Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
502/12.6PJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: PROVA INDICIÁRIA
PRESUNÇÕES
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP20150114502/12.6PJPRT.P1
Data do Acordão: 01/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
II -Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;
b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;
c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
III- Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 502/12.6PJPRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos na 1ª Vara Criminal do Porto com o nº 502/12.6PJPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão, depositado em 20.03.2014, que absolveu o arguido da prática de um crime de roubo p. e p. no artº 210º nº 1 do Cód. Penal que lhe fora imputado.
Inconformado com a decisão absolutória, veio o Mº Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O arguido B… foi absolvido da prática de um crime de roubo p. e p. pelo artº 210º nº 1 do C.P, apesar:
a) do referido arguido já ter sido condenado pela prática de crimes de roubo;
b) de normalmente atuar com outros indivíduos (o que aconteceu nos presentes autos);
c) de atuar na zona da baixa do Porto (onde ocorreu o roubo dos presentes autos);
d) de normalmente roubar telemóveis (objeto roubado nos presentes autos);
e) ter utilizado o telemóvel roubado;
f) de ter as mesmas características físicas do autor do roubo;
g) de através da sua fotografia de fls.l 57 ter sido indicado pelo ofendido como autor do roubo;
2. Factos, em relação aos quais, o coletivo de juízes se não pronunciou na decisão agora objeto de recurso;
3. Quando o devia ter feito;
4. Omissão essa que determina a nulidade de tal decisão, proferida a fls. 333 a 342;
5. De acordo com o disposto no artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P.
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Na 1ª instância o arguido respondeu às motivações de recurso, concluindo pela confirmação da decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso por manifestamente infundado.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1 - No dia 27 de Abril de 2012, cerca das 07h 30m, na …, no Porto dois indivíduos, cuja identidade não foi possível apurar, avistaram o arguido B…(?) que aí seguia apeado.
2 - Nesse instante tais indivíduos decidiram abordar o queixoso, para se apoderarem de objetos ou quantias em dinheiro que o mesmo trouxesse, usando a violência ou qualquer outro meio, se necessário fosse.
3 - Em execução de tal propósito, os referidos agentes aproximaram-se daquele Ofendido e, de imediato, um deles, voltando-se para o Ofendido, em tom exaltado e sério, proferiu a expressão: “Passa para cá o telemóvel, é melhor para ti, ou dás o telemóvel ou então vai ser pior para ti... levas já um milho” dando desse modo a entender que o poderia vir a atingir com um murro no seu corpo e na sua saúde.
4 - Por recear ser atingido na sua integridade física, não logrou o Ofendido opor àqueles qualquer resistência entregando ao arguido(?) o telemóvel de sua propriedade de marca Nokia, modelo …, de cor preta, com o IMEI……………, no valor de 100,00€.
5 - Na posse do aludido aparelho, os indivíduos, cuja identidade não foi possível apurar, ausentaram-se do local na posse do aludido aparelho, fazendo-o seu.
6 - Nos dias 29/05/2012 e 30/05/2012, o arguido B… utilizou o telemóvel em causa, introduzindo nele o cartão telefónico nº ………
7 - O arguido possui os antecedentes criminais de fls. 319 a 325, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
8 - Do seu relatório social consta o seguinte:
B… é único descendente de um casal de escassas condições sócio-económicas, sendo o primogénito de seis filhos de diferentes ligações afetivas da mãe. A dinâmica intra familiar foi marcada negativamente pela assunção de comportamentos aditivos ao álcool por parte dos pais, o que motivou a sua separação quando o arguido tinha cerca de 6 anos de idade. O pai foi uma figura ausente no processo educativo, tendo a mãe assumido, em exclusividade, o acompanhamento, apresentando um modelo educativo pautado pela ausência de controlo e dificuldades na transmissão de valores e regras de conduta adequadas.
A subsistência deste agregado era garantida com recurso a apoios sociais, sendo caracterizada como deficitária.
O percurso escolar foi marcado pela desvalorização e absentismo tendo frequentado a escola entre os 6 e os 11 anos de idade, completando apenas o 3º ano do 1º ciclo do ensino básico. O elevado absentismo registado pelo arguido a par do desrespeito das regas escolares determinaram a intervenção do serviço tutelar educativo, tendo sido alvo de medida de internamento no C… no Porto, onde evidenciou dificuldade de adaptação que terão originado sucessivas ausências ilegítimas daquela instituição.
Cerca dos 17 anos de idade iniciou consumos de haxixe, evoluindo para consumos de heroína e cocaína aos 20 anos de idade. Paralelamente envolveu-se na prática de ilícitos na companhia do seu grupo de pares.
Na sequência dos comportamentos desviantes do arguido, cerca de 17 anos de idade foi alvo de medida educativa de internamento no C…, de onde saiu em 19/04/2002, com medida de acompanhamento educativo durante o período de 1 ano. Seguidamente, ter-se-á ausentado para Espanha, onde afirmou ter permanecido alguns meses a trabalhar como operário da construção civil, o que inviabilizou a execução imediata da medida tutelar educativa de acompanhamento, a qual veio a ser iniciada em maio de 2003; contudo o decurso desta medida foi marcado pelo desinteresse e irresponsabilidade não aderindo ao seu projeto educativo pessoal.
Em 2003, ocorreu o primeiro confronto com o sistema de administração de justiça penal, tendo sido condenado pela prática de crimes contra a propriedade e contra as pessoas, em pena de prisão efetiva. B… esteve assim recluído desde 19/11/2004, tendo cumprido várias condenações, tendo sido libertado condicionalmente aos 5/6 da pena em 27/12/2011.
À data dos factos que deram origem ao presente processo o arguido vivia com a mãe e padrasto, ambos com historial de alcoolismo; sendo ambos beneficiários de Rendimento Social de inserção. A dinâmica intra-familiar era caracterizada pela disfuncionalidade, existindo conflitualidade entre o arguido e o padrasto, o que determinou o abandono deste agregado passando a residir em casa da namorada com os familiares desta. O arguido mantinha-se laboralmente inativo, tendo experienciado uma curta vivência laboral numa empresa de transportes, que viria a terminar volvidos cerca de dois meses, apresentando o arguido escassa motivação para o cumprimento das tarefas que lhe eram destinadas.
O arguido encontrava-se em cumprimento de liberdade condicional, à ordem do processo nº 3935/10.9TXPRT do 2º Juízo do Tribunal de Execução das Penas do Porto, com termo previsto para 17/05/2013. O período de liberdade condicional decorreu com registo de irregularidade ao nível da comparência às entrevistas agendadas, dificuldades na concretização de um projeto laboral, tendo sido elaborado um prognóstico reservado acerca da eficácia do seu processo ressocializador, atendendo à existência do presente processo cujos factos ocorreram durante o período de liberdade condicional.
Em meio prisional o arguido abandonou o consumo de estupefacientes, não tendo recaído no consumo quando restituído à liberdade, segundo referiu.
A subsistência do arguido era maioritariamente dependente do apoio dos familiares com quem vivia. A relação afetiva que mantinha veio a terminar, tendo o arguido integrado o agregado familiar de uma prima. Este agregado reside num apartamento de tipologia 3, localizado em bairro camarário socialmente conotado pela existência de problemáticas de desviância.
Atualmente o arguido mantém integração no agregado familiar da prima, constituído por esta, o companheiro e dois filhos, cuja subsistência é garantida pelo rendimento social de inserção. A dinâmica intra-familiar é positivamente referenciada, verbalizando os familiares disponibilidade para apoiar o arguido.
Ao nível laboral o arguido mantém-se inativo, subsistindo do apoio dos familiares com quem vive.
O arguido avalia a situação económica como precária e dependente.
O quotidiano do arguido é organizado em função do convívio com familiares, passando os dias em casa ou pelo bairro onde reside, integrando grupo de pares cujos comportamentos são referenciados como adequados meio residencial, onde o arguido é descrito como educado.
Não sendo o primeiro confronto com o sistema de administração de justiça, o arguido verbaliza preocupação com a sua situação jurídico-penal, pese embora não avalie impacto da mesma no seu quotidiano.
Abstratamente o arguido reconhece a ilicitude da natureza dos factos pelos quais se encontra acusado, bem como a existência de vítimas.
Questionado sobre o cumprimento de eventual medida a executar na comunidade, o mesmo manifestou-se disponível para aderir.
Do exposto conclui-se que o arguido, precocemente apresentou vivência sem supervisão e controlo parental, integrado em grupo de pares negativamente referenciado e posterior institucionalização.
O consumo de estupefacientes terá sido também um fator desestabilizador no seu percurso de vida a vários níveis, tendo nessa sequência registo de ruturas familiares, inatividade laboral e confrontos com a justiça.
O arguido encontra-se laboralmente inativo, subsistindo do apoio de familiares.
O quotidiano do arguido não apresenta ocupações estruturantes. Segundo informação veiculada pelo próprio mantém-se abstinente do consumo de estupefacientes.
Pelo exposto, consideramos que as necessidades de intervenção psicossocial do arguido se situam, designadamente, na submissão a avaliação de despiste de consumo de estupefacientes, na concretização de projeto laboral e na efetiva interiorização do desvalor da sua conduta.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
Não ficou provado que tivesse sido o arguido um dos autores dos factos dados como assentes.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
O Tribunal fundou a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida, designadamente nos documentos juntos aos autos (CRC, relatório social e registos telefónicos de fls. 28 a 31), bem como no depoimento do queixoso, prestado nos termos do disposto no art.º 271.º e 294.º, do C.P.P., o qual relatou os factos da forma como foram dados como assentes, referindo ter identificado o arguido através de fotografias, não tendo efectuado qualquer reconhecimento presencial.
Ora, a esse propósito o art.º 147.º, do C.P.P. postula o seguinte:
l. Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2. Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
3(…)
5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só é válido como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.»
A minúcia da norma quanto ao formalismo que deve ser seguido, cominando-se que o reconhecimento não vale como meio de prova caso não obedeça a esse formalismo amplamente descrito e rigorosamente exigido, resulta da compreensão da importância e das dificuldades do reconhecimento. Desse modo, o legislador, prudentemente e de forma cuidadosa, assegura as necessárias condições de genuinidade e seriedade do ato, impondo a observância de regras através das quais minimiza o risco de precipitação ou de falta de rigor.
Do respeito pelo rigor imposto à respetiva disciplina resultará o valor da diligência como meio de prova, sempre a apreciar livremente pelo tribunal.
No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:
a)- o reconhecimento por descrição,
b)- o reconhecimento presencial e
c)- o reconhecimento com resguardo.
O reconhecimento por descrição, previsto no n.º 1 daquele artigo, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros fatores que possam influir na credibilidade da identificação.
Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como ato preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
O reconhecimento presencial, previsto no n.º 2 do artigo 147.º, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal, obedecendo aos seguintes passos:
- Na ausência da pessoa que deve efetuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar;
- Depois, este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento [tal só não será possível no caso de uma alteração fisionómica irreversível];
- É então chamada a pessoa que deve efetuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e, portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efetuada, registada no auto respetivo.
O reconhecimento com resguardo, previsto no n.º 3 do artigo 147.º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efetuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efetivação do reconhecimento. Trata-se pois, de uma forma de proteção da testemunha.
Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efetuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar, mas não deve por este ser vista. Normalmente, o que sucede é que a pessoa que deve efetuar a identificação é colocada numa divisão distinta daquela onde se encontra o grupo que inclui o cidadão a identificar, separados por um vidro polarizado que permite que aquela aviste, sem ser vista, o grupo [esta modalidade de reconhecimento não vale para a audiência].
Identificados e descritos os modos de reconhecimento verifica-se que não nos reportamos ao reconhecimento fotográfico, sendo que não o fizemos simplesmente por um motivo. É que o reconhecimento fotográfico não é, para efeitos de direito penal, um verdadeiro reconhecimento.
Com efeito e conforme é unanimemente defendido na nossa doutrina e jurisprudência a identificação fotográfica apenas pode servir, em termos de investigação como ponto de partida. Não se basta como meio de prova nessa sede e, muito menos, como ponto de partida para uma identificação em sede de julgamento, sujeita à livre apreciação e, como tal, ao crivo decorrente da aplicação do princípio do in dubio pro reo. «O reconhecimento fotográfico não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas um ponto de partida para a investigação propriamente dita ( ) as linhas de investigação abertas pelo reconhecimento fotográfico têm de conduzir, posteriormente a verdadeiras provas, nomeadamente à prova por reconhecimento».
Nos autos e uma vez que o reconhecimento por fotografia, realizado pelo ofendido, não foi seguido de reconhecimento pessoal do arguido, não tem qualquer valor probatório, tudo se passando como se não tivesse existido.
Na verdade, e conforme decorre do n.º 7, do artigo 147.º, do C.P.P. o reconhecimento de pessoas que não tenha sido efetuado nos termos que ficaram expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu, o que se traduz numa proibição de valoração de prova (sobre esta matéria, ver o Acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Maio de 2010, de 10 de Novembro de 2010, Acórdão da Relação de Lisboa de 03/04/2013 e de 09/10/2013, todos em www.dgsi.pt).
Logo e voltando aos autos, temos apenas o relato do ofendido que afirmou que 2 indivíduos o assaltaram, tendo-lhe retirado o telemóvel. Quanto à identificação dos assaltantes, não temos qualquer outro elemento probatório, sendo que a informação de fls. 29 não é suficiente para que, sem mais se possa imputar a autoria dos factos ao arguido.
Contudo e analisando tal documento verifica-se que no telemóvel que foi roubado ao arguido(?), foi colocado, em 29/05/2012 e 30/05/2012, um cartão pertencente ao arguido.
Ora, tal colocação e utilização sucedeu mais de um mês depois após o assalto, não se sabendo a forma pela qual o arguido acedeu a tal telemóvel, sendo que atento o lapso de tempo entretanto decorrido poder-se-ia aventar inúmeras possibilidades, todas elas válidas e plausíveis (comprou ou encontrou o telemóvel, o mesmo foi-lhe dado ou emprestado, etc).
Nesta conformidade e atento o princípio in dúbio pro reo, apenas demos como assente a utilização, por parte do arguido, do telemóvel no período em causa, não podendo, pelos motivos supra citados, retirar-se qualquer outra conclusão de tal facto, que não a sua utilização.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso sub júdice, como resulta das conclusões das motivações de recurso, pretende o recorrente a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que condene o arguido pela prática do crime de roubo que lhe era imputado na acusação, defendendo que o tribunal recorrido não avaliou correta e globalmente os indícios existentes nos autos devidamente conjugados com a prova direta produzida, incorrendo assim o acórdão em nulidade por omissão de pronúncia.
Vejamos:
Efetuando a análise crítica da prova produzida, escreveu-se no acórdão sob recurso:
«[…] Logo e voltando aos autos, temos apenas o relato do ofendido que afirmou que 2 indivíduos o assaltaram, tendo-lhe retirado o telemóvel. Quanto à identificação dos assaltantes, não temos qualquer outro elemento probatório, sendo que a informação de fls. 29 não é suficiente para que, sem mais se possa imputar a autoria dos factos ao arguido.
Contudo e analisando tal documento verifica-se que no telemóvel que foi roubado ao arguido(?), foi colocado, em 29/05/2012 e 30/05/2012, um cartão pertencente ao arguido.
Ora, tal colocação e utilização sucedeu mais de um mês depois após o assalto, não se sabendo a forma pela qual o arguido acedeu a tal telemóvel, sendo que atento o lapso de tempo entretanto decorrido poder-se-ia aventar inúmeras possibilidades, todas elas válidas e plausíveis (comprou ou encontrou o telemóvel, o mesmo foi-lhe dado ou emprestado, etc).
Nesta conformidade e atento o princípio in dúbio pro reo, apenas demos como assente a utilização, por parte do arguido, do telemóvel no período em causa, não podendo, pelos motivos supra citados, retirar-se qualquer outra conclusão de tal facto, que não a sua utilização».
Vejamos então se é correta essa análise ou se, pelo contrário, se impunha que o tribunal coletivo valorizasse os indícios que o recorrente especifica.
Como se escreve no Ac. do STJ de 27.05.2010[3] “Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não forem proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)».
No caso sub judice, pretende o recorrente que o tribunal conclua pela prática pelo arguido do crime que lhe é imputado na acusação, essencialmente com base em presunções assentes na experiência comum. Ou seja, da circunstância de o arguido ter utilizado o telemóvel nos dias 29.05.2012 e 30.05.2012, de já ter sido condenado pela prática de crimes de roubo, de normalmente atuar com outros indivíduos, na baixa do Porto, de normalmente roubar telemóveis, e ter as mesmas características físicas do autor dos factos, conclui o recorrente como certo que foi o arguido o autor da factualidade descrita na acusação e, como tal, deveria ter sido condenado.
Ora, a questão que fundamentalmente se suscita é precisamente a de saber se serão lícitas tais ilações que o recorrente retira, ou se porventura tais ilações excedem o que é consentido no âmbito da livre valoração da prova.
Sendo inquestionável a admissibilidade em processo penal de todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do C.P.P.), aí se incluem as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil). Não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. Este é, de resto, um mecanismo recorrente na formação da convicção, de utilização necessária na prova de todos aqueles factos que pela sua própria natureza não são diretamente percepcionáveis pelos sentidos do espetador, havendo que inferi-los a partir da exteriorização da conduta. É o que sucede, por exemplo, com a prova da intenção criminosa que, constituindo acontecimento da vida psicológica, não admite prova direta, podendo no entanto ser inferido a partir de outros factos que tenham sido diretamente provados.
Por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, podem esses factos ser comprovados através de outros factos suscetíveis de percepção direta e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como assente. Desde que as máximas da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas. No entanto, a prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como aliás o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:
- desde logo, é necessário que haja uma relação direta e segura, claramente percetível, sem necessidade de elaboradas conjeturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que, por presunção, se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede)[4].
No caso em apreço, como se disse, com base no único facto concreto que resultou diretamente da prova – no telemóvel subtraído ao ofendido foi colocado, em 20.05.2012 e 30.05.2012, um cartão pertencente ao arguido – entendeu o tribunal recorrido não poder imputar-se a autoria dos factos ao arguido, por não existir qualquer elemento probatório que permita identificá-lo como um dos assaltantes e o tempo decorrido desde o assalto até à utilização do telemóvel pelo arguido (cerca de um mês), desconhecendo-se a forma pela qual o arguido acedeu ao telemóvel, permite aventar inúmeras possibilidades, todas elas válidas e plausíveis, não sendo possível extrair outra conclusão, para além da referida utilização.
É sabido que a atividade probatória é constituída pelo complexo de atos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência ou inexistência de uma determinada situação factual. Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
A máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre os factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos.
Por outro lado, o princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa.
O princípio da oportunidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstratamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.
O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstrata, concede um conhecimento que não é pleno, mas sim provável. Só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
Só este conhecimento, alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador. E, num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador, no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer[5].
Tendo em conta os princípios supra referidos, imprescindíveis na valoração da prova indiciária, logo concluímos que a circunstância de o telemóvel subtraído ao ofendido se encontrar na posse do arguido cerca de um mês após a subtração pode ter mais do que uma causa provável, sem que, em concreto, seja possível concluir pela autoria do roubo, excluindo todas as restantes.
Com efeito, é abstratamente admissível que o telemóvel tenha chegado à posse do arguido por lhe ter sido entregue por terceiro, sem que o arguido tenha tido qualquer intervenção no roubo. A distância temporal não exclui tal hipótese.
Por outro lado, aquele indício não exclui a possibilidade de o arguido ter tido uma intervenção nos factos que se resume à figura da cumplicidade, por ter de algum modo prestado auxílio ao agente do crime, designadamente ocultando o objeto subtraído.
E também é possível que o arguido tenha sido o autor do roubo em causa. Mas não deixa de ser razoável a dúvida de que tenha sido outro o autor da subtração do telemóvel que, posteriormente, veio a entrar na posse do arguido. Mesmo que pouco provável, não podemos dizer que está, razoavelmente, de todo afastada essa hipótese.
Importa não olvidar um princípio estruturante do processo penal: o de que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. Na ausência desse juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), vale o princípio de presunção de inocência do arguido (artigo 32º, nº 2, da Constituição) e a regra, seu corolário, in dubio pro reo.
Ora, os indícios invocados pelo recorrente não são suficientemente seguros e inequívocos, de forma a fundar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável, e não de mera probabilidade, de que foi o arguido o autor do roubo em apreço.
Para além de que alguns deles nem sequer poderão ser valorados. A circunstância de o arguido já ter sofrido diversas condenações por crimes de roubo, alguns deles praticados na zona da baixa do Porto e de normalmente roubar telemóveis (sendo que estes dois últimos factos nem sequer resultam da matéria de facto provada) não permite concluir que todos os crimes de roubo de telemóveis que ocorrerem na mesma zona, foram cometidos pelo arguido. Por outro lado, a indicação pelo ofendido da pessoa constante da fotografia de fls. 57 como o autor do roubo, não constitui meio de prova válido e atendível em julgamento, como muito bem se explica no acórdão recorrido.
Como se escreve no Ac. desta Relação de 11.01.2012, que subscrevemos na qualidade de adjunta, “À luz do princípio in dubio pro reo, não é sobre algum dos arguidos que recai o ónus de provar que os bens furtados estavam na sua posse por outro motivo que não a autoria dos furtos, é sobre a acusação. A dúvida que a esse respeito se suscita não pode prejudicar o arguido, deve beneficiá-lo. […] não é sobre eles que recai o ónus de dissipar essas suspeitas, dando uma justificação para o facto. Se as suspeitas nunca deixam de ser apenas suspeitas, daí não pode retirar-se alguma certeza».
Como se extrai da fundamentação de facto da decisão recorrida, num conflito entre a convicção em consciência do julgador, no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção, o tribunal recorrido acabou por dar, corretamente, prevalência à segunda. Carece, assim, de fundamento válido a argumentação do recorrente de que “diz-nos a experiência que alguém que se encontra na posse de um objeto roubado, é porque o roubou”. Esquece, porventura, o recorrente a figura do recetador ou do cúmplice que se limita a esconder o produto objeto do furto (o denominado auxilium post delictum).
Face à impossibilidade de fundar um juízo de certeza sobre a imputação dos factos ao arguido, impôs-se a sua absolvição.
Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, apenas se dirá que a nulidade por omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente. Como se refere no Ac. do STJ de 26.01.2000[6] “a circunstância de o conjunto de factos provados não corresponder aos desejos dos sujeitos processuais, não configura o vício de omissão de pronúncia, nem a violação dos artºs. 368º e 379º nº 1 al. c) do C.P.P.”.
Se o recorrente entende que o tribunal não valorou corretamente os diversos meios de prova (direta ou indireta) produzidos, não se pode limitar a invocar a nulidade da decisão, competindo-lhe antes impugnar a matéria de facto com recurso ao mecanismo previsto no artº 412º nºs. 3 e 4 do C.P.P.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, confirmando consequentemente o douto acórdão recorrido.
Sem tributação.
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Porto, 14 de Janeiro de 2015
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Relatado pelo Cons. Soares Ramos, Proc. nº 86/08.0GBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[4] Cfr. Ac. R. Coimbra de 20.06.2012, Proc. nº 25/11.0PCCBR.C1, Des. Jorge Jacob.
[5] Cfr. Ac. STJ de 27.05.2010, Cons. Santos Cabral, Proc. nº 58/08.4JAGRD.C1.S1, disponível em www.dgi.pt.
[6] Proferido no Proc. nº 99P748, Cons. Pires Salpico.