Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22/21.8GTMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
AUTORIZAÇÕES DE SAÍDA
Nº do Documento: RP2023011122/21.8GTMAI.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A redação do n.º 3 do artigo 43.º do Código Penal decorrente da Lei n.º 94/2017 de 13 de agosto consagra inequivocamente a possibilidade de autorização de saída para o exercício da atividade profissional em caso de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
II – Essa autorização não descaracteriza a pena de prisão executada em regime de permanência na habitação como pena privativa da liberdade que continua a ser mesmo assim.
III – Essa autorização pode ter plena justificação na perspetiva da finalidade de não desinserção social que leva à opção por tal modo de execução da pena de prisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 22/21.8TMAI.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – AA veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Valongo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que o condenou, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de um ano e seis meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com autorização de saídas para frequência de aulas de condução tendo em vista a obtenção de habilitação legal para conduzir, por razões de saúde devidamente fundamentadas e para deslocações ao tribunal para participação em diligências ou atos processuais.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I. Por sentença proferida em 03OUT2022, foi o Arguido, ora Recorrente, condenado «pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, n.º s 1 e 2 do DL n.º 02/98 de 03/01, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, conforme permitido pelo art. 43.º, n.º s 1, al. a), e 2 do Código Penal e nos termos regulamentados na LVE.».
II. Vem o presente recurso interposto por o Arguido não se conformar com a sentença proferida pelo Tribunal a quo quanto ao modo de execução da pena substitutiva da pena de prisão aplicada ao Arguido por RPH nos termos do artigo 43.º do CP, designadamente quanto à circunstância de o Tribunal a quo não ter autorizado o arguido a ausentar-se da sua habitação para exercício da sua actividade profissional, nos termos do artigo 43.º, n.º 3 do CP.
III. O Tribunal a quo andou mal ao decidir conforme decidiu no que concerne à não concessão de autorização de das ausências necessárias para o exercício da actividade profissional do condenado, nos termos do n.º 3 do artigo 43.º do CP.
IV. Pese embora a pluralidade de condenações anteriormente sofridas pelo recorrente, a verdade é que todas elas se registaram no domínio da pequena criminalidade, não tendo em consequência de nenhuma dessas condenações e em momento anterior à prática do factos em causa nos presentes autos, sido alguma vez experimentada qualquer medida de coerção da sua liberdade, tendo-se sempre optado pela aplicação da pena de multa ou por uma pena de substituição de caráter não detentivo.
V. Com efeito, só em 04ABR2022, no âmbito do processo n.º 200/22.2GAMAI, foi aplicada ao Arguido uma pena privativa da liberdade, sendo certo que os factos que levam à sua presente condenação ocorreram em 24MAI2021.
VI. O próprio Tribunal a quo considerou gozar o recorrente de inserção/apoio, embora tenha uma precária situação económica, e não obstante necessite de se esforçar mais no que concerne à frequência das aulas de código necessárias à obtenção da habilitação de condução, cuja falta está diretamente relacionado com os crimes anteriormente cometidos, considerando por isso que o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação realiza adequadamente as finalidades de prevenção, com reafirmação perante a comunidade do bem jurídico posto em causa e integração do agente na sociedade sem necessidade de contacto com o meio prisional.
VII. A única questão que ora se coloca é, então, a de saber se o arguido deve ou não ser autorizado a sair da sua habitação uma hora antes e depois do seu horário de trabalho, por forma a exercer a sua atividade «em regime de turnos, de segunda a domingo das 09:30 às 15:00 horas e das 18:00 às 23:00 horas, com folga às quartas-feiras», mantendo desse modo o sustento do seu agregado familiar, sendo que uma tal atividade foi referida no respetivo relatório social, nos termos dados como provados na sentença condenatória.
VIII. Uma tal autorização, ainda mais porque circunscrita a períodos de tempo relativamente curtos, se comparados com aqueles em que o recorrente permanecerá sem poder sair da sua habitação, permitem manter a eficácia da pena e as finalidades que com a mesma se visa alcançar sendo que tais saídas, permitindo a obtenção para o seu agregado familiar de rendimentos complementares ao RSI de que beneficia a sua companheira, e não pondo em causa as necessidades de prevenção geral, prognostica-se que poderão contribuir mais acentuadamente para a sua ressocialização, proporcionando-lhe assim o máximo de condições possíveis para prevenir a reincidência e poder vir a prosseguir a vida no futuro sem cometer crimes, ao mesmo tempo que assim melhor se respeita, em concreto, o parâmetro de proporcionalidade na restrição necessária dos direitos fundamentais do recorrente, e a sua dignidade de pessoa humana.
