Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
545/20.6GBAGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA SIMPLES
CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
Nº do Documento: RP20230621545/20.6GBAGD.P1
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: A expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, poderá ter dois sentidos, devendo o arguido beneficiar do sentido que mais o favorece, o de bater e não o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro, o que nos afasta do crime de homicídio como crime a que será relativa a ameaça e, portanto, estaremos perante um crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153.º, n. 1, do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 545/20.6 GBAGD.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Águeda

Relator Paulo Costa
Adjuntos Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha



Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No Processo Comum (Tribunal Singular) supra id,, do Tribunal Judicial da Comarca do de Aveiro, Juízo Local Criminal de Águeda, foi proferida Sentença nos termos da qual foi preferida a seguinte decisão:
“Face a todo o exposto, julgo a acusação pública procedente por provada e, em consequência, condeno o arguido AA pela prática, como autor material de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do C.P., na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de € 400,00 (quatrocentos euros).
Vai ainda o arguido condenado nas custas do processo, em 2 (duas) UC de taxa de justiça.”

Inconformado, veio o arguido interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“A) In casu e em face da materialidade apurada nos presentes autos, o Tribunal a quo, salvo o devido e merecido respeito (que é muito!) não procedeu de forma correcta ao fazer um enquadramento jurídico criminal errado dos factos apenas descrito pelo ofendido.
Ou seja, estes factos: erroneamente dados como provados pelo Tribunal a quo, têm que ser rectificados, devendo ser, na verdade e com relevo para a causa, substituídos, apenas, pela única factualidade provada, a saber:
1. No decurso do mês de Abril de 2020, o ofendido, BB, recebeu no seu telemóvel, pela aplicação Whatsapp, uma mensagem de voz com o seguinte teor: “Tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça. Ou tu entras nos eixos, ou isto vai-se foder tudo”.
2. O ofendido considerou que as expressões referidas em 1 (UM) dos factos provados, não eram bem uma ameaça e que poderiam referir-se a muitas coisas não concretizadas, sendo que só participou tais factos passados uns meses, por razões de viagens e de agenda das autoridades policiais e também por considerar nada ter a temer;
ISTO PORQUE:
B) Não deveriam ter sido positivamente valoradas apenas as declarações do ofendido que, de forma ostensiva, parcial e (por isso) subjectiva, descreveu a mensagem de voz que recebeu no decurso do mês de Abril de 2020 (Cfr passagens audio com as Referências números 20221117_151113_4061035_2870294 e 20221117_125531_4061035_2870294, constantes da acta da audiência de 17 de Novembro de 2022, entre as 14h24m e as 15h50m), a saber:
C) O Tribunal a quo ignorou que o próprio ofendido reconheceu que, relativamente ao arguido - “(…) já não estávamos de boas relações (…) há vários anos (…) seguramente há uns 10 anos (…)”
D) O Tribunal a quo não deveria ter confiado sem reservas na opinião do ofendido, a única, quando o autor de tais expressões só poderia ser do arguido por causa do “(…) acumular de situações (…)” que mantém, alegadamente, com este;
E) O Tribunal a quo ignorou que o próprio ofendido reconheceu que os “(…) telefonemas (…) mensagens (…) escritos (…) eram sempre de números desconhecidos (…)”
F) Ainda assim, o próprio ofendido, entre os minutos 10 / 12 (e depois de ouvir as gravações juntas aos autos num CD), permite-se sublinhar com naturalidade que o que acabava de ouvir “(…) não é bem uma ameaça (…)” aqui se consubstanciando outro facto incapaz de provar, para além da dúvida razoável, que era o arguido “do outro lado da linha”, assim como o desvalor penal conferido pelo ofendido ao que ouviu;
G) Para além disso, é também o próprio ofendido a reconhecer perante o Tribunal a quo, que, quanto às expressões ouvidas “(…) dois estoiros (…) posso ligar a muita coisa (…) pode ser só bater (…)”
H) Ou seja, a alegada intenção de se remeter o agravamento, do crime de ameaça, para a prática de um crime de “homicídio” (conforme consta da fundamentação da decisão condenatória) é manifestamente um absurdo, por completamente desajustado à realidade da factualidade dada como provada.
I) Ou seja, em face dos factos supra referenciados, o Tribunal a quo não poderia ter valorado positivamente e sem reservas as declarações do ofendido quanto à correcta identificação da voz do arguido, por serem, ostensivamente sugestionadas, condicionadas, subjectivas e por isso, parciais;
J) Ademais, o Tribunal a quo, inexplicavelmente, ignora (nem sequer se permitiu desvalorizar) que todo o contexto que envolveu a situação em causa, apenas foi descrita pelo próprio ofendido que, naturalmente, a desvalorizou como o peso do crime de ameaça agravada, tal e qual o arguido foi acusado e condenado ao afirmar “(…) só quando tive condições é que fiz a queixa (…) eu não tenho nada a temer (…)”;
K) Não é de todo credível que fosse possível identificar o arguido pela voz; a voz muda com o tempo e fica diferente ao telefone, designadamente, o tom, a velocidade, o seu timbre, etc…
L) O Tribunal a quo, não pode presumir… está obrigado a provar sem margem para dúvidas e… in dúbio, pro reo, como é de Lei de Direito e da mais elementar Justiça!...
M) Não tem qualquer cabimento, presumir que foi o arguido… só porque foi e só porque interessou ao ofendido que tenha sido;
N) Inexistindo qualquer ligação deste número de telefone ao arguido (por inexistir qualquer ligação ao seu titular inscrito), é também absolutamente inaceitável (por ser uma elaborada fantasia) que o Tribunal a quo justifique a identificação do arguido como autor dos crimes em causa nos autos, com base apenas na versão do ofendido;
O) Ou seja, se nada, para além de meras presunções, nada, mas mesmo nada, pode concluir, sem margem de dúvidas ou reservas, pela identificação do arguido como autor da mensagem de voz em causa nos autos;
P) Quanto ao estado de espírito e à perturbação alegadamente sentida pelo ofendido e às consequências que o comportamento do arguido lhe provocou, foram excessivamente valoradas as suas próprias declarações nesse sentido, naturalmente parciais, subjectivas e contaminadas pelas péssimas relações que admitiu ter com o arguido;
Q) Considerando ser estes os únicos factos que o Tribunal a quo pode dar como provados, jamais poderia ter concluído pela objectiva e inequívoca identificação do arguido como seu autor, pelo que existe uma clara e notória “contradição insanável da fundamentação”;
