Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1822/18.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202204041822/18.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
II - Para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial, só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, razão pela qual o dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
III - Nos casos em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que, só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
IV - Na apreciação, em sede de recurso, o montante arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais, estando em causa critérios de equidade, apenas deve ser reduzido quando afronte manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1822/18.1T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J7
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente na Rua ..., ..., da cidade do Porto, veio propor a presente acção declarativa de condenação destinada a efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra X..., SA (anteriormente denominada Y..., SA), com sede na Avenida ..., da cidade de Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global líquida de € 632.213,83 e a quantia a liquidar posteriormente referente aos danos descritos nos artigos 232º e 238º, da petição inicial, acrescidas de juros de mora contados desde a data de citação até integral e efectivo pagamento.
Alegou, em essência, os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro que descreve, e cuja ocorrência imputa à conduta ilícita e culposa da condutora do veículo automóvel de matrícula VO-..-.., seguro na ré.
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Regularmente citada, a ré contestou, aceitando os factos articulados pelo autor relativos à dinâmica do embate e impugnando a existência dos prejuízos e respectivos montantes alegadamente ocorridos em consequência do sinistro.
Terminou pedindo que seja julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido Despacho Saneador, tendo a instância sido considerada válida e regular.
Foi ainda proferido despacho ao abrigo do disposto no art.º 596º, do NCPC e, após realização da prova pericial, procedeu-se a julgamento, com observância de todas as formalidades legais, conforme resulta da respectiva acta, mantendo-se válida a instância e nada obstando à apreciação do mérito da causa.
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A final foi proferida decisão que julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, condenou a ré X..., SA, a pagar ao autor AA a quantia de € 102.213,00 (cento e dois mil, duzentos e treze euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento e a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento; absolvendo-a do restante pedido.
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Não se conformando com o assim decidido veio quer o Autor quer Ré interpor recurso, rematando com as seguintes conclusões:
Recurso do Autor:
1ª A indemnização devida ao Autor pelo dano patrimonial decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica que ficou a padecer, deverá ser fixada em € 230.000,00 (duzentos e trinta mil euros);
2ª A indemnização devida ao Autor a título de dano biológico deverá ser fixada em € 20.000,00 (vinte mil euros);
3ª A decisão em crise, constitui uma violação do disposto nos artigos 562.º, 564.º e 566.º, n.º 2 do Código Civil.
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Devidamente notificada a Ré não contra-alegou.
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Recurso da Ré:
1 – Presente recurso, surge como reação, apenas e tão só, quanto ao montante arbitrado pelo douto Tribunal “a quo” a título de lucro cessante/Dano Biológico e dano não patrimonial.
2- O autor em consequência do acidente dos autos, ficou a padecer de uma Incapacidade Geral Permanente Parcial de 2 pontos, tinha 35 anos de idade e auferia um salário líquido de cerca de 2.000€.
3-Tendo em conta os elementos objetivos em que assenta o cálculo da indemnização e partindo dos critérios utilizados pelo douto Tribunal “a quo”, o valor apurado não poderá ser superior a 10.000€, isto é, substancialmente inferior ao fixado na douta sentença.
4-Tal como refere e bem o douto Tribunal a quo, o autor não só não sofreu qualquer diminuição no seu rendimento médio líquido, como ainda o aumentou de forma relevante.
5-A fixação de indemnização a título de dano biológico na sua vertente patrimonial, terá de ser aferida de acordo com os critérios de equidade, critérios esses que têm de ser iguais, quer sejam para fixar uma indemnização a um lesado que exerça a profissão de médico e tenha um rendimento acima do salário médio nacional, quer seja para um lesado que não possua qualquer escolaridade e aufira um rendimento baixo, entenda-se na ordem do salário mínimo nacional.
6-Não existindo qualquer perda de rendimento, antes pelo contrário, não poderá ser arbitrada uma indemnização muito superior ao fixado em casos similares, só porque o autor é medico e aufere um rendimento elevado, sem se ponderar os princípios da proporcionalidade e da igualdade, como critério orientador.
