Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1497/14.7TBSTS-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP202005141497/14.7TBSTS-F.P1
Data do Acordão: 05/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante/financiador não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
II - Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado.
III - Daí que a consideração de uma relação tripolar brigue com a essência da previsão legal do art. 409º do Código Civil.
IV - E não vinga aqui a figura da sub-rogação, nomeadamente o disposto nos art. 589º e 591º CC, pois que tais preceitos têm a ver com a transmissão de créditos, sendo certo que, após o contrato de financiamento, o vendedor não podia transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento.
V - Como também não vinga o recurso ao princípio da liberdade contratual ou autonomia da vontade ínsito no art. 405º nº 1 do Cód. Civil, pois, como decorre desta disposição, esse princípio não é ilimitado, já que a fixação pelas partes do conteúdo contratual tem como balizas os “limites da lei”, impostos no art. 280.º do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto.
VI - Sendo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise (reserva de propriedade a favor do financiador), a mesma é nula por contrária a uma disposição de natureza imperativa (artº 280º, nº1, do Cód Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1497/14.7TBSTS-F.P1
Relator: Fernando Baptista
Adjuntos:
Des. Amaral Ferreira
Des. Dolinda Varão
SUMÁRIO:
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I. RELATÓRIO
Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 1, correm termos uns autos de insolvência de pessoa singular (Apresentação) sob o nº 1497/14.7TBSTS, em que é insolvente B….
Nesses autos foram reclamados créditos, designadamente, pelo Credor Banco C…, SA.
Nesse apenso de reclamação de créditos, foi reconhecido àquele Reclamante – por sentença já transitada em julgado - , como crédito comum, o montante €3.967,29, como constava na lista apresentada pelo Senhor Administrador de Insolvência.
Mas foi determinado naquela sentença de verificação e graduação de créditos que os créditos reconhecidos e discriminados na aludida lista do AI fossem “pagos pela seguinte forma:
1º Créditos comuns, em pé de igualdade e rateadamente;
2º Créditos subordinados.”.

Finda a liquidação do activo e prestadas as contas nos respectivos apensos, veio o Senhor Administrador de Insolvência apresentar a sua proposta de mapa de rateio, dele resultando como receitas da massa insolvente: €2.150,00 emergente de móveis c/reserva de propriedade e €523,02 de outros valores, e bem assim ali fazendo constar os referidos €2.150,00 como pagamentos efectuados ao Reclamante Banco C…, SA. (valor a pagar, portanto, a este Credor).
A secretaria judicial, todavia, elaborou, em 21.05.2019, o mapa de rateio, procedendo à distribuição da totalidade das quantias “recuperadas” por todos os credores.

Discordando com tal entendimento – que, segundo o Sr. AI, estava em oposição ao que havia acordado entre este e o Credor, aqui Apelante -, o AI apresentou, em 24.5.2019, reclamação do mapa de rateio, referindo, designadamente, que:
i. “Neste contexto, o produto da liquidação divide-se em duas partes:
O produto da venda do veículo (…) por 2.150,00€.
E o saldo penhorado no Proc. n.º 5955/11.7TBVNG, no montante de 523,02€.
ii. Quanto ao valor de 2.150,00€, resultante da venda da viatura onerada com reserva de propriedade a favor do «Banco C…, S.A.
iii. Na coluna «situação» da Relação de Créditos Reconhecidos, relativamente ao «Banco C…, S.A.», é referido que o credor possui «Reserva de Propriedade» sobre a viatura marca Opel matrícula .. – BS - .., a qual consiste no objeto do financiamento», com um crédito de 3.967,29€.
iv. Por sua vez, na sequência da comunicação da opção de não cumprimento do contrato (…) o credor optou por receber o produto da venda resultante da aceitação de uma proposta apresentada ao Administrador da Insolvência no montante de 2.150,00€ em vez de anuir à devolução da viatura (…).
v. Neste contexto, salvo melhor entendimento, o valor realizado de 2.150,00€, deverá ser pago ao credor «Banco C…, S.A.» na totalidade.
vi. Com a dedução ao crédito do valor pago, o saldo a transita para a fase da exoneração do passivo restante relativamente ao crédito do «Banco C…, S.A.» ascende a 1.817,29€ (3.967,29€ -2.150,00€)”.

Em 3.10.2019 e sobre aquela reclamação foi lavrada nos autos, pelo Senhor funcionário, a seguinte informação:
“1 - O valor do produto da venda foi de €2.673,02 do qual já foram deduzidas as despesas da massa (€242.05) e a conta de custas (€1.734,32) já paga a fls. 254/255.
Pelo que o saldo atual da massa insolvente é de €696,65.
2 - Relativamente à proposta do mapa de rateio de fls. 248, não se concorda com o mesmo, uma vez que já não há em saldo o valor proposto pelo Sr. A.I. para entrega ao credor " Banco C…, S.A. ", e ainda no mesmo foram incluídas as despesas de €41,85, que foram indeferidas a fls. 38 da prestação de contas.”

Aberta vista ao Mº Público, foi emitida, em 7.10.2019, a seguinte promoção:
“Perfilha-se o vertido sob os nºs 1 e 2 de fls.257, ao que acrescentamos a essencial seguinte fundamentação: os termos da sentença de graduação de créditos (decisão de fls.9 do apenso A) e as regras da imputação das dívidas da massa ao produto obtido com os bens liquidados (v.g. art.51º e 172º/2, do CIRE) postergam, claramente, a solução proposta pelo Exmº AI a fls.242 e ss., maxime fls.243, 4. c).
Como assim, p. a fixação da RV e a homologação do rateio, tal como já antes contantes do cálculo e mapa de fls.237 e 238, respetivamente.”.
Em 08.10.2019 é proferido o seguinte
Despacho:
“…Como bem consta da informação prestada pelo Sr. Contador e douta promoção que antecede, o valor do produto da venda foi de €2.673,02 do qual já foram deduzidas as despesas da massa, no valor de €242.05 e a conta de custas, no valor de €1.734,32, já paga. Assim, o saldo atual da massa insolvente é de €696,65. Por outro lado, na proposta do mapa de rateio apresentada pelo Exmo. Administrador de Insolvência consta saldo diverso, bem como constam despesas que foram indeferidas na prestação de contas.
A proposta de rateio do Sr. Contador obedece à sentença de graduação de créditos proferida no apenso A e às regras da imputação das dívidas da massa ao produto obtido com os bens liquidados nos termos dos artigos 51º e 172º/2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Pelo exposto, fixo a remuneração variável do Exmo. Administrador em €59,98, conforme cálculo de 17.05.2019.
Notifique.
*
Defere-se o pagamento da remuneração por levantamento da massa.
*
Homologo o mapa de rateio de 17.05.2019.
Notifique o Exmo. Administrador de Insolvência para proceder aos respetivos pagamentos, através de transferência da conta da massa, fazendo disso prova nos autos….”.

Inconformada com este despacho de 9.10.2019, que homologou o mapa de rateio de 17.5.2019, e, consequentemente, indeferiu a reclamação do mesmo mapa de rateio requerida pelo Senhor Administrador de Insolvência em 24.05.2019, dele recorreu o Credor Banco C…, SA, apresentando alegações que remata com as seguintes

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Nestes termos e sobretudo, nos que serão objecto do Douto suprimento de V/Ex.ªs, deve ser concedido provimento ao presente recurso e revogado o Despacho em causa proferido pelo Tribunal a quo, e substituído por outro que altere o valor fixado ao Credor em sede de rateio, como pagamento do seu crédito, sendo-lhe fixada quantia a que tem direito receber, num montante nunca inferior a 2.000,00€ e com o que se fará sã, serena e objetiva JUSTIÇA!

O Ministério Público respondeu à alegação do Recorrente, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. AS QUESTÕES
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº4 e 639º, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada no recurso consiste em saber se deve manter-se a proposta de rateio apresentada pelo Sr. contador, homologada pela Meritíssima Juíza, ou, ao invés, deve prevalecer a proposta apresentada pelo Sr. AI (na qual entende que deve ser dado pagamento ao Credor/Recorrente da quantia de €2.150,00, resultante da venda da viatura “onerada” com reserva de propriedade a favor do mesmo).
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II.2. OS FACTOS
A factualidade relevante é, no essencial, a que supra vem descrita, acrescentando-se, ainda, a seguinte:
○ No requerimento de liquidação datado de 01.02.2018, elaborado pelo Sr. Administrador de Insolvência, foi referido que:
i. “A viatura marca Opel, matrícula .. – BS - .. encontra-se onerada por uma reserva de propriedade constituída a favor do «Banco C…, S.A.
ii. A ilustre mandatária do «Banco C…, S.A.», Dra. D…, comunicou ao Administrador da Insolvência que caso fossem obtidas propostas superiores ao valor comercial da viatura, fixado em 2.000,00€, o credor tinha preferência por receber aquele montante, ao invés da restituição da viatura.
iii. Foi obtida uma proposta para aquisição da viatura pelo valor de 2.150,00€ (acrescido de IVA à taxa normal) da autoria da Sra. E….
○ O contrato de financiamento para aquisição a crédito, pelo insolvente, do veículo automóvel, no qual o insolvente se confessou devedor da quantia financiada e se obrigou a pagá-la ao ora Recorrente em 84 prestações mensais e sucessivas, não foi cumprido, razão pela qual, em 6.12.2014, o Reclamante/ora Recorrente resolveu o mesmo contrato (cfr. docs. juntos com a reclamação de créditos do ora Recorrente), tendo instaurado a Acção Executiva, que correu termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos sob o nº 2321/14.6TBMTS.
○ Essa acção executiva foi suspensa por via da declaração de insolvência do devedor B…, tendo sido apensa aos presentes autos de insolvência, onde o crédito do Recorrente veio a ser reclamado nos sobreditos termos.
III. O DIREITO
Vejamos, então, a questão suscitada no recurso – que consiste, como dito, em saber se deve manter-se a proposta de rateio apresentada pelo Sr. contador ou, ao invés, deve prevalecer a proposta apresentada pelo Sr. AI (na qual se entende que deve ser dado pagamento ao Credor/Recorrente da quantia de €2.150,00, resultante da venda da viatura “onerada” com reserva de propriedade a favor do mesmo).
Sustenta a Apelante que, beneficiando da reserva de propriedade sobre a viatura vendida no processo de insolvência, aquele valor não deve ser levado ao rateio nos autos de insolvência, com os demais credores, antes lhe deve ser entregue, por inteiro, atenta aquela “garantia” da reserva de propriedade de que diz beneficiar - para além de que (diz) deve ser respeitado o “acordo” havido entre si e o Sr. AI no sentido de que, surgindo uma proposta de aquisição da viatura superior a €2.000,00 (valor comercial da viatura) – como veio a surgir – , o credor tinha preferência por receber aquele montante, ao invés da restituição da viatura.

Que dizer?
DA RESERVA DE PROPRIEDADE E DA SUA VALIDADE QUANDO A FAVOR DO FINANCIADOR
A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei (art. 408/1 do Código Civil).
O legislador civil, no n.º 1 do art. 409, reconhecendo a função de garantia da propriedade, admite que as partes num contrato de alienação convencionem que a propriedade da coisa fique reservada para o alienante até ao cumprimento total ou parcial das obrigações que impendem sobre o adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento. É o que se designa por «reserva de propriedade», por via da qual a transmissão do direito de propriedade do alienante para o adquirente fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, designadamente, nos contratos onerosos, o pagamento do preço, ou de um evento futuro e certo, como seja um termo inicial[1].
No caso vertente, sendo, naturalmente, tal cláusula objecto de inscrição registral - o que é pressuposto da sua eficácia perante terceiros, atento o respectivo objecto mediato (veículo automóvel): art. 5.º/1, b), do DL n.º 54/75, de 12.02 -, a questão que se coloca é a de saber se o Recorrente beneficia da presunção da existência do direito que é estabelecida no art. 7.º do Código do Registo Predial, ex vi art. 29.º do referido DL n.º 54/75.
É que a situação dos autos é anómala face aos pressupostos legais da reserva de propriedade: a propriedade sobre o veículo foi reservada a favor de um terceiro (a Apelante) relativamente ao contrato de alienação, para garantia do cumprimento de prestações pecuniárias derivadas de um contrato de mútuo, e não a favor do alienante, para garantia do pagamento do preço devido (ao alienante) pela aquisição do bem (o veículo automóvel).
Diz o já referido art. 409/1 do Código Civil que «nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade…». A norma, na sua parte final, alude ainda ao cumprimento “das obrigações da outra parte [o adquirente] no contrato». Por outro lado, o art. 5.º/1, b), do DL n.º 54/75 dispõe que «a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos” está sujeita a registo.
Perante estas normas, não restam dúvidas que literalmente só nos contratos de alienação é lícita a estipulação da cláusula de reserva de propriedade. O que nos permite questionar da sua validade nos contratos de financiamento: o financiador nada vendeu e reservou para si a propriedade para garantir o cumprimento das obrigações que para o adquirente emergem do contrato de financiamento e não para garantia do cumprimento das obrigações que para o mesmo adquirente resultam do contrato de alienação - em especial, no caso mais comum da compra e venda (como é o presente), a obrigação de pagamento do preço, que é logo cumprida graças à quantia entregue pelo financiador.
Em Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril / Junho de 2004, pp. 51-52, em anotação ao Ac. da RL de 21.II.2002, Fernando Gravato Morais criticou a solução encontrada, defendendo a nulidade, nos termos do art. 280 do Código Civil, da cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária a uma disposição de natureza imperativa.
Como bem refere este Ilustre Autor, «não restam dúvidas que literalmente (…) só nos contratos de alienação, maxime nos contratos de compra e venda é lícita a estipulação, sendo certo que a finalidade do legislador, ainda que interpretada atualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre o objeto que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fracionamento das prestações».
É certo que alguma jurisprudência tem contornado a dificuldade, convocando a figura da sub-rogação, nomeadamente o disposto nos art. 589º e 591º CC.
Porém, tal entendimento não colhe, pois que tais preceitos têm a ver com a transmissão de créditos, sendo certo que no caso já não poderia o vendedor transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento.
Não olvidamos que alguma jurisprudência admite que a reserva de propriedade possa proteger o financiador, não vendedor, desde que todos os intervenientes na relação jurídica triangular (vendedor, comprador, mutuante) nisso acordem de forma expressa.
Tal “argumento” não vinga pois no contrato dos autos apenas tiveram intervenção no contrato de financiamento (só estes o outorgaram – cfr. doc. junto aos autos, citado supra), o apelante e o apelado, não tendo o vendedor do veículo qualquer intervenção nessa relação contratual.
Donde se concluir que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador (in casu, o banco apelante) não é, nas apontadas circunstâncias apontadas e pelos aludidos fundamentos, válida, por inadmissível, face à nossa lei.
Percute-se que o financiador da operação, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação. Daí que “a consideração de uma relação tripolar brigue com a essência da previsão legal do art. 409º do Código Civil”[2].
Como tal, suspendendo a cláusula em questão, como vimos, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada.
Ou seja, apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo, na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado. E é claro, o contrato de mútuo não é um contrato de alienação, pelo que “constitui uma contradição nos próprios termos alguém reservar um direito de propriedade que não tem”[3].


Apela-se aqui, por vezes, ao princípio da liberdade contratual ou autonomia da vontade, como resulta do disposto no art. 405º nº 1[4].
Todavia, como também decorre desta disposição, esse princípio não é ilimitado, pois expressamente aí se referencia que “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, (...) ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”. Restrição de todo justificada[5].
Donde, portanto, que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante, constante do contrato, não é válida, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no art. 409º nº 1[6].

No mesmo sentido têm decidido muitos outros arestos, de que são exemplos: Ac. da RP de 1.VI.2004, processo n.º 0422028; Ac. da RL de 20.VI.2006, processo n.º 4927/2006-8; Ac. da RL de 12.X.2006, processo n.º 3814/2006-2; Ac. da RP de 15.I.2007, processo n.º 0651966 – todos disponíveis em www.dgsi.pt. Todos concluem, portanto, pela nulidade da cláusula: o financiador não teria, na sua esfera jurídica, o direito de propriedade sobre o bem (no caso sub judice, o veículo automóvel), com uma função de garantia do cumprimento do contrato celebrado com o adquirente do bem financiado.
De forma lapidar, sobre esta problemática da «relação triangular», que envolve o vendedor, o comprador e o financiador, num contrato de alienação com financiamento e reserva de propriedade, apreciando da eventual nulidade da reserva de propriedade, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 07.01.15[7]. onde se faz uma análise exaustiva da questão, com vastas indicações doutrinais e jurisprudenciais.
Escreveu-se ali:
«A cláusula de reserva da propriedade, prevista e regulada no art. 409.º, do Código Civil para os contratos de alienação, traduz-se na sujeição do efeito translativo desses negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado, utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.
Suspendendo ela, apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato. Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, para quem outorga o contrato de alienação do mesmo, na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado.
No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
O facto do art. 6.º, n.º 3, alínea f), do D.L. 359/91, de 21/9, que regula o regime jurídico do crédito ao consumo, prever como cláusula dos contratos de crédito ao consumo “o acordo sobre reserva de propriedade”, não “legaliza” a sua estipulação a favor da entidade financiadora, quando ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação, uma vez que tal disposição se reporta às situações em que o pagamento do preço ao vendedor é diferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este o beneficiário da reserva de propriedade clausulada.
A previsão do art. 409.º do C.C., não pode ser aplicada, por analogia, a esta situação, uma vez que não é possível equiparar a posição do alienante, proprietário de um bem que aliena, a quem é atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, com a do mutuante, que não é proprietário desse bem, limitando-se a financiar a sua aquisição. O direito atribuído pelo art. 409.º do C.C., pela sua natureza, só pode ser atribuído a quem é proprietário do bem em causa, não podendo ser concedido a quem não tenha essa qualidade.
A liberdade das partes estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas (art. 405.º do C.C.) tem os limites impostos no art. 280.º do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto.
Sendo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise, a mesma é nula, nos termos do art. 280.º, n.º 1, do C.C.
E não é defensável pretender-se, neste caso, que, apesar da terminologia utilizada, tal cláusula possa ser interpretada (art. 236.º, n.º 1, do C.C.), ou convertida (art. 293.º do C.C.), numa alienação fiduciária em garantia, cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é defendida por alguns.
Na verdade, exigindo esta figura uma primeira transmissão do bem em causa da esfera patrimonial do mutuário para o mutuante e uma segunda transmissão do mesmo bem da esfera deste para aquele, após o cumprimento da obrigação garantida, não resulta dos elementos apurados nesta acção que essa tenha sido a vontade real, hipotética ou presumível das partes, até porque tais transmissões estavam obrigatoriamente sujeitas a registo de transmissão e não de simples reserva de propriedade, como foi efectuado.».

Concorda-se inteiramente: a cláusula em causa, porque estipulada a favor da entidade financiadora, ora Apelante, é nula, não podendo, como tal, dela se servir nos termos vertidos nas doutas alegações de recurso. Ou seja, sendo nula, não pode produzir a transferência da propriedade do bem do vendedor para o financiador, como pretende o Apelante.
Se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir (“nemo plus iuris in alium ransfere postest quam ipse habet”); e também, porque nada tem e nada pode transmitir, nada pode reservar sob condição. É sempre o efeito de uma aquisição derivada de quem é dono e aliena que permite a este subordinar a transferência do direito de propriedade (que normalmente se dá por simples efeito do contrato – Artº 408º, nº1) do bem à verificação da condição suspensiva do pagamento integral do preço, pela inserção da cláusula da reserva de propriedade, que representa para si uma garantia de cumprimento.
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Atento o explanado, é para nós manifesto que a pretensão do Recorrente (em ver-lhe entregue o valor obtido com a venda da viatura objecto do contrato de financiamento) está votada ao insucesso.
O que vale para dizer que, não podendo servir-se da dita “garantia” da reserva de propriedade e sendo um credor comum, nenhuma censura merece o rateio feito, em 21.05.2019, pela secretaria judicial, pois se limitou a cumprir o que emerge da lei, procedendo à distribuição da totalidade das quantias “recuperadas” por todos os credores.
Com efeito, como bem consta da informação lavrada nos autos, em 3.10.2019, pelo Senhor funcionário, sendo de €2.673,02 o valor do produto da venda, após terem sido deduzidas as despesas da massa (€242.05) e a conta de custas (€1.734,32), temos que o saldo actual da massa insolvente é de €696,65.
E assim sendo – como igualmente ali bem se observa – a proposta de rateio do Sr. AI não é aceitável, na medida em que, como visto, já não há em saldo o valor proposto pelo Sr. A.I. para entrega ao credor " Banco C…, S.A.", aqui Recorrente, para além de que no mesmo foram incluídas as despesas de € 41,85, que foram indeferidas a fls. 38 da prestação de contas.
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Vendo bem as coisas, a pretensão do Recorrente também por outra razão estava votada ao fracasso.
Como consta dos autos, o Credor/ora Recorrente reclamou o seu crédito, tendo ali invocado, precisamente, o que ora sustenta: a validade e eficácia da aludida reserva de propriedade.
Ora, na sentença de verificação e graduação de créditos, foi decidido que o seu reclamado crédito, fosse pago “em pé de igualdade” – com os demais créditos comuns – “e rateadamente”.
Esta sentença, datada de 8.2.2017, há muito que transitou em julgado, não tendo dela sido interposto recurso, maxime pelo ora Recorrente no fito de ver vingar a pretensão de pagamento do alegado crédito, não em pé de igualdade” (com os demais créditos comuns) “e rateadamente”, mas por inteiro.
Como tal, não pode vir agora invocar e pretender o que, com aquele trânsito em julgado, deixou “passar”.
Assim sendo, tendo sido homologado o rateio elaborado em conformidade com o determinado na sentença de verificação e graduação dos créditos transitada em julgado, não nos merece o mesmo qualquer censura.

Improcede a questão suscitada – assim claudicando todas as doutas conclusões da apelação.
IV. DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Porto, 14.05.2020
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
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[1] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, Coimbra, 987, p. 376, e Luís Lima Pinheiro, a Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, p. 93.
[2] Acórdão deste S.T.J. de 2-10-2007, Fonseca Ramos, em www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[3] Acórdão do STJ de 10-7-2008.
[4] A autonomia privada é uma ideia fundamental do Direito Civil. É ela que corresponde à ordenação espontânea (não autoritária) dos interesses das pessoas, consideradas como iguais, na sua vida de convivência — ordenação autoformulada que é a zona reservada do direito privado.
Em medida maior ou menor está presente em todos os domínios em que o direito civil se propõe uma função de modelação da vida social; mais amplamente no plano das relações patrimoniais e da troca de bens e serviços, e com menor extensão no domínio das relações pessoais e familiares, domínios onde o carácter imperativo de grande parte das normas jurídicas proíbe a disposição ou limitação de certos direitos (v.g., direitos de personalidade) ou reduz a liberdade de contratação a uma mera liberdade de concluír ou não o acto jurídico, mas fixando-lhe, necessáriamente, uma vez celebrado, os efeitos (v.g., casamento, adopção).
A autonomia privada está presente nos domínios em que o direito civil visa uma função de modelação e disciplina positiva da vida social. Estabelecemos esta delimitação — domínios em que o direito tem uma função modeladora da vida em relação — para excluirmos o domínio em que cabe ao direito civil uma função de protecção ou defesa dos direitos constituídos ao abrigo da sua função modeladora.
[5] As restrições à liberdade de estipulação aludidas neste artº 405º ("dentro dos limites da lei ") eram, sem dúvida, menores num sistema jurídico-privado assente nas bases doutrinárias do liberalismo económico, em que o Estado se reserva o papel de mero garante das condições de livre desenvolvimento da iniciativa dos particulares, assistindo, sem intervir, à actuação destes. Deslocado o ponto de apoio doutrinário e jurídico-constitucional do liberalismo para um intervencionismo estatal, mais ou menos acentuado, procura o direito civil assegurar uma justiça efectiva e substancial nas relações entre as partes, bem como valores ou interesses da colectividade, tais como os bons costumes, a ordem pública, a celeridade, a facilidade, a segurança do comércio jurídico. Para realizar estes objectivos são consagradas limitações à liberdade de estipulação do conteúdo contratual.
Num ordenamento que admita, sem limitações, a liberdade contratual, não há uma justiça ou rectidão contratual, imanente (em si mesma), assente em critérios objectivos. Esta perspectiva está hoje ultrapassada: importa criar e garantir os pressupostos da formação dos contratos, num quadro de real e efectiva autodeterminação recíproca. Impõe-se corrigir ou impedir os desenvolvimentos absolutos da liberdade contratual, assegurando uma situação de real liberdade e igualdade dos contraentes, bem como as exigências da justiça social. Assim o reclama uma consideração conjunta e permanente da personalidade do homem e da sua socialidade.
[6] Assim também Gravato Morais, in União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, 2004, pág. 307, nota 572.
[7] Consultável em www.dgsi.ptjtrp00039963 (Cura Mariano).