IX. A execução da pena de prisão aplicada ao Arguido em regime de permanência na habitação, com autorização para trabalhar, ainda satisfará de forma adequada e suficiente as fnalidades da punição, em especial se acompanhada da determinação do cumprimento de regras de conduta como sejam a frequência, acompanhada e da respectiva autorização, das aulas necessárias à obtenção da habilitação legal para conduzir.
DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS:
● 40.º, 42.º, 43.º CP.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se no âmbito do regime de permanência na habitação em que será executada a pena de prisão em que o arguido e recorrente foi condenado deverão, ou não, ser autorizadas deslocações para o exercício da atividade profissional deste.

III -
Da fundamentação da doutra sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
Da discussão resultaram provados os seguintes factos:
*
1. No dia 24/05/21, cerca das 19:30 horas, ao Km 18,900 da A4, em ..., Valongo, o arguido interveio em sinistro rodoviário.
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-NF.
3. Não sendo titular de carta de condução ou de outro documento válido que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo.
4. Sabia carecer de habilitação legal para o exercício da condução daquele motociclo na via pública.
5. Assim como que tal conduta era proibida e punida por lei.
6. Não obstante o que não deixou de actuar como actuou, agindo livre e conscientemente.
7. São-lhe conhecidos os seguintes antecedentes criminais:
- PES n.º 916/16.2PBMAI – Juízo (J1) Local Criminal da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 10/01/17 e transitada em 09/02/17, pela prática, em 29/12/16, de dois crimes de condução sem habilitação legal, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), substituída por 150 (cento e cinquenta horas) de trabalho a favor da comunidade;
- PES n.º 57/18.8PEMTS – Juízo (J3) Local Criminal de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 10/12/18 e transitada em 22/01/19, pela prática, em 08/12/18, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena principal única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses;
- PES n.º 77/21.5PDPRT – Juízo (J2) Local de Pequena Criminalidade do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 11/05/21 e transitada em 06/09/21, pela prática, em 21/04/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 12 (doze) meses;
- PES n.º 241/21.7PBVLG – Juízo (J1) Local Criminal de Valongo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 18/05/21 e transitada em 06/09/21, pela prática, em 05/06/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
- PES n.º 32/21.5PFMTS – Juízo (J4) Local Criminal de Matosinhos do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 26/05/21 e transitada em 06/09/21, pela prática, em 16/04/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 12 (doze) meses;
- PES n.º 163/21.1PDMAI – Juízo (J1) Local Criminal da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 13/07/21 e transitada em 30/09/21, pela prática, em 11/07/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
- PES n.º 452/21.5PBMAI – Juízo (J1) Local Criminal da Maia do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 18/08/21 e transitada em 30/09/21, pela prática, em 03/07/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 12 (doze) meses;
- PCS n.º 20/21.1GTMAI – Juízo (J2) Local Criminal de Penafiel do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação, proferida em 16/11/21 e transitada em 06/01/22, pela prática, em 10/05/21, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de 12 (doze) meses;
- PCS n.º 20/21.1GTMAI-A – Juízo (J2) Local Criminal de Penafiel do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Condenação cumulatória, proferida em 04/03/22 e transitada em 27/05/22, nas penas de 380 (trezentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), e de 16 (dezasseis) meses de prisão, cuja execução se suspendeu por igual período de tempo.
*
Do relatório social elaborado pelos serviços da DGRSP, consta que:
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8. À data dos factos constantes na acusação, integrava o agregado de origem da mãe, constituído pelo próprio, a ex-companheira, os dois filhos de ambos, actualmente de quatro e dois anos e o actual companheiro da primeira; residiam numa moradia antiga, de tipologia 2, com modestas condições de habitabilidade, situada em zona residencial periurbana, em ..., na Maia.
9. Encontrava-se em situação de inactividade laboral, ainda que pontualmente executasse alguns trabalhos, numa oficina de automóveis, com funções de ajudante de mecânico-auto; os seus tempos livres eram passados com o grupo de pares, associados a actividades ilícitas e ao consumo de substâncias de estupefacientes.
10. A sua subsistência era assegurada com o vencimento da mãe e do padrasto, ambos auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional, num total € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) por mês, a ex-companheira trabalhava como empregada doméstica, auferindo cerca de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) por mês, a que acrescia abono de família no valor mensal de € 70,00 (setenta euros); como despesas mensais fixas mais relevantes foram apontadas as decorrentes da renda e da manutenção da habitação, num total de € 300,00 (trezentos euros) mensais, sendo tais encargos responsabilidade da mãe do arguido.
11. O seu processo de desenvolvimento decorreu no agregado familiar de origem, constituído pelos pais e oito irmãos, sendo o quarto filho, numa dinâmica descrita como disfuncional e marcado pelos hábitos de consumo excessivo de álcool e consumo de estupefacientes, por parte do pai e comportamentos agressivos, na presença dos descendentes; os pais separaram-se há cerca de seis ou sete anos, encontrando-se o progenitor em cumprimento de pena de prisão efectiva, com o qual o arguido estabelece contactos telefónicos pontuais; a progenitora estabeleceu novo relacionamento afectivo, estabelecendo o arguido com o padrasto um relacionamento de cordialidade.
12. Frequentou a escola até ao sexto ano de escolaridade, num percurso marcado por falta de assiduidade e desmotivação; mais tarde, integrou o sistema de ensino em contexto institucional, designadamente no Internato ... no Porto e na “Casa ...” em Viana do Castelo, onde permaneceu até aos dezassete anos e onde frequentou o curso profissional de mecânico de serviços rápidos, de dupla certificação, tendo concluído o equivalente ao nono ano de escolaridade; após ter saído da instituição, integrou o agregado familiar da mãe, onde permaneceu por um curto período de tempo, sensivelmente um ano.
13. Estabeleceu nova relação com a ex-companheira, deste relacionamento existindo dois filhos, actualmente com quatro e dois anos, residentes com a figura materna, no agregado familiar da mãe do arguido; esta relação terminou, na sequência das divergências com o arguido, entre a ex-companheira e a mãe do arguido, perante o estilo de vida que este apresentava à data dos factos, direccionado para o consumo de estupefacientes; reporta o início consumo de estupefacientes (haxixe e cocaína) aos dezassete anos em contexto de grupo de pares, sem que tenha efectuado qualquer tratamento clínico; actualmente, assume consumos esporádicos de haxixe, desvalorizando a necessidade de acompanhamento clínico.
14. Em Setembro de 2021, estabeleceu novo relacionamento afectivo, passando a residir em união de facto no agregado familiar de origem desta e onde se mantém; esse agregado familiar é constituído pelo casal, pela mãe e irmã da actual companheira; residem numa habitação de tipologia 2, propriedade do casal, com diminutas condições de salubridade e de habitabilidade, situada em zona residencial periurbana, com características de ruralidade, na Maia.
15. O agregado familiar subsiste com o vencimento equivalente ao SMN do condenado, activo laboralmente num restaurante, na Maia, da prestação do rendimento social de inserção atribuído à companheira, no valor de € 189,00 (cento e oitenta e nove euros) por mês e da pensão de sobrevivência atribuída à mãe da companheira no valor mensal de € 235,00 (duzentos e trinta e cinco euros); como despesas mensais fixas mais relevantes foram apontadas as decorrentes da manutenção da habitação, num total mensal de € 100,00 (cem euros), para o que o arguido colabora nas mediante as necessidades do agregado.
16. A dinâmica familiar foi descrita com laços de solidariedade e de coesão entre todos os elementos, manifestando total disponibilidade para o apoiar, perspectivando o arguido e a companheira autonomizarem-se a curto prazo do agregado, quando conseguiram arranjar uma habitação; desta relação nasceu um filho no passado dia .../.../2023; ao nível laboral, o arguido apresenta um percurso com períodos de inactividade, trabalhando por curtos período de tempo em empresa fabril na área alimentar.
17. Desde o início de Dezembro de 2021, encontra-se a trabalhar no sector da restauração, com funções de assador em restaurante na cidade da Maia, actividade que mantém actualmente; no contacto telefónico estabelecido com a entidade patronal, é descrito como responsável pelas funções que desempenha e assíduo; encontra-se autorizado judicialmente a manter esta actividade, no decurso da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, em regime de turnos, de segunda a domingo das 09:30 às 15:00 horas e das 18:00 às 23:00 horas, com folga às quartas-feiras.
18. Encontra-se, desde 25/05/22, a cumprir uma pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses em regime de permanência na habitação à ordem do processo n.º 200/22.2GAMAI, do Juízo Local Criminal de Maia, Juiz 2, pela pratica de condução sem habilitação legal, cujo termo está previsto para 24/07/23; no âmbito da execução da presente pena, foi autorizado à frequência de escola de condução com vista à obtenção de titulo legal, encontrando-se inscrito na Maia, desde Maio de 2022; iniciou as aulas de Código em Maio, contudo, no contacto estabelecido com a escola de condução, o condenado, tem apresentado até ao momento diminuída assiduidade às mesmas.
19. Apresenta-se apreensivo e ansioso, verbalizando um discurso que permite concluir que tem consciência das consequências que poderão resultar do processo judicial, sendo capaz de, perante os factos pelos quais está acusado, formular, em abstracto, juízo crítico de censura, considerando-os de carácter gravoso.
20. Actualmente dispõe do apoio familiar da companheira, mãe e irmã da companheira e junto dos quais cumpre actualmente pena de prisão em regime de permanência na habitação, havendo condições logísticas e formais para que se continue a executar pena de prisão em idêntico regime, sendo certo que a companheira, mãe e irmã da companheira formalizaram o consentimento para uso de meios de VE; dispõe também, do apoio afectivo do agregado familiar da mãe, que o visita com regularidade, acompanhada dos filhos menores da anterior relação.
21. Durante o período de ausência da habitação é interrompida a monitorização contínua da pena, podendo apenas estes serviços aferir o cumprimento do horário de entrada e saída da habitação, bem como efectuar contactos com o responsável da empresa e escola de condução, como forma de avaliar a sua assiduidade.
(…)
Detenhamo-nos na adequação e suficiência do cumprimento da pena em RPH. Estabelece o art. 43.º, n.º 1 do Código Penal que sempre que o Tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (…), entre outras, a pena de prisão efectiva não superior a dois anos, o mesmo consistindo, conforme ensina o seu n.º 2, na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas. Quanto a estas últimas, esclarece o n.º 3 do normativo legal em cotejo que o Tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para actividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado, mais se encontrando ao alcance do Tribunal subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, susceptíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente, frequentar certos programas ou actividades [al. a)], cumprir determinadas obrigações [al. b], sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado [al. c)], não exercer determinadas profissões [al. d)], não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas [al. e)], ou não ter em seu poder objectos especialmente aptos à prática de crimes [al. d)].
Constituindo doutrina e jurisprudência tendencialmente pacífica encontrarmo-nos perante uma verdadeira pena de substituição – neste sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, 182 e seguintes, e, a título exemplificativo, o Ac. do TRP de 18/09/13, in www.dgsi.pt, em cujos termos “a obrigação de permanência na habitação (…) corresponde a uma nova pena de substituição e não a uma forma de execução da pena” –, mais constatamos que, por assim ser, “o momento de se ponderar sobre a sua aplicação é o da escolha e medida da pena, ou seja, aquando da sentença condenatória ou no recurso que vier a conhecer dessa mesma sentença” (cfr. o Ac. do TRC de 10/12/13, in www.dgsi.pt). Ora, ainda que formalmente não conste ainda do CRC do arguido, sabe-se encontrar-se o mesmo a usufruir presentemente do cumprimento de pena de prisão em RPH, com autorização de ausência para trabalhar e para frequentar aulas de condução, vindo a respeitar aquelas saídas, que não estoutras, pois que, embora inscrito em escola de condução, apresenta uma diminuta assiduidade às aulas de Código. Recorrendo aos ensinamentos da melhor jurisprudência, “considera-se, pois, que as autorizações de saída devem ter mais a ver com as finalidades da punição – prevenção geral e especial – do que propriamente com a efectiva possibilidade de fiscalização” (cfr. o Ac. do TRG de 28/10/19, in www.dgsi.pt), que convoca o um outro aresto, no qual se exarou “que o regime de permanência na habitação não pode ser objecto de um regime de flexibilização que o descaracterize de tal forma que o mesmo passe a ser confundido com o regime de semidetenção (…), com a particularidade de em momento algum o condenado ter contacto com o EP, dando assim origem a um tertium genius que não encontra arrimo nas penas de substituição” (cfr. o Ac. do TRC de 12/03/14).
