Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1205/19.6T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
NULIDADE DE SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO
PODERES COGNITIVOS DA RELAÇÃO
ASSÉDIO MORAL
DOLO EVENTUAL
Nº do Documento: RP20200518120519.6T8OAZ.P1
Data do Acordão: 05/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, MANTIDA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Procedendo à aplicação subsidiária das normas do art.º 379.º n.º1 al. a) e 374.º 2, do Código de Processo Penal, o que se justifica por identidade de razões e face à falta de previsão própria da Lei 107/2009 e do RGCO, dir-se-á que a sentença proferida sobre a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa é nula quando não contenha a fundamentação a que alude o art.º 39.º n.º4, da Lei 107/09, isto é, quer “no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção”.
II - A recorrente diz que a sentença é nula por falta de fundamentação, mas não concretiza se essa falta se verifica relativamente à decisão sobre a matéria de facto ou ao direito aplicado. Refere é que “tendo somente dado como assente o efeito, o elemento objectivo, e não tendo sido dado como adquirida matéria relativa à negligência e/ou ao dolo (…) a matéria de facto é suficiente para que se considere verificado o elemento objectivo, o efeito e preenchido a norma da infracção (do nº 2 do art. 29º do CT), mas não permite a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa”. Assim, em rigor, não está a por em causa a sentença por falta de fundamentação, mas antes por entender que o elenco factual provado não permite “a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa”, base que não é susceptível de ser enquadrada como “nulidade da sentença”, nos termos conjugados do disposto nos artigos 39.º4, da Lei 107/2009, e 379.º n.º1 al. a) e 374.º 2 do CPP.
III - Característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
IV - A insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, nos termos do art.º 410.º n.º 2 a), do CPP, há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
V - A contradição -art.º 410.º n.º 2 b), do CPP -releva da insanável oposição facto a facto, entre a fundamentação e a decisão ou na fundamentação, do facto de se afirmar uma realidade e na sentença outra de sentido contrário.
VI - Os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem na apreciação de recurso da decisão que recaiu sobre impugnação judicial de decisão administrativa, estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida “ ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
VII - A recorrente ignorou esse princípio, verificando-se que veio pôr em causa a convicção do Tribunal a quo na apreciação e fixação dos factos, de resto como a própria afirma na conclusão XXV, onde começa por dizer “Finalmente, no que se refere à matéria de facto, e à alegação de que (…)”. O mesmo sucede ainda nas conclusões XXXIII, XXXV e XXXVII, nas quais procura por em causa o juízo do tribunal a quo sobre a existência de dolo, designadamente, a valorização que é atribuída à conduta da recorrente com base em determinados factos, estribando-se nos meios de prova que invoca.
VIII - O art.º 29.º n.º 1, do CT, ao remeter de forma meramente exemplificativa para o comportamento “baseado em fator de discriminação”, abrange quer situações manifestadas num quadro de discriminação, quer todas aquelas outras em que há um “comportamento indesejado”, ou seja, um comportamento que o trabalhador não pretende tolerar, que tanto pode ser por acção como por omissão, dado que a lei não distingue.
IX - Esse comportamento de assédio pode resultar apenas do objectivo que está por detrás, ou seja, da intenção “de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador”, independentemente da concretização desse resultado, sendo suficiente que fique demonstrada a intenção quanto à perturbação ou constrangimento da pessoa, à afetação da sua dignidade ou à criação de certo tipo de ambiente; feita essa demonstração, o legislador prescinde da alegação e prova de que o agressor logrou o intento de perturbar ou constranger a vítima.
X - Mas por outro lado, aquela intenção nociva não é requisito imprescindível para que se reconheça a existência de assédio, pois ao dizer a lei “ou o efeito”, resulta ser bastante a demonstração das consequências de um comportamento que se traduzam em “perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador””.
XI - O conteúdo volitivo do dolo eventual deve ser detectado na passividade do agente de não querer desencadear os mecanismos volitivos que levassem a evitar, quer a acção principal intencionalmente querida, quer os resultados adjacentes que aquela acção provavelmente desencadearia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1205/19.6T8OAZ.P1
Recurso de Contra-ordenação laboral
4.ª SECÇÃO

I. RELATÓRIO
I.1 A sociedade B…, Lda, notificada da decisão administrativa da Autoridade Para as Condições do Trabalho, aplicando-lhe uma coima de 300 unidades de conta [€ 30.600] e a sanção acessória de publicidade, pela prática da contra ordenação muito grave por violação da previsão do artigo 29.º, n.º 1 e n.º 4, do Código do Trabalho, dela discordando deduziu impugnação judicial.
No essencial, impugnou a decisão administrativa alegando, em síntese, o seguinte:
- A imputação da infração à recorrente baseia-se apenas na circunstância desta não ter assumido qualquer posição, sendo que a recorrente não se revê em eventuais excessos de linguagem da trabalhadora C…, nada havendo que revele qualquer intencionalidade da parte da recorrente.
- A decisão administrativa não tem em conta que a trabalhadora teve dois incidentes em loja, do foro cardíaco, mas estes nada tiveram que ver com a conduta da trabalhadora C…, sendo antes episódios relacionados com doença de que a trabalhadora queixosa já padecia e que a recorrente desconhecia.
- A redução da gestão da trabalhadora para duas lojas foi tomada com base na sua doença, para evitar o sério risco de reincidência.
- As lojas que estavam adstritas à trabalhadora situavam-se na zona norte, para onde esta tinha concorrido quando se candidatou para trabalhar na recorrente.
- Não existe nenhum elemento que aponte no sentido de que o eventual assédio se tenha iniciado em maio/junho de 2018, pelo que não existe a intencionalidade que a queixosa pretende dar aos factos, nem uma sequência que tenha conduzido aos incidentes do foro cardíaco.
- Não houve qualquer intenção de esvaziar as funções da autora porque mantinha a loja de maior faturação do Norte, nem se pretendia levar a trabalhadora a aceitar a cessação do contrato de trabalho uma vez que esta pôs o lugar à disposição e a recorrente não aceitou.
- Algum excesso de linguagem que tenha existido por parte da trabalhadora C… tem que ser enquadrado nos problemas de saúde que esta vivia naquela altura, sendo que existem comunicações que revelam claramente que as relações entre elas eram de normalidade.
- A decisão administrativa fundou-se sobretudo no depoimento da trabalhadora queixosa desconsiderando que existia um processo judicial que esta escondeu e que tinha interesse na obtenção de uma decisão que lhe fosse favorável.
Concluiu, defendendo não ter cometido qualquer infração, no máximo, devendo ser condenada pela prática a título de negligência.
A impugnação judicial foi recebida, tendo sido designada data para realização do julgamento.
I.2 Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença concluída com o dispositivo seguinte:
- «Pelo exposto, julgo improcedente a presente impugnação e, em consequência, mantenho a decisão administrativa.
Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em três unidades de conta.
Deposite e notifique [após trânsito, dê conhecimento à ACT].
(…)».
I.3 Discordando desta decisão a arguida interpôs recurso, o qual foi admitido e fixados o efeito e modo de subida adequados. Apresentou as respectivas alegações, sintetizando-as nas conclusões seguintes:
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I.4 Notificado do requerimento do recurso e respectivas alegações, o Ministério Público apresentou contra-alegações, finalizadas com as conclusões seguintes:
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I.5 Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (art.º 416.º do CPP), acompanhando as contra-alegações do Ministério Público na 1.ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.
I.6 Foi cumprido o disposto no art.º 418.º do CPP, remetendo-se o processo aos vistos e o projecto de acórdão por via electrónica, após o que se determinou a sua inscrição para julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso (art.ºs 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do CPP), as questões que se perfilam para apreciação consistem em saber o seguinte:
i) Se a sentença enferma de nulidade “por força, designadamente, do disposto no art. 607º e nas als. b) e c), ambas, do nº 1 do art. 615º, todos do CPC” [conclusões XXIX e XXX];
ii) Caso assim não se entenda, se “deve, então, ser desatendida a condenação por dolo, mantendo-se a condenação a título negligente, sendo reduzida a coima para o mínimo legal de € 9.180,00 – ex vi arts. 17º/1 e 19º/1 a), ambos da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro” [conclusões XXXI e sgts].
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O tribunal a quo fixou a matéria de facto seguinte:
1. Factos Provados
a) A arguida é a empresa B…, Lda.” com o NIF ………, sede na Rua …, Lt. .., Armazém ., …, ….-… … e local de trabalho no D…, Av.ª …, ….-… São João da Madeira;
b) A arguida é legalmente representada por E…, NIF ……… e domicílio na Rua …, Lt. .., Armazém ., …, ….-… … e F…, NIF ……… e domicílio na Rua …, …, ….-… ….
c) A arguida, em 2017, apresentou um volume de negócios de € 18.425.243,00;
d) A arguida tem condenações em contraordenação grave ou muito grave nos 5 anos anteriores;
e) A arguida foi notificada pelo senhor inspetor do trabalho autuante ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de junho, que aprova o Estatuto da Inspeção-Geral do Trabalho para apresentação de alguns documentos, tendo-lhe sido concedido o prazo até ao dia 24 de outubro de 2018;
f) O objetivo da notificação referida no ponto anterior era verificar a prática de conduta de assédio moral de que estaria, alegadamente, a ser vítima, a trabalhadora G…;
g) Da análise dos documentos apresentados, e com interesse para o presente auto de notícia, foi possível verificar que a trabalhadora G… “entrou com esta categoria [Supervisor] e desta forma é constante do seu contrato o seguinte teor:
«…exercendo as funções de direção, controlo e coordenação dos chefes de equipa e restantes trabalhadores das lojas da 1.ª contraente, nomeadamente o controlo de vendas, a contratação de trabalhadores, definição das condições de trabalho, como horários de trabalho, férias, feriados e faltas, e controlo respetivo dos mesmos»”;
h) A empresa arguida apresentou código de boa conduta datado de 25 de setembro de 2017;
i) A empresa arguida apresentou o registo atualizado das sanções disciplinares;
j) Da análise deste registo, o senhor inspetor do trabalho entendeu que não decorria nenhuma informação complementar que pudesse corroborar ou desmentir a prática de atos de assédio;
k) Em consequência, o senhor inspetor do trabalho convocou a trabalhadora G… para comparecer neste Centro Local no dia 12 de novembro a fim de ser ouvida em auto de declarações;
l) No dia designado a trabalhadora compareceu tendo o seu depoimento sido recolhido em auto de declarações;
m) A trabalhadora G…, em junho de 2018, desenvolvia funções de supervisão num total de dez lojas em toda a zona Norte do país;
n) A trabalhadora G… tinha como a sua “Loja sede” a loja do “H…” – a Loja com maior faturação e maior responsabilidade no Norte do país;
o) No exercício das suas funções de supervisora, a trabalhadora G… visitava diariamente as Lojas, supervisionava todas as Lojas como um todo a nível de merchandising, financeiro, recursos humanos, horários, limpeza de loja, cumprimento das diretrizes da empresa, motivação e formação da equipa, vendas, atendimento a clientes, caixa, conferência de valores, análise da concorrência, identificação de perfis de vendedores para a empresa, realizava entrevistas a candidatos, angariava candidatos na concorrência com perfil para a empresa, rececionava mercadoria, promovia a exposição de novidades e merchandising comercial, realizava inventários parciais e anuais, realizava montras, organizava o armazém e procedia à vaporização;
p) A trabalhadora G… deu apoio à abertura de cinco Lojas após reformulação;
q) Antes de 22 de maio de 2018, a trabalhadora G… foi convocada para uma reunião em Lisboa com a superior hierárquica tendo sido confrontada com uma crítica feita pela coordenadora do Porto, I…, que alegava ter sido humilhada pela G… na montagem da Loja do “I…” tendo afirmado ter sido deselegante, utilizando tom de voz elevado, atirava coisas para o chão, desautorizou a colega e tomou controlo da equipa de obras, tendo-se a trabalhadora manifestado ofendida;
r) A trabalhadora G… revelou sentiu-se humilhada, ao ponto de ter colocado o seu lugar à disposição;
s) A sua superiora solicitou-lhe que reconsiderasse, tendo a trabalhadora acedido;
t) No dia 24 de julho de 2018, a superior hierárquica visitou sozinha as Lojas do Norte do país, contrariando o que havia sido previamente combinado com a trabalhadora G…;
u) A determinada altura a superior hierárquica atribuiu as Lojas que se encontravam sob supervisão da trabalhadora G… à trabalhadora K…, com exceção do “H…”, do “L…” e “D…”;
v) Na sequência de uma taquicardia sofrida pela trabalhadora G… no dia 2 de agosto (episódio de urgência n.º ……… e médico, Dr. M…), a superior hierárquica, após contato pelo marido da trabalhadora para a superior assumir as suas funções por ela estar no hospital, enviou um e-mail às Lojas a dar indicação de não contactar a trabalhadora G… durante 10 dias. No dia seguinte, às 8h da manhã, a superior hierárquica reforçou o e-mail remetido no dia anterior.