Veja-se a título de exemplo o Ac. Do douto Tribunal da Relação de Guimarães de 27-05-2021 – Proc. Nº 5911/18.4T8BRG que numa situação similar á dos autos, em que o lesado ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica de 2 pontos com esforços suplementares para o exercício da sua profissão, arbitrou uma indemnização de 5.500€.
Ou, o Acórdão do douto Tribunal da Relação de Lisboa de 25-02-2021 -Proc. Nº 852/17.5T8AGH, que para um lesado de 31 anos de idade que ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica de 1 ponto, foi arbitrada uma indemnização de 2.917,67€.
7-O valor arbitrado a título de dano não patrimonial é exagerado e não atendeu aos reais critérios de justiça e ponderação para onde se dirige este princípio.
8-Para além do exame objetivo de Avaliação do Dano Corporal elaborado pelos senhores peritos médicos do INML que fixaram ao autor um Quantum Doloris de grau II, o autor foi observado em várias especialidades, mormente, na especialidade de neurocirurgia e psiquiatria, das quais se concluiu que:
-No que concerne á neurocirurgia, foi concluído pelo senhor perito médico que (…) considerando os achados clínicos e os exames complementares disponíveis não se observam neste Momento alterações compatíveis com um quadro sequelar do traumatismo descrito (…) – Vide, relatório datado de 27 de Dezembro de 2019.
-Na especialidade de psiquiatria, concluíram os senhores peritos médicos que (…) Não se apura que o autor padeça de quadro psiquiátrico autónomo e com nexo de causalidade com o acidente sofrido, pelo que, não se valorizam sequelas psiquiátricas temporárias nem permanentes.
(…) - Vide, relatório do INML datado de 23 de Abril de 2020.
9º-O autor requereu segundas perícias e também que os senhores peritos prestassem esclarecimentos, sendo que, os senhores peritos mantiverem as suas conclusões, como se pode verificar no relatório elaborado a 04 de Julho de 2020, no qual é referido que na avaliação psiquiátrica efetuada, com exame direito no dia 21-01-2019, não foi comprovada a existência de qualquer tipo de psicopatologia, nomeadamente, ansiosa.
10º-No relatório datado de 29 de Julho de 2021, as senhoras peritas, referem que as suas conclusões estão de acordo com ambas as perícias de neurocirurgia efetuadas e, portanto não alteram as conclusões finais do relatório.
11º No relatório final de Avaliação, as senhoras peritas são da opinião que não há lugar a repercussão nas atividades desportivas e de laser.
12º-A nossa jurisprudência, mormente a dos tribunais superiores, em casos similares, nos mais variados arestos, fixou quantias muitíssimo inferiores à determinada na douta Sentença, tendo em conta o Quantum Doloris de grau II que foi fixado, pelo que é entendimento da recorrente que o valor a arbitrar será de 7.500€.
13– Violou a douta sentença o disposto nos artigos 494º, 562º, 563º, 564º e 566º nº 3, todos do Cod. Civil.
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Devidamente notificada contra-alegou o Autor concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pelo Autor, se encontra, ou não, correctamente fixado;
c)- saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais é, ou não, excessivo.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada:
1. No passado dia 23.12.2015, pelas 13:40 horas, na Rua ..., na cidade do Porto, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes, o veículo ligeiro de passageiros de marca Volvo, modelo ..., de matrícula ..-QO-.., pertencente a D..., Limitada e conduzido pelo autor e o veículo ligeiro de passageiros de marca Peugeot, modelo ..., de matrícula VO-..-.., conduzido e pertencente a BB.
2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o veículo de matrícula ..-QO-.. pela Rua ..., no sentido norte-sul, a velocidade nunca superior a 30/40 km horários, dirigindo-se para o entroncamento formado pela artéria por onde transitava e a Avenida ....
3. Entroncamento esse que era (como é) regulado por sinalização luminosa, vulgo semáforos, os quais se encontravam a funcionar regularmente.
4. Ao se aproximar da confluência desse entroncamento, o autor deparou-se com o sinal luminoso de cor vermelha, que lhe impunha a paragem.
5. E no cumprimento do mesmo imobilizou o seu veículo.
6. Entretanto, imediatamente atrás do veículo conduzido pelo autor, circulava o veículo de matrícula VO-..-.., a velocidade não concretamente apurada.
