Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1468/13.0TTVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA SÁ LOPES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
RELATÓRIO PERICIAL
VALOR
PRESUNÇÃO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201804111468/13.0TTVNG.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 273, FLS 371-382)
Área Temática: .
Sumário: I - “O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem”.
II - O relatório pericial deve ser feito de forma fundamentada e a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.
III - “O acidente de trabalho pressupõe a ocorrência dum acidente, entendido, em regra, como evento súbito, imprevisto e que provoque uma lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador e que este evento ocorra no tempo e no local de trabalho.”.
IV - “O artigo 10º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, ao dispor que a lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho, estabelece uma presunção de causalidade, “juris tantum” entre o acidente e as suas consequências”.
V - “Esta presunção não liberta, porém, os sinistrados ou os seus beneficiários do ónus da prova da verificação do próprio evento causador das lesões, ónus que lhes compete”.
VI - Tendo resultado provado apenas que a morte do sinistrado foi consequência de problema cardíaco (enfarte do miocárdio) bem como que aquela ocorreu quando o mesmo se deslocava para o local de trabalho, na viatura da empresa e que nesse decurso, a viatura da empresa em que aquele seguia embateu contra um lancil, ficando imobilizada, não se provou a existência de um acidente de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1468/13.0TTVNG.P1
Origem:
Tribunal da Comarca do Porto – Juízo do trabalho de Vila Nova de Gaia, Juiz 1
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
1.Relatório:
B..., residente na Rua ..., Hab. ..., ..., Vila Nova de Gaia, instaurou a presente acção declarativa com forma de processo especial de ação para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra a Companhia de Seguros C..., S.A., com sede na Rua ..., nº.., Lisboa e D..., Ldª, com sede na Rua ..., ..., Porto, (tendo a acção sido indeferida liminarmente quanto a esta última), pedindo que o acidente sofrido por H..., seja declarado como de trabalho e a condenação da Ré Seguradora a pagar-lhe:
“a)- A quantia de 2.984,10€ (9.947,00 * 30% = 2.984,10€, a titulo de pensão anual vitalícia, com inicio a 14 de Dezembro de 2013 até atingir a reforma e a quantia de 3.979,00€ (por arredondamento), a partir da data em que atingir a reforma (9.947,00* 40%= 3.979,00€, por arredondamentos).
b)- A quantia de 2.766,85€ a titulo de subsídio de morte.”
Para tanto alegou, em síntese, que o sinistrado era saudável e que apenas faleceu por uma arritmia cardíaca derivada do stress em que andava nos últimos tempos por causa dos objectivos acrescidos da empresa.
A Ré, regulamente citada, apresentou contestação, impugnando ser essa a causa da morte e invocando como causa dela uma doença natural de cardiopatia isquémica.
A Autora respondeu.
Foi proferido despacho saneador, no qual foram fixados os factos assentes e os factos controvertidos.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento com observância de todas as formalidades legais, após o que foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se a ré Companhia de Seguros C..., S.A., dos pedidos formulados pela autora B....
Custas pela Autora, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.”
Não se conformando com o assim decidido, a Autora apelou, apresentando, no final, as suas conclusões no sentido da procedência do recurso, sendo revogada, nos termos alegados, a sentença e substituída por outra que condene a Ré nos pedidos que formulou.
Foram as seguintes as suas conclusões:
“1. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como não provados os factos não provados em 2) a 9) dos factos controvertidos.
2. Sobre esta matéria foram ouvidas as testemunhas E... e F..., que foram claros e expressivos quanto ao facto de que o sinistrado andava stressado e preocupado com o trabalho, em cumprir os objectivos que lhe eram propostos.
3. Assim, tendo em conta o depoimento das testemunhas acima referidas, sempre o Tribunal teria de dar como provado, ao menos, o ponto 9 da matéria de facto controvertida, o que conduziria, de resto, a uma decisão materialmente diferente.
4. Incorreu ainda o Tribunal a quo, em erro de julgamento da matéria de facto quando deu como provado o facto provado em J), ou seja, que o sinistrado faleceu por enfarte do miocárdio ou cardiopatia isquémica, relacionado/a com a existência, na aorta, de placas de ateroma calcificadas, derivadas de ateriosclerose coronária de que aquele padecia.
5. Quanto ao facto dado como provado em J), o mesmo deveria ter sido dado como não provado.
6. Isto porque, resultou provado que o sinistrado não padecia de qualquer doença.
7. E se sofria esta apenas foi descoberta no relatório de autópsia.
8. Isto mesmo resulta dos registos do centro de saúde onde o sinistrado era assistido, junto a folhas 142 a 150, os quais davam conta de problemas de hipertensão desde Fevereiro de 2012.
9. Ora, Hipertensão é uma doença crónica popularmente conhecida como “pressão alta”.
10. Contudo, este problema de saúde, de que o sinistrado padecia, estava tratado e controlado, uma vez que o sinistrado era acompanhado regularmente no centro de saúde, como resulta claro dos relatórios médicos juntos aos autos.
11. Pelo que, não estando sujeito a factores potenciadores de desenvolvimento desta doença, nomeadamente o stress, o mesmo não padeceria de lesões graves que levassem à sua morte.
12. Para além do relatório de autópsia, relativamente à conclusão de que o sinistrado padecia de um processo de arteriosclerose coronária mais avançado do que seria provável para a sua idade e com lesões/oclusões superiores a 75% em alguns vasos ou artérias, o Tribunal a quo, fundamentou a sua convicção no depoimento da Testemunha G.... Acontece que,
13. A referida testemunha, como especialista de cardiologia, referiu que a calcificação de que padecia o sinistrado era normal, que todos temos calcificação nas artérias a partir dos 40 anos.
14. Pelo que, da prova produzida e nomeadamente do depoimento desta testemunha nunca poderia resultar provado que o sinistrado faleceu em consequência de doença de que padecia.
15. Impugna-se a matéria de facto dada como não provada de 2) a 9), a qual deveria ter sido dada como provada.
16. Impugna-se ainda a matéria de facto dada como provada sob o ponto J), a qual, atenta a prova produzida e constante dos autos, deveria ter sido dada como não provada, o que conduziria a uma decisão materialmente diferente.
17. É acidente de trabalho, aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte [n.º 1 do artigo 6.º da Lei nº 100/97 (LAT)].
18. O sinistrado faleceu quando se deslocava para o local de trabalho.
19. Por conseguinte, deve ser considerado como acidente de trabalho, o acidente que vitimou o sinistrado, para mais, verificado no local e tempo de trabalho.
20. Hoje, nem o acontecimento exterior directo e visível, nem a violência são critérios indispensáveis à caracterização do acidente.
21. O nexo de causalidade que deve existir entre o acidente e o trabalho é, pois, um dos elementos caracterizadores do acidente de trabalho, que não resulta expressamente da lei, mas que se contém no seu espírito.
22. Fazendo aplicação dos princípios acima expostos aos factos provados e relativos ao evento que deu origem à presente acção, estamos no caso dos autos perante um verdadeiro acidente de trabalho, porém, desconsiderando o alcance e sentido destes aspectos, curiosamente, foi com base neste elemento – acidente – que o tribunal a quo fundamentou o decidido, alegando que a morte da vítima se deveu a doença pré-existente e natural de que o sinistrado padecia, ou seja, trata-se de doença que nenhum relatório evidencia ter relação com o trabalho.
23. Entendimento que a aqui apelante face ao acontecido e à prova constante dos autos, não aceita, ademais, a responsabilidade objectiva emergente de acidentes de trabalho baseia-se no risco que é inerente ao exercício de qualquer e toda a actividade profissional, fazendo recair sobre os empregadores, que com ela beneficiam, a obrigação de reparar os danos correspondentes.
24. A arteriosclerose coronária e cardiopatia isquémica, apenas foram detectadas post mortem, não obstante os exames médicos e clínicos a que o sinistrado foi regularmente submetido.
25. O estado de stress a que o mesmo estava sujeito aquando do ocorrido, causou, ou se assim se não entender, potenciou o enfarte agudo do miocárdio.
26. A lesão (cardiomiopatia isquémica) que causou a morte do sinistrado despoletou-se por causa do estado de stress que o afectava na altura, facto confirmado pelas testemunhas E... e F....
27. É inaceitável e infundada a tese do tribunal a quo, de que o sinistrado faleceu por causa de uma doença natural, de que padecia ao nivel do coração, designadamente arteriosclerose coronária.
28. Porquanto, dos documentos juntos aos autos não resultou que o sinistrado padece-se de qualquer patologia e a cardiopatia apenas foi descoberta após a realização da autópsia.
29. Também foi indiferente para o tribunal a quo o facto deste ter sido encontrado cerca das 7 h.30m no veículo que conduzia (matéria provada em F), quando se deslocava para o local de trabalho, ou seja no tempo e local de trabalho.
30. O acidente de trabalho, ao contrário, do que insinua o tribunal a quo, funcionou como agente, ou causa próxima, desencadeador da doença ou lesão.
31. De todo o modo, sempre há que tirar as devidas ilações do disposto no art.º 9 da LAT, também violado pelo tribunal a quo, que determina que quando a lesão consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, a reparação avaliar-se-á como se tudo dele resultasse.
32. Por outro lado, não pode esquecer-se que a lesão que provocou a morte do sinistrado ocorreu no tempo e no local de trabalho.
33. Pelo que, se presume consequência do acidente, (n.º 1 do art.º 7 do DL n.º 143/99, também aqui violado).
34. Devendo, portanto, ser considerado acidente de trabalho com as legais consequências.
35. Tendo decidido de modo diverso, o tribunal a quo violou, entre outras, as seguintes normas: n.º4 do artigo 72.º do CPT; art.º 1.º, art.º 2.º, art.º 6.º, n.º 1, art.º 7.º, art.º 8.º, art.º 9.º, art.º 10.º, 15.º e 26.º da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, aprova o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais; art.º 2.º; alínea a) e c) do n.º 1 do artigo 57.º, 59.º, 60.º e 65.º, da Lei n.º98/2009, e art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa.”, (realce nosso).
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, apresentados que foram ao Exm.º Procurador-Geral Adjunto, foi exarado parecer (fls. 178 a 180) em que sustenta:
“Da leitura ponderada da argumentação da recorrente resulta que esta, essencialmente, não se conforma com o entendimento, a ponderação e a avaliação que o tribunal recorrido fez do depoimento das testemunhas E... e F..., pais da Autora, e G..., médico cardiologista, isto é, do que a recorrente reclama é do entendimento, do juízo critico que o tribunal fez da prova produzida em julgamento.
Ora, conforme decorre da motivação, o tribunal explica com clareza as razões porque não considerou a morte do trabalhador H... como acidente de trabalho, antes se deveu a doença natural de que padecia ao nível do coração, designadamente arteriosclerose coronária.
Isto é, a factualidade que a Autora queria que fosse dada como provada, ou seja que a morte do seu marido se ficou a dever a excesso de trabalho, a stresse laboral consequência das exigências da entidade patronal, não logrou ficar assente, apesar do teor do depoimento dos sogros da vítima.
Na verdade, o que o tribunal considerou como provado resultou de uma verificação técnica — a autópsia — e do teor das declarações dos dois médicos ouvidos na audiência de julgamento. E não se vê como tais conclusões contrariem as regras da normalidade ou da experiência. Pelo contrário.”
Concluiu no sentido de que o recurso não merece provimento.
Os autos baixaram à 1ª instância para fixação do valor.
Por despacho de 02.02.2018, foi fixado à causa o valor de 47.083,71 euros.
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.
2. Objeto do recurso:
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º, nº4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do Código de Processo do Trabalho –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
- Necessidade de alteração da matéria de facto;
- Saber se ocorreu um acidente de trabalho do qual tenha derivado a morte do sinistrado.
2.1. O tribunal a quo considerou como provados os factos seguintes que se transcrevem:
“A) A Autora B... é cônjuge do sinistrado H..., que faleceu no dia 13 de Dezembro de 2013.
B) A Autora e o sinistrado eram casados um com o outro no regime da comunhão de adquiridos, conforme se retira da certidão de casamento junta a fls. 88.
C) O sinistrado referido em A) trabalhava para a sociedade comercial D..., Lda., como chefe de vendas, sob as ordens, direcção e fiscalização dela.
D) Auferia mensalmente o valor de 650,00€ x 14 meses, acrescido de 77 euros x 11 meses a título de subsídio de alimentação, num total anual de 9 947 euros.
E) A responsabilidade da entidade empregadora do sinistrado por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a R., C..., S.A., mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ..........
F) A morte do sinistrado ocorreu quando ele, no dia referido em A), pelas 7,30 horas, se deslocava para o local de trabalho, na viatura da empresa, em consequência de problema cardíaco.
G) Nessa decorrência, o veiculo em que seguia afrouxou, embatendo contra o lancil e ficando imobilizado.
H) De imediato foi chamado o INEM, que aquando da sua chegada ao local, passados poucos minutos, constatou que o sinistrado já se encontrava sem vida, tendo declarado o óbito no local.
I)O sinistrado não fumava, não bebia bebidas alcoólicas e praticava algum exercício físico.
J) O sinistrado faleceu por enfarte do miocárdio ou cardiopatia isquémica, relacionado/a com a existência, na aorta, de placas de ateroma calcificadas, derivadas de aterosclerose coronária de que aquele padecia.
K) Não havendo sinais de violência ou qualquer agitação ou perturbação anormais nos momentos que antecederam o falecimento.”.
“A motivação do Tribunal para dar os factos que deu como provados adveio, antes de mais, do relatório de autópsia de folhas 22 e seguintes, sobretudo na parte em que se refere às artérias coronárias e à conclusão da morte por causa natural; bem como dos registos do centro de saúde onde o sinistrado era assistido, juntos a folhas 142 a 150 e que davam conta de problemas de hipertensão já desde Fevereiro de 2012.
A nível testemunhal o Tribunal baseou-se no depoimento das seguintes pessoas:
- G..., cardiologista que analisou o relatório de autópsia e demais elementos clínicos do processo, tendo concluído que o sinistrado padecia de um processo de arteriosclerose coronária mais avançado do que seria provável para a sua idade e com lesões/oclusões superiores a 75% em alguns vasos ou artérias.
- I..., médico legista que efectuou a autópsia do sinistrado e explicou o respectivo relatório, confirmando que o sinistrado tinha antecedentes de doença coronária; mais explicou que se trata de um processo evolutivo que podia já ter vários anos e que, conjugado com o problema da hipertensão e excesso de peso, justificam a morte por causa interna ou natural.
- E... e F..., respectivamente sogro e sogra do falecido, que com ele conviviam e confirmaram não fumar nem beber álcool, mas recorrer por vezes ao centro de saúde e que andava frequentemente stressado com o trabalho; negam ter conhecimento que esse stress fosse acrescido nos últimos tempos em virtude objectivos acrescidos impostos pela empresa.
No que concerne aos factos dados como não provados, a motivação do Tribunal adveio da ausência de prova bastante ou credível quanto aos mesmos, não tendo designadamente sido produzida qualquer prova quanto aos objetivos impostos pela empresa no final do ano, quanto à realização de horas extraordinárias ou quanto a uma sobrecarga de trabalho susceptível de estar relacionada com a morte, sendo certo que o ónus da prova destes factos era da Autora, sempre havendo dúvida de se resolver contra ela – art.º 342º nº 1 e 346º do CC
2.2. Fundamentação de facto: alteração da decisão de facto.
De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Lê-se no Acórdão do S.T.J. de 24.09.2013, in www.dgsi.pt, «(…) o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (…)».
Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto foram efetivamente reforçados na actual redação do Código de Processo Civil.
Na reapreciação da força probatória das declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas e dos documentos, importa ter presente o princípio da livre apreciação, como resulta do disposto 607º, nº5 e 466º, nº3, ambos do Código de Processo Civil e 396º e 366º do Código Civil.
Ainda assim, tal deve suceder sem que se ignorem os princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação da prova, devendo a alteração da decisão da 1ª instância cingir-se ao casos de manifesta desconformidade entre os elementos de prova carreados e a mesma decisão, relativamente à decisão sobre a matéria de facto impugnada.
Preceitua ainda o artigo 640º do Código de Processo Civil:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
a) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
b) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
2 – Quando nos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo da possibilidade de proceder à respectiva transcrição dos excertos que considere relevantes, (…)”.
Em concreto, nada obsta à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2.2.1. Entende a Autora que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como não provados os factos elencados em 2) a 9) dos factos controvertidos, ou seja:
- No cumprimento do contrato de trabalho, o sinistrado estava sujeito a cumprir determinados objectivos, acrescidos ao final do ano e de cujo cumprimento estava dependente a manutenção do seu posto de trabalho.
- Nos dias que antecederam a sua morte, a entidade patronal exigiu ao sinistrado um esforço maior, complementar no cumprimento das suas tarefas, atento o período em causa (fecho de ano), exigindo-lhe que maximizasse os resultados da força de vendas pela qual era responsável.
- Por isso, o sinistrado viu-se obrigado a cumprir horas extraordinárias (para além do seu horário normal de 40 horas semanais) e andava stressado, angustiado, preocupado e nervoso, atenta a proximidade do final do ano e da verificação do cumprimento dos objectivos impostos.
- Receios e preocupações que verbalizava constantemente aos familiares mais próximos, temendo não cumprir os objectivos propostos e, mais uma vez, ficar desempregado e dessa forma não conseguir prover ao sustento do seu agregado familiar, constituído por si, mulher e dois filhos.
- Na verdade, o sinistrado queixava-se que a sua entidade patronal lhe exigia objectivos de difícil ou quase impossível cumprimento.
- A entidade patronal manteve a exigência do cumprimento desses objectivos como condição para a manutenção do seu posto de trabalho.
- Por causa disso é que, no dia 13 de Dezembro de 2013, pelas 7 horas e 30 minutos, quando o sinistrado, H..., se deslocava para o local de trabalho, na viatura da empresa, padeceu de arritmia cardíaca, em consequência da qual morreu.
- O sinistrado nos momentos que antecederam a sua morte, encontrava-se num estado de grande ansiedade e stress, originado pelas funções que exercia e pelos objectivos suplementares impostos pela entidade patronal naquele período, final de ano.
A tal matéria foram indicadas as quatro testemunhas que prestaram depoimento, G..., I..., E... e F....
Na sentença, consta que “No que concerne aos factos dados como não provados, a motivação do Tribunal adveio da ausência de prova bastante ou credível quanto aos mesmos, não tendo designadamente sido produzida qualquer prova quanto aos objectivos impostos pela empresa no final do ano, quanto à realização de horas extraordinárias ou quanto a uma sobrecarga de trabalho susceptível de estar relacionada com a morte, sendo certo que o ónus da prova destes factos era da Autora, sempre havendo dúvida de se resolver contra ela – art.º 342º nº 1 e 346º do CC.”.
Concluiu a Autora que sobre esta matéria foram ouvidas as testemunhas E... e F..., que foram claros e expressivos quanto ao facto de que o sinistrado andava stressado e preocupado com o trabalho, em cumprir os objetivos que lhe eram propostos.
Procedeu-se à audição dos depoimentos das duas testemunhas indicadas, ambas pais da Autora.
A testemunha E... referiu é certo quais eram as responsabilidades que o falecido tinha na empresa, na qual estava “tudo a cargo dele”, angariava clientes e dava formação a funcionários mais novos e que tinha receio de ficar desempregado.
Referiu que era uma característica do genro, relativamente ao trabalho, andar sempre stressado, angustiado e preocupado, para ele não havia horário de trabalho, fosse qual fosse o género do trabalho e mesmo de férias, andava sempre com o telemóvel na mão.
Ainda que tenha dito que o mesmo queria cumprir com os objectivos dele, a testemunha foi clara em afirmar que não o sentiu mais preocupado no final do ano e que o respectivo registo foi nessa altura o normal.
Também a testemunha F..., negou que tivesse sentido o falecido genro mais stressado. Disse mesmo que ele andava sempre assim, nervoso, preocupado, stressado. Afirmou que não esteve diferente nos últimos tempos. Não se queixou que exigiam muito dele. Sempre trabalhou muito. Nunca conversou com ele a esse propósito.
Do depoimento destas testemunhas não é pois possível aferir-se qualquer sobrecarga do falecido Trabalhador quanto aos objetivos que lhe seriam impostos pela empresa, nem quanto a uma acrescida exigência no final do ano quanto a determinados objetivos de que dependesse a manutenção do seu posto de trabalho, nomeadamente às vendas de que era responsável e que por tal facto o mesmo tivesse tido que fazer horas extraordinárias.
Antes e tão só foi referido pelas mesmas testemunhas a forma como aquele desde sempre encarou a sua vida profissional, privilegiando o trabalho, andando sempre nervoso, preocupado, stressado, não tendo sentido que tal se tenha agudizado no final do ano.
Igualmente não resulta que o falecido genro partilhasse os seus receios e preocupações com estas testemunhas ou que se queixasse a estas sobre a sua entidade patronal e do que lhe era exigido por esta para a manutenção do seu posto de trabalho.
Ou seja e como se concluiu na sentença do tribunal a quo ”(…), não tendo designadamente sido produzida qualquer prova quanto aos objectivos impostos pela empresa no final do ano, quanto à realização de horas extraordinárias ou quanto a uma sobrecarga de trabalho susceptível de estar relacionada com a morte(…)”
Por tudo o que ficou exposto, a convicção a que chegamos, relativamente à factualidade constante dos artigos 2º a 9º dos factos controvertidos não difere da do tribunal a quo, a cuja fundamentação também se adere, concluindo-se pela falta de fundamento da posição reiterada pela Autora pelo que improcede nesta parte a pretensão desta.
2.2.2. Entende ainda a Autora que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como provados o facto da alínea j), ou seja:
- O sinistrado faleceu por enfarte do miocárdio ou cardiopatia isquémica, relacionado/a com a existência, na aorta, de placas de ateroma calcificadas, derivadas de aterosclerose coronária de que aquele padecia.
A tal matéria foram indicadas as quatro testemunhas que prestaram depoimento, G..., I..., E... e F....
Na sentença, a este respeito, ficou referido que ”A motivação do Tribunal para dar os factos que deu como provados adveio, antes de mais, do relatório de autópsia de folhas 22 e seguintes, sobretudo na parte em que se refere às artérias coronárias e à conclusão da morte por causa natural; bem como dos registos do centro de saúde onde o sinistrado era assistido, juntos a folhas 142 a 150 e que davam conta de problemas de hipertensão já desde Fevereiro de 2012.
A nível testemunhal o Tribunal baseou-se no depoimento das seguintes pessoas:
- G..., cardiologista que analisou o relatório de autópsia e demais elementos clínicos do processo, tendo concluído que o sinistrado padecia de um processo de arteriosclerose coronária mais avançado do que seria provável para a sua idade e com lesões/oclusões superiores a 75% em alguns vasos ou artérias.
- I..., médico legista que efectuou a autópsia do sinistrado e explicou o respectivo relatório, confirmando que o sinistrado tinha antecedentes de doença coronária; mais explicou que se trata de um processo evolutivo que podia já ter vários anos e que, conjugado com o problema da hipertensão e excesso de peso, justificam a morte por causa interna ou natural.
- E... e F..., respectivamente sogro e sogra do falecido, que com ele conviviam e confirmaram não fumar nem beber álcool, mas recorrer por vezes ao centro de saúde e que andava frequentemente stressado com o trabalho;”.
Concluiu a Autora que tal factualidade devia ser dada como não provada.
Isto porque, resultou provado que o sinistrado não padecia de qualquer doença.
E se sofria, esta, apenas foi descoberta no relatório de autópsia.
Isto mesmo resulta dos registos do centro de saúde onde o sinistrado era assistido, junto a folhas 142 a 150, os quais davam conta de problemas de hipertensão desde Fevereiro de 2012.
A Hipertensão é uma doença crónica popularmente conhecida como “pressão alta”.
Contudo, este problema de saúde, de que o sinistrado padecia, estava tratado e controlado, uma vez que o sinistrado era acompanhado regularmente no centro de saúde, como resulta claro dos relatórios médicos juntos aos autos.
Pelo que, não estando sujeito a factores potenciadores de desenvolvimento desta doença, nomeadamente o stresse, o mesmo não padeceria de lesões graves que levassem à sua morte.
Para além do relatório de autópsia, relativamente à conclusão de que o sinistrado padecia de um processo de arteriosclerose coronária mais avançado do que seria provável para a sua idade e com lesões/oclusões superiores a 75% em alguns vasos ou artérias, o Tribunal a quo, fundamentou a sua convicção no depoimento da Testemunha G....
Acontece que, a referida testemunha, como especialista de cardiologia, referiu que a calcificação de que padecia o sinistrado era normal, que todos temos calcificação nas artérias a partir dos 40 anos.
Desde já se adianta que também nesta parte a nossa convicção não difere da do Tribunal a quo.
Desde logo pela valoração dada ao relatório pericial de autópsia médico-legal.
A propósito do objecto da prova pericial, dispõe o artigo 388º, do Código Civil:
«A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.».
Nas palavras de Alberto dos Reis “O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem”, (in Código de Processo Civil Anotado, volume IV, página171).
O relatório pericial deve ser feito de forma fundamentada, tal como expressamente se prevê no artigo 484º, nº1 do Código de Processo Civil.
E quanto à respectiva força probatória, preceitua o artigo 389º do Código Civil que «A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal».
A livre apreciação da prova pericial resulta ainda do disposto nos artigos 489º e 607º, nº5, ambos do Código de Processo Civil.
Impondo-se efectuar a conjugação lógica dos elementos de prova.
Lê-se no recente acórdão desta secção de 05.02.2018, (relator Jerónimo Freitas), in www.dgsi.pt, «Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436].
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.».
Em concreto, consta efectivamente do relatório pericial de autópsia médico-legal, no que respeita às artérias coronárias “Placa de ateroma calcificadas dispersas na artéria coronária esquerda e no seu ramo descendente anterior produzindo uma oclusão luminal superior a setenta e cinco por cento. Placas de ateroma não clacificadas dispersas no ramo circunflexo da artéria coronária esquerda produzindo em alguns locais uma oclusão luminal de cerca de cinquenta por cento. Placas de ateroma calcificadas dispersas na artéria coronária direita produzindo em alguns locais uma oclusão luminal de cerca de cinquenta por cento.” e na artéria aorta,” Placas de ateroma calcificadas dispersas ao longo do vaso.” Concluindo-se no mesmo relatório que “A morte de H... foi devida às lesões de cardiomiopatia isquémica” e que “Esta é uma morte de causa natural”, (sublinhado nosso).
Procedeu-se à audição dos depoimentos das duas testemunhas médicas.
Dos respectivos depoimentos nada resulta que ponha em causa o teor do relatório da autópsia.
A testemunha G..., médico cardiologista, descreveu o enfarte miocárdio, como um acontecimento súbito traduzido na oclusão de uma artéria e que uma das consequências pode ser morte súbita.
O sinistrado teve uma oclusão de uma veia superior a 75%. Terá sido esta a artéria responsável pelo enfarte.
Esclareceu ainda que a cardiomiopatia isquémica, no geral, é uma doença das artérias coronárias, sendo estas responsáveis pela irrigação do coração e do seu funcionamento. Sendo factores de risco as doenças cardiovasculares.
Pode ser uma doença silenciosa, não manifestada por sintomas. Tal podia ter sucedido com o sinistrado, não afirmando que assim foi.
Alguém como o sinistrado, com 45 anos, não é normal/habitual ter as lesões que o sinistrado apresentava na árvore coronária.
O processo de arteriosclerose sendo contínuo pode ser atrasado com medicação. Não resulta dos registos clínicos do sinistrado no centro de saúde que tal tenha ocorrido. Não há registo de medicação para a doença coronária em si. Não tem exames mais aprofundados, prova de esforço, imagem coronária, etc…
Há factores de risco inerentes à pessoa, exemplificando com a hipertensão se não for bem controlada. Quanto ao sinistrado, do relatório da autópsia resulta que o problema de hipertensão do sinistrado não estava controlado (sendo a hipertrofia do ventrículo esquerdo o sinal que o evidencia).
Afirmou que 90% das causas de hipertensão é natural. O stress pode causar tudo. Não é possível em termos médicos concluir-se que o stress foi causa da morte do sinistrado. Não é possível aferir-se se na altura do acidente o sinistrado estava sob stress.
Também a testemunha I..., médico legista que efectuou a autópsia do sinistrado, confirmou como se lê na sentença que “o sinistrado tinha antecedentes de doença coronária” e em consonância com o médico cardiologista, ” explicou que se trata de um processo evolutivo que podia já ter vários anos e que, conjugado com o problema da hipertensão e excesso de peso, justificam a morte por causa interna ou natural.”.
Confirmou ainda que a causa da morte do sinistrado foi um enfarte do miocárdio – o coração parou – sendo um fenómeno de doença do coração, não recente. Descreveu a cardiomiopatia isquémica como doença generalizada do coração por falta de irrigação - as artérias coronárias não debitam a quantidade de sangue necessária, rotulando de grave o problema da artéria coronária descendente anterior (oclusão superior a 75%), sendo essa uma artéria fundamental.
É uma doença lenta no seu estabelecimento.
Além das placas de arteriosclerose – degeneração da parte íntima das artérias – referiu como factor agravante do sinistrado, o excesso de peso (99 Kilos), traduzindo uma sobrecarga de 20 Kilos relativamente ao peso que aquele devia ter.
Tal como no relatório que subscreveu, concluiu ter sido uma morte de causa natural, (não há nada traumático ou de toxicologia).
Acresce referir que do facto de as testemunhas E... e F... terem referido que o falecido genro ia frequentemente ao médico de família, não resulta que o mesmo tivesse o seu problema de saúde controlado.
Por outro lado, dos registos do centro de saúde onde o sinistrado era assistido, juntos a folhas 142 a 150, resulta apenas a existência de problemas de hipertensão sem complicações, entre Abril de 2012 e Março de 2013.
Em conformidade, a convicção a que chegamos, relativamente à matéria de facto constante da alínea J do elenco dos factos provados, igualmente não difere da do tribunal a quo, concluindo-se pela improcedência da pretensão da Autora também nesta parte.
Carecem assim de fundamento as conclusões da Autora, no sentido de que resultou provado que o sinistrado não padecia de qualquer doença ou que a mesma só foi descoberta na autópsia e que aquele não estava sujeito a fatores desenvolvimento da mesma, bem como que o seu problema de hipertensão estava tratado e controlado.
2.3. Fundamentação de direito:
Antes de mais, importa referir aqui que tendo o acidente a que se reportam os autos ocorrido em 13.12.2013, é aplicável a Lei nº 98/2009 de 04.09. (de ora em diante designada por LAT).
O conceito de acidente de trabalho encontra-se definido no artigo 8º da LAT:
«1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.», (sublinhado nosso).
Considera-se também acidente de trabalho, nomeadamente, o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste e que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (artigo 9º, nº1, al. a) da LAT) – acidente “in itinere”.
Sob a epígrafe “Prova da origem da lesão”, dispõe o artigo 10º da LAT:
«1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.», (sublinhado nosso).
Acompanhando de perto as considerações feitas no recente acórdão do STJ de 01.06.2017, in www.dgsi.pt, “Por sua vez, o artigo 10º, n.º 1, da sobredita Lei n.º 98/2009, quanto à prova da origem da lesão, ao dispor que “[a] lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho”, estabelece uma presunção de causalidade.
Trata-se de uma presunção “juris tantum”, sendo, pois, ilidível por prova em contrário.
Assim, se a lesão for observada no local e no tempo de trabalho considera-se ou presume-se consequência de acidente de trabalho.
Mas, se a lesão não tiver manifestação a seguir ao acidente, já compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.
Acresce que este nexo de causalidade exprime uma relação de causalidade, direta ou indireta, entre o acidente e as suas consequências, ou seja, entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e não, propriamente, uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente, pois esta já resulta dos dois elementos anteriormente citados – o espacial e o temporal.
Também, como vem decidindo este Supremo Tribunal, e sustenta a generalidade da doutrina, a presunção de causalidade tem apenas o alcance de libertar os sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano físico ou psíquico reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, todavia, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.
No dizer de Pedro Romano Martinez (…) “[n]ão se trata de uma presunção da existência do acidente, mas antes uma presunção de que existe nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida”.”, (sublinhado e realce nossos).
Isso mesmo é referido também na sentença do Tribunal a quo, «Pese embora o conceito legal de Acidente de Trabalho abranja os acidentes “in itinire”, segundo o art.º 9º nº 1 al. a) e al. a) nº 2 da mesma Lei, a verdade é que qualquer das prestações previstas nessa Lei para a reparação dos acidentes por morte (art.º 56º e seguintes) depende da existência de um acidente do qual derivem as lesões ou a morte.
Ora, como se tem interpretado de uma forma geral na doutrina e jurisprudência, só há um acidente quando ocorre um evento súbito que causa a lesão ou morte (…).», (sublinhado e realce nossos).
A propósito da delimitação do conceito de acidente de trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho Parte II – Situações Laborais Individuais”, página 730, 2016, refere que “ Em termos gerais, pode dizer-se que o acidente de trabalho é o evento súbito e imprevisto, ocorrido no local e no tempo de trabalho, que causa uma lesão corporal ou psíquica ao trabalhador que afecta a sua capacidade de trabalho e de ganho (…).”
Como se lê no acórdão do STJ de 16.09.2015, in www.dgsi.pt, “(…)pode afirmar-se, grosso modo, que o acidente de trabalho consiste sempre num evento danoso que, entre outras características, apresenta determinada conexão com a prestação do trabalho.”, (sublinhado nosso).
Em suma, socorrendo-nos uma vez mais as palavras do citado acórdão do STJ de 01.06.2017, “(…) o acidente de trabalho pressupõe a ocorrência dum acidente, entendido, em regra, como evento súbito, imprevisto, que provoque uma lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador e que ocorra no tempo e no local de trabalho.”.
Em concreto, tendo em conta que não se procedeu à alteração da matéria de facto provada e não provada, é esta a factualidade a atender:
- A Autora B... é cônjuge do sinistrado H..., que faleceu no dia 13 de Dezembro de 2013, (alínea A) da factualidade assente).
- A morte do sinistrado ocorreu quando ele, no dia referido em A), pelas 7,30 horas, se deslocava para o local de trabalho, na viatura da empresa, em consequência de problema cardíaco, (alínea F) da factualidade assente);
- Nessa decorrência, o veiculo em que seguia afrouxou, embatendo contra o lancil e ficando imobilizado, (alínea G) da factualidade assente);
- O sinistrado faleceu por enfarte do miocárdio ou cardiopatia isquémica, relacionado/a com a existência, na aorta, de placas de ateroma calcificadas, derivadas de aterosclerose coronária de que aquele padecia, (alínea J) da factualidade assente).
- Não havendo sinais de violência ou qualquer agitação ou perturbação anormais nos momentos que antecederam o falecimento, (alínea K) da factualidade assente).
Desta factualidade não é possível desde logo aferir-se que o enfarte do miocárdio e a morte do sinistrado tenham ocorrido após o embate da viatura no lancil, desconhecendo-se outrossim o que sucedeu antes do mesmo embate e o que o motivou.
Na verdade, de tal factualidade resulta tão só que a morte do sinistrado foi consequência de problema cardíaco e que aquela ocorreu quando o mesmo se deslocava para o local de trabalho, na viatura da empresa e que nesse decurso, a viatura da empresa em que aquele seguia embateu contra o lancil, ficando imobilizada.
Ou seja, de tal factualidade resulta apenas que a morte do sinistrado, ocorrida aquando da referida deslocação, foi consequência de problema cardíaco.
Como se refere na sentença do tribunal a quo, “(…) o que se provou é que o sinistrado faleceu por causa de uma doença natural, de que padecia ao nível do coração, designadamente arteriosclerose coronária.”.
Com efeito, resultou provado que o sinistrado faleceu por enfarte do miocárdio ou cardiopatia isquémica, relacionado/a com a existência, na aorta, de placas de ateroma calcificadas, derivadas de aterosclerose coronária de que aquele padecia.
Do exposto resulta que não logrou a Autora demonstrar, como lhe competia atento o disposto no artigo 342º nº2 do Código Civil, a ocorrência de um evento/acidente súbito, imprevisto de que tenha resultado a morte do sinistrado, ocorrido no tempo e local de trabalho.
Daí que aproveitando ainda uma vez mais as considerações efectuadas no referido acórdão do STJ de 01.06.2017, aqui “não funciona a presunção estabelecida no artigo 10º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, porque ela abrange apenas a causalidade entre o sinistro/evento e as lesões, mas já não cobre o próprio evento/acidente, ou seja, não abrange a sua verificação.”.
Não tendo a Autora provado a existência de um acidente de trabalho, a ação tinha que improceder, como concluiu o Mmº Juiz na sentença.
3. Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na improcedência do recurso.
Custas pela Autora.

Porto, 11 de Abril de 2018.
Teresa Sá Lopes
Fernanda Soares
Domingos Morais