Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2225/20.3JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO NUNES MALDONADO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
DEPOIMENTO EM AUDIÊNCIA
Nº do Documento: RP202009242225/20.3JAPRT-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O direito à prestação de declarações para memória futura de vítima especialmente vulnerável prevalece sobre a regra geral da produção, em audiência de julgamento, do seu depoimento, uma vez que o legislador atribuiu preferência à evicção da vitimização secundária da depoente, tendo para o efeito estabelecido rígidas regras de produção e de registo de tal acto: o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
II - O depoimento só deve ser prestado em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da vítima.
III - Requerida a prestação de declarações para memória futura de pessoa singular a quem tenha sido atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável ou sendo tal especial vulnerabilidade cognoscível de acordo com os factos indiciados no processo, o juiz apenas poderá indeferir o exercício de tal direito se, com argumentação jurídico-processual, entender que a ausência de prestação das declarações em audiência de julgamento compromete de forma evidente, patente, a finalidade processual penal da descoberta da verdade material.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº2225/20.3JAPRT-A.P1
Acórdão deliberado em conferência na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
*
I. O MºPº interpôs recurso da decisão proferida no processo de inquérito nº2225/20.3JAPRT pelo Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que indeferiu o pedido de tomada de declarações para memória futura de uma ofendida de um crime de violência doméstica em concurso com um crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
*
I. Decisão recorrida
(que se transcreve integralmente).
Promove a Digna Magistrada do Ministério Público que seja designada data para recolha de declarações para memória futura de B….
Para o efeito alega em síntese o seguinte:
-indicia- se nos autos a prática de pelo menos um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo art. 152°/l a) e 2 a) 4 e 5 do Código Penal, em concurso efetivo com a prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. pelo art.° 131°, 132°, n°1, ai b) , 22°,23°,e 73° todos do código Penal na pessoa da vítima B…;
-justifica-se ouvir a vítima evitando que a mesma seja sujeita a nova inquirição em sede de audiência de discussão e julgamento
Cumpre apreciar e decidir
Refere o art.° 33 da Lei n° 112/2009., de 16 de Setembro: “o Juiz, a requerimento da vitima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”.
Esta diligência não é pois obrigatória, pelo que o requerimento da mesma deve ser fundamentado com a invocação concreta de circunstâncias, que justifiquem, no caso em apreço, a realização da prova por declarações para memória futura, neste sentido vide Cruz Bucho, Declarações para Memória Futura elementos de estudo)
https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/declarações para memória futura, pg 68 e ss)
Por sua vez, diz o art.° 16°, n° 2, do mesmo diploma que “As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.”
A Lei de Proteção de Testemunhas ( Lei n.° 93/99, de 14 de julho), prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.° 1 do art.° 1° - cf. art.° l, no 3, do mesmo diploma. Dizendo o art.° 26°, n° 1, que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.” Acrescentando no n° 2
que a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” - n° 1 do art.° 28°. E, “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 27l.° do Código de Processo Penal.”
Não esquecer que o expediente das declarações para memória futura, são um desvio ao principio da imediação e do contraditório, plasmado para a fase de julgamento, levando a que o legislador o tenha consagrado em termos excecionais, e impondo-as em casos muito limitados (art.° 271/2 do CPP) ou admitindo-as em circunstâncias muito especificas ( art.° 271/1 do CPP e 33°/l da Lei 112/2009 de 16/09)
Sem prejuízo, e em abstrato, considera-se que este mecanismo não é aconselhável nestes casos. Não só implica a quebra da imediação do julgador, sendo que, na maioria dos casos, se trata da testemunha com maior razão de ciência neste tipo de criminalidade, pelo que só em circunstâncias muito apertadas devem ser ouvidas em declarações para memória futura.
A tudo isto acresce a relevância que para a correta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto direto do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento; a circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência; o facto de essa inquirição, (em sede de julgamento) desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde
psíquica da vítima, ou lhe cause desconforto.
Entendemos pois tal como na senda do douto AC da Relação de Lisboa, n° 689/19.7PGR-A.Ll-5, de 11-02-2020, “que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima) “.
A nosso ver, esse critério há-de resultar de urna ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça».
No caso concreto, não obstante a gravidade dos factos e a circunstância de, das fichas de avaliação, resultar que esta é uma situação sinalizada com risco levado, o arguido está preso preventivamente.
Não vemos, assim, que, mesmo em nome da protecção do interesse da vítima, exista motivo para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
O processo de violência doméstica tem natureza urgente - art 28.° da Lei Lei n° 112/2009, de 16/09, urgência esta neste caso reforçada com a prisão preventiva decretada ao arguido, a acusação, será em breve deduzida e o julgamento será, por certo, realizado com a urgência que o caso requer, não havendo risco de perda de prova.
Assim, e voltando ao caso em concreto dos autos, entende-se que a requerida diligência não se justifica, quer atento ao supra explanado, quer (e sobretudo) em atenção à medida de coação aplicada ao arguido (prisão preventiva) não implicará qualquer contacto futuro entre o casal pelo menos até à decisão final a ser proferida nos autos, e, com isto, não é expectável que incremente o medo e inquietação da ofendida.
Em face do exposto, indefere- se o requerido.
*
I.2. Recurso do MºPº
(conclusões que se transcrevem integralmente).
1°) No douto despacho em crise a Mma Juiz a quo não atendeu a que, em face da enorme gravidade dos factos indiciados, é de todo o interesse colher, com a máxima urgência possível, o depoimento cabal da ofendida quanto a todos os factos, nomeadamente os que constituem maus tratos e ofensas sexuais e que não foram ainda
suficientemente escalpelizados.
2°) Mais ignorou o ascendente que o arguido tem sobre a vítima, e que certamente continuará a ter não obstante encontrar-se em prisão preventiva, o qual resulta amplamente plasmado nos factos indiciados nos autos.
3°) Bem como não valorou os avanços e recuos da vítima ao longo do processo, os quais não podem deixar de ser entendidos corno manifestação do domínio que o arguido consegue exercer sobre ela.
4°) É, assim, por demais evidente a vulnerabilidade desta vítima, pelo que não podemos deixar de concluir pela necessidade de acautelar o valor probatório futuro das suas declarações, de acordo com a natureza pública e a gravidade dos crimes em causa.
5°) A prestação de declarações para memória futura constitui também um direito da vítima, por forma a evitar que a sua revitimização.
6º) As declarações para memória futura são um instrumento jurídico que visa a antecipada recolha de declarações das vítimas de violência doméstica a fim de, sendo necessário, as mesmas serem tomadas em conta no julgamento, por forma a salvaguardar os direitos e interesses da vítima, bem como a precaver a recolha e conservação da prova, tão fundamental nestes casos.
7°) Embora o art° 33° da citada Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, atribua ao juiz o poder de decidir quanto à recolha das declarações da vítima para memória futura na fase de inquérito, tal poder não pode ser exercido arbitrariamente.
8°) O art° 33° da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a tomada de declarações para memória futura, até como exercício do dever de proteção à vítima plasmado no art° 20, n° 2, da Lei n° 112/2009, só assim não se procedendo quando, objetiva e manifestamente, se« revele total desnecessidade e manifesta irrelevância na recolha antecipada de prova ou haja razões relevantes para não o fazer - Neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/03/2020, proferido no Proc. n° 779/19.6PARGR-AL1.9 , relator Almeida Cabral, e de 04/06/2020, Proc. n° 69/20.1PARGR-A.L19, relator Abrunhosa de Carvalho, ambos in http.dgsi.pt.
9°) A manifesta gravidade dos factos indiciados nos autos e o amplamente demonstrado ascendendo do arguido sobre a vítima são, em nosso entender, por demais suficientes para justificar a realização da pretendia diligência.
10°) Ao decidir como decidiu incorreu a Meritíssima Juiz em erro notório na apreciação da prova, ao valorá-la como valorou, nos termos descritos.
11°) Violou, assim, os art°s 16°, n°2, e 33°, n° 1, da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, e os art°s 26°, nos i e 2, 28°, n° 1, 53°, n° 2, aI. b), 67°-A, no 1, ai. b), 127°, 263°, n°1, e 271°, todos do Código de Processo Penal.
*
I.3. Resposta do arguido
(motivações que se transcrevem em parte).
Os elementos de prova devem, pois, em princípio ser produzidos perante o arguido em audiência pública em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio comporta excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento.
Em certas circunstâncias poder ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objectivos, corno sejam a ausência ou a morte, ou a circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa.
Para a salvaguarda do exercício do contraditório também não é necessária leitura das declarações em audiência, nem dela depende a validade da prova para memória futura.
Assim, não se revela obrigatória a leitura em audiência de julgamento dessas declarações prestadas.
Não o impõem os termos conjugados do art.° 355º nºs 1 e 2 e do art.° 356° n° 2 ai. a) do CPP, nem os princípios que enformam o processo penal português, sendo que o entendimento que se perfilha não ofende qualquer norma ou princípio constitucional.
No caso dos autos, a vítima e o arguido não utilizam o mesmo domicílio, isto é, não convivem no mesmo espaço residencial, e por outro lado também, não existe especial vulnerabilidade da vítima e ainda, esta, não está sob a dependência económica do arguido.
*
I.4. Parecer do Ministério Público na Relação
(que se transcreve na parte relevante)
Ora, como bem diz o MP no recurso, a Mma Juiz não relevou “ o ascendente que o arguido tem sobre a vítima, e que certamente continuará a ter, não obstante encontrar-se em prisão preventiva, o qual resulta amplamente plasmado nos factos indiciados nos autos (…)” nem que “é de todo o interesse colher, com a máxima urgência possível, o depoimento cabal da ofendida quanto a todos os factos, nomeadamente os que constituem maus tratos e ofensas sexuais e que não foram ainda suficientemente escalpelizados”.
Por isso, afiguram-se-nos certeiras as conclusões recursivas, designadamente as que referem que o despacho recorrido “não valorou os avanços e recuos da vítima ao longo do processo, os quais não podem deixar de ser entendidos corno manifestação do domínio que o arguido consegue exercer sobre ela. (…) É, assim, por demais evidente a vulnerabilidade desta vítima, pelo que não podemos deixar de concluir pela necessidade de acautelar o valor probatório futuro das suas declarações, de acordo com a natureza pública e a gravidade dos crimes em causa e que a prestação de declarações para memória futura constitui também um direito da vítima, por forma a evitar que a sua revitimização,
*
II. Objecto do recurso.
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
A questão suscitada prende-se com a compreensão do mecanismo de prestação de declarações para memória futura enquanto excepção ao princípio da imediação, princípio relativo à prova no sentido de servir a possibilidade de descoberta da verdade e, por isso, manifestação de uma das garantias de defesa de um acusado (cfr. artigo 355º do Código de Processo Penal e artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei para garantir ao máximo possível que se descobre, a partir da sua representação, a verdade histórica e se chega a uma decisão justa. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que visa assegurar que existe uma relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada. Quer isto dizer que, em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita por um julgador de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias para se chegar a uma decisão acertada do que a avaliação feita com base na audição ou visualização do registo, meramente parcial, de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros
As finalidades do processo penal que, em permanente tensão dialéctica, pela sua natureza conflituante, atravessam todas as fases do processo, colocam-se com particular acuidade no julgamento e sentença (com força de caso julgado).
Por um lado, a realização da justiça através da descoberta da verdade material (a realização do interesse de o Estado punir os verdadeiros culpados – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Volume, Coimbra Editora, 1974, pág.145 – a condenação do culpado e a protecção do inocente – Claus Roxin, Derecho Procesal Penal, 25º edição, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág.4) e, por outro, a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos, particularmente do arguido – Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pág.14 – e, modernamente, da vítima (neste sentido Claus Roxin, Pasado, presente y futuro del derecho procesal penal, Rubinzal – Culzoni Editores, Buenos Aires, 2007, pág.71 a 86.).
É no confronto destes interesses, potencialmente antagónicos, que o juiz terá de decidir, ponderando a potência do interesse legalmente protegido da vítima, a referida excepção ao princípio da imediação.
Não se questionam que os factos indiciados (e que determinaram a prisão preventiva do arguido) integram a imputada prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2, 4 e 5, em concurso efectivo com um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº1, alínea a), todos do Código Penal.
Nos termos da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro (estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas) considera-se vítima a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal e vítima especialmente vulnerável a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social (artigo 2º, alíneas e b) b) tendo direito de ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões (artigo 22º, nº1), nomeadamente em declarações para memória futura, no decurso do inquérito, com a finalidade de o depoimento, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, caso em que será realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal (artigo 33º, nºs 1 e 3).
Também o diploma que regula o Estatuto da Vítima (Lei nº130/2015, de 04 de Setembro) estabelece que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões (artigo 17º, nº1) e pode prestar declarações para memória futura no decurso do inquérito a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento (artigo 24º, nº1) e que a vítima especialmente vulnerável tem o direito, enquanto medida especial de protecção, à prestação de declarações para memória futura (artigo 21º, alínea d).
Se é certo que a atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável pela autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal deve ser precedida de uma avaliação individual da vítima e comprovada por documento emitido para o efeito (artigo 20º) nada impede que aquela especial vulnerabilidade possa ser reconhecida, nomeadamente pelo juiz de instrução, quando visa o exercício de um direito próprio, através dos elementos de facto disponíveis, exercício que se efectuamos sem grande dificuldade, face às sequelas físicas e psicológicas, cientificamente apuradas, da vítima - na última agressão indiciada revelou um perturbado estado anímico e lesões físicas extensas (cfr. relatório da perícia de avaliação do danos corporal em direito penal de fls. 19 a 26 deste apenso).
O direito, enquanto medida especial de protecção, à prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável prevalece sobre a regra geral da produção, em audiência de julgamento, do seu depoimento, uma vez que o legislador atribuiu preferência à evicção da vitimização secundária da depoente, tendo para o efeito estabelecido rígidas regras de produção e de registo de tal acto: o Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas e efectuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só devendo ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da vítima (artigo 24º).
Requerida a prestação de declarações para memória futura de pessoa singular a quem tenha sido atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável ou sendo tal especial vulnerabilidade cognoscível de acordo com os factos indiciados no processo, o juiz apenas poderá indeferir o exercício de tal direito se, com argumentação jurídico-processual, entender que a ausência de prestação das declarações em audiência de julgamento compromete de forma evidente, patente, a finalidade processual penal da descoberta da verdade material.
No caso concreto a juiz de instrução, para além de nos recordar das inegáveis vantagens da imediação e concentração na produção dos meios de prova em julgamento, apenas argumenta que, tendo o processo natureza urgente, o depoimento da vítima em julgamento será previsivelmente prestado em breve e que estando o arguido preso preventivamente não se verifica o sinalizado risco elevado. Estes factores, claramente, nada estão relacionados com a referida vitimização secundária, onde se pretende evitar que a vítima seja levada a reviver os sentimentos negativos experimentados – medo, ansiedade, dor – num ambiente formal e público (mesmo na ausência da presença física do arguido, na sala da audiências, mas que a vítima sabe estar presente no tribunal).
Nestes termos, não tendo a juiz de instrução apresentado argumentos para afastar a regra da inquirição da concreta vítima em questão, será o despacho objecto de revogação, devendo ser proferido outro que defira o exercício do direito da vítima em questão e designe data para a prestação das declarações.
*
III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se que seja designada data para a prestação de declarações da vítima para memória futura.
Sem custas.
*
Porto, 24 de Setembro de 2020
João Pedro Nunes Maldonado
Francisco Mota Ribeiro