Ora, considerada a constatação supra, a saber, a de que o arguido se limitou a inscrever em escola de condução, cujas aulas frequenta de forma meramente esporádica, e analisadas as apontadas finalidades de prevenção geral e especial, somos a entender que o regime de flexibilização no cumprimento da pena de que beneficia desde 22/05/22, o mesmo é dizer, há mais de quatro meses por referência ao momento presente, não tem merecido a absoluta adesão do arguido, sendo este quem, em bom rigor, o descaracteriza, ao o não cumprir com a pontualidade devida. Saliente-se que, axial no âmbito da flexibilização em causa, seria o seu empenho em licenciar-se para o exercício da condução, o que persiste em descurar. Sabendo-se que uma das finalidades das penas contende com a “reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, do mesmo passo que funciona como “desmotivação do arguido, isto é, para que o arguido perceba que o crime não compensa (prevenção especial)” (cfr. o Ac. do TRG de 05/11/18, in www.dgsi.pt), somos a entender que as mesmas sobrevém questionadas no caso concreto, pois que as saídas autorizadas no âmbito da pena de prisão em OPH com VE que o arguido se encontra a cumprir pecam, salvo melhor opinião, pela sua abrangência, assumindo, quanto a nós, as vestes do tertium genius a que alude a jurisprudência. Deste modo, e reconhecendo a suficiência e adequação do recurso à OPH com VE na hipótese vertente, cremos ser essencial que o arguido reconheça a imperiosidade de se tentar habilitar a conduzir, razão pela qual apenas se autorizam as deslocações à escola de condução onde se encontra inscrito para frequência das respectivas aulas, tendo em vista a sua habitação legal para o exercício da condução.
Quanto às demais, comuns a qualquer cumprimento de pena nos apontados moldes, acolhemos a discriminação inserta no relatório elaborado pelos serviços da DGRSP, em cujos termos, in casu, a Equipa VE Porto, desenvolverá as tarefas de “monitorização da permanência no local de vigilância electrónica nos períodos definidos judicialmente; verificação dos pressupostos e do cumprimento das finalidades das saídas regulares de que o condenado beneficie; controlo de saídas excepcionais, com prévia verificação dos seus pressupostos, razoabilidade e oportunidade bem como a verificação do cumprimento das respectivas finalidades, caso o Tribunal assim o determine; seguimento do caso, proporcionando a ajuda necessária para que sejam atingidos os objectivos estipulados; relatórios de execução e de incidentes, caso se justifique” (sic). Nesta esteira, delega-se nos competentes serviços a competência para autorizar a saída excepcional do arguido da sua residência por motivos de saúde devidamente fundamentados e comprovados, assim como para deslocações a diligências / actos processuais em Tribunal.
(…)»

IV – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que no âmbito do regime de permanência na habitação em que será executada a pena de prisão em que foi condenado deverão, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, do Código Penal, ser autorizadas deslocações para o exercício da sua atividade profissional. Invoca a circunstância de a suas condenações anteriores à prática dos factos aqui em apreço se situarem sempre no âmbito da pequena criminalidade e não implicarem penas privativas da liberdade. Alega que a autorização para o exercício da atividade profissional permite manter a eficácia da pena em que foi condenado, satisfazendo as finalidades deste, contribuindo para a sua ressocialização e prevenindo a prática de futuros crimes.
Considera a douta sentença recorrida que tal autorização, que se verifica noutras penas de prisão com regime de permanência na habitação que o arguido e recorrente está a cumprir, descaracteriza tal pena flexibilizando-a em demasia, confundindo-a com um tertium genus que se confunde com uma semi-detenção com a particularidade de o condenado em momento algum ter contacto com o estabelecimento prisional. Invoca nesse sentido o acórdão da Relação de Coimbra de 12 de março de 2014, proc. n.º 3/13.5SFGRD.C1, relatado por Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt. Invoca a circunstância de, como consta do relatório social junto aos autos, o arguido não vir demonstrando grande empenho na obtenção de habilitação legal para conduzir.
Vejamos.
Há que salientar, antes de mais, que o invocado acórdão da Relação de Coimbra de 12 de março de 2014, que considera a autorização para o exercício da atividade profissional do condenado descaracterizadora da pena de prisão executada em regime de permanência na habitação (levando a confundi-la, sem base legal, com a semi-detenção), é anterior à atual redação do artigo 43.º do Código Penal, decorrente da Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto. O n.º 3 desse artigo consagra hoje, inequivocamente, a possibilidade de tal autorização ser concedida (possibilidade que anteriormente, de forma não tão clara, poderia já decorrer dos artigos 11.º, n.º 1, e 20.º, da Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro), não cabendo ao intérprete questionar tal opção do legislador invocando uma suposta descaracterização dessa pena.
É de salientar, também, que essa mesma Lei n.º 94/2017 vem suprimir a pena de semi-detenção, pelo que, também por este motivo, não se justifica invocar agora a necessidade de distinguir entre essa pena e a pena de prisão executada em regime de permanência na habitação.
De qualquer modo, deve salientar-se que a autorização de saída para o exercício da atividade profissional não descaracteriza a pena de prisão em regime de permanência na habitação como pena privativa da liberdade, que continua a ser.
Na verdade, o dano que representa a privação da liberdade não se verifica tanto, nem sobretudo, quando se cumpre a obrigação de trabalhar (sempre de alguma penosidade), mas antes, precisamente, quando o condenado se vê privado do gozo daquele tempo a que com propriedade se chama “tempo livre” (porque “livre” desse cumprimento das obrigações laborais). Durante esse “tempo livre”, o condenado em pena de prisão executada em regime de permanência na habitação está confinado à sua habitação, como estaria confinado ao estabelecimento prisional se fosse outro o regime de execução aplicável.
Essa situação poderá equiparar-se à execução da pena de prisão em regime aberto no exterior (que pode incluir o exercício da atividade prisional fora do estabelecimento prisional), regime previsto no artigo 12.º, n.º 3, b), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (Lei n,º 15/2009, de 12 de outubro), regime que também não descaracteriza a pena de prisão como pena privativa da liberdade (nem se confunde com a liberdade condicional).
Por outro lado, a autorização para o exercício da atividade profissional pode ter plena justificação na perspetiva da finalidade de reinserção social do condenado (ou da sua não desinserção social), finalidade que, precisamente, fundamenta a opção pela execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, evitando os malefícios da execução dessa pena no estabelecimento prisional nessa mesma perspetiva (que se traduzem na dessocialização decorrente da quebra de laços familiares, e também laborais). Privar o condenado da possibilidade de exercer a sua profissão poderá, pois, significar anular um dos principais benefícios desse regime na perspetiva dessa finalidade de reinserção social (ou não desinserção social), que é o de evitar o malefício contrário que decorre de execução dessa pena no estabelecimento prisional.
Afigura-se-nos que é isso que se verifica neste caso.
De acordo com a factualidade provada, e com base no relatório social junto aos autos, o arguido e recorrente, depois de ter vivido períodos de inatividade e precariedade laboral, exerce hoje com empenho e assiduidade uma atividade profissional (ver o ponto 17 do elenco dos factos provados). O exercício dessa atividade mantém-se no âmbito da execução de outra pena de prisão em regime de permanência na habitação em que foi condenado. A impossibilidade de continuação desse exercício prejudicaria, injustificadamente, a reinserção social do condenado. Tal reinserção social cumpre uma finalidade de prevenção especial positiva, que não diz respeito apenas ao crime de condução sem habilitação legal por que o arguido vem sendo condenado, mas à prática de crimes em geral.
Poderá argumentar-se, como faz o Ministério Público junto desta instância, que o arguido e recorrente, pelos seus antecedentes criminais, está a obter um tratamento demasiado benévolo.
Mas tal argumentação (tal como a argumentação contrária do arguido e recorrente, no sentido de minimizar a gravidade dos seus antecedentes criminais) valerá no âmbito da discussão da opção pela execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, ou da medida da pena, questões que não cumpre apreciar nesta sede, pois em relação a tais opções não foi interposto recurso. Não será a maior ou menor gravidade do crime a determinar a eventual autorização para o exercício da atividade profissional do arguido e recorrente, mas, antes, o benefício que daí possa decorrer na perspetiva da reinserção social deste.
Por outro lado, a circunstância de o arguido e recorrente vir demonstrando, no âmbito da execução de outras penas em que foi anteriormente condenado, pouco empenho na obtenção de habilitação legal para conduzir (habilitação que, obviamente, é da maior vantagem na perspetiva da prevenção da prática futura do crime de condução sem tal habilitação em que ele vem sendo reiteradamente condenado) não tem a ver com questão que agora nos ocupa. A impossibilidade de o arguido e recorrente exercer a sua atividade profissional não será a melhor forma de contrariar tal falta de empenho (até o privará de recursos económicos para obter tal habilitação). Para tal, poderia ter sido fixada a obrigação de frequência de aulas de condução como condição de aplicação do regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43.º, n.º 4, a), do Código Penal.
Deverá, assim, ser concedido provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, autorizando o arguido e recorrente, no âmbito da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação em que foi condenado, a ausentar-se da sua habitação para o exercício da sua comprovada atividade profissional e mantendo-se, no restante, a douta sentença recorrida.

Notifique

Porto, 11 de janeiro de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio