Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
793/13.5PAVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: PERDA DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP20141203793/13.5pavng-A.P1
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Para o decretamento da perda do veiculo onde os bens furtados foram transportados impõe-se que se verifique a essencialidade da sua utilização e a relação da causalidade entre esse uso e a prática do ilícito, a que acresce a ponderação do principio da proporcionalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 793/13.5PAVNG-A.P1
Porto

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo de inquérito nº 793/13.5PAVNG, do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, foi indeferida a revogação da apreensão de um veículo automóvel, requerida pelo seu proprietário/detentor, o arguido B…, com os demais sinais dos autos, por despacho de 22 de janeiro de 2014, com o seguinte teor:
“Requerimento de fls. 99 e sgs., formulado par B…:
Vem aquele requerer a revogação da apreensão do veiculo de marca Mercedes Benz, matrícula BH-…-LJ, alegando que, tendo em conta o tempo já decorrido desde a apreensão. Já se esgotaram as diligências de inquérito relativas ao dito veículo e resulta do livrete que o requerente é o seu legítimo dono.
O M°P°, titular do inquérito, pronunciou-se sobre a pretensão do primeiro requerente, a fls. 109, referindo que a mesma deve ser indeferida, pelas razões ali constantes.
O M°P° é a entidade que dirige a investigação, sendo titular do inquérito.
Opõe-se à pretensão do requerente por considerar que o veículo circulou com matrícula falsa, salientando que está em investigação o crime de falsificação de documentos.
Compulsados os autos constata-se que assiste razão ao M°P°, sendo que, pelo menos em termos indiciários, não estando reunidas as condições para se deferir ao requerido.
Assim, e porque concordamos com as razões enunciadas na douta promoção que antecede, indefere-se, por ora, ao requerido.
DN.”
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
A. “O veículo da marca Mercedes Benz, classe …, foi apreendido por ter circulado, no dia 05/05/2013, ostentando chapas de matrícula com a inscrição ..-GD-.., quando a sua matrícula verdadeira é a matrícula francesa BH-…-LJ.
B. Tal factualidade é indiciadora da prática do crime de falsificação de documento, p. p. pelos artigos 225.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 3, do CP.
C. Indiciam os autos que o ora Recorrente terá procedido à substituição das chapas de matrícula, no dia dos factos, com o propósito de dissimular a prática de um eventual ilícito criminal, concretamente, um crime de furto simples, que não foi objeto de queixa.
D. Neste momento, se encontram esgotadas todas as diligências de investigação relativas ao veículo e respetivo documento, estando apurado, com segurança, que o veículo em causa tem a matrícula BH-…-LJ, que essa matrícula corresponde ao chassis do mesmo e que o documento que titula a propriedade do Recorrente é legítimo e tem total correspondência com o veículo a que se reporta.
E. O Recorrente, através do requerimento que consta a fls. 99 e ss., requereu a revogação da apreensão realizada e a consequente entrega do veículo.
F. Essa pretensão mereceu oposição do Digno M.P., por entender ser previsível que o automóvel venha, no final do processo a ser declarado perdido a favor do estado, tendo o Meritíssimo JIC indeferido o requerido, aderindo aos mesmos fundamentos.
G. Nos termos do disposto no artigo 109.º, do CP, para a perda dos instrumentos e objetos produzidos pelo crime é necessário que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, esses objetos ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
H. Pela declaração da perda a favor do Estado, previstas no artigo 109.º, visa-se responder, em primeira linha, à perigosidade da própria coisa e não à perigosidade do agente, ainda que se admita que a conexão entre a perigosidade do objeto e as concretas circunstâncias do caso possam acabar por implicar uma referência ao próprio agente.
I. Um veículo representa por si mesmo perigo para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas.
J. O decretamento da perda de veículo, assumindo um carácter quase-penal e prosseguindo fins de prevenção da perigosidade, há-se obedecer ao princípio da proporcionalidade, mas também com o valor do veículo, que não pode considerar-se, pela sua natureza, de per si, um objeto dotado de perigosidade intrínseca.
K. O decretamento de perdimento a favor do Estado, deverá obedecer ao princípio da adequação e da necessidade, no sentido de que a perda do veículo há-de ter virtualidade para, por si, obstar à prática de novos ilícitos e de que a providência se mostre indispensável para tal desiderato.
L. No caso concreto e tendo em conta os factos indiciados nos autos, a substituição das chapas de matrícula visaria a dissimulação de um crime de furto simples, mas de objetos de reduzidas dimensões, como óculos, sapatos e peças de vestuário e, por isso, todos suscetíveis de serem transportados sem recurso a qualquer viatura.
M. Pelo que, no caso concreto, a perda do veículo não tem a virtualidade para, por si, obstar à eventual prática de novos ilícitos dessa natureza, pelo que, a perda do veículo não se mostra indispensável para tal desiderato.
N. Não tendo, a perda do veículo, a virtualidade para, por si só, obstar à prática de novos ilícitos, resulta que a declaração do seu perdimento a favor do Estado, violaria, manifestamente, o princípio da adequação e da necessidade, a que deve obedecer.
O. O veículo dos autos terá um valor de mercado, médio, na ordem dos € 27.500,00, mas o que respeita ao valor dos objetos que, indiciariamente, terão sido subtraídos do interior do estabelecimento, corresponde, tão somente, ao valor de dois pares de sapatos, sendo uns de adulto e outros de criança.
P. O Recorrente, após ter sido confrontado com as suspeitas que sobre si recaíam, relativamente à subtração de objetos do interior do C…, em datas anteriores, procedeu, ao pagamento da totalidade dos objetos que lhe foram indicados, num total de € 1.332,50.
Q. Tendo em conta o valor dos objetos subtraídos na data dos factos e as circunstâncias que rodearam essa subtração, desprovida de qualquer sofisticação, conclui-se pela diminuta gravidade do ilícito.
R. Por outro lado, tendo em conta o valor do veículo dos autos, face ao valor de dois pares de sapatos, que terão sido os objetos ilicitamente apropriados no dia dos factos, forçoso é concluir pela manifesta desproporção.
S. O facto de o Recorrente, confrontado com a suspeita de uma conduta ilícita, ter procedido, de imediato ao pagamento da totalidade dos objetos, diminui, necessariamente, a gravidade dos ilícitos, face à reparação integral dos prejuízos causados.
T. Assim, dúvidas não podem restar de que, inexiste qualquer possibilidade séria de, a final, o veículo dos autos vir a ser declarado perdido a favor do Estado, porque essa declaração violaria os princípios da adequação e necessidade e da proporcionalidade e, consequentemente, o art.º 109.º, do CP.,
U. Pelo que, ao decidir pela manutenção da apreensão, com esse fundamento, o Tribunal a quo violou os princípios da adequação e necessidade e da proporcionalidade e o disposto nos artigos 109.º, do CP e 178.º, n.º 6, do CPP.
V. Apenas nos casos em que o veículo apresenta uma perigosidade intrínseca, como decorre do facto de não estar em condições de circular legalmente, é que se justifica que seja declarado o seu perdimento a favor do Estado.
W. No caso concreto, resulta dos autos que o veículo apreendido ao Recorrente e não obstante ter matrícula francesa, reúne todas as legais condições para circular, pelo que, não encerra em si, qualquer perigosidade.
X. Não estamos perante nenhum tipo de ilícito que tenha como consequência legal e automática a perda de veículos a favor do Estado.
Y. Mesmo em casos de veículos utilizados na prática de crimes de tráfico de estupefacientes, unanimemente reconhecidos como crimes graves e relativamente aos quais existe, também, norma especial quanto objetos que serviram ou se destinaram a servir a prática desses ilícitos, a sua perda a favor do Estado de veículos, é ponderada à luz dos princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade.
Z. Tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, o disposto na Lei e a jurisprudência unânime dos Tribunais Superiores, afigura-se-nos que carece adequação, necessidade e de proporcionalidade, uma eventual declaração de perda do veículo automóvel, inexiste fundamento de facto e de direito para a manutenção da sua apreensão que deve, por isso, revogada.
NESTES TERMOS
e nos mais e melhores de direito, que V. Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, e em consequência, ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que revogue a apreensão do veículo da marca Mercedes-Benz, com a matrícula BH-…-LJ e, consequentemente, determine a sua entrega, bem coo a entrega do respetivo documento, ao Recorrente.”
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Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal (TIC), o qual, manifestando-se contra a posição assumida pelo Ministério Público titular do inquérito, defendeu a procedência do recurso, por considerar que a apreensão do veículo é desnecessária para efeitos de prova, não havendo também elementos suficientes que prevejam, que o veículo apreendido seja, a final, declarado perdido a favor do Estado.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 20 de março de 2014.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido de que seja negado provimento ao recurso, não aderindo assim à posição do Ministério Público do TIC do Porto, assumida na resposta ao recurso, antes subscrevendo o teor da intervenção do Ministério Público titular do inquérito, cuja posição subscreve.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que o arguido/recorrente apresentou resposta, reiterando as alegações de recurso e concluindo, como aí, pela procedência do recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido e substituição por outro que revogue a apreensão do veículo da marca MercedesBenz, com a matrícula BHLJ e determine a sua entrega, bem como a entrega do respetivo documento, ao Recorrente.*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a única questão a decidir é a de saber se se verificam, ou não, os pressupostos de que depende a manutenção da apreensão do veículo automóvel, marca MercedesBenz, matrícula BHLJ.
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2. Elementos constantes dos autos, com interesse para a decisão:
A). Os factos participados e em investigação nos presentes autos de Inquérito, reportam-se à aposição da matrícula falsa ..-GD-.. no veículo automóvel Mercedes Benz, de matrícula BH-…-LJ, pertença do arguido B… (cujo nome consta do registo automóvel de fls. 21), que o conduzia no dia 5 de maio de 2013, ostentando matrículas com aquela inscrição ..-GD-...
B). Tal veículo foi apreendido pela PSP naquela data, bem como as chapas de matrícula ..-GD-...
C). O veículo foi posteriormente examinado, como consta de fls. 79 a 85, com colheita de fotografias, incluindo da matrícula, do número de chassis e motor e de outros elementos identificativos relevantes, e avaliado por perito da PSP em 30.000,00 €.
D). No momento da apreensão do veículo indiciava-se também a prática, pelo mesmo arguido B…, de factos integradores de crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal, de bens expostos para venda em estabelecimento comercial, em horário de abertura ao público, de valor superior como óculos, sapatos e peças de roupa, de valor superior a uma mas inferior a 50 unidades de conta.
E). Decorreram já mais de seis meses após a prática dos factos referidos na alínea anterior e do seu conhecimento pelo dono dos bens subtraídos, sem que houvesse queixa do respetivo titular.
F). Por requerimento que deu entrada nos serviços do Ministério Público em 22 de outubro de 2013, o recorrente B… veio requerer a restituição do veículo automóvel apreendido.
G). Sobre esse requerimento pronunciou-se o Ministério Público titular do inquérito, promovendo o indeferimento do levantamento da apreensão e consequente entrega do veículo ao requerente, através de promoção datada de 14 de janeiro de 2014, com o seguinte teor:
“A factualidade relatada nos autos é susceptível de integrar a prática de crime de falsificação de documento p e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 255º alínea a) e 256º, nº1 alínea d) e n°3 do, n°'3 do Código Penal.
Com efeito resulta dos autos que o suspeito na data referenciada a fls, 13, circulava na via pública ao volante do veículo Mercedes Benz …, ostentando a chapa de matrícula com as designações ..-GD-.., pertencente a um veículo com as mesmas características, propriedade de D…, idf. a fls.87.
Resulta dos autos que o veículo apreendido encontra-se matriculado em França em nome do suspeito B…, cfr. Fls. 21, sendo a sua matrícula verdadeira BH-…-UJ, ostentando, assim, no momento da apreensão chapas de matrícula falsas com o objectivo de iludir as autoridades policiais e dessa forma poder prosseguir a sua actividade criminosa uma vez que o mesmo utilizava tal veículo na prática de ilícitos de natureza criminal, crimes de furto simples p. e p. pelo art. 203° do CP.
Assim e atenta a conduta do arguido o ilícito criminal indiciado é de prever que o automóvel apreendido nos autos venha, no final do processo, a ser declarado perdido a favor do Estado, cfr. 109º e segs. do CP.
Assim entendemos ser de indeferir o levantamento da apreensão e a consequente entrega do veículo ao requerente o que se promove.
Remeta, para apreciação e decisão do requerido, os autos ao TIC do Porto.”
H). Na sequência do que, em 22 de janeiro de 2014, foi proferido o despacho judicial recorrido, que indeferiu a requerida restituição do veículo apreendido, cujo teor foi já supra reproduzido (logo no início deste acórdão).
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3. Apreciação do recurso

Pretende o recorrente que lhe seja restituído o veículo automóvel apreendido, o que lhe foi negado pelo despacho recorrido, que por remissão para a respetiva promoção do Ministério Público titular do inquérito, se fundamentou na previsão de que o veículo venha, a final, ser declarado perdido a favor do Estado.
Vejamos.
Nos termos do artigo 178º, nº 1, do Código de Processo Penal, “são apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.
A apreensão é, pois, uma medida de obtenção de prova, que visa a guarda e preservação de vestígios do crime, os quais coloca fora da disponibilidade dos agentes da prática do crime ou até de terceiros, passando o seu domínio provisoriamente para o Estado.
Contudo, se nalguns casos, a única finalidade visada com a apreensão é a de acautelar a integridade e disponibilidade dos meios de prova, outros casos há em que, para além dessa finalidade inerente a qualquer apreensão, esta visa também finalidades preventivas e conservatórias.
É o que acontece quando, com a apreensão, se pretende evitar que objetos que serviram ou estavam destinados para a prática de um crime (e nessa medida são sempre prova do mesmo) venham a ser utilizados no cometimento de novos crimes, que por essa via se previnem.
Ou, então, quando a apreensão tem o propósito de conservar determinados bens ou objetos, para dessa forma obstar a que as consequências da atividade criminosa sejam agravadas, pela perda, destruição ou desaparecimento dos objetos que consistem no seu produto (e que, como tal, também constituem prova da sua prática e efeitos).
Não se pode é nunca olvidar a natureza cautelar que assume a apreensão, que só passa a definitiva após o trânsito em julgado da sentença condenatória que declarar a perda a favor do Estado dos bens apreendidos, ou com a entrega dos mesmos aos legítimos proprietários, no caso de bens recuperados no âmbito de investigação de crimes contra a propriedade.
Como tal, decorre naturalmente do artigo 186º do Código de Processo Penal, relativo à restituição dos objetos apreendidos, que a apreensão só pode manter-se enquanto persistirem os pressupostos que a determinaram, impondo-se, logo que os mesmos cessem, a restituição dos respetivos objetos.
A propósito do que, impressivamente, Vinício Ribeiro (in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, fls. 374), aponta o princípio da necessidade como regra base da apreensão, no sentido que, como prescreve o citado artigo 186º, logo no seu nº 1, “Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito” e, no nº 2, “Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”.
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Sendo estes os princípios gerais que regulam os pressupostos da apreensão e sua manutenção, revertamos agora ao caso sub judice.
Os factos em investigação no presente inquérito, reportam-se à circulação, na via pública, conduzido pelo arguido B…, do veículo automóvel, Mercedes Benz, ostentando a chapa de matrícula com a inscrição ..-GD-.., a qual não pertence a esse veículo, mas a um outro com as mesmas caraterísticas, sendo a sua matrícula verdadeira BH-…-LJ.
Tal factualidade é suscetível de integrar o crime em investigação, de falsificação de documentos, previsto e punido pelos artigos 255º, al. a) e 256º, nº1, al. d) e nº 3, do Código Penal, por cuja prática o arguido B… está fortemente indiciado.
Assim, quando a circulação do dito veículo foi constatada pela autoridade policial, naquelas circunstâncias, não há dúvida que ele era utilizado na prática do crime de falsificação.
Havendo, então, ainda evidências de que o mesmo era utilizado para transportar o arguido, bem como objetos por este furtados numa grande superfície comercial.
Neste contexto, reunidos que estavam os pressupostos do artigo 178º, nº 1 do Código de Processo Penal, foi devidamente justificada a apreensão feita ao veículo, desde logo para servir de prova dos factos criminosos indiciados, integradores do crime de falsificação.
Na sequência dessa apreensão e da sua manifesta finalidade probatória, por determinação do Ministério Público titular do inquérito, foi logo em seguida o veículo examinado (como consta de fls. 79 a 85), com colheita de fotografias, incluindo da matrícula, número de chassis e motor e outros elementos identificativos relevantes, bem como avaliado.
Sendo que, com a junção ao inquérito dos elementos documentais e periciais resultantes desse exame do veículo apreendido, para prova do indiciado crime de falsificação, a apreensão do próprio veículo deixou, manifestamente, de se mostrar necessária para esse efeito.
Por outro lado, não se nos afigura que o veículo apreendido seja suscetível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 109º, do Código Penal ou qualquer outra norma análoga, pelo que a sua apreensão não serve para garantir qualquer pena acessória de perda de objetos, nem, tão pouco, qualquer necessidade de segurança pública.
É que, embora haja fortes indícios de que o veículo tenha servido para a prática do crime de falsificação, tal não basta para a sua declaração de perda.
Para além desse fundamento de ter “servido para a prática de um facto ilícito típico”, exige a lei, no artigo 109º do Código Penal, simultaneamente, a verificação do pressuposto da perigosidade do objeto, sem o qual a perda não pode ser declarada.
Perigosidade que se afere de um ponto de vista objetivo, em concreto, ou seja, atendendo às concretas condições em que pode ser utilizado o objeto em questão.
Ora, no caso dos autos, resulta com segurança que o veículo automóvel tem a matrícula BH-…-LJ, que essa matrícula corresponde ao chassis do mesmo, o que se encontra em total correspondência com o registo automóvel de fls. 21, em nome do recorrente, que era também o seu detentor.
Nada indiciando, assim, que o veículo não se encontre em condições de circular legalmente no país, pelo que nada há que permita concluir pela sua perigosidade.
Apontando os elementos constantes dos autos, no sentido de as matrículas falsas terem sido colocadas apenas com o objetivo de iludir as autoridades policiais relativamente à prática de crimes de furto simples p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal, em que o veículo era utilizado para o transporte do arguido e de objetos por este furtados.
Contudo, quanto a este último crime, sempre haverá que considerar que face à pequena dimensão e reduzida quantidade dos objetos produto dos indiciados crimes de furto (óculos, sapatos, peças de vestuário), que se encontravam numa grande superfície comercial, para venda, em horário de abertura ao público, a utilização do veículo foi indiferente para a realização do facto.
Sendo, também, que a própria fuga do arguido com os objetos furtados não estava dependente da utilização do veículo, estacionado que estava na garagem subterrânea do centro comercial onde se situa a respetiva superfície comercial, já que a dissimulação do furto passaria apenas pela ludibriação dos funcionários e câmaras de vigilância do estabelecimento, de modo a passar as linhas de caixa para o pagamento sem que os objetos subtraídos fossem detetados, após o que a descoberta do furto se tornava difícil.
Entre o veículo e a prática desta infração não existe, pois, aquela relação de funcionalidade ou de instrumentalidade, em termos de causalidade adequada que, no seguimento de significativa parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, também nós entendemos ser necessária à determinação da sua perda.
Efetivamente, tem o STJ vindo a decidir no sentido de que o decretamento da perda de instrumentos do crime depende da verificação de vários pressupostos, desde a essencialidade da sua utilização para a prática do ilícito, passando pela verificação de relação de causalidade entre o uso do instrumento e a prática do crime, até à ponderação do princípio da proporcionalidade (cfr., por todos, o acórdão de 28-05-2008, proc. 08P583, disponível em www.dgsi.pt).
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De todo o exposto decorrendo, em síntese conclusiva, que perante a factualidade indiciária, a decretada apreensão o veículo automóvel não pode manter-se.
Pois, por um lado, ela tornou-se desnecessária para efeitos de prova (artigo 178.º, n.º 1, parte final, do CPP) e, por outro, também não há elementos suficientes que permitam a previsão de que o veículo apreendido seja, a final, declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 109º do Código Penal.
Assim se impondo a revogação da decisão recorrida, que indeferiu a restituição do veículo apreendido ao recorrente, seu detentor e proprietário.
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto, revogando o despacho judicial recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a restituição do veículo apreendido ao recorrente, seu proprietário, a não ser que, entretanto, e posteriormente à prolação do despacho recorrido, outros elementos novos haja, que obstem a essa restituição.
Sem tributação
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Porto, 3 de dezembro de 2014
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão