Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3003/10.3TBVNG.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
SEPARAÇÃO DE FACTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP201304183003/10.3TBVNG.P2
Data do Acordão: 04/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- Inexiste caso julgado, por falta de identidade de causa de pedir, se o período da separação de facto não for coincidente em ambas as acções.
II- O período da separação e o facto de o autor ter pedido o divórcio servem para aferir da verificação do elemento subjectivo da separação de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 3003/10.3TBVNG.P2 – 3ª Secção (Apelação)
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – Família e Menores
Rel. Deolinda Varão (678)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Carlos Portela

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B….. instaurou acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra C….. .
Pediu que fosse decretado o divórcio entre ele e a ré.
Como fundamento, alegou, em síntese, que se encontra separado de facto da ré desde 15.01.00, data esta abandonou o lar conjugal com intenção de não mais voltar; mais alegou que teve um acidente, em virtude de tal foi declarado inválido, deixando-a a ré sozinho.
Na tentativa de conciliação designada não se logrou obter consenso para o divórcio.
A ré contestou, tendo a contestação sido considerada sem efeito por não ter sido junta procuração passada a advogado.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre o autor e a ré.
A ré recorreu, suscitando, nas suas conclusões, as questões da existência de caso julgado e da inexistência do elemento subjectivo da separação de facto como fundamento do divórcio.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
Autor e ré contraíram matrimónio em 14.12.68.
Desde pelo menos o ano de 2000 que autora e réu não dormem na mesma cama, nem fazem refeições juntos, não partilham despesas nem proventos, nem vivem na mesma casa.

Com interesse para a decisão do recurso, estão ainda provados os seguintes factos:
Em 06.06.03, o ora autora instaurou acção de divórcio contra a ora ré, a qual correu os seus termos perante o Tribunal recorrido, com o nº 7113/03.5TBVNG.
Na petição inicial daquela acção, o autor alegou, em síntese, que a ré abandonou o lar em 15.01.00, com intenção de não voltar, passando a ter relações íntimas com um indivíduo; mais alegou que desde 1997 que a ré se recusava a ter relações sexuais.
A referida acção foi julgada improcedente por sentença de 15.09.09, transitada em 06.10.09.
Em 23.03.10, o autor instaurou a presente acção, alegando, na petição inicial o que se indicou no ponto I.

Estes factos assentam no teor da certidão junta a fls. 149 e seguintes e na petição inicial da presente acção.
*
III.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante (artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nºs 1 e 3 do CPC) – são as que se enunciaram no ponto I.

1. Caso Julgado
O caso julgado constitui hoje uma excepção dilatória que, como tal, obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artºs 493º, nºs 1 e 2 e 494º, al. i) do CPC).
A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário (artº 497º, nº 1 do CPC).
E há repetição de uma causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, como se estipula no nº 1 do artº 498º do CPC.
A excepção do caso julgado, conforme se refere no nº 2 do citado artº 497º, tem como fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
E a sua razão de ser consiste na salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas.
Com a excepção do caso julgado defende-se o prestígio dos tribunais evitando que seja proferida uma sentença igual a outra já existente e, portanto, inútil, ou que seja proferida uma sentença contrária a outra.
E defendem -se a certeza e a segurança jurídicas evitando que alguém veja um seu direito ser reconhecido judicialmente e que posteriormente esse reconhecimento lhe seja retirado, criando-se assim uma instabilidade nas relações jurídicas, que, nas palavras de Manuel de Andrade, é fonte perene de injustiças e paralizadora de todas as iniciativas[1].
Define-se o que é identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir nos nºs 2, 3 e 4 do citado artº 498º do CPC.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2).
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3) e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (nº 4).
No que respeita à causa de pedir, a nossa lei processual civil consagrou a teoria da substanciação, segundo a qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende tornar efectivo, sendo necessária a indicação específica do facto constitutivo desse direito.
Nas acções constitutivas – como é o caso da acção de divórcio – a causa de pedir é o facto que se invoca para obter o efeito que se tem em vista, ou seja, o facto constitutivo do direito à mudança na ordem jurídica[2].

No caso, existe indubitavelmente identidade de sujeitos e de pedido.
Não existe, no entanto, identidade de causa de pedir.
Como se escreveu na sentença recorrida, “(…) naquela outra ação invocou-se a separação de facto por três anos consecutivos ao abrigo do artº. 1781º, a) do C.C. na redação então vigente, bem como a violação de deveres conjugais ao abrigo do artº. 1779º.
Nesta ação agora em apreciação invoca-se a separação de facto por um ano consecutivo ao abrigo do artº. 1781º, a), C.C., ano esse que se perfez entre a data em que aquela outra ação foi proposta e portanto não foi um período aí tido em causa porque obviamente não alegado, e a data desta nova ação, ou seja, entre junho de 2003 e março de 2010 decorreu muito mais do ano aqui alegado, que naquela ação não foi considerado e que aqui foi e pode ser alegado; (…)”.
Ou seja, por outras palavras, parte dos factos que fundamentam o pedido de divórcio formulado na presente acção ocorreram depois da propositura da acção nº 7113/03, pois que, apesar de na petição inicial, o autor invocar a separação de facto a partir de 15.01.00 (tal como fez na primeira acção), poderia ter-se limitado a invocar tal separação desde data posterior à instauração da primeira acção; poderia mesmo ter invocado tal separação apenas desde 23.03.10, o que, a provar-se, seria suficiente para que se mostrasse preenchido o elemento objectivo do fundamento de divórcio previsto no artº 1788º, nº 1, al. a) do CC: a separação de facto por um ano consecutivo.
Na presente acção, são, pois, invocados factos diversos dos que foram invocados na acção nº 7113/03, pelo que reiteramos que não há identidade de causa de pedir.
Não existe, assim, in casu, a tríplice identidade de que o artº 498º, nº 1 do CPC faz depender a verificação da excepção dilatória do caso julgado.
Não tendo parte dos factos que servem de fundamento à presente acção (os que se reportam à separação de facto ocorrida após 03.06.03) sido submetidos a julgamento na acção nº 7113/03 e podendo o Tribunal decretar o divórcio apenas com fundamento nesses factos novos, não se corre o risco de na decisão da presente acção se reproduzir ou contradizer a decisão proferida naquela primeira acção – o que, como vimos, constitui a razão de ser do caso julgado.

Conclui-se, pois, pela improcedência da excepção dilatória do caso julgado, tal como se concluiu na sentença recorrida.

2. Mérito da causa
O artº 1781º do CC prevê como fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges a ruptura do casamento indiciada por alguma das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do preceito, sendo a da al. a) a separação de facto por um ano consecutivo.
Segundo o artº 1782º do mesmo Diploma, entende-se que há separação de facto, para os efeitos da al. a) do artº 1781º, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há, da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.
A redacção actual do citado artº 1782º, introduzida pela Lei 61/08, de 31.10 é igual à do nº 1 do mesmo preceito na redacção anterior àquela Lei.
Por isso, permanecem válidas as considerações doutrinais e jurisprudenciais feitas a propósito da redacção anterior da norma em causa.
Dela resulta que a separação de facto é integrada por dois elementos, um objectivo e outro subjectivo.
O elemento objectivo é a divisão do habitat, a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes (sendo de atender aqui à multiplicidade de situações que pode existir: os cônjuges podem ter residências separadas, como permite o artº 1673º e, todavia, mater uma autêntica “comunhão de vida”; e podem residir na mesma casa, mantendo uma aparência de vida em comum que não corresponde à realidade).
O elemento subjectivo consiste numa disposição interior da parte de ambos os cônjuges ou de um deles de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial[3].
Como salienta Miguel Teixeira de Sousa[4], a intenção de não restabelecer a comunhão de vida não é algo que deva ser procurado no estado anímico dos cônjuges: esse propósito há-de exteriorizar-se através do comportamento dos cônjuges ou de uma sua declaração expressa.

No caso, está provado que, pelo menos desde o ano de 2000, autora e réu não dormem na mesma cama, nem fazem refeições juntos, não partilham despesas nem proventos, nem vivem na mesma casa.
Em nosso entender, tal factualidade é suficiente para que se conclua que não existe comunhão de vida entre o autor e a ré e que há, pelo menos da parte do autor, o propósito de não restabelecer essa comunhão.
A verificação do elemento subjectivo extrai-se não só do longo período de separação (à data da propositura da acção, a separação de facto existia há cerca de 10 anos, ou, pelo menos, há cerca de 7 anos, se atendermos apenas ao período decorrido após a instauração da acção nº 7113/03), como também do facto de o autor ter pedido o divórcio[5].
Verifica-se, assim, o fundamento de divórcio previsto no citado artº 1781º, al. a) do CC.

Improcedem, por isso, todas as conclusões da ré, pelo que resta confirmar na íntegra a sentença recorrida.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 18 de Abril de 2013
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
Carlos Jorge Ferreira Portela
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[1] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 305; sobre esta matéria, ver também Alberto dos Reis, CPC Anotado, III, 3ª ed., pág. 94.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, obra citada, pág. 123.
[3] Sobre esta matéria, ver Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 3ª ed., págs. 684 e 685.
[4] O Regime Jurídico do Divórcio, pág. 86.
[5] Cfr. os Acs. do STJ de 05.07.01, CJ/STJ-01-II-164, de 03.04.03, www.dgsi.pt, e de 11.07.06, CJ/STJ-06-II-157 e o Ac. da RE de 17.01.13 (este proferido já no âmbito de vigência das alterações introduzidas pela Lei 61/08).