R) Ou seja, o Tribunal a quo errou, na medida em elaborou a respectiva subsunção jurídico-criminal com base em factos presumidos e não provados que, no mínimo, lhe deveriam ter suscitado dúvidas quando avaliou toda a prova testemunhal, motivo pelo qual, o princípio sagrado do in dubio pro reo deveria ter sido utilizado e não foi;
S) Mais errou o Tribunal a quo na medida em que acabou por não efectuar de forma clara a subsunção jurídico-criminal desses factos, o que, por si, acabou por revelar alguma incoerência, contradição e por isso (certamente) involuntária parcialidade, em relação à restante materialidade subsumida;
T) Em suma, o Tribunal a quo, não ponderou devidamente todas as circunstâncias atendíveis que, in casu, excluíram claramente a ilicitude e a culpa do recorrente AA pela alegada prática do crime de ameaças (e muito menos agravada), por não se ter conseguido ultrapassar presunções de factos que mais não são do que meros indícios.
U) O princípio do in dubio pro reo é um princípio fundamental em direito penal que prevê o benefício da dúvida em favor do réu, isto é, em caso de dúvida razoável quanto à culpabilidade do acusado, nasce em favor deste, a presunção de inocência, uma vez que a culpa penal deve restar plenamente comprovada.
V) O Tribunal a quo violou este princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição deste Tribunal da Relação. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova:
mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista»;
W) O Tribunal a quo violou a imposição que é dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando acabou por presumir factos provados de forma subjectiva e condicionada à tese parcial do ofendido (confessadamente, de relações péssimas com o arguido), não podendo ter a certeza sobre os factos que considerou decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
X) Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Y) Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais (ofendido e arguido) e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto e se limite a presumir de forma subjectiva e com pré-conceito;
Z) Sendo o in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impunha-se uma orientação vinculativa dirigida ao Tribunal a quo no caso da manifesta evidência de uma dúvida sobre os factos que se limitou a presumir de forma subjectiva: em tal situação, o tribunal tinha de decidir pro reo.
AA) Daqui se retira que, tendo o Tribunal a quo presumido a autoria do crime em causa nestes autos, tal preterição exigiria que o julgador tivesse ficado na dúvida apenas sobre os factos relevantes supra e infra referenciados e, nesse estado de dúvida, tivesse decidido a favor do arguido.
BB) A apreciação da efectiva violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: é pela mera análise da decisão ora recorrida que se conclui pela violação deste princípio, ou seja, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção do Tribunal a quo, apenas se deveriam ter dado como provados os factos criminosos, permanecendo a dúvida quanto à sua autoria;
CC) Assim, só podendo ficar com dúvida insanável quanto à autoria dos factos, o Tribunal a quo só podia ter decidido a favor do arguido, uma vez que a conclusão que retirou em matéria de prova e que se materializou na condenação do arguido, não é de todo suportada, de forma suficiente e/ou de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
DD) Finalmente, mesmo valorizando o princípio da livre apreciação da prova por parte do Tribunal a quo, no caso em concreto, o mesmo não pode, de modo algum, querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida.
EE) Se a apreciação da prova pelo Tribunal a quo é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados… e foram.
FF) A liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo;
GG) Salvo o devido e merecido respeito (que é muito) e também melhor opinião, a livre apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo foi entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável.
HH) In casu, salvo o devido e merecido respeito (que é muito) e também melhor opinião, a livre apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo não se traduziu numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que tivesse permitido ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.
II) Ou seja, é de concluir pela existência de erro notório na apreciação da prova, uma vez que, para a generalidade das pessoas, é evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no artigo 127º, do CPP
EM SUMA
Perante a factualidade provada constatamos não se mostrarem verificados os requisitos suficientes para o Tribunal a quo condenar o ora recorrente, já que a expressão proferida “tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça”, dirigidas (por alguém) ao ofendido, no contexto e no tom em que o foram, jamais podem conduzir, de forma linear, à adequação de tal alegada ameaça a provocar no ofendido, medo ou inquietação, que o próprio acaba por desvalorizar como tal
Ademais, não sendo possível identificar - sem reservas - o autor da mensagem, não é possível afirmar, para além da dúvida razoável, que o arguido (ora recorrente) sabia e queria que a expressão por si proferida era adequada a provocar receio, pelo que não se pode considerar preenchido o elemento subjectivo do tipo de ilícito.
Por outro lado e no que à agravação respeita, é completamente absurdo, por excessivo, considerar que o mal, alegadamente ameaçado, terá sido “a morte”, porquanto a expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, não tem, em exclusividade, o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro.
In casu, o próprio ofendido, assim como a própria decisão recorrida admitem que tais expressões podem significar outros comportamentos como bater, pelo que, salvo o devido e merecido respeito, não se vislumbra como se presume que é “a morte” seja o primeiro e principal sentido que se atribui, o que jamais nos poderá reportar, exclusivamente, para o crime de homicídio o qual, nos termos do art. 131º, do CP.
ASSIM:
O Tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 32º, nº 1 (primeira parte) da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 127º do Código de Processo Penal (CPP), tendo em conta os normativos consagrados neste último diploma legal, designadamente, nos seus artigos 399º, 401º, nº 1 b), 402º, nºs 1 e 2 b), 403º, nº3, 406º, nº 1, 407º, nºs 1 e 2 d), 408º, nº 1 a), 409º, nº 1, 410º, nºs 1 e 2 alíneas a) b) e c), 411º, nº 1, 412º, nºs 1, 2 b) c), 3, 4 a) e b) e 6;
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o sempre Mui Douto Suprimento deste Venerando Tribunal da Relação, deve, pois, a Sentença recorrida, ser revogada no sentido em que tenha como consequência inevitável e necessária a ABSOLVIÇÃO DO ORA RECORRENTE, do crime de ameaça (que, in casu, jamais poderia ter sido considerada agravada), bem como, das custas do processo em que foi, indevidamente condenado, com a ulteriores consequências processuais… ASSIM SE FAZENDO (COMO SEMPRE) A RESPECTIVA, COMPETENTE, MERECIDA E SÃ, JUSTIÇA!...”