7. A sua condutora não se tendo apercebido que o veículo conduzido pelo autor se encontrava parado no cumprimento da sinalização semafórica, foi embater com a frente do seu veículo na traseira do veículo de matrícula ..-QO-...
8. Em consequência do embate, o veículo de matrícula VO-..-.. ficou com a frente destruída.
9. O embate ocorreu numa faixa de rodagem de traçado recto e de boa visibilidade e com o piso betuminoso em bom estado de conservação.
10. Em consequência do embate, o autor sofreu traumatismo cérvico-dorsal.
11. Imediatamente após o embate o autor começou a sentir dores e dificuldades na realização de alguns movimentos nomeadamente ao nível do pescoço, da cervical e lombar.
12. Atento esse quadro de dor, o autor deslocou-se pelos seus próprios meios ao Centro Hospitalar ..., tendo sido assistido no serviço de urgência dessa unidade hospitalar, local onde lhe foram ministrados os primeiros cuidados médicos, hospitalares e medicamentosos.
13. Realizou ainda exames complementares de diagnóstico, designadamente, raio x à coluna lombar e cervical, tendo-lhe sido diagnosticado cervicalgias e dorsalgias.
14. Por esse facto foi-lhe aplicado um colar cervical, tendo sido devidamente medicado.
15. Recebeu alta para o seu domicílio nesse mesmo dia.
16. Como o quadro de dor não se atenuava com o passar dos dias, mesmo recorrendo ao consumo de analgésicos e anti-inflamatórios, o autor voltou a recorrer à urgência do Centro Hospitalar ..., no dia 30.12.2015.
17. Mantendo a utilização do colar cervical, tendo alta nesse mesmo dia.
18. Regressou àquele serviço de urgência hospitalar nos dias 12.07.2016, 30.10.2016; 25.7.2019 e 12.2.2020, por cervicalgia que o incapacitavam na sua actividade profissional.
19. Recorreu, entretanto, ao Instituto ..., onde realizou os seguintes exames imagiológicos:
- ressonância magnética da coluna vertebral (24.02.2016): imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea;
- ressonância magnética da Coluna vertebral cervical e dorsal (4.11.2016): persistência de imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea.
20. Começou a ser acompanhado por medicina física e reabilitação a 16.03.2016 no Centro Hospitalar e Universitário ..., tendo aí feito tratamentos de fisioterapia até Setembro de 2016.
21. Fez exame de revisão em Fevereiro de 2017, sendo enviado para a Consulta da Dor por manutenção das queixas cervicais, com repercussão funcional, havendo surtos de agudização hiperálgica, muito na dependência da sobrecarga mecânica com o aumento da actividade laboral.
22. Começou a ser seguido na Unidade de Dor Crónica do Centro Hospitalar e Universitário ..., em 17.02.2017.
23. No dia 5.03.2020 foi observado pelo Dr. CC (Ortopedista), no Hospital ..., constando do relatório que apresentava cervicalgia crónica, na sequência de contusão cervical com lesão ligamentar, recalcitrante a diversas abordagens terapêuticas (medicamentosas, fisiátricas, posturais, etc.); tendo-lhe sido feitos ajustes terapêuticos, instituindo Tapentadol 50mg, Flurbiprofeno 40mg transdérmico e hidroginástica.
24. Foi também observado em consulta de Urologia, no Hospital 1..., constando de relatório de 24.11.2016 que apresentava queixas de disfunção sexual após acidente em 2015, tendo sido orientado para a consulta de Psiquiatria com o diagnóstico de disfunção sexual psicogénica.
25. Recorreu então a Psiquiatria (Dr. DD), em cujo relatório datado de 8.05.2019 consta que é acompanhado naquela consulta desde 2016, por síndrome depressivo-ansioso recorrente.
26. Em Maio de 2016, o autor fez endoscopia digestiva alta por queixas dispépticas, tendo sido diagnosticado com gastropatia erovisa provavelmente secundária a fármacos, tendo diminuído a toma de anti-inflamatórios.
27. Como queixas das lesões sofridas, o autor apresenta dificuldade em certas posturas, tendo por vezes de fazer ajustes devido às dores cervicais, o mesmo acontecendo quando corre ou faz algum esforço físico.
28. Sente ansiedade, maior irritabilidade e cansaço, devido às cervicalgias crónicas, que o limitam nas suas actividades da vida diária, desportivas, de lazer e profissionais.
29. Apresenta fenómenos dolorosos referidos à região cevical, despoletada pelos movimentos de hipertensão e hiperflexão, necessitando de fazer medicação regularmente.
30. E impacto ligeiro na actividade sexual, necessitando de mudar de posição por queixas álgicas e sentindo menos libido, principalmente nos dias em que se sente mais cansado.
31. Apresenta dificuldade em manter-se no computador durante mais de uma hora e quando realiza pequenas cirurgias tem necessidade de fazer paragens frequentes pela posição de flexão cervical.
32. Apresenta também dificuldade em adormecer e acorda algumas vezes durante a noite por queixas álgicas referidas à região cervical.
33. Não consegue deitar-se no sofá para relaxar como fazia regularmente, porque essa postura é causa de dores.
34. Deixou de jogar paddle, ainda que por vezes tente, mas ficando com muitas dores e mantém a corrida mas com muito menos frequência, por menos tempo e com interrupções frequentes; e continua a frequentar o ginásio mas com adaptação dos exercícios.
35. Como sequelas das lesões sofridas, o autor apresenta cervicalgias que o obrigam ao uso regular de medicação analgésica.
36. O autor obteve a sua consolidação médico-legal, no dia 23.03.2016.
37. As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram, para o autor, um período de tempo de défice funcional temporário parcial de 90 dias.
38. O autor sofreu um “Quantum Doloris” de grau 3, numa escala de 1 a 7.
39. As supra descritas lesões acarretam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, sendo as sequelas compatíveis com a actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
40. O descrito em 27 a 34, causa ao autor tristeza e desgosto, frustração e sentimentos de inferioridade.
41. Antes do embate, o autor era uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertido e com facilidade para as relações sociais e, após o acidente, passou a ser uma pessoa mais triste e desanimada, menos confiante, menos energética, menos activa, menos divertida, mais vulnerável, mais insegura e mais saturada, não se relacionando tão intensamente com os amigos com quem desenvolvia as actividades desportivas e de lazer.
42. O autor era (como é) médico, com a especialidade de dermatologia, trabalhando no Centro Hospitalar ... e ainda por conta própria em diversas instituições médicas e hospitalares.
43. De igual modo, o autor é formador e professor universitário.
44. À data do embate, o autor auferia pelo trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar ... o rendimento líquido de cerca de € 2.000,00.
45. Parte da actividade laboral do autor era e é realizada por intermédio de sociedades comerciais por si constituídas, nomeadamente, através da sociedade D..., Lda.
46. Esta sociedade no período de tributação de 1.01.2015 a 31.12.2015 apresentou um total de rendimentos no valor de € 126.191,48 e no período de tributação de 1.01.2016 a 31.12.2016 apresentou um total de rendimentos no valor de € 157.153,94.
47. Em consequência do embate e das lesões sofridas, o autor suportou despesas médicas medicamentosas, no valor de € 2.063,83.
48. E em despesas com deslocações em viatura própria para consultas e tratamentos médicos/fisiátricos, portagens e parques de estacionamento, o autor gastou quantia não inferior a € 150,00.
49. O autor nasceu no dia .../.../1980, conforme documento de fls. 110 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
50. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., a ré seguradora assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e emergentes da circulação estradal do veículo de matrícula VO-..-...
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Factos Não Provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, que:
a) após o embate, o autor na sua relação com os doentes é mais impaciente e implicativo;
b) após o embate, o autor diminuiu a sua produção científica, o que se veio a reflectir negativamente na sua imagem; e
c) em consequência do embate e das lesões sofridas, o autor sofre de stress pós-traumático.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pelo Autor, se encontra, ou não, correctamente fixado.
Como se evidencia dos autos trata-se de questão que é comum a ambos os recursos, razão pela qual será analisada em conjunto.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu que sendo o Autor portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, valorou tal dano como dano patrimonial futuro tendo, fixado em € 100.000,00 o respectivo montante indemnizatório.
Deste entendimento dissente quer o Autor quer a Ré, alegando o primeiro que o referido montante devia ser fixado em € 230.000,00 e a segunda que tal montante se devia quedar pelos € 10.000,00.
Que dizer?
No segmento indemnizatório aqui em apreciação movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564.º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das actividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na actividade profissional do lesado e no seu efectivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado”.[1]
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009[2], que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos (…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
“E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
“Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta–ou indiretamente–no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
“Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
“A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
“E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”[3]
Sustentam outros ainda que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.[4]
Como quer que seja, independentemente da sua integração jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial-ou eventualmente como tertium genus, como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado-, o certo é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui inequivocamente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da denominada teoria da diferença.
Ora, a posição maioritária, que também sufragamos, vem considerando que este dano deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso constituindo o prejuízo a indemnizar, irrelevando para este efeito o facto de as lesões sofridas pelo demandante não terem implicado, de forma imediata, a perda de rendimento.
Neste conspecto, a casuística que sufraga tal posição vem recorrentemente enfatizando que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento do trabalho, releva para efeitos indemnizatórios– como dano biológico/patrimonial-porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, designadamente num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuindo as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
Evidentemente que casos há em que as lesões físicas não causam nenhum acréscimo, para o lesado, de esforço na actividade profissional que ele exerce. Uma ligeira desvalorização no plano físico, mesmo que relacionada com a mobilidade, não tem para um lesado que desenvolve uma actividade profissional sedentária e marcada pelo esforço intelectual, qualquer repercussão nesta.
Por isso, em certas situações justifica-se que, apesar da comprovada desvalorização do lesado no plano físico em consequência do acidente, o dano correspondente seja ressarcido apenas no plano não patrimonial, por este não se repercutir, directa ou indirectamente, na sua situação profissional, tanto em termos de remuneração como de carreira.
Assentando na qualificação do aludido dano como dano patrimonial futuro, debrucemo-nos agora sobre as particularidades do caso concreto no concernente à determinação do respetivo quantum indemnizatório.
Como deflui do regime vertido nos artigo 564.º e 566.º, nº 3 do CCivil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
No entanto, a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nos seguintes parâmetros-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso normal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já se aproxima dos 78 anos, e tem tendência para aumentar).[5]
Acolhendo tais directrizes e regressando ao caso dos autos, importa, desde logo, respigar o seguinte quadro factual:
“- O Autor tinha 35 anos à data do acidente;
- As lesões sofridas decorrentes do acidente acarretam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, sendo tais sequelas compatíveis com a actividade habitual, mas implicam esforços suplementares” (cfr. pontos 39. e 49. da resenha dos factos provados).
Importa enfatizar que a propósito do factor rendimento, alguma jurisprudência[6] vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.[7]
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de Maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2017 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 943,00.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 35 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 3 pontos.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de € 13.202,00 (€ 943,00 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.[8]
De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a € 396,06 [ (€ 943.000,00 x 14) x 3%], o que permitiria alcançar, ao fim de 43 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 35 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de € 17.030,58, apurando-se um valor de € 12.772,94 após se operar o apontado desconto de ¼.
Isto dito importa ainda, para se atingir a solução que, neste caso, se haja de considerar como a mais equitativa, apelar à jurisprudência que se vem pronunciando sobre situações com alguma similitude.
Constata-se assim o seguinte:
- Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 73 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 2.500,00 €;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 78 anos foi fixada a indemnização respectiva em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 36 anos fixou-se indemnização aproximada a 12.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 39 anos, também motorista, foi fixada a indemnização de 12.500,00 €;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a uma lesada de 46 anos, que auferia rendimento mensal médio bruto de aproximadamente 7.500,00 €, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 55.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado de 44 anos, que auferia rendimento mensal global de 3.100,00 €, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 25.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00 €;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, num lesado de 49 anos foi fixada a indemnização de 20.000,00 €
- Com uma incapacidade de 7 pontos, num lesado de 39 anos foi fixada a indemnização de 15.000,00 €.[9]
Como assim, sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo Autor demandante implicam esforços suplementares na sua atividade profissional, e que, naturalmente, pelo trabalho que desenvolve na referida sociedade, também é remunerado, parece-nos justo e equilibrado-quer na vertente da justiça do caso concreto, quer na ótica da justiça comparativa-, fixar em € 20.000,00 (vinte mil euros) o montante destinado a reparar o dano em causa, e não os € 100.000,00 fixados pelo tribunal recorrido nem os € 10.000,00 propugnados pela Ré recorrente nas suas alegações recursivas.
E sob este conspecto importa referir, ao contrário do que alega o Autor recorrente, que a indemnização pelo dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
Com efeito, não se pode indemnizar duas vezes a mesma coisa.
A indemnização emergente de acidente de viação não visa um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante mas, antes, a reparação do dano causado.
A referência doutrinal e jurisprudencial ao dano biológico não tem visado esse desiderato.
O que nela se tem discutido, como supra se referiu, é a questão de saber se esse dano deve ser indemnizado a título de dano não patrimonial ou a título de dano patrimonial, quando se verifica que a incapacidade permanente parcial não implica uma perda de ganho do rendimento auferido.
No entanto, ninguém defende que o dano biológico seja indemnizado autonomamente, para além da indemnização da perda de ganho, porque isso seria uma duplicação indemnizatória, violadora da lei e dos princípios de equidade que presidem à fixação do montante indemnizatório em causa.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelo Autor recorrente e, com elas, o respectivo recurso e procedem parcialmente as conclusões 1ª a 6ª formuladas pela Ré.
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A segunda questão que colocada no recurso da Ré prende-se com:
b)- saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais é, ou não, excessivo.
Na decisão recorrida fixou-se a este título o montante de € 25.000,00.
Com este montante não concorda a Ré apelante, não alegando, todavia, qual o montante que devia ser fixado.
Quid iuris?
Os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, conforme o artigo 496.º, nº 1, do C. Civil, consequência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.
A gravidade mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito. Neste caso o dano é de tal modo grave que justifica a concessão da indemnização pecuniária aos lesados.
Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objectivamente um bem imaterial, cujo valor é insusceptível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distracções-porventura de ordem espiritual-que, de algum modo, atenuem a sua dor”.[10]
E, o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, nº 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adoptados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda.[11]
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física do Autor, que viu o acidente causar-lhe danos corporais que deixaram sequelas.
Assim releva no prisma–danos não patrimoniais–a seguinte factualidade:
À data do embate, o autor tinha 35 anos.
Em consequência do embate, o autor sofreu traumatismo cérvico-dorsal.
Imediatamente após o embate o autor começou a sentir dores e dificuldades na realização de alguns movimentos nomeadamente ao nível do pescoço, da cervical e lombar.
Atento esse quadro de dor, o autor deslocou-se pelos seus próprios meios ao Centro Hospitalar ..., tendo sido assistido no serviço de urgência dessa unidade hospitalar, local onde lhe foram ministrados os primeiros cuidados médicos, hospitalares e medicamentosos.
Realizou ainda exames complementares de diagnóstico, designadamente, raio x à coluna lombar e cervical, tendo-lhe sido diagnosticado cervicalgias e dorsalgias.
Por esse facto foi-lhe aplicado um colar cervical, tendo sido devidamente medicado.
Recebeu alta para o seu domicílio nesse mesmo dia.
Como o quadro de dor não se atenuava com o passar dos dias, mesmo recorrendo ao consumo de analgésicos e anti-inflamatórios, o autor voltou a recorrer à urgência do Centro Hospitalar ..., no dia 30.12.2015.
Mantendo a utilização do colar cervical, tendo alta nesse mesmo dia.
Regressou àquele serviço de urgência hospitalar nos dias 12.07.2016, 30.10.2016; 25.7.2019 e 12.2.2020, por cervicalgia que o incapacitavam na sua actividade profissional.
Recorreu, entretanto, ao Instituto ..., onde realizou os seguintes exames imagiológicos:
- ressonância magnética da coluna vertebral (24.02.2016): imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea;
- ressonância magnética da Coluna vertebral cervical e dorsal (4.11.2016): persistência de imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea.
Começou a ser acompanhado por medicina física e reabilitação a 16.03.2016 no Centro Hospitalar e Universitário ..., tendo aí feito tratamentos de fisioterapia até Setembro de 2016.
Fez exame de revisão em Fevereiro de 2017, sendo enviado para a Consulta da Dor por manutenção das queixas cervicais, com repercussão funcional, havendo surtos de agudização hiperálgica, muito na dependência da sobrecarga mecânica com o aumento da actividade laboral.
Começou a ser seguido na Unidade de Dor Crónica do Centro Hospitalar e Universitário ..., em 17.02.2017.
No dia 5.03.2020 foi observado pelo Dr. CC (Ortopedista), no Hospital ..., constando do relatório que apresentava cervicalgia crónica, na sequência de contusão cervical com lesão ligamentar, recalcitrante a diversas abordagens terapêuticas (medicamentosas, fisiátricas, posturais, etc.); tendo-lhe sido feitos ajustes terapêuticos, instituindo Tapentadol 50mg, Flurbiprofeno 40mg transdérmico e hidroginástica.
Foi também observado em consulta de Urologia, no Hospital 1..., constando de relatório de 24.11.2016 que apresentava queixas de disfunção sexual após acidente em 2015, tendo sido orientado para a consulta de Psiquiatria com o diagnóstico de disfunção sexual psicogénica.
Recorreu então a Psiquiatria (Dr. DD), em cujo relatório datado de 8.05.2019 consta que é acompanhado naquela consulta desde 2016, por síndrome depressivo-ansioso recorrente.
Em Maio de 2016, o autor fez endoscopia digestiva alta por queixas dispépticas, tendo sido diagnosticado com gastropatia erovisa provavelmente secundária a fármacos, tendo diminuído a toma de anti-inflamatórios.
Como queixas das lesões sofridas, o autor apresenta dificuldade em certas posturas, tendo por vezes de fazer ajustes devido às dores cervicais, o mesmo acontecendo quando corre ou faz algum esforço físico.
Sente ansiedade, maior irritabilidade e cansaço, devido às cervicalgias crónicas, que o limitam nas suas actividades da vida diária, desportivas, de lazer e profissionais.
Apresenta fenómenos dolorosos referidos à região cervical, despoletada pelos movimentos de hipertensão e hiperflexão, necessitando de fazer medicação regularmente.
E impacto ligeiro na actividade sexual, necessitando de mudar de posição por queixas álgicas e sentindo menos libido, principalmente nos dias em que se sente mais cansado.
Apresenta dificuldade em manter-se no computador durante mais de uma hora e quando realiza pequenas cirurgias tem necessidade de fazer paragens frequentes pela posição de flexão cervical.
Apresenta também dificuldade em adormecer e acorda algumas vezes durante a noite por queixas álgicas referidas à região cervical.
Não consegue deitar-se no sofá para relaxar como fazia regularmente, porque essa postura é causa de dores.
Deixou de jogar paddle, ainda que por vezes tente, mas ficando com muitas dores e mantém a corrida mas com muito menos frequência, por menos tempo e com interrupções frequentes; e continua a frequentar o ginásio mas com adaptação dos exercícios.
Como sequelas das lesões sofridas, o autor apresenta cervicalgias que o obrigam ao uso regular de medicação analgésica.
O autor obteve a sua consolidação médico-legal, no dia 23.03.2016.
As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram, para o autor, um período de tempo de défice funcional temporário parcial de 90 dias.
O autor sofreu um “Quantum Doloris” de grau 3, numa escala de 1 a 7.
O descrito em 27 a 34, causa ao autor tristeza e desgosto, frustração e sentimentos de inferioridade.
Antes do embate, o autor era uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertido e com facilidade para as relações sociais e, após o acidente, passou a ser uma pessoa mais triste e desanimada, menos confiante, menos energética, menos activa, menos divertida, mais vulnerável, mais insegura e mais saturada, não se relacionando tão intensamente com os amigos com quem desenvolvia as actividades desportivas e de lazer”.
*
Importa por outro lado sopesar que o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor e proprietário do veículo de matrícula VO-..-...
Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se no seu ensino os tratadistas.
Assim, Menezes Cordeiro[12] ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles[13] sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima–na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão[14] realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”.
Pinto Monteiro[15], de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”.
Por outro lado, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, sendo que, nesta ponderação de valores, tem defendido que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado.[16]
Registe-se, de qualquer modo, que nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça[17] vem acentuando que estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, como igualmente acentua que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Como assim, sopesando o quadro factual supra exposto e tendo em atenção as lesões sofridas, aos tratamentos necessários e a que teve de submeter-se, à duração destes, às dores, classificadas no grau 3 e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, entendemos que a compensação por esta categoria de danos fixada pelo tribunal recorrido se revela justa e equilibrada nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil.
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Improcedem, assim, as conclusões 7ª a 12ª, formuladas pela Ré recorrente.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta pelo Autor totalmente improcedente por não provada, e parcialmente procedente por prova a apelação interposta pela Ré, em razão de que se altera para € 20.000,00 (vinte mil euros) a indemnização atribuída ao Autor a título de dano biológico (dano patrimonial futuro) e que na decisão recorrida havia sido fixada em € 100.000,00 (cem mil euros).
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
*
Custas pelo Autor pela apelação que interpôs e custas na proporção do decaimento por Autor Ré no recurso por esta interposto (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
*
Porto, 04 de Abril de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
______________
[1] Cfr. Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9TBVRL.P1.S1 e Ac. STJ de 11.12.2012, p. 269/06.7 GARMR, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. proc. nº 560/09.0YFLSB, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. também Ac. STJ de 20.1.2010, p. 203/99.9TBVRL e Ac. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3TBLSD.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, Cap. II, secção I.
[5] Segundo as Tábuas de Mortalidade relativas ao triénio 2014-2016, a esperança de vida à nascença em Portugal foi estimada em 77,61 anos para os homens e de 83,33 anos para as mulheres.
[6] Entre outros, Ac. do STJ de e acórdão do STJ de 26.01.2012 (processo nº 220/2001.L1.S1), onde expressamente se enfatiza que o desenvolvimento da noção do dano biológico em Itália partia, entre outros, do pressuposto da “irrelevância do rendimento do lesado como finalidade da liquidação do ressarcimento, Ac. de Coimbra de 04/06/2013, da Relação de Lisboa de 22/11/2016 (processo nº 1550/13.4TBOER.L1-7), de 25/02/2021 852/17.5T8AGH.L1 e 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2 e da Relação do Porto, de 19/03/2018 processo nº 1500/14.0T2AVR.P1.
[7] Cfr. Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afetação funcional não resulte perda da capacidade de ganho– o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, p. 126.
[8] Tem sido esta a solução preconizada, designadamente, pelo Conselheiro SOUSA DINIS em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes.
[9] Cfr., entre muitos outros, respectivamente, Acs. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3TBLSD.P1, 17.9.2013, proc. 7977/11.9TBMAI.P1, 7.4.2016, proc. 171/14.9TVPRT.P1, de 1.7.2013, p. 2870/11.8TJVNF.P1 de 17.6.2014, proc. 11756/09.5TBVNG.P1, de 24.2.2015, proc. 435/10.0TVPRT.P1, de 9.12.2014, proc. 1494/12.7TBSTS.P1, 10.12.2013, p. 2236/11.0TBVCD.P1, de 9.12.2014, p. 149/12.7TBSTS.P1, disponíveis in www.dgsi.pt, e da Rel. Guimarães de 27.2.2012, p. 2861/07.3TABRG.G1, e de 22.3.2011, p. 90/06.2TBPTL, da Relação de Lisboa de 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2disponíveis www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375.
[11] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485.
[12] In Direito das Obrigações, 2° vol. pag. 288.
[13] In Direito das Obrigações, pág. 387.
[14] In Direito das Obrigações, vol. I, 299.
[15] In “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n° l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.
[16] Ac. STJ 28.11.2013, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, Ac. STJ 07.05.2014, Proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[17] Cfr., por todos, acórdão de 7.12.2011 (processo nº 461/06.4GBVLG.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt.