 691/07.1TAOAZ.P1-A.S1: "A este propósito, tem-se recorrido à posição assumida por VON LISZT para quem, "No sentido do direito penal (não assim no sentido do direito processual), documento é todo o objecto do mundo exterior, que tenha sido preparado para provar, pelo seu conteúdo intelectual (e não somente pela sua existência) um facto juridicamente relevante. "
Prosseguindo: "Entre nós, e presentemente, já se viu que o conceito de "documento" é mais amplo, porque não tem que surgir com o escopo de fazer prova do que quer que seja, podendo esse uso ser-lhe dado posteriormente. Por outro lado, VON LIZST raciocinou no fim do século XIX a partir de uma previsão do crime de falsificação do art. 252º do CP prussiano que transitou para o art. 271º do CP imperial alemão, o qual, já se disse, só considera a atestação pública".
Concluindo com a definição de "facto juridicamente relevante: "tratar-se-á de um facto que, por si só ou ligado a outros, dá origem a relações jurídicas, as extingue ou altere" (destaque nosso).
A este propósito, pronunciou-se o mesmo Tribunal no âmbito do Assento n.º 4/2000:
"Sobre a idoneidade e destinação probatórias do documento, relativamente a facto juridicamente relevante, cumpre referir que a destinação não tem de ser intencional ou imediata e que quer esta quer aquela quer ainda a própria relevância jurídica do documento devem apresentar-se - quando consideradas conjugadamente e não, apenas, cada uma de per si isoladamente - como verosímeis (cf. Malinvemi, ob. cit., pp. 634-635). Estes requisitos afastariam, definitivamente, qualquer dúvida (que não se conhece, note-se) sobre a especial capacidade do documento que, no tráfico jurídico, assume uma relevância tal que justifica a sua protecção penal: a sua capacidade probatória" (sublinhado nosso).
Dúvidas não restam, pois, que nos presentes autos e com a conduta imputada aos arguidos demonstra que os arguidos, ao falsificarem o conteúdo da acta (que deliberaram e aprovaram a dissolução da sociedade afirmando que não dispunha de qualquer activo ou passivo) nela fazendo constar, com inverdade, que inexistia activo e passivo lograram dissolver a sociedade que era, indubitavelmente, devedora da ofendida.
Fica claro que, com tal conjugação de actos, os arguidos pretenderam e conseguiram furtar-se ao pagamento da dívida, no caso da empresa por eles detida possuir activos suficientes para o pagamento da dívida, pois a inverdade constante do documento, possibilitou aos arguidos a dissolução da sociedade, consubstanciando, por isso, um facto jurídico relevante e a dissolução da sociedade frustrou o crédito da ofendida.
Assim e em conclusão o documento consubstancia, pese embora jurisprudência contraditória, quanto a nós um documento que contém um facto juridicamente relevante, desde logo porque com a mesma se permite fazer extinguir a personalidade jurídica de uma sociedade comercial.
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Quanto ao elemento subjectivo, os arguidos sabiam que as declarações que faziam constar no documento não correspondiam à realidade, uma vez que a sociedade, naquela data e ainda actualmente, tinha dívidas a terceiros, nomeadamente para com o assistente. E não se argumente com o facto de a sentença ser posterior à data em que foi proferida a declaração, uma vez que, por um lado, o crédito/débito sempre será anterior à declaração, e por outro não é credível que os arguidos, enquanto sócios gerentes da sociedade devedora, desconhecessem o passivo da mesma – facto que é, aliás, pessoal dos mesmos.
Assim, encontra-se suficientemente demonstrado o dolo genérico (o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade) bem como o dolo específico (in casu, a intenção dos arguidos de causarem prejuízo a terceiros, e a intenção de obterem para si benefício ilegítimo).
Nessa medida, encontram-se indiciariamente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em apreço.
Subsumindo tal factualidade no artigo 256º, n.º 1 e 14º do Código Penal, conclui-se ser altamente provável que os arguidos, em sede de julgamento, venham a ser condenados pelo crime de “Falsificação de Documento”, pelo que se impõe a sua pronúncia pela prática do mesmo.
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Decisão
Pelo exposto, e porque para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, págs. 38 e 39, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida “a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final” apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados “os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
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Em face do exposto, e ao abrigo decide-se pronunciar, para julgamento em processo comum, perante o Tribunal Singular, B… e C… ambos melhor identificados nos autos, pelos factos que lhes são imputados no RAI de fls. 198 e ss (arts. 67º a 77º), para o qual se remete e se dá por integralmente reproduzido.
(…)”.
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3. Apreciando e decidindo
3.1 Do crime de falsificação
Por força do preceituado no art. 308º n.º 1, do Cód. Proc. Penal, “se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido é proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos, em caso contrário é proferido despacho de não pronúncia”.
O conceito normativo de indícios suficientes resulta do disposto no art. 283º n.º 2, do aludido Código, aplicável à fase de instrução por remissão expressa do seu art. 308º n.º 2, que comina que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Assim, tanto a doutrina como a jurisprudência têm maioritariamente entendido que o juízo de indiciação positivo há-se ter como fundamento subjacente a alta probabilidade de condenação futura, ou pelo menos uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição.
In casu, a questão controvertida relaciona-se com a possibilidade de imputação do crime de falsificação com base em deliberação social, de 19/6/2012, em que os sócios declaram, com vista à imediata dissolução da sociedade, que esta não tinha qualquer activo ou passivo, faltando à verdade pois havia rendas em dívida, e registando essa deliberação de resolução logo a 22 de Junho seguinte, assim logrando a extinção da pessoa colectiva.
Vejamos.
3.1.1 Dos requisitos típicos
Dispõe o art. 256º, do Cód. Penal, que:
“1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito;
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”
A falsificação há-de, pois, ter sempre como objecto um documento, cuja verdade intrínseca é protegida pela incriminação numa dupla vertente: a verdade quanto à autenticidade e genuinidade da sua fonte e a verdade necessária à função probatória específica do documento. Assim, é consensual que o âmbito da falsificação acolhe tanto a falsidade material [Documento total ou parcialmente forjado ou sujeito a modificação posterior] como a intelectual ou ideológica [O documento é genuíno mas não traduz a verdade do que se passou ou então não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar][6].
Trata-se de um crime de perigo abstracto, bastando para o preenchimento do tipo legal a existência de uma probabilidade séria de lesão do bem jurídico que a norma visa proteger, consistente na segurança do tráfico jurídico probatório relacionado com os documentos.
Todavia, o crime de falsificação exige um dolo específico, consistente na intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, entendendo-se por este toda a vantagem, patrimonial ou não, que se obtenha através do acto de falsificação.
O dolo terá também que abarcar o conhecimento de todos os elementos que constituem o tipo objectivo do crime e vontade na sua realização, ou seja, o agente deve saber que o objecto que falsifica é um documento que produz uma certa fé no mundo jurídico.
Ou seja e concluindo, a infracção em causa visando a protecção da verdade intrínseca dos documentos e a fé pública que os mesmos devem merecer, isto é a segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório, pressupõe sempre a intencionalidade da conduta, consistente na intenção de causar prejuízo a terceiros ou ao Estado ou de obter, para si ou para outrem, um benefício indevido.
3.1.2 Do facto juridicamente relevante
Como facilmente se constata da argumentação expendida, quer no despacho de arquivamento, quer na decisão instrutória, quer ainda no recurso e respectiva resposta, a questão controvertida centra-se no conceito normativamente densificado de “facto juridicamente relevante”, inerente à falsidade intelectual, pois que há consenso de que a conduta imputada aos arguidos apenas poderá subsumir-se à previsão da alínea d), do n.º 1, do citado art. 256º.
Está em causa a declaração - por todos já assumida como inverídica - que os arguidos B… e C…, enquanto sócios da firma “E…”, proferiram no âmbito de deliberação unânime visando a dissolução e liquidação de tal sociedade, relativamente à inexistência de passivo, quando bem sabiam que esta tinha um débito relativo à falta de pagamento de rendas, ao aqui assistente D….
Como evidencia a fundamentação do douto despacho de arquivamento e da subsequente muito bem elaborada decisão instrutória, ambos já supra transcritos e para cujos termos remetemos por desnecessidade de maiores desenvolvimentos, a resposta jurisprudencial não tem sido unânime e a divergência centra-se na atribuição de relevância a esse tipo de declaração.
Em tese, será facto juridicamente relevante todo aquele que seja reconhecido pelo direito como tendo eficácia jurídica, podendo ser constitutivo, modificativo ou extintivo de direitos quanto à modalidade dos respectivos efeitos.
Na hipótese em apreço, é inegável que a declaração e subsequente deliberação dos arguidos tem relevância jurídica já que permitiu uma alteração no mundo do direito com a extinção da pessoa colectiva, até aí sua representada, e a possibilidade de partilha imediata dos haveres sociais sem a fase de liquidação que, de outro modo, seria legalmente devida – v., entre outros, os arts. 142º e 145º a 147º, do Código das Sociedades Comerciais.
Todavia, tal conclusão não é determinante para a questão que nos ocupa visto que não é - ou pode não ser - inteiramente coincidente com a relevância jurídico-criminal que a incriminação em causa impõe, não se afigurando, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o acto material de feitura da acta dessa deliberação – onde é inserta a declaração inverídica – que vem a ser utilizada para posterior inscrição e registo da dissolução, seja fundamento bastante ou sequer adequado para a resolução da controvérsia, neste preciso segmento[7].
E, do mesmo modo, cremos que a afirmação de que a falsificação exige o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento excluindo a mera declaração de facto falso, por virtude deste não assumir relevância probatória por referência ao bem jurídico tutelado [a deliberação visou a dissolução da sociedade e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de débitos que abala tal finalidade, pois que o elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projectar, não servindo - mesmo depois de registada a dissolução - para infirmar a existência de créditos que impendiam sobre a sociedade nem servindo como meio de prova susceptível de ser usado para excepcionar eventuais débitos[8]] também não satisfaz inteiramente.
Com efeito, sendo pacífico que o bem jurídico tutelado no crime de falsificação é o perigo de lesão na segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório e da verdade intrínseca do documento, não é menos certo que, fazendo apelo ao bem jurídico tutelado e ao elemento subjectivo da infracção, a jurisprudência referencia igualmente os interesses de particulares como objecto imediato da incriminação, afirmando, pois, que a norma tem também subjacente a defesa patrimonial dos direitos destes.
Tanto assim que, na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, de 16/1, publicado no DR, I Série-A, de 27/2/2003, que fixou jurisprudência no sentido da admissibilidade da constituição de assistente neste tipo de crimes, exarou-se, além do mais, o seguinte:
“Mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação, atendendo ao conjunto do tipo.
Já se notou que, como requisito subjectivo, se exige que o agente tenha actuado com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo. O mesmo é dizer que se não estiver presente esse elemento não perfecciona o respectivo tipo.
Quando for o caso, verificados os elementos materiais do iter criminis, é essa especial direcção de vontade do agente: prejudicar outra pessoa, que dita o completamento do crime.
O que impõe a conclusão, face a este elemento subjectivo, de que o tipo em causa visa proteger aqueles valores, mas (também) em razão do prejuízo que os atentados contra eles podem causar a interesses de particulares.
Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objectos imediatos da incriminação.”
Tendo presente tal entendimento, cremos que a relevância jurídico-criminal deste tipo de declarações documentadas em acta, escritura ou outro documento, não poderá ser aferida em abstracto, antes se impondo a sua apreciação casuística, sendo a resposta – positiva ou negativa – o resultado dos elementos probatórios carreados para os autos e apreciados à luz deste entendimento conjugado dos requisitos típicos do crime de falsificação.
Ora, revertendo ao caso concreto, afirma a acusação, depois dada por reproduzida no despacho de pronúncia, além do mais, que “O objectivo dos denunciados foi o não cumprimento da obrigação a que a sociedade estava obrigada, impossibilitando o credor, ora Assistente, de ver ressarcido o seu crédito na sua totalidade”.
E, como já se viu, as aludidas declaração e deliberação possibilitaram a imediata dissolução da sociedade, sem a necessária fase de liquidação que, de outro modo, seria legalmente imposta e onde, entre outras, seriam cumpridas as obrigações da pessoa colectiva, designadamente o pagamento de débitos – v. art. 152º n.º 3 b), do Cód. Soc. Comerciais.
Neste conspecto e na perspectiva antes exposta, cremos que não basta invocar – como se fez no despacho de arquivamento – a protecção legal concedida aos credores societários pelos arts. 1020º, do Cód. Civil, e 160º n.º 2, 162º, 163º e 164º, do Código das Sociedades Comerciais, que consagram a inoponibilidade da decisão de dissolução e encerramento da sociedade a terceiros - não constituindo aquela deliberação um meio de prova passível de ser usado para afastar a existência de eventuais créditos - e a responsabilização dos antigos sócios pelo passivo social não satisfeito ou acautelado.
Com efeito, para além de não haver coincidência entre o património societário e o dos sócios, sabendo-se que estes, muitas vezes, precisamente para obviarem a tal responsabilização, não possuem bens substanciais em nome próprio, acresce ainda o facto de tal responsabilização ter limites determinados, consoante se apura do disposto no art. 163º n.º 1, do já citado diploma legal.
Assim, tal declaração, necessária à dissolução da pessoa colectiva sem liquidação prévia, pode determinar (ou ter em vista) um prejuízo para terceiros que tenham a qualidade de credores da sociedade extinta e se vejam confrontados com subsequente partilha e dissipação dos haveres societários necessários e suficientes a dar cobertura ao seu crédito e a ausência/insuficiência do património dos sócios.
Cremos linear que, acrescendo a demonstração de que a vontade subjacente e determinante de tal declaração foi precisamente a de prejudicar terceiros, poderá então afirmar-se a verificação dos requisitos típicos da falsidade intelectual, já que tal acto material reveste, nesse particular, relevância jurídico-criminal bastante.
No entanto e como é bom de ver, a incriminação assim viabilizada também não se basta com a simples invocação da declaração inverídica inserta na deliberação social e determinante da dissolução da sociedade e da intenção de causar prejuízo a terceiros, tendo que ser preenchida por factos necessários e suficientes à indiciação (fase de instrução) ou prova (fase de julgamento) de que a sociedade possuía activos que permitiam a satisfação, total ou parcial, do crédito destes, activos esses entretanto partilhados e dissipados, o mesmo não ocorrendo relativamente ao património dos sócios.
Só assim poderá afirmar-se a existência de um nexo de causalidade entre a decisão dos sócios de dissolverem a sociedade e a declararem, de imediato, liquidada por ausência de passivo e/ou activo e a impossibilidade do terceiro ofendido obter a satisfação do seu crédito, aí se desenhando igualmente a relevância jurídico-criminal inerente à falsidade intelectual.
É que, se antes dessa actuação dos sócios, a sociedade já não tinha haveres [bens ou crédito] que permitissem obter o pagamento da dívida já não é possível extrair qualquer consequência de relevo criminal de tal declaração, visto o prejuízo do credor não lhe poder ser associado.
Ora, é precisamente este o cerne da falha que se detecta na decisão recorrida.
Com efeito, concluiu o tribunal a quo pela existência de declaração inverídica juridicamente relevante referindo que:
i) Os arguidos com tal inverdade (declaração de inexistência de activo ou passivo) lograram dissolver a sociedade que era, indubitavelmente, devedora da sociedade.
ii) Os arguidos pretenderam e conseguiram furtar-se ao pagamento da dívida, no caso da empresa por eles detida possuir activos suficientes para o pagamento da dívida, pois a inverdade constante do documento possibilitou aos arguidos a dissolução da sociedade.
Relativamente ao primeiro argumento cumpre recordar que a dissolução e extinção da pessoa colectiva e os eventuais benefícios daí decorrentes, só por si, não são ilegais ou sequer indevidos.
Referiu-se na decisão recorrida, a dado passo e a título exemplificativo, que os arguidos “não poderiam, portanto, deixar de prever e querer o benefício que advinha da dissolução, benefício esse traduzido, por exemplo, na aparência que, ao inscreverem o facto no registo, davam a terceiros de uma realidade diferente daquela existente; na extinção das suas funções e responsabilidades como gerente; a previsível influência sobre terceiros na reclamação de créditos; na extinção da responsabilidade criminal ou contra-ordenacional da sociedade arguida, responsabilidade criminal essa que poderia, por exemplo nos crimes fiscais, reverter para as suas próprias pessoas no pagamento de multas; nas impossibilidades que criavam que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, insolvência essa que poderia ter consequências directas para as suas pessoas, entre outras”.
Para além da constatação de que grande parte de tais circunstâncias não constitui qualquer vantagem indevida ou necessariamente dependente da dissolução da sociedade (v.g. a cessação das funções de gerência) e estão acauteladas na previsão de inoponibilidade da dissolução a terceiros, facilmente se conclui que nenhuma delas foi invocada ou minimamente configurada no RAI pelo que, tratando-se de situações hipotéticas sem o necessário lastro factual, escapam ao objecto da instrução.
No tocante ao argumento restante, salvo o devido respeito, a inferência académica é transportada para a realidade dos presentes autos sem esteio factual e na condicional “lograram furtar-se ao pagamento se a empresa por eles detida possuir activos suficientes …”, pois que não há quaisquer indícios probatórios da existência de haveres societários prévios à dissolução e tão-pouco que a declaração que a sustentou visasse precisamente a dissipação ou extravio desses bens, como evidencia a descrição da prova recolhida na decisão instrutória, cujo teor já supra foi transcrito. Aliás, a esse propósito, apenas se referiu a testemunha H…, técnica oficial de contas da sociedade em causa, afirmando que “na altura da dissolução a empresa já não laborava e que, quanto à existência de activo/passivo, foi-lhe dito pelo arguido B… que a sociedade não tinha quaisquer créditos nem débitos, tendo a mesma acreditado”.
Assim sendo, o acervo probatório disponível nos autos não sustenta minimamente a decisão de pronunciar os arguidos que assenta em presunções e abstracções jurídicas que excedem largamente as premissas que a matéria fáctica invocada e indiciariamente demonstrada admite, não podendo subsistir.
Nesta conformidade, admitindo-se, em tese, a possibilidade deste tipo de declarações inverídicas poder assumir relevância jurídico-criminal por referência ao crime de falsificação, na vertente da falsidade intelectual, resta concluir, ao contrário do que fez o tribunal recorrido, que os elementos probatórios disponíveis não permitem fundar um juízo persuasivo da verificação de tal requisito e da inerente culpabilidade dos arguidos B… e C…, impondo-se a revogação da decisão recorrida, com a consequente não pronúncia daqueles e confirmação do despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público, embora por razões diversas das que nele constam, abrangendo o arguido não recorrente por força do preceituado nos arts. 402º n.º 2 a) e 403º n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, revogar a decisão recorrida com a consequente não pronúncia dos arguidos B… e C…, este por força da estatuição dos arts. 402º n.º 2 a) e 403º n.º 3, do Cód. Proc. Penal, pela prática do imputado crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo art. 256º n.º 1 d), do Cód. Penal.
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Sem custas - arts. 513º, n.º 1 e 515º, n.º 1, als. a) e b), todos a contrario, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP]

Porto, 25 de Março de 2015
Maria Deolinda Dionísio – Relatora
Maria Dolores Silva e Sousa - Adjunta
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[1] Neste sentido Helena Moniz, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, 2000, tomo II, pág. 680 "bem jurídico do crime de falsificação de documentos é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita a prova documental".
[2] Neste sentido, Helena Moniz, op. cit., pág. 683.
[3] Entre outros ver Acórdão da Relação do Porto de 19 de Outubro de 2010, in www.dgsi.pt.
[4] Citemos o que é concretamente imputado ao arguido: O objetivo dos denunciados foi o não cumprimento da obrigação a qual a sociedade estava obrigada, impossibilitando o credor, ora Assistente de ver ressarcido o seu crédito na sua totalidade.
[5] Ac. TRP, datado de 12-04-2010, processo 4307/06.5TDPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt
[6] José Lebre de Freitas in “A Falsidade no Direito Probatório”, págs. 18 e 46, e Helena Moniz in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 676 e segs., Coimbra Editora, 1999.
[7] Em sentido contrário, Ac. RC, de 19/2/2014, Proc. n.º 651/11.8TATNV.C1, rel. Mª José Nogueira, in dgsi.pt.
[8] Cfr., Acs. da RC, de 26/3/2014, Proc. n.º 18/10.5TATND, rel. Mª Pilar Oliveira, e da RP, de 14/4/2010, Proc. n.º 5316/04.4TDPRT.P1, rel. Artur Oliveira, cuja argumentação seguimos de perto, ambos disponíveis in dgsi.pt.
[9] Sublinhado nosso.