O Ministério Público veio responder, concluindo que a sentença recorrida, não é passível de censura, devendo o recurso ser julgado improcedente e mantida a sentença nos seus precisos termos, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1.º - Não se conformando com a douta sentença proferida a 10.01.2023, que condenou o arguido AA na prática, como autor material de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do C.P., na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de €400,00 (quatrocentos euros), veio o arguido interpor o presente recurso, a 10.02.2023, com os fundamentos ali melhor expostos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, por economia processual.
2.º- Entendemos que não assiste razão ao arguido e aqui recorrente, tanto mais que concordamos, na íntegra, com a douta sentença proferida nos autos, a qual não nos merece qualquer reparo.
3.º- Não há, in casu, e salvo melhor opinião em contrário, qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova, ou insuficiência da prova, ou sequer violação dos ditames constitucionais, pelo qual foi dada como assente e provada a factualidade vertida na douta sentença.
4.º- Assiste-se, isso sim, a uma tentativa de pôr em causa a valoração da prova realizada pelo Tribunal a quo, que é, nos consabidos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, regido pela livre apreciação da prova.
5.º- Conjugada toda a prova, quer a documental, quer ainda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente o depoimento claro, sereno, objectivo, espontâneo, escorreito e esclarecedor do ofendido, não efabulado e com inteira correspondência com a prova objectiva existente, nomeadamente o áudio que se encontra gravado no CD de fls. 40 dos autos e onde o ofendido, mediante a reprodução do mesmo em audiência de julgamento, reconheceu, sem qualquer sombra de dúvida e com inteira naturalidade, a voz do irmão, aqui arguido/recorrente, em face da sua razão de ciência e da forma como depôs, o seu depoimento mostrou-se credível e, por via, disso, foi positivamente valorado pelo Tribunal, não se suscitou qualquer dúvida insanável sobre a matéria de facto provada, estando na motivação evidenciado que foi efectuado exame crítico de acordo com as regras da experiência, pelo que se conclui que não foi violado o invocado princípio probatório in dúbio pro reo.
6.º- A expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, tem o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro (sem prejuízo de poder também significar outros comportamentos como bater, mas não é esse o primeiro e principal sentido que se atribui a esta expressão), o que se revela, quanto a nós, inequívoco, quanto ao crime imputado ao arguido e pelo qual foi o mesmo condenado.
7.º- Um arguido que mantém o silêncio em audiência não pode ser prejudicado, mas, também é certo que prescinde de dar a sua visão pessoal dos factos e de esclarecer pontos de que tem um conhecimento pessoal.
8.º- Sabido que as declarações dos ofendidos/vítimas constituem meio de prova sujeitas ao princípio da livre apreciação do julgador, nada obsta a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente nelas.
9.º- Ponto é que o depoimento dos ofendidos/vítimas seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar a convicção do julgador.
10.º - Na sentença ora posta em crise está exposto de forma clara porque razão mereceram credibilidade as declarações do ofendido.
11.º- Não corresponde à verdade que o depoimento em que assentou a convicção do Tribunal a quo tenha sido ostensivamente sugestionado, condicionado, subjectivo e, por isso, parcial, tal como alegado pelo arguido e recorrente.
12.º- Não podemos olvidar que o Tribunal da primeira instância, devido à oralidade, imediação e contraditório, está numa situação de privilégio para apreender as emoções, a sinceridade, a isenção, as contradições, as solidariedades e cumplicidades do arguido, do ofendido e das testemunhas ouvidas, que escapam no recurso, onde domina a aridez do papel, de modo a poder proferir uma boa decisão de facto. (Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, ano 1988- 9, pág. 158).
13.º- O artigo 127.º do Código de Processo Penal estabelece que a prova é, salvo se a lei dispuser diferentemente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica” (Vide Código de Processo Penal, Maia Gonçalves, 10ª edição, pág. 322)
Através da indicação dos meios de prova e do seu exame crítico, efectuados na fundamentação, como o impõe o artigo 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, é possível ao tribunal de recurso apreciar se a convicção do julgador está fundamentada num processo racional e lógico da valoração da prova.
14.º- Da fundamentação da decisão de facto da decisão recorrida resulta que a convicção do Tribunal a quo se baseou numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, nada nos indicando, s.m.o., que a credibilidade, ou não credibilidade, do depoimento prestado deva ser diferente.
15.º-. Dito isto, perante as várias soluções plausíveis de direito, a fundamentação da matéria de facto e os factos dados como provados, s.m.o., não padece de qualquer vício de raciocínio nem de qualquer erro notório, ou insuficiência de prova, inexistindo qualquer contradição tal como parecer fazer crer o aqui arguido/recorrente.
16.º- Operou a douta sentença recorrida sábia subsunção jurídica e aplicação do direito (a factualidade provada se subsumiu à prática de um crime de ameaça agravada), não tendo sido violados quaisquer disposições legais.”

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer aderindo totalmente à resposta do Ministério Público junto da 1ª instância.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Fundamentação
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto as questões seguintes:
- contradição na fundamentação da decisão recorrida;
- erro notório com violação do principio da livre apreciação da prova e do principio in dúbio pro reo, e do art. 32º n.º 2 da CRP;
- errada qualificação do tipo de crime;


II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões tendo presente o teor da decisão recorrida e os factos que dela constam, e respectiva motivação e que se transcrevem:

Após a realização da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No decurso do mês de Abril de 2020, o arguido AA remeteu a BB, seu irmão, pela aplicação Whatsapp, uma mensagem de voz com o seguinte teor: “Tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça. Ou tu entras nos eixos, ou isto vai-se foder tudo”.
2. O arguido agiu com o propósito de intimidar BB e provocar-lhe receio de vir a sofrer acto atentatório da sua integridade física e vida, bem sabendo que esta sua conduta era adequada a causar-lhe tal receio, como efectivamente causou.
3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que o arguido enviou, no mesmo período temporal, um outro áudio ao irmão em que lhe disse: “Tu vais apanhar”.
*
A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na análise e ponderação crítica de toda a prova produzida em sede de julgamento.
Assim, relativamente aos factos dados como provados o Tribunal formou a sua convicção nas declarações do ofendido – BB – o qual referiu que o arguido, seu irmão, em dois momentos distintos e separados entre si por meses, lhe deixou duas mensagens de voz, através da aplicação Whatsapp, em que lhe dirigia expressões em que lhe dizia que lhe ia fazer mal. Recordava-se daquela que, em seu entender, era a mais gravosa e que motivou a apresentação de queixa e a ideia que tinha do seu teor era aproximadamente que: “ou entras nos eixos ou vai terminar tudo mal” e em que o arguido se referia às fotografias tiradas, pelo ofendido, aos seus carros. Situa esta mensagem de voz em Abril de 2020, não sabendo precisar a data em concreto. Explicou que não voltou a ouvir os áudios por lhe convocarem más memórias. Nessa sequência, foi ouvido, em audiência de discussão e julgamento, o áudio constante do CD de fls. 40, tendo a testemunha reconhecido a voz do irmão e a mensagem de voz que este lhe deixou como sendo aquela a que se estava a referir e de onde resulta a expressão dada por provada. O ofendido também esclareceu que sentiu medo por causa do que o arguido deixou “no ar” tendo interpretado a expressão como sendo “dois tiros na cabeça”, apesar de também admitir que o irmão poderia estar apenas a dizer que lhe iria bater na cabeça.
O seu depoimento mostrou-se claro, sereno, objectivo, espontâneo, escorreito e esclarecedor, não efabulado e com inteira correspondência com a prova objectiva existente, nomeadamente o áudio que se encontra gravado no CD de fls. 40 e onde o ofendido reconheceu, sem qualquer sombra de dúvida e com inteira naturalidade, a voz do irmão, aqui arguido. Em face da sua razão de ciência e da forma como depôs, o seu depoimento mostrou-se credível e, por via, disso, foi positivamente valorado pelo Tribunal.
Quanto aos antecedentes criminais foi valorado o respectivo certificado que se encontra junto aos autos.

II.2. Do Recurso
Da contradição na fundamentação da decisão recorrida;
Do erro notório na apreciação da prova com violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio in dúbio pro reo, e do art. 32º n.º 2 da CRP;
Da errada qualificação do tipo de crime;

Vejamos.
Estabelece o nº 2 do artigo 374º, que “2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Quando existe falta de fundamentação, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.
De acordo com a Jurisprudência do Ac. STJ de 21-03-2007, em que é Relator Henriques Gaspar “A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão (…). Pois que, as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).
Os motivos de facto (374º, nº2, do CPP), não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 228 e sgs.
Por seu turno, o exame critico “consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção”, tudo de forma, e para que os destinatários, fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção, ou seja o “homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas” (Acórdão do STJ de 21.03.2007, e Ac. do STJ de 30-01-2002).
A indicação e o exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artº 374, nº2, parte final, visa garantir “que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.”- Ainda o Ac. STJ de 21.03.2007 e Ac. do STJ de 16/01/2008, in www.dgsi.pt.
O “exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n.° 2, do CPP; o n.° 2 do art. 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (Ac. STJ de 21.03.2007 e Ac. do TC de 02-12-1998).”
Primordial é que, através da leitura da sentença, se compreenda a razão pela qual o tribunal decidiu num determinado sentido e não noutro.
É entendimento deste tribunal que a decisão recorrida, para além de fazer o elenco descritivo das provas carreadas para os autos e que foram relevantes para a apreciação factual, procedeu à análise crítica e racional das razões que conduziram a que se atribuísse relevância a essa prova, assim como fez uma ponderação lógica dos factos e das provas com vista à decisão de facto.
No exame crítico das provas o tribunal a quo explica por que razão acreditou no depoimento do ofendido.
O tribunal a quo da uma explicação fundamentada acerca da forma como se procedeu a essa avaliação, valorando-a, tendo apresentado uma explicação lógica explicando o contexto.
Cabe aqui referir que não vislumbramos qualquer contradição na fundamentação da decisão.
Aqui, e no resto da motivação factual, é patente que o tribunal recorrido explicitou, de forma lógica e racional, por referência ao teor dos depoimentos, às suas circunstâncias e às regras de experiência comum, as razões que fundaram a convicção do tribunal recorrido sem qualquer atropelo ao princípio da livre apreciação da prova.
Do que fica exposto resulta que a decisão se mostra fundamentada de facto e de direito completa, fundamentação essa que revela a transparência do processo de decisão, e permite ao tribunal de recurso, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, efetuar uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório.
Valorou os meios de prova com critérios objetivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”. Isto é, a fundamentação do tribunal recorrido, é adequada e mais do que suficiente.

Cabe aqui referir que, quer das conclusões, quer das motivações do recurso, transparece que a recorrente pretende por em causa a convicção do tribunal quanto aos factos provados pretendendo impor a sua própria, contrária àquela que levou o tribunal a considerar provados os factos da acusação.
A impugnação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação pode ser feita por invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, sindicando, dessa forma, as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efetivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo, na sua adoção, a observância das formalidades previstas no artigo 412º, nº3 e nº 4, do CPP (erro de julgamento em matéria de facto).

No caso em apreço o recorrente invoca o erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº2 al) c) do CPP, vicio de conhecimento oficioso, e que traduz defeito estrutural da decisão e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

O “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do nº2, do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Ou seja, este vício verifica-se ou ocorre quando de um facto provado se tira um facto logicamente inaceitável, ou quando se dá como provado algo que é ou está errado, ou ainda quando usando um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das “legis artis” (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido. Logo, o erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.
Desta limitação resulta que fica “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos”. É que o recurso tem por objeto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 339, no mesmo sentido, isto é, entendendo-se que o erro tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a outros quaisquer elementos, ainda que constantes do processo, vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores - cfr., por todos, os Acs. STJ de 2/2/2011 e de 23/9/2010 (rel. Maia Costa e Souto Moura respectivamente, www.dgsi.pt).De forma particularmente clara exarou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt, que: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.
Existirá um “erro notório” “quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” – cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 29/02/96, Revista de Ciência Criminal, ano 6 pp. 55 e seguintes.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
Lida e analisada a decisão recorrida, nela não surpreendemos qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida, mostrando-se a decisão bem estruturada com raciocínio lógico, e a apreciação das provas efetuada em respeito pelos princípios da livre apreciação da prova, e pelas regras de experiência comum.
Considerando que o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, este se verifica “quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).” – Ac. TRC de 10.07.2018, Proc. Nº 26/16.2GESRT.
Donde decorre que este vício se não verifica.
Já a “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, a que se reporta a alínea b) do artigo 410.º, do CPP, aquela (contradição insanável da fundamentação) ocorrerá nas situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e não provado, e esta (contradição insanável entre a fundamentação e a decisão) ocorrerá nas circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão, vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
No caso dos autos, o circunstancialismo verificado, relativo ao imputado crime de ameaça agravada, de ter sido dado como provado que “No decurso do mês de Abril de 2020, o arguido AA remeteu a BB, seu irmão, pela aplicação Whatsapp, uma mensagem de voz com o seguinte teor: Tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça. Ou tu entras nos eixos, ou isto vai-se foder tudo” e de na fundamentação de direito, haver sido escrito que “ (…) a expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, tem o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro (sem prejuízo de poder também significar outros comportamentos como bater, mas não é esse o primeiro e principal sentido que se atribui a esta expressão), o que nos reporta para o crime de homicídio o qual, nos termos do art. 131º, do CP, é punido com pena de prisão superior a 3 anos, (…)”, não se antevê em que medida existe contradição entre a fundamentação e a decisão. O tribunal fez a interpretação concluindo que considera tais dizeres como ameaçadores para a vida do ofendido e em conformidade a plasmou nos factos provados.
Este vício também se não verifica.
Por sua vez, a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o Tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à
insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da
livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. Ora a tal respeito diremos que o vício previsto na al. a), do n.º 2 do citado art.410.º, do CPP, trata consabidamente de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag.339/340 “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”.
Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão.
Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida (desiderato que parece querer ser alcançado pelo recorrente na arguição deste vício, o qual segundo o mesmo está inserido na sentença da qual recorre), que são coisas distintas, e como tal não podem ser confundidas.
Analisada a matéria de facto dada como provada não se vislumbra qualquer carência de factos que sustentaram a decisão de direito e que determinaram a condenação do recorrente, bem como factos relativos às suas condições de vida e conduta anterior ao crime.
Parece-nos que o pretendido pelo recorrente é a impugnação da matéria de facto. Ora o art. 412.º, nº 3, do Código de Processo Penal, dispõe que:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; e
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
(..)”
Note-se que a lei refere as provas que impõeme não as que permitiriamdecisão diversa. É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Assim, quando a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
O art. 127.º, do Código de Processo Penal, indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Tais limites não foram violados in casu, pois da leitura da motivação da decisão da matéria de facto da decisão ora posta em crise, constata-se que o Tribunal a quo motivou de forma lógica e coerente a decisão ora posta em crise, sendo perfeitamente percetível o caminho trilhado naquele percurso decisório que atendeu ao depoimento do ofendido que descreveu de forma clara, serena, objetiva, espontânea, escorreita e esclarecedora, não efabulando e com inteira correspondência com a prova objetiva existente, nomeadamente o áudio gravado no CD junto aos autos e onde o ofendido, mediante produção do mesmo em audiência de discussão e julgamento, reconheceu, sem qualquer sombra de dúvida e com inteira naturalidade, a voz do irmão, ora recorrente tendo sido, por via disso, merecedor de credibilidade.
Assim, da prova produzida, não se vislumbra que outro sentido o Tribunal a quo lhe poderia ter dado, estando a matéria de facto provada em plena sintonia com as regras de experiência comum.
O recorrente discorda desta apreciação.
No fundo, e essencialmente, o que o recorrente põe em crise é a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova inserta no artigo 127.°, do Código de Processo Penal (CPP).
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito conforme previsto no art. 428.º do CPP.
O modelo de recurso em processo penal português não é, porém, o da repetição do julgamento, mas da sindicância do juízo decisório da matéria de facto efetuado pela primeira instância, no sentido de verificar se houve ou não erro de julgamento na apreciação/valoração das provas.
A credibilidade, em concreto, de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do Julgador e a sua aplicação concreta, apenas poderá ser questionada caso careça de razoabilidade, já que, o Julgador, em primeira instância, apreende os meios de prova com imediação e valora uns em detrimento de outros sempre com o objetivo de perseguir a «verdade material».
Ao tribunal de recurso cabe nesta matéria analisar o relato efetuado pelo juiz de primeira instância e controlar a sua plausibilidade, ou seja, a verosimilhança do raciocínio explanado na sentença com o sentido comum.
Na verdade, não havendo imediação das provas o Tribunal de recurso não pode julgar nos mesmos termos em que o faz a 1ª instância. Pois, como refere o Conselheiro Souto Moura no Acórdão do STJ de 15/07/2008, in www.dgsi.pt: «não pode esquecer-se tudo aquilo que a imediação em primeira instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar no que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir. Serve para dizer que o trabalho que coube à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, e da fundamentação feita da decisão por via deles, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»
Em resumo, o recurso em matéria de facto não visa a realização dum novo julgamento, mas reparar erros do efetuado na 1.ª instância, pelo que mister é apurar se os factos dados como provados colhem consistência na prova produzida, se os factos apurados têm sustentabilidade na prova gravada e na prova eventualmente emergente dos documentos constantes do processo.
Significa isto, intrinsecamente, que há que ponderar a conciliação entre aquela prova e o resultado da mesma, para que este surja como imanência daquela.
Ora, a fundamentação vertida na sentença mostra-se exaustiva sendo claro o percurso lógico-dedutivo operado pelo julgador em ordem à sua concretizada convicção probatória.
Nos termos do disposto no art. 127.º do C. P. Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A prova há de ser apreciada no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do julgador). Segundo se diz no Ac. da Rel. Porto de 6/03/2002 (proc. N.º 0111381 - disponível na Internet no site www.dgsi.pt), “O princípio da «livre apreciação da prova» é válido em todas as fases processuais, mas é no julgamento que assume particular relevo. Não equivale a «prova arbitrária». O juiz não pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas. A convicção do juiz não poderá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável”. Isso decorre do n.º 2 do art. 374.º do CPP que dispõe que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
Será através da fundamentação da sentença que há de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do Tribunal, num sentido e não noutro, e bem assim porque é que o tribunal teve por fiável determinado meio de prova e não outro. A sentença há de conter “os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação, ou seja, ao cabo e ao resto, um exame crítico um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal colectivo num determinado sentido” – ac. STJ de 13-2-92, C. J. tomo I, pág. 36 e ac. Trib. Constitucional de 2-12-98 DR IIª Série de 5-3-99.
Atento tudo quanto fica dito, afigura-se-nos perfeitamente legítima a opção efetuada pelo julgador, ao abrigo do disposto no art. 127.º do C.P.Penal, sendo certo que lendo a mesma, se não verifica tenha ocorrido o tal erro ostensivo, patente e de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, de que acima falamos.
Assim sendo, não vemos como se podem dirigir tais críticas ao sentenciado, já que a fundamentação de facto é perfeitamente consentânea com os factos dados como provados.
O recorrente parece censurar a circunstância de, na sua ótica, o Tribunal a quo se ter bastado com “a versão solitária e exclusiva do ofendido”.
No entanto, o Tribunal a quo explicitou de forma clara as razões pelas quais credibilizou o depoimento do ofendido, o qual se revela razoável face à luz da experiência e da lógica, não se vislumbrando prova que impusesse decisão diversa.
O arguido, apesar de ter comparecido, remeteu-se ao silêncio no uso de um direito que a lei processual penal lhe confere sem que isso o possa prejudicar - princípio da presunção de inocência - direito à não autoincriminação e direito ao silêncio (art.° 32°, no 2 da CRP).
Sem prejuízo, como referido no acórdão do TRC de 17.05.2017 - www.dgsi.pt, processo n° 430/15.3PAPNI.C1: “um arguido que mantém o silêncio em audiência não pode ser prejudicado, mas, também é certo que prescinde de dar a sua visão pessoal dos factos e de esclarecer pontos de que tem um conhecimento pessoal. Assim, não pode, depois, reclamar que foi prejudicado pelo seu silêncio.”
Ou seja, seja no caso de falta de comparência estando regularmente notificado, nada dizendo, ou remetendo-se ao silêncio ainda que comparecendo, só ao Recorrente se deve a total ausência de qualquer esclarecimento de sua parte da factualidade que lhe é imputada.
Acresce que importa também ter presente que não existe na nossa ordem jurídica nenhum preceito legal que determine ser insuficiente a prova sobre determinado facto que resulte unicamente da versão do ofendido.
O critério para a valoração das declarações e depoimentos não assenta na quantidade mas na qualidade dos mesmos.
Assim, sabido que as declarações dos ofendidos/vítimas constituem meio de prova sujeitas ao princípio da livre apreciação do julgador, nada obstando a que a convicção do tribunal se forme exclusivamente nelas.
Ponto é que o depoimento dos ofendidos/vítimas, como é claro, seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador.
Como se refere no acórdão do TRG de 12.O4.2O1O - www.dgsi.pt -, processo n° 42/06.2TAMLG.G1, o velho aforismo “testis unus testis nullus” - que quer dizer “uma testemunha, nenhuma testemunha”, significando que o depoimento de uma única testemunha seria imprestável - carece de eficácia jurídica num sistema como o nosso em que a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal (o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção art.° 127° do Código de Processo Penal).
Como refere Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111 - “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Ora, na sentença proferida neste processo está exposto de forma clara por que razão mereceram credibilidade as declarações do ofendido, assim como está explicada, de forma fundamentada, por que motivo lhe foi dada relevância na formação da convicção do julgador, apreciando-as segundo as regras da experiência e a sua livre convicção como manda o art. 127.º do Código de Processo Penal.
Alega também o recorrente/arguido que, “porque apenas assentam (os factos provados) na versão do ofendido, no limite sempre teriam de criar a dúvida, dúvida esta que teria de ser apreciada pelo tribunal em benefício do arguido - -in dúbio pro reo - e aplicada ao caso em concreto.
Lendo a sentença resulta que a Meritíssima Juiz a quo não manifestou dúvidas em relação aos factos julgados como provados, mas o recorrente/arguido alega que o Tribunal a quo deveria ter ficado com dúvidas sérias sobre os factos que julgou como provados.
A aplicação do princípio in dúbio pro reo tem lugar somente quando se verifique a existência de dúvida razoável e insanável quanto à verificação de certa factualidade, ou seja, não é uma regra para apreciação das provas, só tendo aplicação depois de finalizada a apreciação da prova, tendo então aplicação quando não foi possível sanar aquela dúvida razoável.
O princípio de inocência in dúbio pro reo deve estar sempre presente na mente do julgador, é certo, mas, por outro lado, deve conjugar-se com a observância do princípio da livre apreciação da prova, cabendo ao julgador fazer uma apreciação crítica da conjugação dos vários elementos probatórios, valorando e credibilizando uns em detrimento de outros.
Como se sabe, o princípio in dúbio pro reo, sendo corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (art.° 32.°, n.° 2, CRP), constitui princípio probatório, dirigido à apreciação dos factos objeto de um processo penal e impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos imputados ao arguido, o tribunal deve decidir a favor deste.
A apreciação pelo Tribunal da Relação da eventual violação do princípio in dúbio pro reo encontra-se, salvo melhor opinião, dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto (como a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, isto é, deve ser da análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, seguindo o processo decisório evidenciado na análise da motivação da convicção, e nessa medida concluir-se-á pela violação deste princípio se se chegar à conclusão que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido - cfr. Ac. do TRC de 24.02.2016, consultável em www.dgsi.pt, processo n° 100/14.OGCSRT.C1.
No caso em apreço, porém, a conclusão a que chegou o Tribunal a quo sobre a ocorrência dos factos não merece censura, não impondo o referido no recurso dúvidas sobre os mesmos, resultando a prova dos factos das declarações do ofendido, que mereceram credibilidade e foi confirmada na conjugação dos demais elementos de prova como acima se expôs, revelando-se a alegação de violação deste princípio inconsistente.
Na verdade, como decorre do acima exposto, não se suscita, face à prova produzida, qualquer dúvida insanável sobre a matéria de facto provada, estando na motivação evidenciado que foi efetuado exame crítico de acordo com as regras da experiência, pelo que se conclui que não foi violado o invocado princípio probatório.

Apenas numa única vertente o tribunal não decidiu em consonância com princípio em questão e esta prende-se com o significado que atribuiu à expressão “dois estoiros na cabeça”.
De facto, na fundamentação refere-seO ofendido também esclareceu que sentiu medo por causa do que o arguido deixou “no ar” tendo interpretado a expressão como sendo “dois tiros na cabeça”, apesar de também admitir que o irmão poderia estar apenas a dizer que lhe iria bater na cabeça.”
Ao considerar que o mal alegadamente ameaçado terá sido a morte, desconsiderou que a expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, não tem, em exclusividade, o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro.
In casu, o próprio ofendido“(…) dois estoiros (…) posso ligar a muita coisa (…) pode ser só bater (…)”, assim como a própria decisão recorrida admitem que tais expressões podem significar outros comportamentos como bater pelo que, o tribunal perante a alternativa menos gravosa e na ausência doutro suporte probatório, não poderia ter optado pela mais gravosa, dando o principal sentido à ameaça de morte, devendo fazer recair nesta matéria o princípio do in dubio pro reo e decidir pelo sentido mais favorável ao arguido. E por esta razão deve alterar-se o ponto 2 dos factos provados eliminado os termos “ e vida “.

Quanto ao demais, como já expresso, a convicção formada pelo tribunal mostra-se lógica e estruturada firmada no depoimento do ofendido e audição do CD e, portanto, de acordo com a versão do ofendido que é oposta à do arguido que se remeteu ao silêncio em audiência de julgamento, tendo o tribunal explicado a razão pela qual optou pela versão do ofendido em decisão coerente, com raciocínio lógico e de acordo com as regras de experiencia comum, conforme se explicou supra aquando da análise critica da prova e que aqui se reitera.
Verifica-se, pois, que a prova foi apreciada em respeito absoluto pelo princípio da livre apreciação da prova, “princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.” (Ac. STJ de 11.07.2007, Proc. 1611/07, 3ª secção)
Do teor da decisão recorrida, concluímos que o julgador recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma clara e detalhada, expondo de forma segura e assertiva as razões que fundamentaram a sua opção, e justificando os motivos que levaram a dar maior credibilidade à versão apresentada pelo ofendido em detrimento da versão apresentada pelo arguido.
A decisão de facto mostra-se fundamentada de forma coerente, e de cuja leitura é possível reconstituir a trajetória lógica nela seguida e que permitiu chegar às conclusões que dela constam, restando concluir que não existiu qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, e nem de qualquer princípio referentes à prova, concretamente o in dúbio pro reo com exceção doa cima exposto quanto ao tipo de ameaça.
Este princípio, cuja violação é invocada pelo recorrente, estabelece que a dúvida sobre um facto deve ser sempre resolvida a favor do arguido. Trata-se, aliás, de um princípio conexo com o da presunção de inocência do arguido, ou, inclusivamente, de uma outra vertente do mesmo.
No âmbito penal a imputação de uma alegada violação do princípio in dubio pro reo, cinge-se a um problema de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, constituindo um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe a orientação vinculativa de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável, ou seja, quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Deste modo, a alegação da violação desse princípio suscita a necessidade de, no recurso, ser demonstrada a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
Ora, como supraexplanado o tribunal não teve qualquer dúvida sobre os factos decisivos, mormente o da autoria e que determinaram a condenação do arguido.
Em suma, pode-se dizer que o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida.
Concluindo, nada há a apontar à decisão que foi tomada com base na prova testemunhal produzida, prova à qual o tribunal conferiu credibilidade, porquanto desta resulta diretamente, e com certeza, que o arguido praticou os factos de que vinha acusado, não existindo violação do princípio in dubio pro reo a não ser no ponto acima expresso e nem da livre apreciação da prova.
Daqui resulta que, provados os factos com apoio de um juízo de probabilidade que roça a certeza, não há que falar em violação do princípio in dubio pro reo pois que este apenas opera se houver dúvida face a um inultrapassável impasse probatório, com a exceção do acima referido a propósito do tipo de ameaças em causa.
A perspetiva que o tribunal apresentou da prova produzida em audiência de discussão e julgamento é sustentada em razões objetivas de motivação, que explicam e baseiam o percurso efetuado para essa valoração, não merecendo qualquer reparo, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 127º do C. Processo Penal), não se vislumbrando que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum.
O texto da decisão recorrida, examinado na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam num raciocínio lógico e coerente, explicitados os motivos por que foram valoradas positivamente determinadas provas e desconsideradas outras, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu à convicção do julgador e os meios de prova em que foi alicerçada essa convicção, também de acordo com as regras da experiência comum, através do privilégio da imediação e da oralidade, não havendo qualquer indício de que tenha sido erradamente valorada ou interpretada tal prova.

Importa, pois, verificar, face aos factos que ficaram provados, com a alteração do ponto 2, se foi, ou não, efetuada uma errada qualificação do tipo de crime.
O arguido encontra-se condenado da prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
O art.º 153º, n.º 1, do C. Penal preceitua: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Após a alteração da redação do artigo nº 153º do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15-3, para que se considere praticado o crime de ameaças, deixou de ser exigível que a ameaça cause efetiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, bastando que, de acordo com a experiência comum, seja adequada a provocar-lhe essas situações ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Portanto, tal crime deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera ação e de perigo.
Concretizando e concordando com a decisão a quo para o preenchimento do respetivo tipo não é necessário que, em concreto, as ameaças tenham provocado medo ou inquietação no ameaçado; basta que sejam adequadas a provocar-lhe aqueles estados de espírito. O critério para ajuizar da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objetivo e atender à situação concreta: – objetivo, no sentido de que a ameaça deve considerar-se adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a suscetibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa naquela situação, devendo relevar também as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada.
E o art. 155º, n.º 1, al. a) diz que “Quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos” o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º” (…).
Perante a factualidade provada constata-se que perante a expressão proferida “tu, um dia destes, entras aqui em casa e levas dois estoiros na cabeça”, dirigidas ao ofendido, no contexto em que o foram e em tom sério, conduzem-nos, de forma linear, à adequação da ameaça a provocar no ofendido medo ou inquietação. Mais diremos ainda que o arguido sabia e queria que a expressão por si proferida era adequada a provocar receio, pelo que se encontra, igualmente, preenchido o elemento subjetivo do tipo de ilícito.
Por outro lado e no que à agravação respeita, o mal ameaçado, ao contrário do decidido não foi a morte, porquanto a expressão “dois estoiros na cabeça”, para o homem médio, poderia ter dois sentidos devendo o arguido beneficiar do sentido que mais o favorece, o de bater e não o significado e alcance de dar dois tiros na cabeça do outro, o que nos afasta do crime de homicídio previsto art. 131º, do CP.

Assim, a conduta do arguido por este cometida apenas integra, adequadamente, a tipicidade do crime de ameaça simples, previsto pelo art. 153º, nº1, do C. Penal, punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

A decisão recorrida tendo por base uma diferente moldura (pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias), aplicou ao arguido uma pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de €400,00 (quatrocentos euros).
Com o enquadramento jurídico ora estabelecido para o comportamento do arguido, importa adequar a pena considerando a moldura penal abstrata agora aplicável.

Como se defende no Acórdão do STJ de 12-07-2018, em que é relator Conselheiro Raul Borges, Proc. nº 116/15.9JACBR.C1.S1, a intervenção do tribunal superior “em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da adequação e proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido, de forma uniforme e reiterada, que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada” (sublinhado nosso)
Como se sustentou no acórdão da RE de 22/04/2014, do proc. nº 291/13.7GEPTM.E1, relatado por Ana barata Brito, «A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.».
Importa verificar se, face à moldura penal abstrata do crime de ameaça simples (artigo 153º, do CP), a pena aplicada ao arguido se mostra proporcionada.
No que concerne à medida concreta das penas, deve atender-se ao disposto no artigo 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial.
Já a culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Em consonância com estes princípios, dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Assim, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto.
Dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível (prevenção geral), sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar.
Nos termos do artigo 71º, nº2, do CP, na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
As circunstâncias e critérios estabelecidos pelo artigo 71º do C. Penal têm por objetivo fornecer ao julgador módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios contribuem para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), e para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
No caso em apreço, deve ter-se em conta o grau de ilicitude da acuação do arguido cuja conduta encerra alguma gravidade porquanto, se trata de palavras proferidas por um irmão ” grau de ilicitude do facto é mediano, que surge indiciado pelo número e grau de violação dos interesses ofendidos, no caso, perturbação da liberdade do ameaçado, medo ou inquietação e a relação familiar que une arguido e ofendido – são irmãos;”.
Atuou com dolo direto e intenso.
Assumem relevo as exigências de prevenção geral dada a habitualidade da prática deste tipo de condutas.
Por outro lado, o arguido não confessou os factos, não mostrando por isso qualquer tipo de arrependimento.
Há que atender ainda às razões de prevenção especial: a favor do arguido depõe apenas a sua situação pessoal apurada nos autos, do qual resulta que se mostra sem antecedentes criminais.
Pelo exposto, tendo em conta o conjunto dos factos apurados e tudo ponderado, atentos os critérios do art. 71.º, do Cód. Penal, e a desqualificação do crime e a moldura penal abstrata aplicada ao crime de ameaças simples do art. 153º do CP, julgo proporcional e adequado reduzir a pena aplicada para 60 dias de multa à taxa fixada pelo tribunal a quo.


III. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e, em alterar o ponto 2º do factos provados eliminando-se os termos “ e vida “ e consequentemente o enquadramento jurídico dos factos provados nos termos sobreditos e:

a) condenar o arguido AA pela prática, como autor material de um crime de ameaça simples, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do C.P., na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz um total de € 300,00 (trezentos euros);
b) manter, no demais, a decisão recorrida.

Sem custas.

Notifique
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Sumário
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Porto, 21 de junho de 2023
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha