Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9179/15.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE TRABALHO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RP201702079179/15.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º752, FLS.7-18)
Área Temática: .
Sumário: I - A aferição da competência em razão da matéria é feita pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir).
II - A competência para conhecer de uma ação que, embora se funde num acidente de trabalho, tem como causa de pedir o cumprimento defeituoso do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as partes, em virtude de eventual atuação negligente de médicos que prestam serviço à seguradora, cabe não às secções de trabalho, mas sim aos tribunais comuns.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 9179/15.6T8PRT.P1
Comarca do Porto – Maia – Instância Local – Secção Cível – J5
Apelação
Recorrente: B…
Recorrida: “C…, SA” (“D…, SA”)
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A autora B…, residente na Rua …, nº …, …, …, intentou a presente ação declarativa de condenação contra a ré “C…, SA”, com sede na Rua …, .., …, Porto, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de 9.762,01€, a título de danos patrimoniais, mais os que se apurarem em sede de execução de sentença e de 5.000,00€, a título de danos morais, mais o que se apurar em função da incapacidade que vier a ser estabelecida também em sede de execução de sentença.
Pretende ainda a condenação da ré no pagamento de um valor correspondente aos lucros cessantes vincendos, decorrentes do facto de a autora não poder exercer a sua atividade profissional em pleno, a calcular em sede de execução de sentença.
A ré, na contestação, perante a causa de pedir constante da petição inicial, veio alegar que para a presente ação são competentes as secções do trabalho, ocorrendo assim exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal determinativa da sua absolvição da instância.
A autora respondeu, sustentando a competência das secções cíveis.
Em sede de audiência prévia, a autora foi notificada para proceder ao aperfeiçoamento da sua petição inicial, o que cumpriu.
A ré apresentou nova contestação, em que voltou a excecionar a incompetência do tribunal em razão da matéria.
A autora respondeu uma vez mais, sustentando a competência das secções cíveis.
Foi depois proferido o seguinte despacho:
“(…)
Nos presentes autos é, desde logo, invocada pela Ré a excepção dilatória de Incompetência deste tribunal em razão da matéria.
A Constituição da República Portuguesa, no seu artº 211º, nº 1, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (art. 211.º, nº 1).
Entre os tribunais judiciais de primeira instância temos os tribunais de comarca, os quais se desdobram em secções de competência genérica (que ainda se podem subdividir em secções cíveis, criminais e de pequena criminalidade) e secções de competência especializada, tais como a de Trabalho – cfr. artº 79 a 81 da Lei 62/2013 de 26/08 (LOJ).
A competência das secções cíveis vem definida no artº 117º da LOJ e a competência das secções especializadas do Trabalho, vem definida no artº 126 da LOJ.
Assim, as secções do trabalho, enquanto especializadas, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Como se sabe, a aferição da competência material de um tribunal para julgar uma acção determina-se pela causa de pedir e pelo pedido invocados pelo Autor.
Como refere no Acórdão da Relação do Porto de 23/03/2015, in www.dgsi.pt:
“ …conforme ensina Manuel de Andrade, para se decidir qual a norma de competência aplicável “deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”. Depois de salientar que a competência do tribunal “se determina pelo pedido do Autor”, acrescenta que “é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.
Seguindo estes ensinamentos, ter-se-á então de perscrutar os termos em que a acção foi proposta e a causa de pedir que lhe serve de substrato fáctico.”
Ali se cita a posição de Manuel de Andrade, segundo a qual a competência em razão da matéria se determina pelo pedido do Autor (Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 91).
Este princípio tem encontrado acolhimento pacífico na jurisprudência. Lê-se no acórdão do STJ, de 18-11-2004, in www.dgsi.pt:
“A competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal do trabalho e do tribunal de competência genérica ou da vara, do juízo cível ou do juízo de pequena instância cível é essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.”
Será, portanto, imprescindível a averiguação da causa de pedir e do pedido invocados pelo Autor para depois se poder avaliar, por consulta das disposições determinativas da competência dos tribunais cíveis ou de trabalho em quais das competências se enquadra a situação em apreço.
A competência cível dos tribunais do trabalho encontra-se, como se disse, fixada no artigo 126.º da LOJ.
No artº 126º, nº 1, c) compete às secções especializadas do trabalho conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Sustenta a Ré que a situação invocada pela Autora cai na previsão daquela norma.
Já a Autora afirma que não, pois, a causa de pedir que sustenta a acção não é o acidente de trabalho que a Autora sofreu em 2 de Abril de 2013 mas o cumprimento defeituoso do contrato de seguro de acidentes de trabalho por conta própria celebrado entre a Autora e a Ré.
Vejamos então, a factualidade invocada pela Autora e o pedido formulado por esta.
Se analisarmos a petição inicial apresentada pela Autora, mesmo já depois de aperfeiçoada, vemos que do artº 1º ao 7º relata como ocorreu o que ela própria classifica como acidente de trabalho, ocorrido em 2 de Abril de 2013 e as lesões que sofreu em consequência directa do mesmo, a saber: “ traumatismo torácico “, tendo recorrido aos serviços da Ré no dia 3 de Abril de 2013, tendo sido medicada pelo ortopedista do departamento da Ré, Dr. E… com anti-inflamatórios e tendo tido alta médica.
Mais alega que, no dia seguinte o seu estado de saúde piorou e ela voltou aos serviços da Ré, tendo sido assistida pela Dra. F… que “lhe colocou uma banda torácica e substituiu a medicação prescrita pelo Dr. E… por analgésicos mais potentes e lhe atribuiu ITA por mais seis dias.”
Em 9 de Abril voltou à consulta da Dra. F… “ que lhe estabeleceu um quadro clínico semelhante e lhe prorrogou a ITA por mais sete dias”.
Em 15/04/2013 retornou à consulta de ortopedia, novamente com o Dr. E… “ a quem relatou ter piorado da parte torácica e que sentia visão turva, insónias, tonturas e muito frio” (artº 11).
Na sequência dos sintomas relatados o médico pediu TAC torácia (artº 12).
Na avaliação que o médico fez da TAC detectou que “havia suspeita de fractura do sexto e sétimo arcos costais direitos, tendo-lhe aumentado a dose de opiáceo antes receitada”, estabeleceu ITA até 8/05/2013 e, atentas as queixas que a Autora mantinha, enviou-a para a consulta de pneumonologia (artº 13 a 15).
Em 30/04/2013 o pneumologista Prof G… detectou ainda na TAC uma lesão da pleura e, para obviar às dores que a Autora sentia prescreveu-lhe medicação anti-inflamatória “potente. (artº 16 e 17).
Em 8/05/2013, voltou à consulta do Dr. E… e queixou-se da persistência dos sintomas de ”visão turva, insónias, tonturas e muito frio” e, mediante a própria insistência da Autora no sentido de lhe ser alterada a medicação o médico fê-lo alterando-a no sentido descrito no artº 19º da PI e prorrogando-lhe a ITA por 30 dias.
No artº 20º da PI a Autora alega que os sintomas que vinha sentindo “visão turva, insónias, tonturas e muito frio” eram efeitos secundários da medicação.
E, pese embora afirme no artº 19º que o ortopedista, mediante a persistência das queixas, lhe alterou a medicação e lhe prorrogou por 30 dias a ITA no artº 20º diz que ele não tomou um das duas atitudes adequadas: ou alterar a medicação ou manter a medicação e recomendar repouso absoluto e por isso, devido aos efeitos secundários da medicação, nessa mesma noite 8/05/2013, desmaiou e “quando veio a si estava caída no chão com dores violentas na anca direita e coluna lombar, efeitos esses que passaram quando a Autora gradualmente suspendeu a toma da medicação ( artº 23).
Ora, aqui chegados temos que é a própria Autora quem alega que o desmaio (e, acrescentamos nós, por conseguinte, a queda consequente) foi um efeito secundário da medicação que estava a tomar para cura das lesões sofridas em consequência directa do acidente de trabalho, a saber: ““ traumatismo torácico “ e a “ lesão na pleura”.
Assim, até aqui não existe qualquer dúvida de que as lesões que a Autora alega, inclusive as originadas pelo desmaio são consequência do acidente de trabalho, pois, não é alegado qualquer facto susceptível de interromper aquele nexo causal, sendo por demais conhecido e previsível o facto de a toma de medicação, ainda para mais,” potente” como alega a Autora poder causar efeitos secundários, sendo um dos mais normais, tonturas ou desmaios.
Ora, a Autora, como afirma no artº 41º, em consequência deste estado de saúde esteve com baixa dada pelo pneumologista até 8/06/2013 (artº 41) e é ela quem alega no artº 44 que a lesão que lhe foi detectada na anca em 4/06/2013 pelo Dr. H… “sacroleíte direita traumática grave“ foi consequência direta da queda provocada pelo desmaio”.
Aliás, a Autora continua no artº 55º e 56º a alegar que por manter “queixas torácicas“ e “por estar polimedicada há cerca de dois meses“ um dos médicos da Ré, o Prof. G… entendeu por bem que fosse avaliada em medicina interna e veio a ser-lhe sempre prorrogada a ITA até 24/07/2013 – cfr. artº 58.
Assim, todas as lesões sofridas pela Autora – o traumatismo torácico e a lesão da pleura directamente e o desmaio com a consequente queda, por via dos efeitos secundários da medicação ministrada para o tratamento daquelas lesões, mantêm nexo de causalidade adequada com a lesão sofrida por esta em 2 de Abril de 2013 – causalidade indirecta -, sem que tenha existido qualquer interrupção desse nexo causal - ver a propósito desta matéria o Acórdão da Relação do Porto de 6/02/2014, in www.dgsi.pt., onde, de forma exaustiva, se analisa a questão do nexo de causalidade adequada.
Ora, assim sendo é manifesto que a competência para julgar estes factos pertence aos tribunais de trabalho.
É certo que a Autora quando convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial vem alegar que a causa de pedir nesta acção não é o acidente de trabalho mas sim o cumprimento defeituoso do contrato de seguro por parte da Ré.
Neste contexto, estaríamos situados no âmbito da responsabilidade contratual (cf., por ex., Ac STJ de 15/12/2011, proc. nº 209/06.3TVPRT, em www dgsi.pt), pelo que, em tese geral, caberia à autora a alegação e prova dos seguintes elementos: (i) a existência de vínculo contratual; (ii) o incumprimento ou cumprimento defeituoso do médico; (iii) a verificação dos danos; (iv) o nexo de causalidade entre a violação das legis artis e os danos.
E, uma vez que a Ré Seguradora se terá servido de terceiros (auxiliares) para realizar a prestação a que estava adstrita, por força do contrato de seguro, teria directa aplicação o regime do art. 800, nº1 do CC sobre a responsabilidade do devedor pelos “actos dos representantes legais ou auxiliares”.
Esta norma, inserida no âmbito da responsabilidade obrigacional, postula o princípio geral da responsabilidade do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, uma vez que o risco resultante da actuação dos auxiliares do cumprimento é atribuído ao próprio devedor.
A responsabilidade não pressupõe qualquer dependência ou subordinação do auxiliar em relação ao devedor (como na hipótese do art. 500 do CC), verificando-se também quando o auxiliar é independente e autónomo, já que a razão de ser é a mesma, pois o critério relevante, para o efeito, é de que se trate de pessoas de quem o devedor se serve para o cumprimento da obrigação (cf., por ex., Vaz Serra “A responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes ou dos substitutos”, BMJ 72, pág.274 e 277).
Discute-se se a responsabilidade (objectiva) do devedor pressupõe ou não a imputação do facto danoso ao auxiliar, ou seja, a culpa deste.
Segundo determinado entendimento, o devedor só responde, nos termos do art. 800, nº1 do CC, se houver culpa do auxiliar, pois que a responsabilidade (objectiva) requer uma imputação do facto ao auxiliar, tal como na responsabilidade do comitente (cf., por ex., Antunes Varela, Das Obrigações, II, pág.101).
Noutra perspectiva, a responsabilidade do devedor não depende de prévia imputação do facto ao auxiliar, porquanto “projecta-se o comportamento do auxiliar na pessoa do devedor, isto é, este será responsável logo que a actuação dos auxiliares, pensada na pessoa do devedor, preencha uma previsão de responsabilidade “ (cf. Carneiro da Frada, loc cit., pág.210; Maria Trigo, Responsabilidade Civil Delitual Por Facto de Terceiro, pág. 240 e segs.). É que a parte final do art. 800 nº1 (“ como se tais actos fossem praticados pelo devedor“) ficciona a substituição do autor do facto pela pessoa do devedor, possibilitando “um alargamento da zona de responsabilidade e da tutela do lesado”.
De todo o modo, quer numa quer noutra tese, a culpa dos auxiliares estará presumida (art. 799 do CC), por incumbir ao devedor a prova da falta da culpa dos auxiliares (cf. Vaz Serra, loc.cit., pág.282).
No entanto, desde logo, não releva, como se disse, a qualificação jurídica que a Autora quer dá à factualidade que alega e à relação desta com o pedido que formula, competindo antes ao tribunal cuidar de fazer a correcta subsunção jurídica daqueles às norma jurídicas a aplicar.
Por outro lado, no âmbito daquela causa de pedir cumprimento defeituoso do contrato de seguro - incumbe ao lesado a alegação dos demais pressupostos da responsabilidade civil – facto (acção ou omissão) ilícito, dano e nexo de causalidade entre o facto ilícito (no caso, que traduza erro médico ou a violação das legis artis) e os danos concretos peticionados.
Ora, analisada a petição inicial, mesmo a aperfeiçoada, vemos que a Autora se limita a concluir que a causa de pedir é o cumprimento defeituoso do contrato de seguro por parte da Ré mas não alega qualquer factualidade que a possa integrar, já que a causa de pedir é aferida em função da factualidade alegada em conjugação com o pedido formulado pela Autora e, como vimos, toda a factualidade alegada pela Autora até aqui – ao artº 44 da petição inicial - mantém nexo de causalidade com as lesões resultantes do acidente de trabalho e, por isso, assim têm que ser consideradas, sendo inócuo o alegado no artº 45º da petição inicial.
Não se olvida que a Autora no artº 53º afirma que o desmaio e a queda se ficaram a dever à “atitude omissiva e negligente do Dr. E…”, mas como se viu supra esta, para além de não passar de uma mera conclusão, é contrariada pela própria factualidade alegada pela Autora no artº 19º e por todo o relato anterior onde a Autora afirma que a medicação lhe foi sendo prescrita por três médicos, Dr. I…, Dra. F… e Prof. G… e foi sendo aumentada devido às dores que as lesões (traumatismo torácico e lesão da pleura) lhe causavam e que, foi o próprio Dr. E… quem, a seu pedido, lhe alterou essa medicação, tomando assim, uma das atitudes médicas que a própria Autora considera serem as correctas como refere nos artº 20º e 53º da PI.
Assim, é completamente ininteligível esta alegação de “negligência” por parte deste ortopedista.
Também a conclusão constante do artº 59º da PI de que a Autora, em 12/6/2013 “apresentava melhoras ligeiras (relativamente à anca) “por só ter sido tratada e medicada num tempo muito posterior à queda” não passa de mera conclusão, sem que seja indicada factualidade concreta que, a provar-se, possa permitir concluir daquela forma.
Muito menos a referência feita no artº 78º da PI a “ excesso de medicação e outras coisas”…
A própria Autora alega que só veio a ter alta clinica por parte dos médicos da Ré em 24/07/2013 – fls. 56, doc 38, artº 89º da PI - e afirma que lhe foi dada alta “ sem ter condições para exercer cabalmente a sua profissão” e refere as consequências que dai lhe advieram referidas no artº 90 da PI.
Também aqui, mais uma vez a alegação é conclusiva e feita de forma vaga, confusa e por remissão, por si só inconclusiva, para relatórios médicos, pelo que sempre careceria da concretização e aperfeiçoamento que a Autora foi convidada a fazer e não fez de forma conveniente.
Efectivamente, no convite ao aperfeiçoamento foi referido que:
“…a Autora nada de concreto alega que possa ser imputado ao facto de ter tido alta naquelas condições, limitando-se a concluir no artº 52º da PI “ ter sido vitima de negligência e de recusa de tratamento médico até então” sem a ocorrência dos quais “ já estaria curada há muito tempo”. Mas curada de que lesões? E quais os factos em que suporta tal conclusão? Quando é que entende estaria curada numa situação normal?
Ora, a Autora optou por não acatar o convite tal como lhe foi efectuado.
Todavia, ainda que fosse possível extrair do alegado pela Autora tal conclusão, ou seja, que os médicos da Ré lhe deram alta clínica sem que a Autora se encontrasse “totalmente curada e capaz para o exercício cabal das suas funções“, o que é certo é que tal facto, tal como alegado e por si só, em nosso entender, também não interrompe o nexo causal com as lesões provocadas pelo acidente de trabalho, pois, por um lado, como se disse, a Autora não alega sequer factualidade susceptível de integrar a violação das legis artis por parte do médico e, por outro, continua a pedir o ressarcimento de danos que lhe foram causados pelas lesões que já tinha e que alega persistiam e não danos concretos que as consequências de tal acto ilícito, “violação das legis artis” ao dar-lhe alta sem estar “curada” (e ainda que se entenda que este facto, integrando erro médico, seria interruptivo do nexo causal e que as consequências do mesmo já não devem ser entendidas como derivadas do acidente de trabalho mas antes como incumprimento defeituoso do contrato de seguro por parte da Ré) lhe causaram. Ora, apesar de convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial, também nesta parte, a Autora não veio alegar qualquer dano susceptível de ser causado por esta “alta antecipada”, limitando-se a alegar no artº 90 que tal facto “teve impacto negativo na Autora em termos psicológicos, uma vez que, efectivamente, não tinha forças para fazer o trabalho como antes, nomeadamente os serviços de urgência e permanência” para depois vir peticionar os danos salariais que alegadamente sofreu pelo facto de, pese embora a alta, ter continuado a não ter efectuado urgências e demais serviços mesmo a partir de 24/07/2013 - cfr. a título de exemplo artº 107 a 118º da PI.
É que, se a Autora continuou a não estar em condições físicas para trabalhar não foi devido ao facto de lhe ter sido dada alta pelos serviços médicos da Ré em 24/07/2013 mas sim porque, alegadamente, se mantinham as sequelas e limitações resultantes das lesões supra referidas e que havia sofrido em consequência do acidente de viação.
Coisa diferente seria, se a Autora viesse alegar que, devido ao facto de ter tido alta pelos serviços da Ré em 24/07/2013 foi trabalhar naquelas condições e, por isso, na realização dessas tarefas despendeu um esforço muito maior ou sofreu alguma lesão por causa de estar a trabalhar naquelas condições de saúde que, se não fosse ter tido alta, não teria sofrido.
Acontece que a Autora, apesar de alegar o que alega no artº 90º da PI vem depois, contraditoriamente peticionar os danos que teve por continuar a não trabalhar ou seja, danos resultantes do acidente de trabalho.
Para além disso, continuou a peticionar nesta acção de forma conjunta e indiscriminada todos os danos patrimoniais que alegadamente sofreu desde a data do acidente de trabalho, desde 2 de Abril de 2013 e os não patrimoniais causados por toda a evolução da situação invocada até à presente data e os futuros, ou seja, os danos alegadamente decorrentes do acidente de trabalho.
Assim, mesmo que se considerasse existente uma causa de pedir autónoma (cumprimento defeituoso do contrato de seguro), sempre o pedido nela fundado seria manifestamente improcedente por falta de alegação suficiente dos pressupostos da responsabilidade contratual da Ré, designadamente, o facto ilícito, o dano resultante desse facto ilícito e o nexo causal entre o facto ilícito e esse dano concreto.
Fica prejudicado o conhecimento das demais excepções invocadas pela Ré.
Pelo exposto, julgo este Tribunal incompetente em razão da matéria para julgar a presente acção e julgo competente para tal a secção do Trabalho da Maia, pelo que, em consequência, se absolve a Ré da instância – artº 99º, nº 1 do CPC – sem prejuízo do disposto no artº 99º, nº 2 do CPC.
(…)”
Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) Não resulta da petição inicial aperfeiçoada que a causa de pedir e pedido invocados pela A. estejam fora da competência material da secção cível da Maia.
b) Da factualidade constante da PI e analisada pelo tribunal a quo, designadamente os arts. 1º a 7º e 12º a 20º, decorre, ao contrário do decidido, que os factos alegados e os danos reclamados resultam de duas situações estanques: o acidente de trabalho em si, cuja referência é obrigatória para situar o desenrolar dos acontecimentos e, fundamento da causa de pedir e do pedido, a acção negligente dos médicos.
c) Andou mal o digníssimo tribunal a quo nesta sua apreciação e conclusão, dado que é patente uma fragmentação intencional do plasmado na petição pela A. aqui recorrente.
d) Os factos constantes dos arts. 1º a 7º da petição inicial aperfeiçoada são, efectivamente, um relato circunstanciado do acidente de trabalho de que a A., aqui recorrente, foi vítima, continuando esse relato nos arts. imediatamente seguintes da referida petição, designadamente de 8º a 18º, sendo que nestes o seu conteúdo diz respeito à assistência prestada pelos médicos ao serviço da Ré.
e) Andou mal o tribunal a quo nesta apreciação, pois ela, sendo evidentemente conclusiva, não se fundamenta na realidade do que é pedido pela A., pois ignora, seguramente por erro, a fissura existente no mencionado relato dos artigos da petição supra referidos.
f) A Meritíssima Juiz a quo, na análise dos artigos 1º e 20º da PI, mal, releva como pedido da A. os próprios efeitos secundários da medicação e, em consequência, o que veio a resultar deles, e releva ainda o facto de no art. 20º a A. dizer que o médico não fez o que devia, ou seja, alterar a medicação ou manter a medicação e recomendar repouso absoluto, como contradição para sustentar a sua tese de que tudo isto confirma a continuidade dos efeitos do acidente de trabalho, o que, de todo, não corresponde ao efectivo pedido do A., uma vez que é precisamente daqui que resulta a quebra do nexo causal entre as lesões decorrentes do acidente de trabalho e as lesões que vieram a resultar, nesse mesmo dia, da queda provocada pelo desmaio.
g) E aqui reside toda a diferença da sustentabilidade da decisão do tribunal a quo, pois ao ignorar o alegado no supra transcrito art. 22º da PI, não encontrou o nexo de causalidade que fundamenta a causa de pedir e o pedido, ou seja, o pressuposto da violação do contrato de seguro, o mesmo é dizer, o não cumprimento, por parte do médico, enquanto auxiliar para realização da prestação a que estava adstrita a Ré.
h) Não é, assim, sustentável, ao contrário do que pretende o tribunal a quo, não existir um nexo de causalidade próprio e próximo para as lesões decorrentes da queda da A. provocada pelo desmaio, pois é manifesto o lapso de análise do tribunal a quo ao manter a causalidade destas lesões como decorrentes – indirectamente – do acidente de trabalho, quando elas têm uma causa própria – a não antecipação, por parte do médico, dos eventuais efeitos da medicação e a não relevância dada às queixas insistentemente referidas pela A. na sua consulta.
i) Ao contrário do que é defendido pelo tribunal a quo, não é relevante que a medicação tenha sido prescrita por mais do que um médico, mas sim o facto de o acompanhamento da A. ser feito na consulta do Dr. E… e de ter sido sempre ele a que a A. se queixou dos sintomas que vinha tendo.
j) Esquece, contudo, o tribunal a quo que tal situação não tem espaço temporal que justifique essa conclusão, pois, é o mesmo dia – 08.05.2013 – das duas ocorrências (diga-se a alteração da medicação e o desmaio), o que, necessariamente, teria e tem que levar a uma conclusão diferente: a alteração da medicação – que já deveria ter acontecido se o médico fosse diligente – não foi a tempo de evitar o desmaio (decorrente dos sintomas existentes), a queda e as consequentes lesões.
k) Apresenta-se assim, ao contrário do preconizado pelo tribunal a quo, um facto ilícito – a omissão do médico – um dano – as lesões na anca e na coluna lombar – e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano (concretamente peticionado pela A.).
l) Aqui está, em contraposição ao sustentado pelo tribunal a quo na sua decisão, a factualidade que fundamenta a causa de pedir, consubstanciada e reforçada pelo que é referido no art. 23º da PI, ou seja, o facto de, por iniciativa própria, a A. aqui recorrente ter suspendido de forma gradual a medicação que levou a que os sintomas de que se queixava tivessem desaparecido.
m) A acrescentar, como relevante na causa de pedir, o que também o tribunal a quo não valorou, temos o próprio comportamento de desdém dos médicos relativamente à A., expressos, designadamente, nos arts. 26º, 27º, 29º, 30º, 32º, 34º, 36º, 38º, 40º, 62º, 64º, 65º, 66º, 71º, 78º, 86º e 88º da PI.
n) Há uma completa autonomia das lesões decorrentes da queda provocada pelo desmaio, também ao contrário do proferido pelo tribunal a quo, temos o alegado no art. 43º, 44º e 45º da PI, não sendo, de todo, inócuo o aqui referido, porque sustentado em aturados exames médicos, conforme decorre do alegado em 46º, 47º e 48º, comprovado ainda por uma afirmação do Dr. L… (médico ao serviço da Ré), constante do art. 86º da PI: “(…) pois é B…, isto que te aconteceu é uma catadupa de coincidências que nada têm a ver com o sinistro. No máximo, este sinistro é um mês para recuperar e tu já vais em 4 meses e como tal vais ter alta!”.
o) Estamos perante uma efectiva responsabilidade decorrente do cumprimento defeituoso do contrato de seguro por parte da Ré, por intermédio dos seus auxiliares (médicos), pelo que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, competente para o seu julgamento é a secção cível da Instância Local da Maia e não a secção do trabalho.
p) Ao confirmar que o pedido e a causa de pedir plasmados na PI se situam no âmbito da responsabilidade contratual temos, ainda, e ao contrário do referido na douta sentença recorrida, o referido nos arts. 49º, 50º, 51º, 52º, 53º e 54º, da referida PI, bem como, junto com a mesma, cópia do contrato de seguro celebrado entre a A. e a Ré.
q) A referência, pelo tribunal a quo na sua douta sentença, a alegações conclusivas e feitas de forma vaga, confusa e por remissão a relatórios médicos, feita pela A. na PI, não é de molde a infirmar elementos materiais que efectivamente a A., agora recorrente carreou para o processo, elementos estes que, obrigatória e necessariamente têm de ser objectivados com a prova produzida em julgamento.
r) A alegação da A. nos arts. 89º e 90º da PI não pode ser considerada meramente conclusiva, uma vez que é um facto e, para além disso a confirmação da continuidade da acção lesiva dos médicos ao serviço da Ré, em relação à A.
s) No que respeita ao pedido de ressarcimento dos danos, efetuado pela A. na sua PI, eles são exclusivamente os que decorrem das lesões provocadas pela queda em 08.05.2013, conforme se retira do alegado nos arts. 103º, 104º, 105º, 106º, 107º, 108º, 109º, 110º, 111º, 112º, 113º, 114º, 115º, 116º, 117º, 118º, 122º, 123º, 125º, 126º, 127º, 128º, 129º, 130º, 131º, 132º, 133º, 134º, 135º, 136º, 137º, 138º, 139º, 140º e 145º da PI, não sendo, naturalmente, reclamadas as despesas e remunerações liquidadas pela Ré até à atribuição da alta.
t) Violou assim o tribunal a quo, com base na interpretação errada dos mesmos, o disposto nos arts. 117º e 126º da LOJ, bem como o disposto no art. 99º, nº 1 do CPC.
Pretende assim a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que atribua o julgamento da presente ação à secção cível da instância local da Maia.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se a competência para conhecer da presente ação cabe à seção cível ou à secção de trabalho.
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É o seguinte o texto da petição inicial aperfeiçoada apresentada pela autora, nos segmentos que consideramos mais relevantes para o conhecimento do presente recurso:
1. Em 2 de Abril de 2013, a A., no exercício da sua atividade profissional, sofreu um acidente, conforme melhor consta da Participação de Acidente e Declaração de Sinistro, cujas cópias se juntam e cujos respetivos teores se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.
2. Assim, depois de ter estado toda a manhã a trabalhar no seu consultório, sito no …, a A. deslocou-se para o seu domicílio, em …, para almoçar.
3. Ao sair da sua viatura, depois de a ter estacionado, a A. apoiou mal o seu pé esquerdo no pavimento, desequilibrando-se.
4. Para evitar a queda de costas, a A. fez força no tronco para a frente, acabando por embater com a grade costal do lado direito na viatura, o que lhe provocou dor violenta e dificuldade em respirar.
5. Entretanto, a dor diminuiu e a A. foi trabalhar, da parte da tarde, para a Unidade de Saúde M….
6. Contudo, nessa noite as dores agravaram-se e a A. dirigiu-se, no dia 3 de Abril, ao Hospital J…, onde, já no âmbito do departamento da C…, foi assistida pelo ortopedista Dr. E….
7. Desta situação considerada acidente de trabalho, resultou traumatismo torácico, tendo sido medicada pelo ortopedista supra referido com anti-inflamatório.
8. Não obstante, foi-lhe dada alta …
9. No dia seguinte, o estado de saúde da A. piorou acentuadamente, tendo a mesma voltado ao serviço de ortopedia do Hospital J…, sendo, desta feita, assistida pela Dra. F… que, para além de lhe atribuir ITA por um período de seis dias, lhe colocou uma banda torácica e substituiu a medicação prescrita pelo Dr. E…, por analgésicos mais potentes…
10. A A., em 09.04.2013, voltou novamente à consulta da Dra. F…, que estabeleceu um quadro clínico semelhante, tendo-lhe prorrogado a ITA por mais sete dias…
11. Em 15.4.2013 retornou à consulta de ortopedia, desta vez, novamente com o Dr. E…, a quem, relatou que tinha piorado da parte torácica e que sentia visão turva, insónias, tonturas e muito frio.
12. Na sequência do relatado supra, apenas foi pedida pelo médico TAC torácica, não tendo o mesmo dado qualquer relevância aos sintomas relatados pela A.
13. Para avaliação da TAC solicitada em 17.4.2013 regressou à consulta de ortopedia, tendo o Dr. E… referido que havia suspeita de fratura do sexto e sétimo arcos costais direitos, tendo-lhe aumentado a dose de opiáceo antes receitado, a que associou um psicofármaco…
14. Mais, estabeleceu ITA até 8.05.2013…
15. Ainda na mesma consulta apresentou a A. as mesmas queixas da consulta de 15.4.2013, tendo referido que não conseguia fazer a rotação do tórax na posição de deitada, ao que o Dr. E… lhe retorquiu que não sabia mais o que lhe fazer (!), apenas acrescentando que a iria mandar à consulta de pneumologia.
16. Em 30.04.2013 a A. compareceu na consulta de pneumologia do Prof. G… que, além do traumatismo dos arcos costais direitos supra referidos, detetou ainda nas imagens da mesma TAC, apreciada pelo Dr. E…, lesão da pleura, o que explicava as queixas referidas pela A.
17. Para obviar as dores de que se queixava a A., o Dr. G… prescreveu-lhe, de imediato, medicação anti-inflamatória potente…
18. A A., em 8.05.2013, voltou à consulta de ortopedia do Dr. E…, onde voltou a queixar-se dos sintomas referidos na consulta de 15.04.2013, nomeadamente visão turva, insónias, tonturas e muito frio.
19. Tais queixas não foram valorizadas pelo Dr. E…, não obstante a insistência da A. no sentido de lhe ser alterada a medicação, o que o Dr. E… fez contrariado, tendo suspendido a toma de Clonix e Valium 10 e aumentado o medicamento Zaldiar até 8 comprimidos por dia, para além de lhe ter estabelecido ITA por 30 dias…
20. Perante as queixas repetidas da A. relativamente aos efeitos que a medicação lhe estava a operar, o Dr. E… não tomou a atitude que se deve esperar de um profissional médio diligente, muito menos de um médico especialista, pois era evidente que estavam a ocorrer eventuais efeitos secundários da medicação, o que o deveria ter levado a tomar duas ou, pelo menos, uma de duas atitudes: alterar a medicação e/ou manter a medicação – porque necessária para as fortes dores que a A. sentia – mas prescrever repouso absoluto.
21. Desta forma, seguramente, teria sido evitado o que veio a acontecer, ou seja,
22. Na noite desse dia, 8.05.2013, a A., na altura sozinha em casa, desmaiou e, quando veio a si, estava caída no chão com dores violentas na anca direita e coluna lombar, tendo ficado com grandes dificuldades em andar.
23. Dois dias depois, ou seja, em 10.05.2013, por agravamento da visão turva, frio, tonturas e insónias, a A. viu-se forçada a suspender de forma gradual a medicação opiácea e esses sintomas desapareceram. Contudo, as dores na anca e na coluna tornaram-se insuportáveis para a A.
24. Em 15.5.2013 a A. teve consulta de pneumologia com o Prof. G… e, nessa altura, apresentava muita dificuldade em andar e quando o médico observou os hematomas da anca e da coluna, por suspeitar da existência de fraturas, pediu de imediato TAC dessas zonas, aconselhando ainda a A. a manter a banda torácica até haver novo diagnóstico…
25. Por indicação do Prof. G…, o A. voltou à consulta de ortopedia do Dr. E…, onde expôs o sucedido supra exposto…
26. O Dr. E…, na ocasião, disse à A. que não a consultava porque não sabia se a queda ocorrida deveria ser interpretada como acidente pessoal ou como consequência da medicação por acidente de trabalho. Nesse sentido disse à A. que a iria enviar à consulta do Dr. K….
27. Temos aqui uma continuidade e, digamos que uma confirmação, da atitude negligente do Dr. E…, pois que, não obstante agora admitir que a queda pudesse ser causa da medicação, não apresenta, contudo, uma posição concreta e definida quanto à situação clínica da A. o que é, de todo, inaceitável num profissional de saúde.
28. A A. aceitou a decisão do Dr. E… de a enviar para a consulta do Dr. K…, mas pediu-lhe ajuda para o quadro grave que apresentava, uma vez que já só se deslocava a arrastar os pés e temia ter um hematoma ou outro tipo de lesão ao nível da anca, mais precisamente da articulação sacroilíaca.
29. A esta solicitação da A. o Dr. E… levantou-se em direção à saída do seu gabinete e, dirigindo-se à A. em tom agressivo, disse: “Já está medicada, não está? Olhe, ponha gelo!”
30. Não se bastando com este comportamento pouco profissional e eticamente censurável, ainda teve o pejo e a falta de sensibilidade, perante o estado de saúde da A. e as queixas apresentadas pela mesma, de não ordenar expressamente aos administrativos a marcação urgente de consulta com o Dr. K…, uma vez que aqueles marcaram a dita consulta só para daí a uma semana!
31. Chegada à consulta de ortopedia do Dr. K…, em 28.05.2013, este perguntou-lhe porque é que a A. estava ali. Em resposta a A. expôs toda a sua situação clínica.
32. De imediato, em tom irritado, o Dr. K…, elevando a voz, disse: “Isto não tem jeito nenhum!”. Atónita, a A. perguntou porquê, ao que o Dr. K… respondeu: “Não sei porque é que o Dr. E… não tratou isto!” e não observou a A., enviando-a novamente para a consulta do Dr. E….
(…)
42. (…) a A., porque o seu estado de saúde se agravava a cada dia que passava, decidiu marcar consulta de ortopedia com o Dr. H…, médico especialista de ortopedia e traumatologia e diretor clínico do Hospital J….
43. Foi atendida na consulta do Dr. H… em 4.06.2013, que lhe diagnosticou sacroileíte direita traumática grave – confirmando as suspeitas da própria A. (…), tendo-lhe prescrito tratamento injetável com Dynastat durante vários dias, de doze em doze horas acompanhado de Turox 60 mg, também de doze em doze horas. Ainda lhe mandou retirar a banda torácica e aconselhou repouso absoluto…
44. Esta lesão, diagnosticada pelo Dr. H…, foi consequência direta da queda provocada pelo desmaio e não consequência do acidente de trabalho.
45. Isto porque, as queixas decorrentes do traumatismo ocorrido em 02.04.2013 (acidente de trabalho) eram ao nível do tórax, enquanto, após a dita queda provocada pelo desmaio, as queixas passaram a ser ao nível da anca e bacia.
(…)
48. (…) a sacroileíte diagnosticada pelo Dr. H… resultou da queda provocada pelo desmaio e não do acidente de trabalho.
49. Assim, temos uma situação clínica decorrente do acidente de trabalho, onde foram diagnosticadas e tratadas à A. lesões da pleura e do sexto e sétimo arcos costais direitos e outra situação clínica decorrente da queda provocada pelo desmaio, com lesões ao nível da coluna lombar e da bacia e onde foi diagnosticada à A. sacroileíte.
50. Na primeira das situações estamos efetivamente no domínio da responsabilidade pelo risco, assumida pela Ré, tendo esta cumprido as obrigações decorrentes do artigo 2º, com referência ao artigo 15º, das Condições Gerais do Contrato de Acidentes de Trabalho para trabalhadores independentes celebrado entre a A. e a Ré…
51. Já no que respeita à segunda situação referida, a consequência resulta do cumprimento defeituoso do referido contrato por parte da Ré, através dos atos (médicos) dos seus representantes, pelo que, em consonância com o disposto no nº 1 do artigo 800º do C. Civil, a Ré deve responder por estes factos.
52. A A., com a presente ação, pretende ver declarados os seus direitos decorrentes deste cumprimento defeituoso do contrato por parte da Ré e que se consubstancia, essencialmente, no comportamento negligente dos seus representantes (médicos) que trataram a A.
53. Não estamos, por isso, a reclamar das consequências diretas do acidente de trabalho nem, sequer, do eventual mau acompanhamento médico das lesões provocadas pelo mesmo, mas, sim, dum incumprimento culposo do próprio contrato, manifestado, essencialmente, na atitude omissiva e negligente do Dr. E… (…)
54. Para além disso, os representantes (médicos) da A., eles próprios, não relevaram as novas queixas apresentadas pela A. depois da queda, uma vez que as lesões provocadas por esta só vieram a ser diagnosticadas e tratadas pelo Dr. H… … médico que a A. tomou a iniciativa de consultar e que não fazia parte do quadro técnico da Ré.
(…)
103. Em consequência do deficiente acompanhamento médico a que foi sujeita, nomeadamente pelo Dr. E…, pelo Dr. K… e pelo Prof. L… e ainda pela continuidade do seu débil estado de saúde, e que se prolonga até hoje, a A. teve imensas despesas e prejuízos, designadamente perda de vencimento, deslocações, medicação, exames médicos, calçado ortopédico, bem como perda de subsídio proveniente da ITA, de 24.07.2013 a 1.9.2013.
(…)
*
Passemos à apreciação jurídica.
O art. 40º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) diz-nos que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», redação praticamente idêntica à que consta do art. 64º do Cód. do Proc. Civil.[1]
Por seu turno, o art. 211º, nº 1 da Constituição da República diz-nos que «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
E o art. 65º do Cód. do Proc. Civil estatui que «as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada».
Nestas normas, enuncia-se o critério geral de orientação para a solução do problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria. E o critério pode estruturar-se do seguinte modo: todas as causas que não forem pela lei atribuídas a algum tribunal ou secção de competência especializada, são da competência do tribunal comum.
O critério da atribuição da competência material funciona, então, por duas vias: uma primeira, por determinação direta, em que se vai ver, de acordo com as leis de organização judiciária, qual a espécie ou espécies de ações que podem ser submetidas ao conhecimento de um dado tribunal ou secção de competência especializada; a outra, por exclusão de partes - verificando-se que a causa de que em concreto se trata não cabe na competência de nenhum tribunal ou secção de competência especializada, conclui-se que para ela é competente o tribunal comum.[2]
A competência especializada das Secções do Trabalho encontra-se definida no art. 126º da LOSJ, onde se estabelece no seu nº 1, al. c) que «compete às secções de trabalho conhecer, em matéria cível (…) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.»
A aferição da competência em razão da matéria é feita pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir) – cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos n.ºs 21/10, 25/10 e 29/10, proferidos, respetivamente, em 25.11.2010, 29.3.2011 e 5.5.2011, e os Acórdãos do STJ de 7.2.2009, 16.11.2010 e de 30.3.2011, proferidos respetivamente nos procs. nºs 334/09.9 YFLSB 981/07.3TTBRG.S1 e 492/09.2TTPRT.P1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Radica esta jurisprudência nos ensinamentos de Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 91), no sentido de que a competência dos tribunais, ou a medida da sua jurisdição, se afere em função dos termos em que a ação é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos.
Regressando ao caso “sub judice”, verifica-se que a ré sustenta a incompetência do tribunal comum em razão da matéria, para a presente ação, na circunstância de, face ao que se mostra alegado na petição inicial, se estar perante acidente de trabalho, para o que são competentes as Secções de Trabalho de acordo com o já referido art. 126º, nº 1, al. c) da LOSJ.
A autora, por seu turno, não negando a ocorrência de um acidente de trabalho no dia 2.4.2013, vem afirmar que a causa de pedir se funda antes no cumprimento defeituoso do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre ela e a ré.
Na linha do que atrás se expôs há pois que indagar, perante a redação da petição, qual a causa de pedir nesta ação.
Ora, da sua leitura verifica-se que os fundamentos do pedido formulado pela autora não se circunscrevem ao acidente de trabalho ocorrido em 2.4.2013, mas abrangem também a atuação dos médicos que, no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho, a trataram, e que qualifica de negligente.
Na sua extensa petição inicial aperfeiçoada a autora descreve o acidente de trabalho ocorrido (arts. 1º a 4º) e tudo o que depois foi sucedendo com diversas consultas médicas que, na sua perspetiva, não solucionaram as queixas que ia apresentando, até que no dia 8.5.2013 viria a desmaiar, quando estava sozinha em casa, donde lhe sobrevieram mais lesões (art. 22º).
Ora, a autora atribui este desmaio a efeitos secundários da medicação que não foram prevenidos pelo médico que então a estava a acompanhar (arts. 20º e 21º). Em seguida, historia uma nova sequência de diversas consultas, onde narra uma progressiva deterioração das suas relações com os médicos que prestam serviço para a ré, tendo um desses profissionais afirmado, inclusive, que não a tratava por não saber se esta segunda queda deveria ser interpretada como acidente pessoal ou como consequência da medicação por acidente de trabalho (art. 26º). Assim, e porque o seu estado de saúde se ia gravando, a autora marcou consulta de ortopedia com médico exterior à ré que lhe diagnosticou sacroileíte direita traumática grave, lesão essa que, segundo alega, é consequência da queda provocada pelo desmaio (arts. 43º, 44º, 48º).
Deste modo, a autora cinde duas situações: a decorrente do acidente de trabalho, onde lhe foram diagnosticadas lesões de pleura e dos sexto e sétimo arcos costais direitos; a decorrente da queda provocada pelo desmaio, onde, com lesões ao nível da coluna lombar e da bacia, lhe foi diagnosticada a sacroileíte (art. 49º).
E se, na primeira situação, entende a autora estar no domínio da responsabilidade pelo risco, assumida pela ré, tendo esta cumprido as obrigações decorrentes do artigo 2º, com referência ao artigo 15º, das Condições Gerais do Contrato de Acidentes de Trabalho para trabalhadores independentes entre ambas celebrado, já na segunda considera que a consequência verificada resulta do cumprimento defeituoso daquele contrato por parte da ré através dos atos médicos dos seus representantes (arts. 50º e 51º).
Neste contexto, não se nos afigura adequado, salvo melhor entendimento, que se deva reconduzir toda a extensa alegação produzida pela autora na sua petição inicial ao evento ocorrido em 2.4.2013 e que ela própria considera como acidente de trabalho.
Com efeito, o que está em causa nos autos, face à forma como a autora desenha a sua petição inicial, transcende em muito a apreciação de um mero acidente de trabalho e avança para um outro domínio, que é o da eventual atuação negligente de médicos que prestavam serviço para a ré, mais concretamente do Sr. Dr. E….
É que o comportamento menos atento deste clínico terá, na perspetiva da autora, sido determinante para a queda que deu em 8.5.2013, com desmaio, e para as lesões que daí advieram.
Ou seja, o essencial da pretensão que a autora formula nos presentes autos não surge no acidente de trabalho propriamente dito, mas sim no que, segundo alega na petição inicial, posteriormente ocorre em virtude de uma atuação menos cuidadosa de profissionais médicos.
Por isso, sustenta a autora que com a presente ação o que pretende ver declarados são os direitos decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato de seguro por parte da ré, consubstanciando-se este no comportamento negligente dos seus representantes (médicos). Mais sublinhando, que não está a reclamar das consequências diretas do acidente de trabalho nem, sequer, do eventual mau acompanhamento médico das lesões provocadas pelo mesmo, mas, sim, de um incumprimento culposo do próprio contrato, manifestado, essencialmente, na atitude omissiva e negligente do Dr. E… (arts. 53º e 54º).
Por outro lado, não se pode ignorar, tal como já acima se expôs, que a aferição da competência em razão da matéria é feita pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, confrontando-se a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, com os respetivos fundamentos (causa de pedir).
Assim, apesar da larga argumentação expendida pela Mmª Juíza “a quo” na decisão recorrida, e mesmo tomando em consideração algumas passagens da petição inicial porventura menos felizes em termos factuais por vagas ou conclusivas, entendemos não ser de perfilhar a posição por si assumida ao considerar competente para a presente ação a Secção de Trabalho da Maia.
Na verdade, entendemos que está alegada uma causa de pedir autónoma – o cumprimento defeituoso do contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré -, que transcende o apertado âmbito do mero acidente de trabalho e que, por isso, inviabiliza a aplicação “in casu” do disposto no art. 126º, nº 1, al. c) da LOSJ e a consequente atribuição da competência às secções de trabalho.
E se ocorre alegação insuficiente no que concerne aos pressupostos da responsabilidade contratual da ré, como sustenta a Mmª Juíza “a quo”, tal não é argumento para decidir no sentido da incompetência dos tribunais comuns, uma vez que essa situação se prenderá, não com a determinação da competência do tribunal, mas sim com a eventual improcedência da ação.
Deste modo, a competência para conhecer da presente ação cabe aos tribunais comuns, nos termos do preceituado nos arts. 40º, nº 1 da LOSJ e 64º do Cód. do Proc. Civil.
Consequentemente, procede o recurso interposto pela autora, devendo ser revogado o despacho recorrido a fim de que os autos prossigam no tribunal “a quo”.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- A aferição da competência em razão da matéria é feita pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir).
- A competência para conhecer de uma ação que, embora se funde num acidente de trabalho, tem como causa de pedir o cumprimento defeituoso do contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as partes, em virtude de eventual atuação negligente de médicos que prestam serviço à seguradora, cabe não às secções de trabalho, mas sim aos tribunais comuns.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela autora B… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outro que, julgando improcedente a exceção de incompetência absoluta arguida pela ré “C…, SA”, declara a Secção Cível da Instância Local da Maia competente, em razão da matéria, para a presente ação, que aí deverá prosseguir a sua normal tramitação.
Custas a cargo da ré/recorrida.

Porto, 7.2.2017
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional
[2] Cfr. anotação ao Ac. STJ de 20.5.98, BMJ, 477/393.