Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
35/07.2JACBR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: FALSIDADE INFORMÁTICA
FACTO JURIDICAMENTE RELEVANTE
Nº do Documento: RP2015052635/07.2JACBR.P1
Data do Acordão: 05/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No crime de Falsidade informática, quer na redação do art. 4.º n.º 1, da Lei da Criminalidade Informática, em vigor aquando dos factos, quer na atual formulação do art. 3.º n.º 1, da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados.
II – Comete tal crime a arguida que fez introduzir no sistema informático do hospital episódios de cirurgias realizadas em regime de ambulatório como se tivessem sido levadas a cabo em regime de internamento, quando tal não correspondia à realidade.
III – A relação jurídica que em virtude do comportamento da arguida foi introduzida no sistema informático não corresponde à verdade, sendo certo que os dados assim vertidos no sistema informático produzem os mesmos efeitos de um documento falsificado, pondo em causa o seu valor probatório e consequentemente a segurança nas relações jurídicas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º35/07.2JACBR.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo comum [com intervenção do tribunal singular ao abrigo do art.16.º do C.P.Penal] n.º35/07.2JACBR da Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, Juízo de Média Instância Criminal, Juiz 2, por sentença proferida em 15/7/2014 e depositada na mesma data, foi decidido:
- absolver a arguida B… da prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos arts.26, 217.º e 218.º, n.º2, al.a) do C.Penal,
- condenar a arguida pela prática de um crime de falsidade informática p. e p. pelo art.4.º, n.º 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º109/91, de 17/8, e alterada pelo DL n.º323/2001, de 17712, por referência aos arts.26.º e 386.º do C.Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução por igual período de empo, nos termos do art.50., n.º1 e 5, do C.Penal.
Inconformada com a decisão condenatória, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1 – No âmbito dos presentes autos foi a arguida B…, acusada da prática de um crime de burla qualificada e ainda de um crime de falsidade informática;
2 – A recorrente foi absolvida pelo Tribunal a quo do crime de burla qualificada e condenada pela prática de um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo artigo 4º, n.º1 e n.º3, da Lei da Criminalidade Informática;
3 – Ora, sendo o crime de falsidade informática de que foi acusada a arguida, instrumental do crime de burla, ou seja, na óptica da acusação, foi “o meio para atingir o fim” e tendo a arguida sido absolvida da burla, necessária e forçosamente inexiste o meio usado na concretização de tal fim – falsidade informática, pelo que nunca que o Tribunal a quo poderia ter condenado a arguida pela prática de tal ilícito;
4 - A falsidade informática é punida quando contenha factos falsos, mas, entendendo-se por factos falsos, não todo e qualquer facto, mas tão-somente os factos falsos que forem juridicamente relevantes, ou seja, factos que sejam aptos a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, o que não aconteceu no presente processo,
5 – pois, consta dos documentos do processo – contrato programa e faturas – que o valor pago ao hospital pelo IGIF - Estado, relativamente a cirurgias oftalmológicas em ambulatório e em internamento, era exatamente o mesmo, sendo indiferente que as cirurgias tenham sido feitas em sistema ambulatório ou em internamento,
6 – O Tribunal a quo considerou provada a matéria de facto constante dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22, dos factos provados, que estão em flagrante e objectiva oposição e contradição com os documentos juntos ao processo pela própria acusação - contrato programa do hospital e facturas do hospital – que provam que o valor pago por cada cirurgia era sempre igual e o mesmo, quer a cirurgia fosse feita em ambulatório ou em internamento.
7- Face à existência das faturas emitidas pelo Hospital de Aveiro, durante todo o ano de 2004 e 2005 ao IGIF e pagas por este, face ainda ao teor do contrato programa que, objetivamente, estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer ela seja em ambulatório, quer seja em internamento, é exatamente igual, o mesmo valor;
8 – dizer-se que uma cirurgia foi feita em ambulatório ou em internamento é irrelevante, pois o que é pertinente é se foi feita ou não a cirurgia e, nesta vertente, é notório que foi feita aquela cirurgia, àquele paciente, naquele hospital, naquele dia, por aquele médico e o custo é aquele que está fixado no anexo I ao contrato programa.
9 - No contrato programa celebrado para 2004 e para 2005 celebrado entre Ministério da Saúde e o Hospital …, S.A. junto aos autos a fls. 943 e seguintes, onde no seu Anexo I, relativo a produção contratada e remuneração, consta, no que respeita a internamentos (doentes equivalentes) e cirurgias ambulatórias (doentes equivalentes), que o preço unitário contratado para cada um destes tipos de intervenção, é exatamente o mesmo, ou seja, o preço unitário de €1.849,10;
10 - Nas 17 faturas emitidas pelo Hospital …, enquanto elemento integrante do Serviço Nacional de Saúde ao IGIF respeitantes aos anos de 2004 e 2005 e que constam de folhas 182 a 199 dos autos onde expressamente consta que o valor faturado pelo Hospital com referência a Cirurgias Ambulatórias (e doentes equivalentes) e Cirurgias por Internamento (e doentes equivalentes) é exatamente o mesmo, ou seja, cada uma destas cirurgias, quer em ambulatório quer em internamento, nos anos de 2004 e 2005 tiveram sempre o mesmo preço unitário de €1.849,10;
11 - Com referência aos contratos-programa, há ainda que destacar o consagrado no artigo 24.º dos Estatutos do Hospital …, SA aprovados pelo Decreto-Lei nº. 272/2002, de 09/12, que diz:1 - A execução do plano de atividades do Hospital pautar-se-á, designadamente, por contrato-programa plurianual a celebrar com o Ministério da Saúde, no qual se estabelecerão os objetivos e as metas qualitativas e quantitativas, a sua calendarização, os meios e instrumentos para os prosseguir, designadamente de investimento, os indicadores para a avaliação do desempenho e do nível de satisfação das necessidades relevantes e as demais obrigações assumidas pelas partes. 2 - Da componente financeira de cada contrato será dado conhecimento prévio ao Ministério das Finanças;
12 - Significa isto que, quer os doentes estivessem em regime ambulatório ou em regime de internamento o custo de tais doentes e as receitas decorrentes desses custos, tanto para o Hospital …, como para qualquer entidade decorrente do Ministério da Saúde, sempre eram neutros, pois sempre o Estado era simultaneamente credor e devedor de toda e qualquer quantia;
13 - O que torna notório que os factos ocorridos, (se ocorreram), não permitem a subsunção típica que o Tribunal invoca, uma vez que não preenchem os pressupostos do tipo de ilícito inerente ao crime de falsidade informática p. e. p. no artigo 4º, 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º 109/91 de 17 Agosto, e alterada pelo Decreto Lei n.º 323/2001 de 17 de Dezembro;
14 - É que mesmo que exista ou possa abstratamente entender-se que ocorreu uma falsidade informática, que não ocorreu, a falsidade informática é punida quando se trate de uma declaração de factos falsos, só que, por factos falsos, não se pode entender ou considerar todo e qualquer facto, mas tão-somente os factos falsos que forem juridicamente relevantes, ou seja, factos que sejam aptos a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica;
Veja-se:
15 - O início deste processo-crime foi despoletado com uma folha 7 dos autos que contém uma relação de cirurgias feitas no hospital de Aveiro, na data de 25 de Outubro de 2004, tal folha contém as cirurgias de Setembro e Outubro de 2004, no que respeita às cirurgias de Setembro de 2004, estas, à data da emissão daquela folha de 25 de Outubro, já haviam sido faturadas ao IGIF, pois as faturas tinham que ser enviadas, como haviam sido, até ao dia 20 de Outubro e àquela data de 25 de Outubro, já haviam sido enviadas;
16 - O preço das cirurgias, conforme se lê do texto das faturas e do anexo ao contrato programa é exatamente o mesmo, ou seja, é um valor igual, quer para cirurgias ambulatórias, quer cirurgias por internamento;
17 – A ter existido um qualquer pedido de alteração para a passagem de cirurgias ambulatórias para cirurgias por internamento, (que não houve), tal pedido só podia servir para fins estatísticos do próprio hospital, pois tal referência não se repercute, como nunca podia repercutir em qualquer relação jurídica que o hospital teve e continuou a ter, pois as relações jurídicas sempre se mantiveram iguais e reais, em nada sendo alteradas em função das referências ambulatória ou internamento, pelo que nunca houve nem podia haver qualquer perigo de o Estado ser defraudado;
18 - O Tribunal a quo não teve em conta os factos provados por documentos, nem o contrato programa celebrado pelo hospital, nem o documento de fls. 7 ter contradições pois apresenta-se feito na data de 25 de Outubro de 2004 e contém referências a cirurgias praticadas no mês de Setembro e Outubro, constando no contrato programa que as faturações relativas a um mês têm que ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte;
19- Constando da folha assinada pela arguida na data de 25-10-2004, relação de cirurgias feitas em Setembro, e dizendo a testemunha C… que alterou a relação ambulatório por internamento nas cirurgias constantes nessa folha e que isso causou prejuízo ao Estado porque as cirurgias por internamento eram mais caras do que as cirurgias de ambulatório, objetivamente tal testemunha prestou falsas declarações na medida em que, no dia 25 de Outubro, já não era possível enviar novas faturações de Setembro, porque estas haviam já sido enviadas até ao dia 20 de Outubro, o valor unitário de cada cirurgia feita pelo hospital de Aveiro, é exatamente o mesmo, quer a cirurgia seja ambulatória, quer seja por internamento;
20 - A falsidade informática é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, mas apenas aquele que for juridicamente relevante, ou seja, que seja apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica;
21- No caso concreto destes autos, vemos que os factos lançados no sistema informático, documentam factos reais, pois há:
- A identidade real dos intervenientes nos atos cirúrgicos – médicos, enfermeiros, pacientes, hospital;
- A existência das cirurgias feitas e a quê;
- O valor correspondente ao pagamento de cada uma das cirurgias feitas, sendo indiferente que as mesmas tenham sido feitas em sistema ambulatório ou por internamento;
22 - A relação jurídica vertida no sistema informático, é totalmente verdadeira e real;
23 - A única questão levantada pela acusação é a de saber se tais cirurgias foram feitas em ambulatório ou em internamento, questão meramente interna do hospital, para fins meramente estatísticos e que nenhum efeito tem ou teve, na relação jurídica subjacente;
24- O tribunal a quo não relevou, que na base da denúncia crime feita, da acusação feita e dos depoimentos das testemunhas C… e D… está o documento a fls 7 dos autos que tem a data de 25 de Outubro de 2004 e reproduz as cirurgias feitas nos meses de Setembro e Outubro, até àquela data do dia 25, sendo que, tal documento contém a assinatura da arguida Drª B… e, a lápis, as anotações feitas com o punho da testemunha C…;
25 - Em nenhum sítio do documento se diz ou é dito que, com referência a esse documento, a Drª B… deu instruções ou ordens para alterar a designação de ambulatório para internamento para, com isso, o hospital receber mais dinheiro pela prestação de serviços de cirurgia de oftalmologia.
26- E o próprio documento expressa a impossibilidade defendida pela acusação e pelas testemunhas C… e D… dessa denúncia e do depoimento destas testemunhas serem verdadeiras, pois resulta do contrato programa que o valor pago pelas cirurgias oftalmológicas que estas fossem em ambulatório quer fossem em internamento, tinham igual valor e resulta também que a faturação pelos serviços e cirurgias prestados pelo hospital num determinado mês tinham que ser faturados e enviadas as faturas até ao dia 20 do mês seguinte;
27 - Ora, tendo o documento de fls 7 que deu origem ao processo e acusação, a data de 25 de Outubro de 2004 e constando desse documento a relação das cirurgias feitas no mês de Setembro, no dia 25 de Outubro de 2004, já as cirurgias do mês de Setembro de 2004 haviam sido faturadas e as faturas enviadas para a entidade responsável;
28 - Pelo que a referência a lápis feita no documento de fls 7 pela testemunha C… dizendo que havia mudado as indicações das cirurgias do mês de Setembro para prejudicar o Estado, revela-se, objetiva e notoriamente, como denúncia ou depoimento falso e impraticável porque não podia, no dia 25 de Outubro de 2004 alterar a referência ambulatório por internamento para prejudicar o Estado, porque já as faturas relativas a tais cirurgias já haviam sido enviadas para a entidade responsável, entidade responsável esta que, como consta do processo, tinha acesso imediato e automático ao sistema informático, denominado “E…”, o que significa uma impossibilidade objetiva de prática de um ato que, além de inútil e sem valor, era impraticável e impossível de praticar;
29 - Independentemente de ter sido dada “essa ordem” ou não, a verdade é que tal ordem, a ter sido dada e não o foi, era profunda e totalmente inócua nas relações jurídicas existentes entre o Hospital, o Estado e o paciente e não era minimamente idóneo a concretizar uma intenção de causar prejuízo, ou seja, dar-se uma ordem para que uma cirurgia passe de ambulatória para internamento ou vice-versa, mantém sempre incólume a inatingível a relação jurídica criada entre o Hospital, o Estado e o paciente;
30 - O importante, face à lei, é que tenha existido as cirurgias faturadas e que não haja desconformidade entre o que é faturado pelo hospital e a realidade e, de todos os documentos constantes no processo provam que não existe nenhuma desconformidade entre o que foi vertido no sistema informático e a realidade, pois as intervenções cirúrgicas são reais, têm o valor económico que foi faturado, tem a identificação do paciente, a descriminação da cirurgia feita, do médico, da data em que a mesma ocorreu, ou seja, a totalidade do sistema informático e as faturas emitidas através dele, pelo Hospital incorporam factos totalmente verdadeiros face à realidade concreta e objetiva;
31 - Para existir a prática de um crime de falsidade informática, tem que existir uma desconformidade relevante entre o que consta do sistema informático e a realidade, por nele ter sido introduzido um facto falso que provoca uma alteração importante na relação jurídica entre as partes;
32 - O que consta do sistema informático no que concerne às relações jurídicas e aos factos narrados decorrentes dessas relações jurídicas, é exatamente real, verdadeiro e certo, mesmo a ser verdade (que não o é) que tenha existido alterações entre a designação de cirurgia em ambulatória por cirurgia em internamento, o seu efeito sempre se operaria somente no domínio interno do hospital e não na relação jurídica do hospital com o paciente e com o Estado, ou seja, tal alteração poderia consubstanciar uma irregularidade, retificável e nunca uma falsidade, pois não é relevante em termos de relação jurídica, dito de outra forma, mesmo que fosse verdadeira a ordem de alteração de cirurgia ambulatória por internamento, tal declaração que o sistema informático pudesse corporizar ou ter, não tem idoneidade para provar facto juridicamente relevante, o que significa que não tem dignidade jurídica para integrar ou preencher os requisitos essenciais e necessários para a prática de um crime de falsidade informática;
De facto,
33- Criminalidade Informática, consiste em todo o ato em que o computador serve de meio para atingir um objetivo criminoso ou em que o computador é o alvo desse ato, e na situação que nos ocupa nos presentes autos, salvo melhor entendimento, teremos necessária e forçosamente que ser levados a concluir, que a alegada conduta praticada pela arguida B…, não integra os elementos objetivos e subjetivos contidos na previsão normativa do artigo 4º da Lei da Criminalidade Informática, para tal basta atentarmos no elemento literal contido no n.º1 do referido dispositivo legal “…engano nas relações jurídicas,…”, para preenchimento do tipo legal do crime de falsidade informática, exige-se como elemento subjetivo da ilicitude a intenção do agente de provocar engano nas relações jurídicas, o dolo caracteriza-se pelo fim de enganar nas relações jurídicas;
34 - Trata-se de uma intervenção ilegítima no meio informático quando os dados daí resultantes sejam suscetíveis de servir como meio de prova, sendo que a visualização daqueles provocará então os efeitos de um documento falsificado, sendo os interesses aqui protegidos a segurança e fiabilidade dos documentos, consistindo a ação na modificação de dados já armazenados ou armazenar novos com o mesmo fim;
35 Para que se encontrem preenchidos os requisitos do crime de falsidade informática, exige-se que os factos criminosos alegadamente cometidos pelo agente, incidam sobre relações jurídicas, o agente pratica um facto, tendente a enganar um terceiro prejudicando-o;
36 – No caso concreto, teremos que ser levados a concluir que inexiste, desde logo o prejuízo causado pelo eventual “…engano nas relações jurídicas,…”, na medida em que o Tribunal a quo e bem, absolveu a arguida da prática do crime de burla qualificada, e teremos ainda que ser levados necessária e forçosamente a concluir, que inexistiu qualquer “…engano nas relações jurídicas,…”;
Senão veja-se:
37 - Todas as intervenções cirúrgicas constantes dos autos ou se preferirmos, todas as relações jurídicas, são reais, efetivamente todos os utentes inquiridos nos autos afirmam terem sido sujeitos a intervenções cirúrgicas, ou seja, a relação subjacente existe, é real, e por isso nos presentes autos, não existiu qualquer engano ou alteração nas relações jurídicas, nem existiu, como aliás o Tribunal a quo deu como provado, qualquer custo ou prejuízo, absolvendo nessa medida a arguida do crime de burla qualificada, tratando-se de divergências, que relevam para efeitos meramente estatísticos, sem qualquer relevância ou repercussão, na medida em que como ficou sobejamente provado nos autos, o custo de uma cirurgia realizada em regime de ambulatório é exatamente igual ao custo de uma cirurgia convencional/internamento;
Mais,
38 - O crime de falsidade informática apresenta-se como o meio de concretização / consumação do crime de burla qualificada, ao serviço do qual se concretizou, e tendo a arguida sido absolvida da prática deste último, tal fato terá necessária e forçosamente que nos levar a concluir pela verificação in casu, de uma situação de consumpção relativamente aos dois tipos de ilícito, o tribunal a quo ao absolver e bem, tal como o fez, a arguida da prática do crime de burla qualificada, pelos doutos fundamentos constantes da sentença recorrida, e ao mesmo tempo ao condenar a arguida pela prática do crime de falsidade informática, tal decisão, salvo o devido respeito, redunda por si só, numa contradição insanável nos fundamentos aduzidos pelo Tribunal a quo ao proferir tal decisão;
39 - O juízo valorativo do Tribunal a quo, assentou em prova indiciária, recorrendo o Tribunal a quo, na formação da sua convicção em presunções simples ou naturais, que extravasaram em muito o que se poderia concluir de forma lógica, segura e objetiva da prova produzida, salvo o devido respeito, o juízo subjacente à Sentença ora em crise, não tem subjacente um nexo preciso, direto e conforme às regras da experiência, entre os factos base e os indícios, que permitisse a exclusão de outras conclusões com igual grau de verosimilhança, como é o caso da versão dos factos apresentada pela arguida;
40 - A recorrente é médica e cirurgiã ortopedista, que sempre tem dado o seu melhor com eficiência, competência e espírito de entreajuda quer no exercício dos seus deveres e atividades profissionais quer no relacionamento humano e solidário que mantém com todas as pessoas que se relacionam no seu dia-a-dia;
41 - A ora recorrente, à data dos factos objeto dos presentes autos, para além do cargo de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes no Hospital …, sito em Aveiro, era médica no serviço de Ortopedia, a função de diretora do serviço de gestão de doentes, é uma função gratuita de nomeação do Conselho de Administração, feita para efeitos de coordenação dos serviços, e para essa função, o Conselho de Administração escolhe o médico competente e respeitado pelos demais colegas e pelos funcionários por forma a esbater o mais possível quaisquer atritos que surjam na interligação entre as várias áreas clínicas e o funcionamento normal do hospital;
42 - Pela análise do organigrama do Hospital …, constante a fls. 2156 dos autos, o “Serviço de Gestão de Doentes”, é um serviço que está apenas diretamente ligado às diversas áreas clinicas, nada tendo que ver com os Serviços de Administração ou menos ainda com o “Departamento de Informação Organizacional”;
43 - A recorrente, nenhuma interferência, nem interesse tinha, teve ou tem nos resultados económicos, financeiros ou administrativos do Hospital …, facto a que foi totalmente alheia, e o único objetivo que tinha e tem num hospital é os doentes serem o mais bem tratados possível, e obter bons resultados clínicos, não tendo qualquer intervenção em termos do tratamento de dados informáticos daquele hospital, aliás a recorrente não possui sequer conhecimentos informáticos para tal;
44 - O que por si só redunda na impugnação do facto 2.1.8. dado por provado, na sua qualidade de diretora do serviço de gestão de doentes, a recorrente tem o direito de exigir do pessoal administrativo, no que toca à gestão de doentes, e sem que isso represente uma relação hierárquica vinculativa e funcional, o cumprimento das obrigações que forem mais eficazes e eficientes à gestão do serviço, veja-se o depoimento da arguida B… (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 04.07.2014 e ficheiro 20140704101905_738115_1498370 de 03:39 a 05:19;
45 - Impugnando-se ainda especificadamente os factos dados como provados nos pontos 2.1.10., 2.1.11., 2.1.12., 2.1.14. e 2.1.15., de facto, é totalmente falso que a recorrente tenha alguma vez dado ordens a quem quer que fosse para converter episódios de doentes operados em regime ambulatório, para episódios de internamento;
46 - Na verdade, o depoimento e a versão dos factos apresentada pela arguida, ora recorrente foi totalmente desvalorizada pelo Tribunal a quo, em clara e manifesta violação do preceituado no artigo 127º do CPP, tratando-se de uma versão lógica, credível e plausível e corroborada pelo depoimento das testemunhas, veja-se ainda a este propósito o depoimento da arguida (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 04.07.2014 e ficheiro 20140704101905_738115_1498370 de 15:30 a 16:48; 28:58 a 29:32; 33:00 a 34:03;
47 - Ainda no que a tais factos se reporta, as declarações prestadas pela testemunha M…, em sede de Audiência de Julgamento, revelam-se pouco claras, revelando a testemunha falta de convicção, certeza e assertividade ao que lhe estava a ser perguntado, quanto às alegadas ordens que lhe terão sido dadas pela arguida, veja-se: (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707101230_738115_1498370 de14:30 a 14:42; 16:51 a 17:58; 32:03 a 33:28; 40:19 a 40:59;
48 - Todas as testemunhas inquiridas quando confrontadas com a pergunta – Se alguma vez receberam ordens por parte da Dra. B…, para alterar/remover/deturpar dados referentes a atos cirúrgicos – afirmaram peremptoriamente nunca terem recebido da parte da arguida instruções nesse sentido, nem nunca viram a arguida a “mexer” no sistema informático no que se reporta à gestão de doentes, afirmando claramente que a arguida não tinha sequer conhecimentos informáticos para tal, veja-se a este propósito o depoimento da testemunha F… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707141903_738115_1498370 de 07:56 a 08:53; o depoimento da testemunha G… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707150151_738115_1498370 de 03:49 a 04:41; 05:38 a 06:13; o depoimento da testemunha H… (Cfr. Ata da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707143923_738115_1498370 de 04:57 a 05:47;
49 - Da análise atenta dos presentes depoimentos, prestados em sede de audiência de julgamento seremos necessária e forçosamente uma vez mais levados a concluir que o Tribunal a quo, revela clara e inequivocamente que se limitou a proferir uma decisão, baseada meramente na acusação, revelando um total e absoluto desconhecimento dos autos, não valorando devida e convenientemente toda a prova documental contida nos autos, bem como, toda a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento;
50 – O Tribunal a quo, ao dar como provados os fatos 2.1.20, 2.1.21, 2.1.22 que desde já se impugnam, e como não provados os factos 2.2.1., 2.2.5 e 2.2.6, revela-se numa clara e manifesta contradição insanável entre os fundamentos e a decisão proferida pelo Tribunal a quo, o que desde já se impugna;
51 - Relativamente a tais fatos veja-se o depoimento da testemunha I…, então Presidente do Conselho de Administração, à data dos fatos a que se reportam os presentes autos, (Cfr. Acta da Audiência de Julgamento de 07.07.2014 e ficheiro 20140707113412_738115_1498370 de 07:30 a 11:52;
52 - Face ao teor do contrato programa que, objetivamente, estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer ela seja em ambulatório, quer seja em internamento, é exatamente igual, o mesmo valor, não se percebe como é que o Tribunal a quo dá como provado, este diferencial de faturação, e ao mesmo tempo, na fundamentação da decisão refere o seguinte: “Não se pode assim afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que tenha existido um efetivo prejuízo dos alegados ofendidos… Por todas estas razões não está demonstrado que tenha havido de facto um concreto prejuízo para o SNS, na justa medida da apontada diferença de preços, e para os demais subsistemas de saúde aqui em causa”;
53 - Não se percebe uma vez mais, como é que o Tribunal a quo, dá como provados fatos, quando nenhuma testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento se refere a tal matéria ou demonstra ter sequer conhecimento direto ou indireto acerca de uma eventual faturação, para além de existirem nos autos documentos com força probatória plena, que provam a inexistência de qualquer diferencial de faturação, estando uma vez mais, o Tribunal a quo, a violar os mais elementares Princípios de Direito de subjazem à apreciação e valoração da prova em Direito Penal, em clara e manifesta violação da credibilidade e garantia de defesa de um cidadão em pleno Estado de Direito Democrático;
54 -Termos em que, pugna-se pela substituição da Sentença em crise por outra que absolva a Arguida da prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 4º, n.ºs 1 e 3 da Lei da Criminalidade Informática, na redação introduzida pela Lei n.º 109/91 de 17 Agosto, e alterada pelo Decreto Lei n.º 323/2001 de 17 de Dezembro sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, que é limite das presunções judiciais que sustentam a condenação, com as legais consequências daí decorrentes.
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.3242 a 3247].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º n.º1 do C.P.Penal, a Exma.Procuradora emitiu parecer em que se pronunciou pelo não provimento do recurso [fls.3270 a 3279].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida

A sentença recorria deu como provados e não provados os seguintes factos e respetiva motivação:
«2.1. Factos provados
2.1.1. O Hospital Infante D. Pedro, situado em Aveiro, foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos por força do Decreto-Lei n.º 272/2002, de 09.12, que entrou em vigor a 10.12.2002, sendo posteriormente transformado em entidade pública empresarial pelo Decreto-Lei n.º 93/2005, de 07.06,
2.1.2. O modelo de financiamento do Hospital Infante D. Pedro, S.A., assentou na celebração de um dito contrato programa com o Estado - Ministério da Saúde - através do IGF (Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde).
2.1.3. Assim, mediante a outorga daqueles contratos, era por aí determinada a quantidade e qualidade da produção a realizar pelo Hospital e o respetivo preço a faturar ao SNS (Serviço Nacional de Saúde) ou subsistemas de saúde, nomeadamente à ADSE (Assistência na Doença dos Servidores do Estado) e à ADMG (Assistência na Doença aos Militares da Guarda).
2.1.4. Para tanto eram fixados previamente objetivos para cada linha de produção hospitalar (internamento, cirurgia ambulatória, consulta externa, urgência, hospital de dia, serviço domiciliário).
2.1.5. Quanto ao respetivo preço, era fixado com base no grupo hospitalar em que a unidade de saúde estava integrada (O Hospital …, S.A., era e é um Hospital Distrital) e atendendo à realidade efetivamente realizada, ou seja à qualidade e quantidade das prestações de cuidados de saúde nos termos estabelecidos pela Portaria 189/2001, de 09.03, e posteriormente pela Portaria 132/2003, de 05.02.
2.1.6. A arguida B… era e é médica no Hospital em referência, encontrando-se submetida ao regime dos trabalhadores que exercem funções públicas e tendo tomado posse como assistente hospitalar da especialidade de ortopedia do quadro de pessoal a 23.02.2000, tendo ainda desempenhado as funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes entre Maio de 2004 e Outubro de 2005.
2.1.7. Durante o período temporal em que desempenhou as funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, C…, J…, K… e L… exerceram funções de assistente administrativa no Gabinete de Codificação Clinica, enquanto M… e N… eram e são secretárias clinicas, respetivamente (Especialidades Cirúrgicas) nos Serviços de Oftalmologia e de Ortopedia.
2.1.8. Estando aqueles no aludido período hierarquicamente subordinados à arguida.
2.1.9. Competia-lhes, entre outras matérias, registar no sistema informático geral de doentes em uso naquele Hospital, denominado «E…», todas as consultas, urgências, internamentos e exames de diagnóstico relativos a cada doente, sendo que este sistema informático estava em rede com um outro denominado «Integrador - GDH», o qual definiria em termos operacionais a produção do Hospital, agrupando os doentes em grupos de diagnósticos homogéneos (GDH) em função de diversas variáveis, nomeadamente o diagnóstico principal e secundário, complicações procedimentos clínicos, idade, sexo, de forma a consolidar uma coerência do ponto de vista clinico e de consumo de recursos.
2.1.10. No dia 26 de Outubro de 2004, a arguida, na qualidade de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, ordenou verbalmente ao funcionário C… que este imprimisse a lista de doentes intervencionados naquele Hospital às Cataratas entre os dias 01.09.2004 e 26.10.2004 e que removesse do sistema informático a menção ao regime de cirurgia ambulatória que teria sido realizada, visando que aqueles episódios viessem a ser inseridos mais tarde no sistema com a menção de internamento cirúrgico.
2.1.11. Perante as reservas suscitadas pelo referido funcionário, a arguida tomou aquela lista impressa em suporte de papel, conforme documentada a fls.7 dos autos e, pelo seu punho, nela anotou o seu nome e apôs a data 26.10.2004, ratificando os procedimentos informáticos a observar naquele concreto caso e que foram ali colocados pelo punho do referido funcionário.
2.1.12. Entregando tal documento ao referido funcionário e reiterando que se tratava de uma ordem a observar e a que devida obediência, o que aquele acabou por acatar, retirando do sistema informático 20 dos 23 episódios constantes da lista.
2.1.13. No seguimento deste episódio, a arguida incumbiu a funcionária J… de proceder doravante à elaboração das listas de doentes a aguardar cirurgia, função até então atribuída ao referido funcionário C…, designando também a funcionária L… daquele Gabinete de Codificação para a auxiliar nessa tarefa.
2.1.14. Em data não concretamente apurada do ano de 2004, a arguida, mais uma vez na qualidade de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes, ordenou verbalmente à funcionária M… para que daí em diante procedesse à inscrição do regime de internamento no sistema informático, por si ou por intermédio de terceiros, não obstante estarem de facto em causa cirurgias oftalmológicas realizadas em ambulatório, tendo esta obedecido e passado a executar desta forma.
2.1.15. Procedimento que vigorou enquanto a arguida exerceu funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes.
2.1.16. Desde 1 de Setembro de 2004 e 31 de Outubro de 2005 realizaram-se no Hospital …, S.A., pelo menos 168 cirurgias relativas a cataratas, túnel cárpico e procedimentos em tecidos moles.
2.1.17. Dos quais em dois daqueles casos os pacientes ficaram efetivamente internados naquela unidade hospitalar, já que as demais cirurgias foram realizadas em regime de ambulatório o que quer significar que os pacientes entraram e saíram no mesmo dia em que foram operados.
2.1.18. Em virtude dos referidos funcionários terem observados as ordens indevidamente emanadas pela arguida nas aludidas circunstâncias, enquanto sua superiora hierárquica ou pelo menos assim havida por estes, foram introduzidos e modificados dados no sistema informático que serviram de base mais tarde à emissão de faturas e cobrança dos respetivos preços ao SNS e aos subsistemas ADSE e ADMG.
2.1.19. Violando a arguida com esta sua atuação os deveres de isenção, zelo e lealdade a que estava obrigada e de que era capaz e comprometendo com aquele ato a lisura da prossecução do interesse público e a sua imagem enquanto agente da função pública que é, bem sabendo que aquela conduta era proibida e punida por lei criminal.
Concretizando,
2.1.20. Relativamente ao ano de 2004, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 41 (quarenta e um) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 67.655,61 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 43.827,55 €; e ao subsistema ADSE 2 (duas) cirurgias de cataratas, em regime de internamento, pelo valor global de 3.461,30 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de apenas 1.711,26 €.
2.1.21. Relativamente ao ano de 2005, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 115 (cento e quinze) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 267.147,80 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 152.488.81 €; e ao subsistema ADSE 6 (seis) cirurgias das quais 1 (uma) ao túnel cárpico e as demais às cataratas, todas elas em regime de internamento, pelo valor global de 9.840,63 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de 5.114,81 €.
2.1.22. Nesse mesmo ano, foi faturado pelo Hospital …, S.A. ao subsistema de saúde ADMG 1 (uma) cirurgia de cataratas, em regime de internamento, pelo valor de 1.730,65 €, quando se tivesse sido faturado como cirurgia em ambulatório que foi o valor seria apenas de 855,63 €.
(mais se provou ainda que:)
2.1.23. A arguida nasceu a 26 de Março de 1963 e é a quinta de uma fratria de nove irmãos; o pai era caixeiro-viajante e a mãe doméstica; a sua infância foi passada com todos aqueles membros do seu agregado familiar; completou o 12.º ano de escolaridade numa escola secundária em Espinho e ingressou mais tarde na Faculdade de Medicina …; casou com 20 anos de idade e não trabalhou enquanto frequentou o ensino superior; tem dois filhos com 31 e 25 anos de idade e a filha mais nova mora consigo; está divorciada e o ex-marido era eletricista; efetuou o internato geral no Hospital de Gaia e o internato complementar no Hospital de Aveiro; é atualmente assistente hospitalar graduada da especialidade médica de ortopedia; vive em casa própria; possui um empréstimo para aquisição de casa no valor de 1.000,00 € por mês e outro empréstimo para aquisição de viatura própria no valor de 200,00 € mensais; do exercício público e privado da sua atividade médica retira cerca de 3.800,00 € de rendimentos líquidos por mês;
2.1.24. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.
2.1.25. A arguida é havida por alguns dos seus colegas, funcionários e pelos seus amigos como sendo uma pessoa educada, disponível, frontal e profissionalmente dedicada à medicina e ao exercício da causa pública e trabalhadora.

2.2.2. Factos não provados

2.2.1. Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2004, a arguida tenha formulado o propósito concretizado de converter para efeitos administrativos as intervenções realizadas no Hospital …, S.A., em regime ambulatório em intervenções com Internamento com vista apenas a vir a faturar ao SNS e aos subsistemas de saúde ADSE e ADMG um preço mais elevado que o devido e obter por esta via e para aquela unidade Hospitalar proveitos económicos que sabia serem ilegítimos.
2.2.2. Em conformidade com este plano ordenou às funcionárias administrativas J…, L… e N… que transformassem as cirurgias ambulatórias informaticamente registadas em episódios de internamento para efeitos administrativos.
2.2.3. Que a arguida tenha aposto pelo seu punho no documento constante de fls.7 os dizeres «desagrupar para transferência em internamento.», «Remover», «Removido = R», «R.» «facturado à ADSE». 2.2.4. Que o SNS e os subsistemas de saúde ADSE e ADMG tenham procedido ao pagamento do preço que lhes foi faturado correspondente ao acréscimo que decorreu da ilegítima transmudação das cirurgias oftalmológicas (cataratas) e ortopédicas (túnel cárpico) efetivamente realizadas em regime de ambulatório em intervenções em internamento nos termos referidos a 2.1.20. a 2.1.22.
2.2.5. Porquanto confiaram que os valores faturados correspondiam à linha de produção efetivamente levado a cabo pelo Hospital, em especial no que diz respeito à sua qualidade.
2.2.5. A arguida tenha atuado em todas as circunstâncias dadas como provadas com o propósito concretizado de obter para o Hospital um enriquecimento ilegítimo no valor global de 145.837,93 €, correspondente a um empobrecimento do SNS e dos subsistemas de saúde ADSE e ADMG, respetivamente, em idêntico valor globalmente considerado, pela orientada manipulação dos episódios que subjazem a cada fatura imputada ao respetivo responsável civil.
2.2.6. Levando aquele Serviço e subsistemas de saúde, iludidos com a encenação por si realizada e convictos da autenticidade dos dados constantes do sistema informático, a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, a fim de obter para o Hospital Infante D. Pedro, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades.

2.3. Da motivação
2.3.1. O artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP) estatui que a prova seja apreciada pelo julgador à luz das regras da experiência comum e da sua livre convicção, o que pretende significar que o julgador é livre de decidir a causa segundo imperativos de bom senso e as regras da experiência comum, claro está, tendo presente a sua capacidade crítica e o distanciamento e ponderação que se impõem no ato de julgar.
De acordo com o enunciado princípio da liberdade da prova o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos que são submetidos à sua apreciação com base em juízos que se fundem no mérito objetivamente concretizado na sua individualidade histórica tal qual foi exposta e adquirida, de forma válida, no processo (art.355.º do CPP).
2.3.2. Posto isto, vejamos o contributo de cada meio de prova para a consignação dos factos que antecedem e que foram julgados provados e não provados de entre os meios de prova indicados na acusação; pela defesa e carreados para os autos na fase da instrução do processo.
O primeiro grupo de factos atinentes (2.1.1. a 2.1.5.) à constituição do Hospital …, em Aveiro, em sociedade anónima detida integralmente por capitais públicos e ao subsequente modelo de financiamento e seus critérios operativos foram valorados, como não poderia deixar de ser, os diplomas legais que aí são mencionados a respeito de tais matérias e ainda os contratos programas celebrados por aquela instituição de saúde nos anos de 2004 e de 2005 com o Ministério da Saúde, melhor documentados a fls.941 e ss., e o relatório e contas respeitante a esses mesmos dois anos, mas não acompanhado do Visto do tribunal de Contas, onde se mostra enquadrada a figura jurídica do Hospital e o seu respetivo organigrama (fls.2160/1 e 2198 a 2200, e ainda o de fls.2205/6 e 2235 e 2236).
Para além disso tais matérias foram parcialmente corroboradas e nalguns casos até enquadradas pelos depoimentos de D… (administrador Hospitalar e Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., entre Novembro de 2005 e Agosto de 2008, que denunciou os factos que conduziram à instauração deste processo) e I… (consultor na área da saúde e ex-Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., entre 14.08.2002 e 31.12.2004, embora em gestão até à tomada de posse daquela outra testemunha) que, aqui e ali, com maior ênfase para esta última testemunha, se reportaram a estas matérias de forma convergente com aqueles diplomas legais e demais documentos retro aludidos.
O facto dado como provado em 2.1.6. decorre das declarações prestadas pela arguida a este respeito e no sentido dado como provado, sem que exista qualquer prova documental ou outra que infirmasse aquelas suas declarações. Mostra-se igualmente corroborado pelas demais testemunhas ouvidas, que com aquela, direta ou indiretamente, trabalharam (e ainda trabalham) naquela mesma unidade de saúde e que o confirmaram. Neste particular demos destaque quanto à data da tomada da sua posse e à sua categoria profissional ao testemunho de O… (médico patologista clinico, aposentado desde 31 de Janeiro de 2007, tendo trabalhado durante cerca de 30 anos no Hospital …, e que teve em tempos idos a arguida, que entretanto se tornou sua amiga, como sua interna) e quanto às funções de Diretora do Serviço de Gestão de Doentes e ao período em que exerceu aquelas mesmas funções aos depoimentos convergentes das testemunhas D… e I…, ex-presidentes do Conselho de Administração do Hospital entretanto redenominado de Baixo Vouga, E.P.E., com especial destaque para este último que indigitou a arguida para o lugar sob recomendação de um dos seus Diretores de Serviço. E ainda aos testemunhos convergentes de C…, J…, L…, M…, N…, F…, P…, H…, Q…, G… e S…, todos eles funcionários daquela Unidade de Saúde e que trabalharam e/ou trabalham diretamente com a arguida e que o especificaram.
Os factos dados como provados a 2.1.7. decorrem dos depoimentos seguros, sinceros e escorreitos que a este propósito foram prestados pelos próprios visados naquele concreto ponto, a saber C… (casado, funcionário daquele Hospital e a prestar serviço no Gabinete de Codificação desde meados de 1989), J… (casada, assistente técnica daquele Hospital desde meados de 1993/4, que no ano de 2004/5 exerceu funções administrativas no âmbito da admissão de doentes), L… (solteira, assistente técnica naquele Hospital desde 1999, que no ano de 2004/5 estava a trabalhar no Gabinete de Codificação), M… (solteira, assistente técnica naquele Hospital há cerca de 21 anos e que no ano de 2004/5 estava a trabalhar como secretária clinica no Serviço de Oftalmologia) e N… (divorciada, assistente técnica naquele Hospital desde 1987, que no ano de 2004/5 esteve a trabalhar como secretária clinica no Serviço de Ortopedia).
Os seus depoimentos foram em todos os momentos, nesta matéria, congruentes entre si e por outro lado consentâneos com as funções por cada um deles exercidas à data e que também foram confirmadas pela arguida, quando se referiu a cada uma daquelas pessoas nas suas declarações, como ainda pelos demais funcionários daquele Hospital que foram sendo ouvidos e que jamais puseram em causa que aquelas pessoas exercessem de facto aquelas funções naquele Hospital e nas concretas datas em que o disseram ter feito.
Quanto ao âmbito funcional de cada um daqueles funcionários e sua interligação com os sistemas informáticos em uso naquele Hospital à data dos factos decorre do depoimento que cada um deles prestou a este respeito, sem que resultem quaisquer incongruências sobre esta matéria em respaldo com o relatório pericial realizada ao sistema informático em uso naquele Hospital e esclarecimentos complementares de documentados nos autos (art.163.º do CPP). Razão pela qual se deu como provado o facto vertido em 2.1.8..
Os factos que se mostram vertidos no ponto 2.1.9. a 2.1.18. e que sumariza no fundo os atos materiais dos dois crimes de que se mostra incursa foram sempre negados pela arguida que recusou de forma veemente qualquer responsabilidade pelo cometimento dos factos de que se mostra acusada. Alegando em sua defesa, quiçá em busca de uma explicação plausível e alternativa para alguns dos factos que lhe são imputados sem colher integralmente como se verá, que no âmbito da atividade cirúrgica seria usual que os pacientes submetidos a cirurgias oftalmológicas ou ortopédicas em regime de ambulatório (cirurgias ditas programadas, em especial às cataratas e túnel cárpico) fossem intervencionados e sofressem subsequentemente necessidade de internamento por força de complicações clinicas concomitantes ou posteriores à intervenção ou por quaisquer outras razões atinentes à saúde do paciente, conexas ou não com a cirurgia, atendíveis, que justificassem que passassem a noite no Hospital em regime de internamento e sob observação médica.
O que a acontecer justificaria a transmudação de uma intervenção médica originária de ambulatório para internamento. A dúvida existencial, se assim se pode dizer, no confronto com os 168 casos que aqui se tratavam apenas em 2 teve integral respaldo.
Até aqui tudo correto e compreensível à luz das regras estabelecidas para o setor de atividade médico e até das mais elementares regras da experiência e da lógica – com recurso à figura da alteração superveniente dos pressupostos do ato médico prestado – ou até dos protocolos outorgados no ano de 2004 e 2005 entre o Ministério da Saúde e o Conselho de Administração do Hospital …, S.A., onde a arguida exercia as funções Diretora da Gestão dos Doentes em acumulação com as de médica assistente de ortopedia, qualidade que ainda hoje assume naquele Hospital, que previa de forma expressa esta situação.
Terá então sido demonstrado, como se impõem de acordo com as regras probatórias que presidem à natureza deste processo, que a arguida ordenou dolosamente a transmudação de casos de cirurgias ambulatórias em cirurgias em regime de internamento com vista a desta forma induzir os serviços de faturação daquele Hospital em erro e consequentemente obter dos responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados proventos a que não tinha direito na justa proporção da diferença de preço operada?
Resulta a nosso ver que a arguido deturpou conscientemente a realidade contabilística do Hospital e que tinha conhecimento das implicações que tal circunstância poderia ter. No sentido que esta voluntariamente procedeu à deturpação da realidade de dois tipos de intervenção cirúrgicas, pelo menos, no âmbito da cirurgia oftalmológica e ortopédica, que não tinham tido lugar nos moldes em que ordenou (internamento) que passassem a ser registados para efeitos internos.
Em primeiro lugar cumprirá explicar como é que à data dos factos se processava a tramitação interna e documental respeitante a um paciente que fosse intervencionado em regime de ambulatório e/ou em regime de internamento.
- O paciente operado em regime de ambulatório apresentava-se no dia da cirurgia, efetuava os exames complementares que fossem necessários se já não os tivesse feito em data anterior, era intervencionado da parte da manhã (por regra) e teria alta médica a partir da hora de almoço se tudo corresse como era suposto.
- O paciente operado no seguimento de internamento poderá corresponder a uma situação de urgência (não programa) e poderá decorrer de uma indicação médica de qualquer especialidade, em especial do serviço de consultas externas ou das urgências.
- Em qualquer um dos casos era preenchida uma folha designada de admissão e alta (doc. a fls.46), em formulário único (á data), onde se colocavam os elementos de identificação do paciente e o respetivo verbete respeitante ao episódio em causa que era colocado no canto superior esquerdo da folha. Assinalava-se ainda numa quadrícula existente no ponto 7 do formulário a natureza da admissão, se programada ou não, correspondendo a primeira a um ambulatório (ou pela colocação do símbolo de uma arroba, isto é, o sinal @).
- Realizada a cirurgia às cataratas ou ao túnel cárpico, conforme o caso, a prática instituída era a de dar imediatamente alta médica ao paciente. Nesta altura se o paciente tivesse sido admitido em regime de ambulatório o sistema informático (E…) e o seu processo clinico apenas evidenciaria aquele ato cirúrgico que seria passado algum tempo da alta remetido ao Gabinete de Codificação, após passar pelos médicos codificadores, por meio da dita ficha de admissão, verbete e alta médica.
- Nesta altura os funcionários codificadores iriam conciliar os dados respeitantes aos atos médicos praticados em relação a cada paciente e aos demais consumíveis previamente classificados em GDH e lançá-los noutra plataforma informática do IGIF com vista a remeter tal informação integrada ao serviço de faturação e a esta entidade e aos responsáveis pelos pagamentos dos serviços prestados para liquidação nos termos protocolizados – cfr. lista de doentes reduzida de fls.7.
- Importava saber se o paciente tinha dado entrada no Hospital em regime de ambulatório ou internamento para saber onde é que os dados estariam alojados no Sistema Informático (vide perícia de fls. 2434 e ss e demais esclarecimentos complementares de fls.2463 e ss.).
- Depois de devidamente faturado pela secção responsável à entidade responsável pelo pagamento do serviço prestado o sistema informático em uso no Hospital não permitia mais alterar os dados que subjazem ao GDH lançado. Mas antes desse momento crítico poderia ser gerado a respeito de cada paciente intervencionado um novo episódio e classificá-lo como de internamento quando havia sido operado em regime de ambulatório e gerar assim um novo e correspondente GDH – vide a perícia supra citada.
- Esta nova inserção de dados poderia ser feita no serviço de cirurgia existente nas respetivas especialidades cirúrgicas que estivessem em causa e/ou nas que prestavam serviço na admissão de pacientes, como no Gabinete de Codificação ou Departamento Informático que teriam as permissões de segurança mais elevadas.
- Conclusão o sistema informático em uso à data era falível porque consentia na alteração de dados até à integração do GDH e sua faturação, pelo menos, o que implicava, em regra, a anulação de todo o registo informático do doente em causa (ambulatório) e a criação de novo registo informático a que os documentos internos – folha de admissão e alta – seriam «afeiçoados», conciliados com a colocação de um novo verbete sobre o anterior de ambulatório; com a rasura (grosseira) da data de entrada (antecedendo a da intervenção) em alguns casos ou com a elaboração de um novo documento que evidenciasse de forma não truncada tudo isto, embora se tivesse de mantiver sempre o documento médico a conceder a alta clinica e que invariavelmente - em quase todos os casos registados nos apensos I e II - fazia coincidir o dia da alta clinica com o da cirurgia em causa ao contrário da informação constante da folha de admissão.
Em segundo lugar da perícia colegial realizada nos autos (fls.776 e ss.) conclui que apenas em dois casos se registou que pacientes admitidos para uma cirurgia programada tiveram necessidade de ficar internados para o dia seguinte, já que nos demais casos os pacientes terão entrado e saído do Hospital no mesmo dia em que foram operados, em linha, aliás, com as leis da arte (cirurgias ditas limpas, sendo que a título de exemplo a intervenção ao túnel cárpico demandaria cerca de 10 a 15 minutos de bloco operário, segundo declarou a arguida) e práticas médicas observada nas cirurgias às cataratas e ao túnel cárpico (bem como às datas apostas nas altas médicas).
Este meio de prova (perícia) assentou em depoimentos diretos dos pacientes em causa ou dos familiares que os acompanharam nesses dias (no caso dos que entretanto faleceram ou não se mostravam disponíveis) e também no cruzamento destas informações com os registos clínicos dos pacientes em questão e valoração das consequentes informações da enfermagem (se uma pessoa fica internada terá de existir o registo de uma cama/maca disponível; o sector onde fez o recobro; a identificação do enfermeiro responsável e os cuidados de alimentação e de higiene que são registados na ficha clinica, para além dos de saúde que teriam justificado o internamento, e que nestes casos inexistiam). Isto para concluir que resulta de uma forma a nosso ver clara que aquelas pessoas não foram internadas de facto como dos seus registos de admissão e alta passou a constar. E se assim é não poderia a arguida ordenar uma alteração administrativa desta realidade de facto como o fez sem qualquer margem para dúvida em relação aos pacientes documentados a fls.7, quando, ordenou que o seu processo originário fosse anulado.
Em terceiro lugar há que atentar no depoimento da testemunha C…, responsável pelo Gabinete de Codificação do Hospital à data dos factos e atualmente ainda, que por referência ao documento de fls.7 explicou de forma circunstanciada que na data que se mostra aposta no documento recebeu uma ordem verbal da arguida, esta na qualidade de Diretora da Gestão dos Doentes e ele como funcionário administrativo, no sentido de emitir uma lista dos doentes intervencionados em cirurgia oftalmológica em regime de ambulatório entre os dias 1 de Setembro e 26 de Outubro de 2004, o que aquele observou de imediato, após o que lhe ordenou que removesse cada um dos registos informáticos para que pudessem vir a ser registados como episódios de internamento.
Questionando a legitimidade da ordem que lhe estava a ser dada solicitou à arguida, enquanto sua superiora hierárquica, que apusesse o seu nome e a data a seguir à ordem que estava a dar e que aquele (C…) apôs pelo seu punho antes daquela assinar («desagrupar para transferência em internamento.», «Remover» e «R.»).
A arguida não deu qualquer explicação (ou sequer tentou) para ter aposto a sua assinatura e data no referido documento, que reconhece ser sua (tal como as perícias efetuadas à sua letra pelo LIC da PJ atestam) o que muito se estranha, ao contrário daquela testemunha que o fez e cuja versão dos factos surge como bastante credível e plausível à luz do encadeado de toda a prova e da forma circunstanciada, distanciada e sincera como depôs (discurso direto, nada emotivo, respondendo ao que sabia e não se pronunciando sobre o que não tinha conhecimento direto). Pois que de facto, e como se pode constatar dos depoimento ouvidos a respeito do «expurgo das listas de espera» que era matéria da responsabilidade funcional da arguida, os funcionários clínicos e administrativos deviam e mostravam obediência às ordens verbais emanadas nesta matéria pela arguida que, por sua vez, conhecedora dos poderes funcionais de que estava investida (na qualidade de gestora dos doentes) não se inibia de os exercer para levar a cabo aquela que considerava ser a sua missão (e que aqui não era sequer objeto da acusação crime). Pelo que é com naturalidade que se constata existir uma assunção e aceitação entre arguida e funcionários desta relação hierarquizada (concretizada na afetação das concretas funções dos funcionários da Codificação e de procedimentos internos a observar pelos administrativos no registo dos atos clínicos e das práticas a observar sobre esta matéria).
A não identificação desta testemunha com a forma de trabalhar da arguida, como o próprio explicou, levou a que não mais procedesse a atos como aqueles que diz ter feito a respeito da lista documentada a fls.7 (sua eliminação), funções que a arguida (re-) afetou às suas outras duas colegas em especial á J… que ficou incumbida dos expurgos da lista de espera, conforme esta confirmou no seu depoimento e a colega de ambos, L…, o corroborou também.
Em quarto lugar a testemunha M… (amiga da arguida, assistente técnica desde há 21 anos no Hospital do Baixo Vouga, EPE, e que no ano de 2004/5 estava colocada nas especialidades cirúrgicas) referiu de forma circunstanciada e segura que a arguida em data que não se consegue recordar – mas enquanto aquela exerceu as funções de Diretora de Gestão de Doentes daquele Hospital - lhe ordenou verbalmente que todos os doentes de oftalmologia com indicação para cirurgia ambulatória passassem a ser registados como se de um internamento se tratasse.
Questionada a esse respeito a arguida refutou dizendo que a ordem era para cumprir. Comentou o sucedido com a testemunha C… que a aconselhou a tirar cópia de todas as etiquetas/situações de falsos internamentos para se precaver e que se mostram documentados a fls.8 e ss., que esta confirmou em audiência, explicando as alterações que teriam sido alvo por referência às fichas de admissão e alta correspondentes existentes no apenso I e II.
Mais confessou ainda a testemunha que a ordem foi sendo por si executada sem nunca comunicar ao seu Diretor de Serviços.
Explicou ainda que com a ordem dada sempre que o paciente faltava à cirurgia, o que acontecia de vez em quando, obrigava ao anulamento informático do registo do internamento em causa porque reportado sempre ao dia imediatamente anterior ao da cirurgia programada que por sua vez também não tinha lugar.
Seja como for em circunstância alguma a arguida reconheceu ter dado tais ordens e acima de tudo algum funcionário – quiçá temendo a sua própria responsabilidade, o que se compreende – assumiu ter levado a cabo a necessária introdução de um novo episódio do paciente no sistema E…, mas desta feita no regime de internamento, sob indicação da arguida, o que seria necessário fazer para que o resultado da faturação subsequente e o prejuízo lhe viesse a ser imputado a título de crime de burla.
A arguida não tinha, tanto quanto resultou do julgamento, acesso direto (password) àqueles dois sistemas informáticos, pelo que seriam os funcionários da cirurgia, admissão de doentes, da codificação e os informáticos a proceder aos necessários inputs e outputs.
Posto isto, e aqui chegados, forçoso será concluir que os demais testemunhos ouvidos sobre esta matéria – quase todas as indicadas pela defesa - negaram ter conhecimento de eventuais desconformidades na faturação de episódios cirúrgicos em linha de produção hospitalar distintas internamento e ambulatório, nas especialidades cirúrgicas de Oftalmologia (catartas) e Ortopedia (túnel cárpico) – aquelas aqui em causa – com base em diretrizes verbais da arguida, na qualidade de Diretora de Gestão de Doentes, e na transformação de cirurgias de ambulatório em cirurgias de internamento, não tiveram a virtualidade de infirmar aqueles depoimentos e demonstrações documentais em sentido diverso.
Em primeiro lugar estes depoimentos não descredibilizam a nosso ver, de modo algum, os depoimentos convergentes e credíveis das testemunhas C… e M… que afirmam ter recebido ordens nesse sentido (aquele de retirar aquela integração de GDH do sistema – fls.7 e esta de passar a internar ficticiamente os pacientes oftalmológicos de véspera à cirurgia ambulatória) e cujos depoimentos tiveram integral respaldo no documento de fls.7, quanto à primeira testemunha, e nos documentos de fls.8 a 45 quanto à segunda testemunha entrecruzado com os demais documentos reunidos no Apenso I e II no que concerne às intervenções cirúrgicas às cataratas.
Em segundo lugar existem outros elementos corroboradores externos e isentos como seja o depoimento das testemunhas J…, L… e N… que embora negando que alguma vez a arguida lhes tenha feito as solicitações que fez àquelas duas outras testemunhas, mostraram conhecer as ordens que aquelas receberam da parte da arguida, dadas na qualidade de Diretora da Gestão de Doentes, por lhe haver sido contado, nem que não seja, por aquelas testemunhas, como as mesmas reconheceram em audiência.
Em terceiro lugar e acima de tudo, os depoimentos assim valorados foram sujeitos a um confronto direto com os documentos coligidos nos autos, por um lado, e analisados de acordo com as práticas hospitalares instituídas e com as regras da experiência e uma perícia colegial (de dois – fls.776 e ss.) que tendo por base os elementos de prova e o enquadramento jurídico do sector de atividade em questão elencado nos 11 parágrafos do ponto 1 do relatório pericial, cujo teor dou aqui por integrado, concluíram – com grande ênfase na especialidade médica oftalmológica – que dos 168 episódios descritos nas folhas 174 a 182 do processo, apenas em 2 situações (episódio 5010924 e 5001991) dos 38 casos em que as pessoas afirmavam ter ficado internadas (13 pessoas) ou não se revelava possível confirmar o período de permanência (25 pessoas) naquele hospital é que as pessoas de facto estiveram internadas.
Isto porquanto os Srs. Peritos consultaram os processos clínicos de cada um destes 168 pacientes e concluíram existir naqueles 38 casos desconformidades nos seus processos clínicos porquanto invariavelmente a enfermaria apenas registava o dia da intervenção cirúrgica; a alta médica corresponde ao dia da intervenção cirúrgica e quando o dia da admissão e da alta não coincidem uma delas mostra-se rasurada e em desconformidade com a alta médica – vide quadro de fls.788 a 790.
Por outro lado, se bem que por amostragem, concluíram de igual forma os Srs. Peritos que existia integral convergência entre os depoimentos dos pacientes (130 pessoas) que haviam declarado ter sido intervencionadas no mesmo dia em que saíram do Hospital de Aveiro e o registo de enfermagem respeitante aos internamentos e alta clinica.
Nesta decorrência parece-nos que começando pelo fim resultam demonstrados todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsidade informática agravada de que a arguida vem incursa, porquanto atuação que vem sendo descrita foi a causa direta e necessária de enganos nas relações jurídicas ao fazer introduzir, modificar, apagar e suprimir dados do programa informático em uso naquele Hospital, com recurso a funcionários que lhe deviam obediência, interferindo no tratamento informático de dados, quando bem sabia que esses dados ou programas serviam como meio de prova, de tal modo que a sua visualização produzia os mesmos efeitos de um documento falsificado.
Isto sem que naqueles apontados 166 casos, pelo menos, se possa dizer que tenha agido ao abrigo de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da sua culpa.
Mas terá ainda assim a arguida atuada com o propósito concretizado de induzir em erro os vários responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados naquele Hospital e naquelas duas especialidades, pelo menos, e obter desta forma um enriquecimento ilegítimo no montante da diferença do preço contratado ou tabelado entre a cirurgia ambulatória e em regime de internamento que transmudou?
Quanto a este propósito são sérias as nossas reservas do ponto de vista objetivo e até ao nível do elemento subjetivo do tipo de crime aqui em causa.
Quanto ao primeiro elemento temos que a astúcia que a acusação imputa à arguida e a que nos temos vindo a referir anteriormente, apesar de idónea em termos abstratos a induzir em erro o sector da faturação do Hospital …, S.A., e consequentemente os responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados, no confronto com a faturação, matéria com a qual os alegados lesados teriam tido direto contacto, não nos parece tão linear.
Tendo por premissa base o valor da produção contratada e consequente remuneração nos anos de 2004 e 2005 (vide anexo I de fls.960 e anexo I de fls.1001) temos que naquele primeiro ano o preço de referência da cirurgia era o mesmo (1849,10 €); o número de intervenções contratadas para esse ano em regime de ambulatório (1.179) e de internamento (14.683) diverso, tal como o respetivo coeficiente multiplicador (case-mix = ICM) que era naquele primeiro caso de 0,5781 e no segundo de 0,8924; enquanto no segundo ano se manteve o valor de referência da cirurgia; o número de intervenções contratadas passou respetivamente de 923 e 3.693 cirurgias e uma produção adicional de 151 cirurgias, a um ICM de 0,7171 e 1,2563.
Tal forma de cálculo teve plena tradução nas faturas de fls.182 a 199 emitidas entre 2004 e 2006, pelo que a única questão seria a de em primeiro lugar demonstrar que os 166 casos a que se refere a acusação foram efetivamente faturados nos termos que dela constam e em segundo lugar e em caso de resposta positiva demonstrar o pagamento indevido por parte dos responsáveis civis na justa medida da diferença entre aqueles dois ICM.
Quanto à primeira questão fez-se prova documental em como aqueles 166 caso foram faturados aos respetivos responsáveis pelo pagamento das intervenções como consta na acusação e decorre do devido cruzamento entre as faturas documentadas a fls.3 do Apenso I e as pessoas mencionadas a fls.7 e as vinhetas constantes de fls.8 e ss. do apenso I e II.
Mas já não decorre comprovado em termos documentais que os alegados lesados tenham liquidado efetivamente tais faturas e em particular as daqueles 166 casos ou sequer que os relatórios de prestação e contas respeitante aos anos 2004 e 2005 sejam uma prova cabal da liquidação desses créditos.
Antes pelo contrário as reservas apostas pelo ROC naqueles anos apontam para a existência de créditos por parte do Hospital junto de outras entidades nomeadamente públicas que não se mostram liquidadas ou sequer confirmaram possuir sobre o Hospital tais débitos.
A isso se referiram nos seus depoimentos as duas testemunhas ouvidas a título de ex-presidentes do Conselho de Administração do Hospital …, S.A., a saber, D… e I….
Não se pode assim afirmar, para além de qualquer dúvida razoável, que tenha existido um efetivo prejuízo dos alegados ofendidos, descontado o proveito que tenha ainda assim obtido pelos serviços concretamente prestados.
Mais concretamente a respeito do SNS chega a falara-se de um encontro ou consolidação de contas pelo valor de x, de que forma foi apurada e o que é que abrange, não foi possível a este tribunal descortinar e seria necessário fazê-lo com acuidade para que se pudesse dar como demonstrado o prejuízo.
De outro prisma também não é de todo inviável uma visão da atuação da arguida no sentido da mesma ter sido movida na sua atuação pelo ensejo de ser bem-sucedida na sua missão/função e de combater desta forma as listas de espera de cirurgia sem que tenha sido sua intenção – e estamos perante um crime doloso – prejudicar financeiramente terceiros em detrimento do Hospital.
Porque a ser assim, como defende a acusação, os benefícios diretos iriam todos para uma hipotética «gestão menos ética» assente numa «engenharia financeira» que seria conivente, no mínimo, com o falsear da produção hospitalar cirúrgica com vista a colher maiores dividendos, mas que teria de estar disseminada por outros sectores hospitalares e envolver toda uma rede mais vasta de funcionários e médicos do que a tese da acusação centrada apenas na aqui arguida deixa evidenciar.
Nem constatámos qualquer indício que assim tenha acontecido, convém frisar.
Por todas estas razões não está demonstrado que tenha havido de facto um concreto prejuízo para o SNS, na justa medida da apontada diferença de preços, e para os demais subsistemas de saúde aqui em causa, para que a arguida se tenha comprometido com o crime de burla que se mostra incursa, nem que esta, ainda assim, e no que resulta provado, tenha agido com a vontade concretizada de se aproveitar das fragilidades do sistema informático a que não tinha acesso para desta forma falsear a contabilidade interna do hospital que subjaz à faturação e assim prejudicar patrimonialmente aquelas entidades.
Razões pelas quais foram consignados como não provados os factos constantes do ponto 2.2.
No que concerne aos factos pessoais respeitantes à arguida os mesmos foram dados como provados com base nas suas próprias declarações que à míngua de outros meios de prova que as infirmassem foram a nosso ver julgados credíveis porque consentâneos com o enquadramento social, profissional e familiar.
Para além disso foram ainda valoradas as declarações que a este propósito e no mesmo sentido prestaram as testemunhas I…, T…, U…, F…, P…, H…, Q…, G… e O….
A respeito dos factos em apreço e narrados na acusação pública, com as exceções que pontualmente se indicaram, estas testemunhas revelaram não ter conhecimento direto dos factos em discussão e como não infirmaram ou confirmaram o que quer que fosse, não obstante, aqui e ali, ser evidente a vasta experiência profissional no sector da atividade hospitalar mas que em momento algum fragilizou os depoimentos de C… e de M… ou sequer abalou de forma avalisada o teor da perícia colegial aos sistemas informáticos em uso à data e que consentiam, em suma, a manipulação de dados nos termos dados por assentes.
O mesmo acontecendo quanto ao abono das características pessoais e profissionais da arguida.
Quanto aos seus antecedentes criminais o seu CRC documentado nos autos.»

Apreciação

De harmonia com o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, o âmbito do recurso está delimitado pelo teor das respetivas conclusões, as quais devem sintetizar as razões do pedido, sem prejuízo do tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.40.º n.º2 do C.P.Penal.
No caso vertente, face às conclusões apresentadas, que pecam pela falta de sintetização, afigura-se-nos que as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 por desconformidade com a prova documental;
- contradição entre os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados sob os pontos 2.2.1, 2.2.5 e 2.2.6.
- erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.8, 2.110, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14, 2.1.15, atentas as declarações da arguida e das testemunhas F…, G… e H….
- caráter instrumental do crime de falsidade informática face ao crime de burla, pelo que a absolvição quanto a este impõe a absolvição quanto àquele.
- não preenchimento do crime de falsidade informática.

1ªquestão: erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 face à prova documental
Na tese recursiva, os factos dados como provados sob os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 devem integrar a factualidade dada como não provada face à existência das faturas emitidas pelo Hospital de Aveiro durante os anos de 2004 e 2005 ao IGIF e pagas por este, assim como ao teor do contrato programa que estabelece que o valor unitário pago por cada cirurgia, quer seja em ambulatório, quer seja em internamento, é igual. Ou seja, a questão das cirurgias serem feitas em ambulatório ou mediante internamento é uma questão interna do hospital, para fins meramente estatísticos, sem efeito na relação jurídica subjacente. Por outro lado, o documento de fls.7 apresenta contradições que o tribunal não relevou, uma vez que está datado de 26/10/2004 e as cirurgias realizadas em Setembro aí mencionadas, já haviam sido faturadas, pois, de acordo com o contrato programa, as faturas têm de ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram prestados os serviços.
Não assiste razão à recorrente. Vejamos.
Refere o relatório pericial, de fls.776 e ss., que «o preço é ajustado pela estrutura, grupo hospitalar a que o hospital pertence (estão definidos 4 grandes grupos) e pela casuística vezes a quantidade contratada. O ajustamento do preço pela complexidade aplica-se exclusivamente às linhas de produção, internamento, cirurgia de ambulatório e consulta externa», constituindo variáveis de remuneração: a variável de medida (número de doentes), a quantidade contratada e o índice de case-mix [coeficiente global de ponderação da produção que reflete a relatividade de um hospital face a outros, definindo-se como a ratio entre o número de doentes da cada grupo de diagnóstico homogéneo (GDH)]. Os GDH das cirurgias de internamento e de cirurgias em ambulatório são diversos
Embora nos anos de 2004/2005 o valor de referência de cirurgia, em ambulatório ou em internamente, fosse o mesmo, o coeficiente multiplicador (case-mix) era diferente – em 2004, 0,5781 para o ambulatório e 0,8924 para o internamento e no ano de 2005, 0,7171 para o ambulatório e 1,2563 para o internamento -, pelo que o valor a pagar ao hospital por cada uma das cirurgias realizadas não era equivalente.
Aliás, isto mesmo consta da cláusula 19 do contrato programa e do seu Anexo I [fls.960], em que o case-mix é diferente consoante se trate de cirurgia em ambulatório ou com internamento, pelo que, não obstante o valor de referência da cirurgia seja o mesmo, o valor a pagar ao hospital por cada cirurgia é necessariamente diverso.
Acresce que a recorrente pretende extrair da data do documento de fls. 7 - 26/10/2004 - uma consequência que não se impõe: na tese recursiva, a alteração da menção de cirurgias realizadas em ambulatório para cirurgias com internamento, a ter sido ordenada pela arguida, facto que esta nega, só poderia relevar para efeitos estatísticos, pois as cirurgias já tinham sido faturadas considerando que as faturas têm de ser enviadas até ao dia 20 do mês seguinte aquele a que se reportam face ao contrato programa. Se é certo que em tal documento constam cirurgias realizadas em Setembro, a maioria das mencionadas no documento foram efetuadas em Outubro, pelo que ainda não tinham sido faturadas e como tal, a alteração a que a testemunha C… se referiu como ordenada pela arguida, teve consequências quer a nível estatístico quer contabilístico.
Nesta conformidade, bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: contradição entre os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados sob os pontos 2.2.1, 2.2.5 e 2.2.6.
Invoca a recorrente que há uma contradição entre os factos provados contantes dos pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 e os factos não provados dos pontos 2.2.1 e 2.2.5 e 2.2.6
Os pontos 2.1.20, 2.1.21 e 2.1.22 têm a seguinte redação:
«2.1.20. Relativamente ao ano de 2004, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 41 (quarenta e um) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 67.655,61 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 43.827,55 €; e ao subsistema ADSE 2 (duas) cirurgias de cataratas, em regime de internamento, pelo valor global de 3.461,30 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de apenas 1.711,26 €.
2.1.21. Relativamente ao ano de 2005, foram faturados pelo Hospital …, S.A. ao SNS 115 (cento e quinze) internamentos cirúrgicos pelo valor global de 267.147,80 €, quando se tivessem sido faturados como cirurgias ambulatórias que foram o valor seria de 152.488.81 €; e ao subsistema ADSE 6 (seis) cirurgias das quais 1 (uma) ao túnel cárpico e as demais às cataratas, todas elas em regime de internamento, pelo valor global de 9.840,63 €, quando se tivessem sido faturadas como cirurgias de ambulatório que foram o valor seria de 5.114,81 €.
2.1.22. Nesse mesmo ano, foi faturado pelo Hospital …, S.A. ao subsistema de saúde ADMG 1 (uma) cirurgia de cataratas, em regime de internamento, pelo valor de 1.730,65 €, quando se tivesse sido faturado como cirurgia em ambulatório que foi o valor seria apenas de 855,63 €.»
E os factos não provados supra mencionados têm o seguinte teor:
«2.2.1. Em data não concretamente apurada do mês de Outubro de 2004, a arguida tenha formulado o propósito concretizado de converter para efeitos administrativos as intervenções realizadas no Hospital …, S.A., em regime ambulatório em intervenções com Internamento com vista apenas a vir a faturar ao SNS e aos subsistemas de saúde ADSE e ADMG um preço mais elevado que o devido e obter por esta via e para aquela unidade Hospitalar proveitos económicos que sabia serem ilegítimos.
2.2.5. A arguida tenha atuado em todas as circunstâncias dadas como provadas com o propósito concretizado de obter para o Hospital um enriquecimento ilegítimo no valor global de 145.837,93 €, correspondente a um empobrecimento do SNS e dos subsistemas de saúde ADSE e ADMG, respetivamente, em idêntico valor globalmente considerado, pela orientada manipulação dos episódios que subjazem a cada fatura imputada ao respetivo responsável civil.
2.2.6. Levando aquele Serviço e subsistemas de saúde, iludidos com a encenação por si realizada e convictos da autenticidade dos dados constantes do sistema informático, a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, a fim de obter para o Hospital Infante D. Pedro, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades.»
Como bem refere a Exma.Magistrada do Ministério Público junto desta 2ªinstância a referida factualidade dada como provada reporta-se à faturação do Hospital …, S.A enquanto o ponto 2.2.1 dos factos não provados refere-se à intenção da arguida quando ordenou a realização dos procedimentos descritos no facto provado sob o n.º2.1.14, enquanto o ponto 2.2.5 dos factos não provados reporta-se à circunstância do SNS, a ADSE e a ADMG terem confiado que os valores faturados correspondiam à linha de produção efetivamente levada a cabo pelo hospital e o ponto 2.2.6 refere-se ao facto da arguida ter levado o SNS e subsistemas de saúde a pagar aqueles episódios como cirurgias de internamento, com o intuito de obter para o Hospital …, S.A., um enriquecimento que sabia ilegítimo e correspondente ao diferencial do valor existente entre os dois tipos de cirurgia e á custa do correspondente prejuízo patrimonial daquelas entidades. Ou seja, o facto dado como provado e os factos não provados em questão versam sobre realidades distintas, pelo que não podem ser contraditórios entre si.
Soçobra, por isso, este fundamento do recurso.
3ªquestão: - erro de julgamento dos factos provados sob os pontos 2.1.8, 2.110, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14, 2.1.15, atentas as declarações da arguida e das testemunhas F…, G… e H….
Tendo sido documentadas, mediante gravação, as declarações prestadas em audiência de julgamento, este tribunal de recurso pode conhecer amplamente da decisão de facto, desde que se mostre cumprido o disposto no art.412.º n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal
Dispõe o art.412.º n.º3 do C.P.Penal «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente provados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
E o n.º4 do mesmo dispositivo estabelece «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
A propósito da impugnação ampla da matéria de facto, cabe realçar que o recurso de facto para a relação não é um novo julgamento em que a 2ªinstância aprecia toda a prova produzida em 1ªinstância, como se o julgamento ali realizado não existisse; ao invés, os recursos, em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, os quais devem ser indicados com menção das provas que os evidenciam.
Note-se que o art.412.º n.º3 al.b) do C.P.Penal refere «As provas que impõem decisão diversa da recorrida» e não as que permitiriam uma decisão diversa. Há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência comum permitem mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, ela é inatacável pois foi proferida de acordo com o princípio da livre apreciação – art.127.º do C.P.Penal. A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte este princípio que está deferido ao tribunal da primeira instância, o qual beneficia da imediação e da oralidade, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados e que são impercetíveis na gravação de um depoimento, como a linguagem gestual.
Tendo presente o que acabou de se referir, a impugnação apresentada pela recorrente não colhe. Vejamos.
A recorrente impugna o facto dado como provado sob o ponto 2.1.8, com fundamento num excerto das declarações da arguida, em que a mesma afirma que, como diretora de gestão dos doentes, lhe cabia essencialmente facilitar e interligar a parte clinica à parte administrativa para que todos os atos praticados fossem devidamente registados.
Esta afirmação em nada contende com o facto dado como provado sob o ponto 2.1.8, cujo teor é o seguinte: «Estando aqueles [funcionários C…, J…, K…, L…, M… e N… – entre parêntesis nosso] no aludido período hierarquicamente subordinados à arguida».
Na verdade, atentando na fundamentação da matéria de facto da sentença relativamente a este ponto, refere a mesma «Quanto ao âmbito funcional de cada um daqueles funcionários e sua interligação com os sistemas informáticos em uso naquele Hospital à data dos factos decorre do depoimento que cada um deles prestou a este respeito, sem que resultem quaisquer incongruências sobre esta matéria em respaldo com o relatório pericial realizado ao sistema informático em uso naquele Hospital e esclarecimentos complementares de documentados nos autos (art.163.º do CPP). Razão pela qual se deu como provado o facto vertido em 2.1.8..».
A decisão recorrida ao dar como provado esta factualidade baseou a sua convicção nos depoimentos das aludidas testemunhas e não nas declarações da arguida, sendo que o tribunal não tem de dar como provado um facto só por que a arguida apresentou uma determinada versão, cabendo-lhe dilucidar nas declarações e depoimentos prestados o que merece credibilidade.
Não pode a recorrente pretender que este tribunal ad quem proceda a um novo julgamento e forme a sua convicção com base em outros depoimentos que não serviram para a convicção do tribunal recorrido quanto ao aspeto concreto em discussão.
A recorrente impugna ainda os factos dados como provados sob os pontos 2.1.10, 2.1.11, 2.1.12, 2.1.14 e 2.1.15., com fundamento nas declarações da arguida e nos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, insurgindo-se contra o facto da sua versão ter sido desvalorizada pelo tribunal, a qual, na sua opinião, é lógica, credível e corroborada pelo depoimento de algumas testemunhas. Para tanto transcreve segmentos das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…. Acresce que quanto à testemunha M…, a recorrente sustenta que o seu depoimento revelou falta de convicção, certeza e assertividade ao que lhe estava a seu perguntado.
No caso presente, a recorrente não aponta erros de julgamento, questionando antes a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, contrapondo a sua própria apreciação da prova produzida, o que é inócuo em termos de impugnação da matéria de facto em sede de recurso.
«A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode (…) assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 184/2004, de 24/11/2004, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
Atentando na exaustiva fundamentação da matéria de facto está devidamente explicitado o raciocínio percorrido pelo tribunal na formação da sua convicção, esclarecendo as razões pelas quais a versão da arguida, negando os factos, não se mostrou credível, analisando as incoerências da sua versão em si mesma, assim como conjugando-a com a perícia. Por outro lado, na fundamentação da decisão recorrida há uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas e sua conjugação com os documentos juntos aos autos. De realçar ainda que os depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, testemunhas de defesa, que negaram ter conhecimento de desconformidades na faturação das cirurgias, não foram relevantes para o tribunal face à prova documental junta aos autos e à demais prova testemunhal produzida, sendo que o tribunal a quo explicou as razões para assim concluir, conclusão que se mostra coerente e de acordo com as regras da normalidade.
E não tem fundamento invocar, como faz a recorrente, a violação do princípio in dúbio pro reo.
Este princípio, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência consagrado no art.32.º n.º2 da CRP, implica que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal [Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 213]. A violação deste princípio só ocorre assim quando do texto da decisão recorrida decorrer que o tribunal ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que o tribunal deveria ter tido.
No caso dos autos, a fundamentação da decisão impugnada não revela qualquer dúvida do tribunal a quo quanto aos factos explicando, com coerência e segundo um raciocínio lógico, como formou a sua convicção.
Pelo exposto, improcede a impugnação da matéria de facto.
4ªquestão: -caráter instrumental do crime de falsidade informática face ao crime de burla, pelo que a absolvição quanto a este impõe a absolvição quanto àquele.
A Lei da Criminalidade Informática, prevista originariamente pela Lei 109/91, de 17/2, posteriormente alterada pelo DL 323/01, de 14/12, na redação em vigor aquando dos factos, dispõe no seu art.4.º:
«1- Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num tratamento informático de dados, quando esses dados ou programas sejam suscetíveis de servirem como meio de prova, de tal modo que a sua visualização produza os mesmos efeitos de um documento falsificado, ou, bem assim, os utilize para os fins descritos, será punido com pena de prisão até cinco anos ou multa de 120 a 600 dias.
2- (…)
3- Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de um a cinco anos.»
A Lei 109/2009, de 15/2, aprova a Lei do Cibercrime e no seu art.31.º veio revogar a Lei 109/91, de 17/2.
O art.3.º da Lei do Cibercrime, prevê o crime de falsidade informática, estatuindo:
«1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.
2 – (…).
3 - Quem, atuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objeto dos atos referidos no n.º 1 ou cartão ou outro dispositivo no qual se encontrem registados ou incorporados os dados objeto dos atos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respectivamente.
4 –(…).
5 - Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de 2 a 5 anos.»
A Lei do Cibercrime dispõe que os «dados informáticos», na definição da alínea b) do art. 2.º, são toda e qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.
Sustenta a recorrente que sendo o crime de burla informática instrumental em relação ao crime de burla, tendo sido absolvida deste, impunha-se também a sua absolvição quanto àquele.
No crime de falsidade informática o bem jurídico tutelado é a segurança do tráfico jurídico probatório, enquanto no crime de burla, o bem jurídico é o património. [v., a este propósito Ac.R.Porto de 30/4/2008, proc. n.º 0745386, relatado pelo Desembargador António Gama].Os bens jurídicos tutelados por estes ilícitos são, assim, diferentes.
O crime de falsidade informática exige um dolo específico - a intenção de provocar engano nas relações jurídicas. Embora o engano esteja na maioria das vezes associado ao prejuízo de outrem ou ao benefício ilegítimo para o próprio ou para terceiro, para o preenchimento do ilícito não é necessário que o engano determine prejuízo ou benefício ilegítimo para o próprio ou para terceiro.
Por isso, mostrando-se preenchidos os elementos constitutivos do crime de falsidade informática, não tem fundamento a pretensão da recorrente.
5ªquestão: não preenchimento do crime de falsidade informática
Na tese recursiva não se mostra preenchido o crime de falsidade informática pois mesmo admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que houve alteração interna da referência de cirurgias ambulatórias para cirurgias com internamento, essa alteração não permite a subsunção dos factos ao crime de falsidade informática, dado que esta só ocorre quando há factos falsos e estes são juridicamente relevantes. Ora, no caso concreto a alteração de cirurgias ambulatórias para cirurgias por internamento só podia servir para fins estatísticos do hospital e, como tal, sem relevância jurídica
No crime de falsidade informática, quer na redação do art.4.º n.º1 da Lei da Criminalidade Informática, em vigor aquando dos factos, quer na sua atual formulação do art.3.º n.º1 da Lei do Cibercrime, tem de haver a intenção de que os dados informáticos «sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes». Os dados informáticos têm de ser alterados com o propósito de desvirtuar a demonstração dos factos que com aqueles dados podem ser comprovados, como bem refere no seu parecer a Exma.Magistrada do Ministério Púbico junto deste Tribunal da Relação.
In casu, atenta a factualidade assente, a arguida fez introduzir no sistema informático episódios de cirurgias realizadas em regime de ambulatório como se tivessem sido levadas a cabo em regime de internamento, quando tal não correspondia à realidade.
No sistema informático do Hospital Infante D.Pedro SA estavam registados todos os internamentos, exames de diagnóstico, consultas e urgências relativos aos utentes do hospital, permitindo o tratamento dessa informação quer para a definição da produção do hospital quer para a cobrança dos serviços prestados. Assim, a arguida ao fazer introduzir aqueles dados falsos no sistema informático, os mesmos passaram a constar para efeitos médicos, estatísticos e contabilísticos, pelo que é manifesta a sua relevância jurídica.
A relação jurídica que em virtude do comportamento da arguida foi introduzida no sistema informático não corresponde à verdade, sendo que os dados assim vertidos no sistema informático produzem os mesmos efeitos de um documento falsificado, pondo em causa o seu valor probatório e consequentemente a segurança nas relações jurídicas.
Nesta conformidade, o comportamento da arguida preenche o crime de falsidade informática quer à luz do regime em vigor aquando da prática dos facos – Lei da Criminalidade Informática – quer à luz do atual regime – Lei do Cibercrime.
Por todo o exposto, improcede o recurso.

III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªseção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça.
[texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias].

Porto, 26/5/2015
Maria Luísa Arantes
Ana Bacelar