w) No dia 15 de agosto, na sequência de uma troca de correio eletrónico a superior hierárquica C… dirigiu-se à trabalhadora G… utilizando expressões como: “parece que ultimamente não entende bem nenhuma diretriz da empresa. Portanto não adiantará de nada continuar a dar-lhe explicações” e “considero que não está nas melhores condições para inputs ou decisões quer nas lojas quer nas equipas de gestão”;
x) Nos dias 20 e 21 de agosto a superior hierárquica continuou a remeter mensagens como, entre outras: “digo-lhe honestamente que estou envergonhada com os seus resultados”; “um trabalho desastroso que coloca toda a imagem da supervisão e coordenação em causa perante a direção desta empresa”; “em vez de trabalhar em prol da empresa para si tanto faz” e “continue a fazer o que tem feito porque realmente é bonito de profissional exemplar”;
y) No primeiro dia após baixa que se tinha iniciado no dia 22 de agosto, a trabalhadora G… foi informada pela superior hierárquica, C…, de que apenas se podia deslocar para o “D…”;
z) Simultaneamente a superior hierárquica ordenou à trabalhadora G… para fazer cessar os contratos de trabalho de colegas que eram da confiança da G…, designadamente, o da N… (O…), P… (D…) e Q…;
aa) Quanto à Q…, a trabalhadora I…, coordenadora do Porto, deslocou-se ao “H…” no último dia do seu período experimental e cessou-lhe o contrato de trabalho;
bb) A trabalhadora G… sofreu nova taquicardia tendo sido observada no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, E.P.E. e médica Dr.ª S…;
cc) No dia 5 de setembro, foi realizada uma reunião com todas as gerentes das Lojas sob supervisão da trabalhadora G…, sem que esta fosse convocada;
dd) Na reunião foi apresentada a reestruturação das Lojas e comunicaram à trabalhadora T…, gerente de Vila Real, que a supervisão das Lojas seria da competência da trabalhadora I…, retirando essas funções à G…;
ee) No dia 13 de setembro a trabalhadora G… deu conhecimento por escrito à empresa de que se encontrava a ser vítima de assédio;
ff) No dia 24 de setembro a empresa apresentou resposta, não enquadrando a situação reportada anteriormente pela trabalhadora como assédio;
gg) No dia 27 de setembro de 2018, na sequência da instrução recebida para se apresentar na loja de Vila Real, a trabalhadora G… manifestou, por escrito, à empresa arguida que teria sido objeto de uma “transferência ilegal do local de trabalho”;
hh) No dia 1 de outubro a empresa remeteu resposta via eletrónica informando a trabalhadora G… de que teria de cumprir o determinado sob pena de incorrer numa “falta disciplinar”;
ii) No dia 21 de setembro a trabalhadora G… informou a empresa de que, tendo-lhe sido atribuída a coordenação da Loja de Vila Real, a respetiva gerente ainda desconhecia tal facto;
jj) No dia 17 de outubro foi apresentada a nova gerente do “D…”, dia em que a superior hierárquica, C…, informou a trabalhadora G… de que teria de se apresentar todos os dias em Vila Real;
kk) A partir daquela data a trabalhadora G… passou a desenvolver todas as suas funções apenas em Vila Real, tendo-lhe sido retirada pela recorrente a supervisão de todas as Lojas, passando a estar limitada às funções de caixeira, atendendo cliente na loja, e tendo a competência de admitir/demitir passado a ser exercida pela superior hierárquica C…;
ll) No dia 23 de outubro de 2018 a empresa remeteu à trabalhadora G… duas notas de culpa;
mm) A trabalhadora G… respondeu às notas de culpa no dia 2 de novembro de 2018;
nn) A trabalhadora G… reportou a situação de alegado assédio à empresa arguida, não tendo esta assumido qualquer posição;
oo) A trabalhadora G… foi admitida ao serviço da arguida por contrato de trabalho sem termo certo, celebrado a 04 de maio de 2015, para o exercício de funções de direção, controlo e coordenação dos chefes de equipa e restantes trabalhadores das lojas da arguida nomeadamente o controlo de vendas, a contratação de trabalhadores, definição das condições de trabalho, como horários de trabalho, férias, feriados e falta e controlo respetivo dos mesmos;
pp) A trabalhadora G… esteve de “baixa médica” de 03 a 09 de agosto de 2018; de 22 de agosto a 02 de setembro de 2018 e de 30 de outubro a 25 de novembro de 2018;
qq) O contrato de trabalho celebrado entre a empresa arguida e a trabalhadora G… cessou por acordo com fundamento em extinção do posto de trabalho, celebrado e com produção de efeitos a 27/11/2018.
rr) Com a sua conduta a arguida, através da superior hierárquica C… e de outros superiores hierárquicos, procurou retirar progressivamente o trabalho de supervisão à trabalhadora G… o que culminou no exercício por esta de funções equivalentes a caixeira, retirando-lhe, entre agosto e outubro de 2018, em vários momentos, as funções integradas na categoria de supervisora de lojas, o que produziu o efeito de constranger a dignidade da trabalhadora.
2. Factos não provados:
a) A partir de maio/junho de 2018 a trabalhadora G… começou a sentir-se hostilizada pela sua superiora hierárquica, C…;
b) A propósito de uma questão laboral que a trabalhadora classificou, de menor (decorrente da seleção de uma trabalhadora para a Loja do “D…”) dirigiu-se-lhe num tom que a trabalhadora considerou menos correto, despropositado e completamente sem sentido;
c) Após a abertura das últimas lojas previstas, a postura da sua superiora voltou a alterar-se;
d) Após a visita às Lojas e questionada pela trabalhadora G…, informou-a de que “estava tudo mal”;
e) A partir de 2 de agosto de 2018 a trabalhadora G… ficou incontactável.
f) A trabalhadora G… foi coartada pela sua superiora de todo o contacto com todas as suas Lojas.
g) A redução da gestão da trabalhadora para duas lojas foi tomada com base na sua doença, para evitar o sério risco de reincidência.
II.2 NULIDADE da SENTENÇA
Nas conclusões XXIX e XXX, a recorrente alega, no essencial, que “tendo somente dado como assente o efeito, o elemento objectivo, e não tendo sido dado como adquirida matéria relativa à negligência e/ou ao dolo, é (..) vedado condenar a recorrente, respectivamente, por conduta negligente ou dolo eventual (…) a matéria de facto é suficiente para que se considere verificado o elemento objectivo, o efeito e preenchido a norma da infracção (do nº 2 do art. 29º do CT), mas não permite a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa (…) fazendo-o, é (..) nula a Sentença por força, designadamente, do disposto no art. 607º e nas als. b) e c), ambas, do nº 1 do art. 615º, todos do CPC”.
As causas de nulidade da sentença em processo cível, constam previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, entre elas contando-se a falta de fundamentação e a oposição entre os fundamentos e a decisão ou ambiguidade ou obscuridade que a tornem ininteligível, assim resultando do disposto nas alíneas b) e c) – normas invocadas pelo recorrente - estabelecendo o seguinte:
[b)] “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”;
[al. c)] “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
No caso, porém, estamos perante um processo de contra-ordenação laboral, no plano do direito adjetivo sujeito ao regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. E, por determinação do art.º 60.º, subsidiariamente, desde que o contrário não resulte daquela lei, “(..), com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra–ordenações”, isto é, no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro. Aplicam-se, ainda, também subsidiariamente, os preceitos reguladores do processo penal, em tudo o que não se mostre regulado em qualquer um daqueles diplomas (art.º 41.º, do RGCO).
Por conseguinte, as arguidas nulidades da sentença terão que ser apreciadas à luz do regime adjectivo próprio, que não o do Código do Processo Civil, para tanto tomando-se como ponto de partida os fundamentos e o enquadramento legal correspondente no direito processual aplicável àquele que foi feito pela recorrente.
Assim, em primeiro lugar, ao invocar a nulidade da sentença invocando a previsão do art.º 615.º n.º1, al b) do CPC, o recorrente quis imputar à sentença o vício de falta de fundamentação.
Importa começar por referir que nem a lei 107/2009, de 14 de Setembro, nem o RGCO, contém norma onde se preveja o regime de nulidades da sentença proferida na apreciação de impugnação judicial da decisão administrativa.
No que concerne ao conteúdo da sentença, o art.º 39.º da Lei 107/09, com a epígrafe “Decisão judicial”, estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
-«[4] O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa.
Recorrendo agora ao Código Processo Penal, dispõe o art.º 375.º, no seu n.º1, que “[A] sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada (..)”.
Mais adiante, o art.º 379.º, com a epígrafe “Nulidade da sentença”, estabelece, na parte que aqui interessa, nomeadamente no n.º1 e al. a), que é nula a sentença “Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º (..)”.
Por seu turno, o art.º 374.º naqueles preceitos dispõe o seguinte:
[2] - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
[3] A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) (..)
b) A decisão condenatória ou absolutória;
Procedendo à conjugação destes normativos, com o propósito de se proceder à aplicação subsidiária das normas do art.º 379.º n.º1 al. a) e 374.º 2, o que se justifica por identidade de razões e face à falta de previsão própria, dir-se-á que a sentença proferida sobre a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa é nula quando não contenha a fundamentação a que alude o art.º 39.º n.º4, da Lei 107/09, isto é, quer “no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção”.
Note-se, porém, que a exigência de fundamentação da sentença imposta pelo n.º4, do art.º 39.º é menos intensa, posto que a própria norma admite que possa” basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa”.
Revertendo ao caso, a recorrente diz que a sentença é nula por falta de fundamentação, mas não concretiza se essa falta se verifica relativamente à decisão sobre a matéria de facto ou ao direito aplicado. Refere é que “tendo somente dado como assente o efeito, o elemento objectivo, e não tendo sido dado como adquirida matéria relativa à negligência e/ou ao dolo (…) a matéria de facto é suficiente para que se considere verificado o elemento objectivo, o efeito e preenchido a norma da infracção (do nº 2 do art. 29º do CT), mas não permite a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa”.
Assim, em rigor, a recorrente não está a por em causa a sentença por falta de fundamentação, mas antes por entender que o elenco factual provado não permite “a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa”.
Portanto, a questão que coloca, atenta a base em que se sustenta, não é susceptível de ser enquadrada como “nulidade da sentença”, nos termos conjugados do disposto nos artigos 39.º4, da Lei 107/2009, e 379.º n.º1 al. a) e 374.º 2 do CPP.
O que a recorrente quer significar é, na verdade, que a matéria de facto não é suficiente para sustentar a decisão, ficando assim em aberto duas possibilidades, nomeadamente, a eventual insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a indagar à luz do disposto no artigo 410.º n.º2, al. a), do Código de Processo Penal, ou o erro de julgamento na aplicação do direito aos factos.
Mas antes de procedermos a essa indagação, cabe ter pressente que a recorrente vem também invocar a nulidade da sentença reportando-se ao n.º1, al. c), do art.º 615.º do CPC, significando isso que entende verificar-se o vício de contradição entre os fundamentos e a decisão. Socorrendo-nos do ensinamento do Professor Alberto dos Reis, nesse caso, «o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» [[Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Reimpressão, 1984,p. 141].
Ora, devidamente enquadrada à luz do regime adjectivo aplicável, esse fundamento leva-nos de novo ao artigo 410.º do CPP, agora à alínea b), do n.º2. Não se está perante uma nulidade da sentença, mas antes perante um vício intrínseco susceptível de ser usado como fundamento do recurso.
Assim, para evitar a repetição de parte da argumentação na apreciação das duas questões, começaremos por deixar as considerações gerais sobre esses normativos do artigo 410.º do CPP, assinalando-se, desde já, justificar-se o recurso subsidiário a estes normativos do direito processual penal, em razão da Lei 100/97, assim como o RGCO, não conterem previsões normativas que regulem esses tipos de vício da decisão judicial, no caso, que aprecia a impugnação judicial da decisão administrativa.
Dispõe o artigo 410.º do CPP no n.º 2 e alíneas a) e b), o seguinte:
2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
Releva começar por assinalar que nos termos do artigo 51º, nº 1 da Lei nº 107/2009, se o contrário não resultar da mencionada lei, em matéria contraordenacional laboral, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito.
Por outro lado, importa também relembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 19-10-1995 [Proc.º 046580, Conselheiro Sá Nogueira, disponível em www.dgsi.pt] afirmou o seguinte: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
É o sentido dessa jurisprudência, que acolhemos, que também explica o percurso que vimos seguindo, pese embora não só o incorrecto enquadramento jurídico da recorrente, mas também a exiguidade da sua fundamentação para sustentar a verificação dos vícios que imputa à sentença recorrida.
No acórdão desta Relação e Secção, de 18 de Dezembro de 2018 [proc.º nº 4881/16.8T8MTS.P2, Desembargador Nélson Fernandes – aqui adjunto - disponível em www.dgsi.pt] - citado pela recorrente - a propósito dos vícios da sentença previstos no n.º2, do art.º 410.º, recorrendo à jurisprudência do STJ, faz-se a resenha que nos permitimos transcrever:
«(..) importa desde logo ter presente, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2016 , por apelo ao que se disse no Acórdão desse mesmo Tribunal de 8 de Novembro de 2006 , que os aludidos vícios elencados no citado n.º 2 do artigo 410.º, “pertinem à matéria de facto; são anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.(...) Na verdade, os factos relevantes para a decisão da causa são necessariamente factos que importam consequências jurídicas, e por isso, em tal âmbito, a matéria de facto é sempre juridicamente relevante.”
Discorrendo sobre a matéria, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 (transcrição):
“No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.
Nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só considerada ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
A possibilidade de introdução do Tribunal ad quem no domínio da facticidade sempre será parcial, restrita, limitada e indirecta, consistindo numa fórmula mitigada de reapreciação da matéria de facto, para utilizar a expressão contida na alínea a) do n.º 15 da aludida Exposição de Motivos; tratando-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna (e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida), de vícios emergentes da decisão documentados no texto, a sua indagação não pode ir além do suporte textual, sem possibilidade de recurso a elementos estranhos àquela peça escrita.
Daí que, conforme jurisprudência uniforme e já remota deste Supremo Tribunal, se entenda que os vícios têm de resultar da própria decisão recorrida, encarada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, analisada na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo - acórdãos do STJ de 29-11-1989, processo n.º 40255/89-3ª; de 19-12-1990, processo n.º 41327/90-3ª, in BMJ n.º 402, pág. 232; de 31-05-1991, in BMJ n.º 407, pág. 77; de 03-07-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 4, pág. 12; de 16-10-1991, in BMJ n.º 410, pág. 10; de 13-02-1992, in BMJ n.º 414, pág. 389; de 22-09-1993, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 210; de 09-11-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 245; de 20-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 335 (não é inconstitucional e não viola o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a norma do n.º 2 do artigo 410º CPP, ao exigir que os vícios tenham de resultar do texto da decisão recorrida); de 18-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 283; de 25-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 304; de 17-10-1996, BMJ n.º 460, pág. 399; de 15-10-1997, processo n.º 582/97; de 19-11-1997, processo n.º 873/97-3ª; de 20-11-1997, processo n.º 1242/97-3ª; de 11-03-1998, BMJ n.º 475, pág. 480; de 28-10-1998 e de 29-10-1998, in BMJ, n.º 480, págs. 83 e 292.
E mais recentemente: de 15-02-2007, processo n.º 3174/06 - 5.ª; de 14-03-2007, processo n.º 617/07 - 3.ª; de 17-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07 - 3.ª; de 11-07-2007, processo n.º 1416/07 - 3.ª, de 27-07-2007, processo n.º 2057/07-3.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3338/07-3ª; de 17-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 206; de 05-03-2008, processo n.º 3259/07-3.ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3ª; de 19-06-2008, processo n.º 122/08-5ª (por conseguinte, não será lícito recorrer à prova produzida para se surpreender qualquer dos referidos vícios, exactamente porque não se pode confundir aqueles, enquanto afectam, de forma patente, a estruturação fáctica interna, em que há-de ter apoio a decisão de direito, com erro de julgamento); de 16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª; de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 14-05-2009, processo n.º 1182/06.3PAALM.S1-3.ª (Veja-se ainda o acórdão n.º 573/98, de 13-10-1998, publicado no DR – II Série, n.º 263, de 13-11-1998).
Como se extrai dos acórdãos do STJ de 11-12-1996, in BMJ n.º 462, pág. 207 e de 12-11-1997, processo n.º 32507, característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento, quando insanáveis no tribunal de recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Na análise a efectuar para detecção do vício há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP.
Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada, nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Para avaliar se a convicção formada pelo tribunal padece dos aludidos vícios há, que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que o conduziram a determinadas conclusões.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”
[..]».
Entrando na apreciação, começaremos por destacar, como sublinha o Supremo tribunal de Justiça, que como “característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento, quando insanáveis no tribunal de recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum”.
O vício a que alude a indicada alínea a) – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - como elucidam Simas Santos e Leal Henriques [Código de Processo Penal anotado, II volume, 2. Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág.379] ocorre “(..) quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final . Dito de outro modo, tal vício ocorre quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por decorrência de lacuna no apuramento da matéria de facto que seria necessária para uma decisão de direito. Assim, como o vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão.”
Quanto ao vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – contradição insanável –, aqueles mesmos autores referem [ibidem]que “[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”
No mesmo sentido pronuncia-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como o ilustram os dois extractos do mesmo aresto, que seguem, retirados do Acórdão de 8-01-2014 [Proc.º 7/10.0TELSB.L1.S1, Conselheiro ARMINDO MONTEIRO]:
i) “A insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, vício de confecção da matéria de facto, nos termos do art.º 410.º n.º 2 a), do CPP, há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, aquilo que é usual acontecer e que funcionam como critérios de orientação da decisão, probabilidades forte de acontecimento, critérios generalizantes de inferência lógica, e que não se confunde com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada.
O vício invocado é impeditivo de bem se decidir, tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou-se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais á decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário, anomalia sem verificação”.
ii) E a contradição -art.º 410.º n.º 2 b), do CPP -releva da insanável oposição facto a facto, entre a fundamentação e a decisão ou na fundamentação, do facto de se afirmar uma realidade e na sentença outra de sentido contrário, posto que insuperável e de relevo para o «thema decidendum», entre juízos aí expressos, a lógica de raciocínios estruturantes e não com a acusação, já examinada e esgotada em termos de conhecimento, relegada para montante.
Pois bem, no caso, devidamente compulsada a decisão recorrida, não vislumbramos que ocorra quer eventual insuficiência da matéria de facto provada para a decisão quer a alegada contradição entre a fundamentação e a decisão, ou seja, não ocorre qualquer um dos vícios da decisão a que nos vimos referindo. Acresce, como já se percebeu, mas também se retira da leitura das conclusões, que a recorrente não trouxe argumentos dirigidos a sustentar a eventual ocorrência destes vícios.
Com o devido respeito, para além do deficiente enquadramento na lei adjectiva aplicável, a recorrente incorre no erro de confundir o eventual erro de julgamento, por inexistência de factos que sustentem a decisão ou má aplicação do direito aos factos, com as arguidas nulidades da sentença.
Concluindo, improcedem as arguidas nulidades da sentença.
II.3 MOTIVAÇÃO de DIREITO
No plano do direito substantivo, à questão em apreço aplica-se o Código do Trabalho, designadamente o art.º 29.º.
No que concerne ao direito adjectivo, repetindo-nos, aplica-se o regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. E, por determinação do art.º 60.º, subsidiariamente, desde que o contrário não resulte daquela lei, “(..), com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra –ordenações”, isto é, no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
II.3.1 O art.º 51.º da Lei n.º 107/2009, a que já nos referimos, estabelece o seguinte:
- 1. Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
1 - Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 - A decisão do recurso pode:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
Consagra-se, pois, o regime já afirmado no Regime Geral das Contra-Ordenações e Coima [Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, actualizado pelo Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro], nomeadamente no artigo 75º, onde se lê:
1- Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
2 - A decisão do recurso poderá:
a) Alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, salvo o disposto no artigo 72.º-A;
b) Anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido.
Significa isto, como é consabido, que os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem estão, em regra, restringidos à matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido “sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida “ ou de anulação e devolução do processo ao tribunal recorrido, conforme preceituado nas alíneas a) e b), do n.º2, do art.º 51.º, bem como do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
E, como também já se referiu, sobre o dever de conhecimento oficioso, afirma-se no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-10-1995 [Proc.º 046580, Conselheiro Sá Nogueira, disponível em www.dgsi.pt] o seguinte: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
Em suma, como regra, em processo contra-ordenacional o recurso para a Relação sobre a decisão da 1.ª instância, é restrito à matéria de direito.
Acontece que a recorrente ignorou esse princípio, verificando-se que veio pôr em causa a convicção do Tribunal a quo na apreciação e fixação dos factos, de resto como a própria afirma na conclusão XXV, onde começa por dizer “Finalmente, no que se refere à matéria de facto, e à alegação de que (…)”.
Com efeito, percorrendo as conclusões I a XXV, constata-se que a recorrente suscita questões sobre a convicção formada pelo tribunal a quo, para tanto invocando diversos meios de prova, como sejam, documentos juntos aos autos (e-mails, relatórios de avaliação, etc), declarações prestadas na fase administrativa, bem assim como outros documentos da providência cautelar intentada pela trabalhadora contra si.
O mesmo sucede ainda nas conclusões XXXIII, XXXV e XXXVII, nas quais a recorrente procura por em causa o juízo do tribunal a quo sobre a existência de dolo, designadamente, a valorização que é atribuída à conduta da recorrente com base em determinados factos, estribando-se nos meios de prova que invoca, para os desvalorizar e contrapor uma leitura diferente, nessa construção indo para além dos factos provados e extravasando o seu conteúdo objectivo.
Por conseguinte, quanto a estas conclusões não se pronunciará esta Relação, ou dito de outro modo, rejeita-se a sua apreciação, por violação do disposto no art.º 51.º n.º1, da Lei 107/2009.
II.3.2 Como referimos acima, a recorrente confundiu o eventual erro de julgamento, por inexistência de factos que sustentem a decisão ou má aplicação do direito aos factos, com a arguida nulidade da sentença por falta de fundamentação ou contradição entre os fundamentos e a decisão.
Recolocando a questão na sua sede própria de apreciação, defende a recorrente, no essencial, que o tribunal a quo errou o julgamento ao condená-la, sustentando que “a matéria de facto é suficiente para que se considere verificado o elemento objectivo, o efeito e preenchido a norma da infracção (do nº 2 do art. 29º do CT), mas não permite a decisão sobre se tal conduta é negligente; muito menos, dolosa (a que título seja).
Defende, ainda, que “[A]assim não se entendendo, (..) propõe (..) que a infracção somente será imputável a título de negligência e nunca de dolo eventual”, nesse caso “sendo reduzida a coima para o mínimo legal de € 9.180,00 – ex vi arts. 17º/1 e 19º/1 a), ambos da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro”.
Comecemos por atentar na fundamentação da sentença recorrida, que se inicia com a delimitação da questão que cumpria apreciar, referindo o Tribunal a quo consistir em “saber se a recorrente praticou factos que integrem uma contraordenação muito grave prevista no artigo 29.º, n.º 1 e n.º 4, do Código do Trabalho, e se essa prática se pode imputar à recorrente a título de dolo”.
Seguem-se considerações com o propósito de enquadrar juridicamente a questão, isto é, debruçando-se sobre aqueles normativos, onde se afirma, aderindo à jurisprudência dos tribunais superiores, máxime do Supremo Tribunal de Justiça, no essencial o seguinte:
(..) podemos afirmar que “não é toda e qualquer violação dos deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por verificado”, sendo que “mesmo que se possa retirar do artigo 29º do Código do Trabalho que o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos pela norma – respeito pela integridade psíquica e moral do trabalhador» [acórdão do STJ de 9 de Maio de 2018 – Processo n.º532/11.5TTSTRE.E1.S1], sendo que já anteriormente salientava que “no assédio não tem de estar presente o ‘objetivo’ de afetar a vítima, bastando que este resultado seja ‘efeito’ do comportamento adotado pelo ‘assediante’” mas “apesar de o legislador ter (deste modo) prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento, o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem em regra associado um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável” [acórdão do STJ de 21 deAbril de 2016 – Processo n.º 299/14.5T8VLG.P1.S1].
(..)configura-se uma situação de assédio moral ou mobbing quando há aspetos na conduta do empregador para com o trabalhador (através do respetivo superior hierárquico), que apesar de isoladamente analisados não poderem ser considerados ilícitos, quando globalmente considerados, no seu conjunto, dado o seu prolongamento no tempo (ao longo de vários anos), são aptos a criar no trabalhador um desconforto e mal-estar no trabalho que ferem a respetiva dignidade profissional e integridade moral e psíquica» mas «não se tendo apurado materialidade suficiente para se poder concluir por uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre o trabalhador, que visasse atingir os valores da dignidade profissional e da integridade física e psíquica, não se pode considerar integrada a figura do assédio moral” [acórdão do STJ de 29 de Março de 2012 – Processo n.º 429/09.9TTLSB.L1.S1] pois o “assédio moral do empregador, estando para além de situações de mero mau relacionamento, implica a verificação de comportamentos real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador, passíveis de exercer pressão moral sobre este e tendo em regra associado um objetivo final ilícito ou pelo menos eticamente reprovável» [acórdão da Relação do Porto de 5 de Janeiro de 2017 – Processo n.º10796/15.0T8VNG.P1]».
Em seguida o Tribunal a quo passa a aplicar o direito enunciado aos factos provados, começando logo por deixar uma primeira observação, que depois justifica, nomeadamente, que “está provado um conjunto de factos aos quais não podemos atribuir propriamente, só por si, um carácter assediante”.
Não relevando essas considerações para a apreciação do recurso, saltamos na fundamentação da sentença, para a retomar na parte para aqui relevante, a que é objecto de recurso, nomeadamente, onde se lê, no essencial, o seguinte:
-«No caso concreto, não atribuindo muita relevância à factualidade que não está relacionada com a retirada de lojas da supervisão da trabalhadora pois entendemos que se trata de um conjunto de situações sem caráter assediante, consideramos que o que realmente assume um caráter ilícito é a colocação da trabalhadora numa só loja, sem acesso a outras lojas ou mesmo sem outras lojas sob a sua supervisão e que vem na sequência de uma ponderação da sua superior hierárquica no sentido de reduzir a sua atividade de supervisão, […] essa situação, que até podia ser entendida, é exagerada com a colocação da trabalhadora numa situação em que está só numa loja, sem efetivar a supervisão de um conjunto de lojas, sendo-lhe retirada a supervisão de todas as lojas até que passou, praticamente, a desempenhar funções de caixeira. Assim, um processo que se inicia numa decisão de negócios que não se podia afirmar como ilícita acaba por redundar, em nosso entendimento, pelo menos, numa situação de mobilidade funcional ilícita [artigo 120.º, do Código do Trabalho] ou mesmo uma situação de mudança para categoria inferior [artigo 119.º, do Código do Trabalho], consoante a situação se pretendesse temporária ou definitiva, pois como entretanto cessou o contrato de trabalho acaba por não se saber qual a amplitude temporal da situação. Sucede que esta situação de redução da posição da trabalhadora na organização é necessariamente apta a, pelo menos, produzir o efeito de constranger a dignidade de um trabalhador pois, de repente, a trabalhadora G…, que anteriormente supervisionava as lojas, acaba colocada a fazer trabalho semelhante ao de caixeira, abaixo das gerentes que controlava, deixando de ter competências de escolha e admissão de pessoal, sendo colocada perante decisões tomadas na gestão das lojas que nem sequer acompanhava e que a apanhavam de surpresa e que se arrastou por um período de quase três meses, não tendo tido uma duração superior porque a trabalhadora acabou por ficar de baixa médica em 30 de outubro de 2018 até cessar o seu contrato de trabalho com efeitos reportados a 11 de novembro de 2018. Em suma, a situação que começou como uma decisão de negócios em que se visava substituir parcialmente a atividade de supervisão da trabalhador na empresa, eventualmente motivada pela necessidade de encontrar uma solução que permitisse à empresa conseguir alcançar resultados de vendas que, eventualmente, não estavam a ser alcançados com a supervisão da trabalhadora G…, acaba por ser exacerbado até um ponto que consideramos ilícito pois não se ficou por aquela primeira forma em que a trabalhadora supervisionava três lojas, tendo a trabalhadora sido reduzida a um local de trabalho, sem fazer uma efetiva supervisão, com a retirada de outras lojas, até estar colocada numa situação de desempenho de funções semelhantes às de caixeira com violação da sua categoria profissional e, esta situação, em nosso entendimento, é apta a, pelo menos, produzir o efeito de constranger a trabalhadora na sua dignidade profissional pois é colocada numa situação em que de chefia passou a desempenhar funções numa categoria inferior a alguns dos trabalhadores que chefiava. Logo, concluímos que os factos objetivos integram o tipo objetivo de assédio moral no trabalho previsto no artigo 29.º, n.º 1, do Código do Trabalho. É certo que a jurisprudência que acima invocamos conclui que nas situações de assédio está presente um objetivo final ilícito ou eticamente reprovável e, no presente caso, não é absolutamente evidente a sua presença mas a verdade é que se é assim em regra, consideramos que a norma basta-se com o efeito de constrangimento relevante da dignidade do trabalhador e consideramos que a retirada progressiva de funções à trabalhadora, culminando, numa fase em que já existe um conflito latente, numa modificação substancial da sua categoria profissional, traduzido na colocação a fazer funções que são feitas por subordinados, tem pelo menos o efeito de constranger a dignidade da trabalhadora.
A questão que se coloca é a de saber se o tipo deve ser imputado à recorrente a título de dolo ou negligência. Tem sido intensamente discutida a questão de saber se o assédio moral no trabalho exige uma intenção volitiva que apenas é preenchida pelo dolo ou se pode ser satisfeita com comportamentos negligentes. No primeiro sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 7 de março de 2013 – Processo n.º 236/11.9TTCTB.C2 – que considera que “só pode ter-se por registada uma situação de mobbing naqueles casos em que subjacente ao comportamento indesejado do empregador ou dos superiores hierárquicos esteja a pretensão de forçar o trabalhador a desistir do seu emprego» e, por isso, «deve entender-se que a contraordenação correspondente à prática do mobbing tem necessariamente de ser cometida sob a forma dolosa em qualquer das modalidades em que o dolo pode registar-se: directo, necessário ou eventual». Por outro lado, a segunda posição é defendida no acórdão da Relação do Porto de 18 de dezembro de 2018 – Processo n.º 4881/16.8T8MTS.P2 – que considera que “conhecendo-se a divergência doutrinária e mesmo jurisprudência existente a propósito da dimensão volitiva/final do conceito de assédio em geral, não possamos porém, no que se refere a intencionalidade, esquecer que o elemento subjetivo nas contraordenações materializa algo que está para além dos elementos objetivos que integram a conduta sancionável, não podendo pois confundir-se a duplicidade de planos em que a questão do assédio pode assim ser colocada. Havendo que reconhecer a necessidade de uma interpretação prudente do disposto no artigo 29.º do CT/2009, face aos critérios enunciados no artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil, teremos de concluir que, para efeitos da prática da contraordenação a que naquele se alude a lei não estipula que no ‘assédio’ tenha de estar presente o ‘objetivo’ de afetar a vítima, bastando que este resultado seja efeito do comportamento adotado pelo ‘assediante’, não resultando assim desse normativo, por um lado, qualquer referência a que se exija necessariamente o dolo (em qualquer das suas modalidades), sendo que, por outro, o legislador, tal como resulta expressamente do artigo 550.º estabeleceu que nas contraordenações laborais a negligência ‘é sempre punível’. Assim, se na verificação dos requisitos do ‘assédio’ em geral se poderá defender a exigência da referida intencionalidade do agente, essa intencionalidade, porém, consubstanciar-se-á então como elemento específico desse conceito, mas já não, por ser coisa diversa, como pressuposto da verificação do elemento subjetivo da contraordenação laboral, pois que quanto a esta, como se viu, por previsão expressa de norma legal, é sempre punível”.
Independentemente desta divergência sempre se terá que dizer que, no caso, existe pelo menos dolo eventual pois se num primeiro momento ainda aceitamos que a redução do número de lojas sob a supervisão da trabalhadora era enquadrável num objetivo negocial e não podia ser integradora de uma situação de assédio pois a trabalhadora continuava supervisora e tinha apenas menos uma loja do que aquilo que tinha sido a norma durante o contrato de trabalho [entre 2015 e finais de 2017], enquadrável numa situação de insatisfação perante os resultados que as lojas supervisionadas pela trabalhadora em causa apresentavam, a verdade é que depois a recorrente, através da superior hierárquica, vai reduzindo ainda mais o âmbito da atividade de supervisão da trabalhadora, colocando-a apenas numa das lojas e mudando-a para outra onde, afinal, exercia funções de caixeira, já depois da trabalhadora ter manifestado à recorrente, em cumprimento do regulamento de boas práticas da empresa, que se considerava vítima de uma situação de assédio [o que sucedeu na primeira metade de setembro de 2018], sendo que, apesar disso, a recorrente não só manteve a redução da atividade de supervisão de lojas da trabalhadora como chegou mesmo a intensificar essa redução, colocando-a numa loja a exercer funções equivalentes às funções de caixeira e ameaçando com a instauração de procedimento disciplinar caso não se apresentasse na loja em causa, sendo que a situação ainda se prolongou até finais de outubro de 2018, tendo a trabalhadora acabado numa situação de baixa médica. Daqui resulta que, embora admitamos que a situação de redução da atividade de supervisão da trabalhadora se tenha iniciado sem caráter assediante, consideramos que a partir do momento em que a trabalhadora comunica que considera que está a ser vítima de uma situação de assédio [e nesse momento a trabalhadora já estava reduzida a uma loja, sem uma supervisão efetiva de um conjunto de lojas], existe claramente um conhecimento da ré no sentido de que a conduta da superior hierárquica está a constranger a dignidade da trabalhadora e a recorrente, em vez de pôr termo à situação, acabou por a intensificar, deixando desenvolver os factos para uma situação em que a trabalhadora já não tem quaisquer funções de supervisão, acabando a desempenhar funções equivalentes à função de caixeira, nas lojas mais distantes da sua residência, de entre aquelas que estavam no seu âmbito de trabalho, não podendo deixar de afirmar-se que a recorrente, através das suas chefias, sabia que estava a constranger a dignidade da trabalhadora e agiu com a intenção de, pelo menos, permitir a manutenção dessa situação [não é certamente, por acaso, que a recorrente fez cessar o contrato de trabalho da trabalhadora, através de acordo que pôs fim a um litígio existente entre a recorrente e a trabalhadora, pagando uma compensação de € 30.000, quando a trabalhadora tinha pouco mais de três anos de antiguidade e auferia uma retribuição base de € 1.200, sendo certo que nesse âmbito a recorrente reconheceu-lhe uma retribuição base de € 1.500].
[..]
Em suma, consideramos que estão verificados todos os pressupostos do tipo contraordenacional imputado, não havendo motivo para considerar que a imputação deve ser feita apenas a título negligente e, por isso, tendo em conta que a coima foi fixada no mínimo legal, deve ser mantida a decisão administrativa».
Para estribar a sua posição, a recorrente começa por invocar o Acórdão desta Relação e Secção, de 18 de Dezembro de 2018 [Processo n.º 4881/16.8T8MTS.P2, disponível em www.dgsi.pt] relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes – aqui adjunto – para dizer que ainda que se entenda estarem preenchidos os elementos de facto da infracção “a verdade é que a matéria de facto, destes Autos, é insuficiente para decidir que a conduta assediante é dolosa ou sequer negligente”.
Defende que “nestes Autos, a única referência na matéria de facto quer ao efeito (nº 2 do art. 29º do CT) quer ao elemento subjectivo consta do facto rr)”.
Alega, ainda, que tão pouco «foi valorizado, suficientemente, o facto de força maior de a coordenadora ter sofrido os incidentes do foro cardíaco que sofreu e que motivaram o ajustamento das respectivas funções (em razão da ausência forçada do serviço), nem a circunstância, contemporânea (objectivamente, mais grave) de a supervisora ter sido sujeita a intervenções cirúrgica a aneurisma, tudo nesse intervalo de tempo de Agosto a Novembro de 2018 (o que mereceu mera referência incidental)” [Conclusão XXXVIII].
Mais alega, que nem “foi levado a efeito juízo crítico sobre a conduta da coordenadora cuja natureza censurável (..) é patente: (..) escondendo a pré-existência de doença cardíaca (..) atribui (..) à supervisora a responsabilidade dos incidentes sofridos em Loja em Agosto de 2018; quando, tendo estado disponível para o trabalho a maior parte desse tempo, reclama a reposição de 10 Lojas (!) – como se nada se passasse -; quando incumpre com as suas obrigações (v.g., de despedir) e, depois, disso se queixa (..); quando não é convocada para reuniões porque antes alegou estar de baixa ou de férias, e, seguidamente, disso se queixa; quando considera assediante uma crítica de uma colega coordenadora que gera que colocasse o lugar à disposição (!), quando se queixa de ter sido pressionada para despedir uma colaboradora embora refira que não tem perfil, que inventa, que não tem imagem, (..); quando faz juntar 2 páginas, truncadas, de documento de 67 páginas; ou mesmo quando, nas Declarações à ACT prestadas em 12 de Novembro (..), situa o início do assédio em Maio / Junho (..); ou quando antes o situou em meados de Julho – carta de 13 de Setembro (..)» [Conclusão XXXIX].
II.3.3 Comecemos pelo alegado nas conclusões XXXVIII e XXXIX.
Em primeiro lugar, a recorrente parece esquecer não se ter provado que “A redução da gestão da trabalhadora para duas lojas foi tomada com base na sua doença, para evitar o sério risco de reincidência” [facto não provado g)]. Por outro lado, também não se provou que as decisões de redução das lojas atribuídas à trabalhadora G… tenham sido motivadas pela necessidade de a substituir nos períodos de baixa. Portanto, não tem apoio nos factos vir defender, para mais em termos genéricos, isto é, sem precisar concretamente qual o seria então o obectivo, que as situações de doença da trabalhadora “motivaram o ajustamento das respectivas funções” e que tal não foi devidamente ponderado.
Em segundo lugar, não está igualmente provado que a trabalhadora G… tenha escondido “a pré-existência de doença cardíaca”, nem tão pouco que esta tivesse conhecimento dessa alegada pré-existência, ou sequer que existisse essa “pré-existência”. De resto, para sermos rigorosos e não haja qualquer dúvida infundada, importa deixar bem claro que mesmo que a trabalhadora soubesse que tinha problemas de saúde dessa natureza, em circunstâncias normais não tinha qualquer dever de o comunicar à sua entidade empregadora.
Com efeito, a lei laboral, em linha com a CRP, no âmbito dos denominados direitos de personalidade, proíbe ao empregador que “exija a candidato a emprego ou a trabalhador que preste informações relativas” à sua saúde “salvo quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade profissional o justifiquem (..) [art.º 17.º, n.º1 al. c), do CT]. Assim como proíbe a exigência de testes ou exames médicos para verificação das condições físicas ou psíquicas do trabalhador, “salvo quando estes tenham por finalidade a protecção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particulares exigências inerentes à actividade o justifiquem (..)” [art.º 19.º n.º1, d CT].
Por outro lado, importa não esquecer, até pela conexão com o caso, que o artigo 24.º n.º1, do CT, dispõe que “ O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de (..) doença crónica, (..)”.
Por conseguinte, esta construção da recorrente para defender que não “foi levado a efeito juízo crítico sobre a conduta da coordenadora cuja natureza censurável” é não só manifestamente infundada, como até despropositada, senão mesmo absurda.
II.3.4 Prosseguindo, passamos a indagar se “a matéria de facto, destes Autos, é insuficiente para decidir que a conduta assediante é dolosa ou sequer negligente”, como defende a recorrente na consideração de que a “única referência na matéria de facto quer ao efeito (nº 2 do art. 29º do CT) quer ao elemento subjectivo consta do facto rr)”.
Em jeito de enquadramento começaremos por deixar as considerações essenciais sobre a figura de “Assédio”, cujo conceito nos é dado pelo art.º 29.º n.º2, do CT/09, dispondo o seguinte:
-[2]” Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.
Esta norma corresponde, mas com alteração na sua redacção, ao art.º 24.º n.º 2, do precedente CT/03.
Neste último, entendia-se por “por assédio todo o comportamento indesejado relacionado com um dos factores indicados no n.º1, do artigo anterior”, remissão que levava a que o conceito de assédio estivesse necessariamente associado às situações tipificadas no art.º 23.º 1, do mesmo diploma, de “discriminação, directa ou indirecta, baseada, nomeadamente, na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência ou doença crónica, nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas, ou ideológicas e filiação sindical”.
Diversamente, o actual conceito deixou de relacionar o assédio com qualquer factor de discriminação, alteração que concretiza o propósito do legislador, expresso na exposição de motivos da proposta de lei Proposta de Lei n.º 216/X que conduziu ao actual CT, no sentido da “definição de assédio, (passar) a abarcar situações não relacionadas com qualquer factor de discriminação”.
Acompanhando-se a posição de Sónia Kietzmann Lopes, ao remeter de forma meramente exemplificativa para o comportamento “baseado em fator de discriminação”, a norma abrange agora quer situações manifestadas num quadro de discriminação, quer todas aquelas outras em que há um “comportamento indesejado”, ou seja, um comportamento que o trabalhador não pretende tolerar, que tanto pode ser por acção como por omissão, dado que a lei não distingue. Esse comportamento de assédio pode resultar apenas do objectivo que está por detrás, ou seja, da intenção “de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador”, independentemente da concretização desse resultado, sendo suficiente que fique demonstrada a intenção quanto à perturbação ou constrangimento da pessoa, à afetação da sua dignidade ou à criação de certo tipo de ambiente; feita essa demonstração, o legislador prescinde da alegação e prova de que o agressor logrou o intento de perturbar ou constranger a vítima. Mas por outro lado, aquela intenção nociva não é requisito imprescindível para que se reconheça a existência de assédio, pois ao dizer a lei “ou o efeito”, resulta ser bastante a demonstração das consequências de um comportamento que se traduzam em “perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador” [No estudo “O assédio moral no trabalho”, in O ASSÉDIO NO TRABALHO, Centro de Estudos Judiciários, 2014, p. 158/159, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/trabalho].
O comportamento indesejado qualificável como assédio há-de resultar de um conjunto sequencial de condutas que, vistas na sua globalidade, evidenciem o objectivo ou o efeito mencionados na norma, isto é, de um “processo, ou seja, não um fenómeno ou um facto isolado, mesmo que de grande gravidade, mas antes um conjunto mais ou menos encadeado de actos e condutas, que ocorrem com um mínimo de periodicidade (..) e de reiteração (..)” [Ac. TRP de 26/09/2011, proc. n.º 540/09.6TTMTS.P1, Desembargador António José Ramos, disponível em www.dgsi.pt].
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre a figura do assédio moral ou mobbing, à luz do art.º 29.º do CT/09, designadamente, nos arestos seguintes [disponíveis em www.dgsi.pt]:
i) Ac. STJ de 12/03/2014 [proc.º n.º 712/12.6TTPRT.P1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado]
[I] O assédio moral implica comportamentos real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências.
[II] De acordo com o disposto no art. 29.º, n.º 1, do CT, no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” do comportamento adotado pelo “assediante”.
[III] Apesar de o legislador ter (deste modo) prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento, o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem em regra associado um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável.
ii) Ac. STJ de 29/03/2012 [proc. n.º 429/09.9TTLSB.L1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha]
[I] Configura-se uma situação de assédio moral ou mobbing quando há aspectos na conduta do empregador para com o trabalhador (através do respectivo superior hierárquico), que apesar de isoladamente analisados não poderem ser considerados ilícitos, quando globalmente considerados, no seu conjunto, dado o seu prolongamento no tempo (ao longo de vários anos), são aptos a criar no trabalhador um desconforto e mal estar no trabalho que ferem a respectiva dignidade profissional e integridade moral e psíquica.
iii) Acórdão do STJ 01-03-2018 [Proc.º 4279/16.8T8LSB.L1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha].
[VI] Não é toda e qualquer violação dos deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objectivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por verificado.
iv) Ac. STJ de 09-05-2018 [Proc.º 532/11.5TTSTRE.E1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha]
[II] Não é toda e qualquer violação dos deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objectivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por verificado.
[III] Mesmo que se possa retirar do artigo 29º do Código do Trabalho que o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos pela norma – respeito pela integridade psíquica e moral do trabalhador.
No domínio do processo por contra-ordenação laboral, imputando-se ao empregador uma situação de assédio à margem de um quadro relacionado com os factores de discriminação especificados no art.º 24.º n.º 2, do CT/09, cabe à autoridade administrativa e, em caso de impugnação judicial da decisão administrativa, ao Ministério Público, a alegação e prova dos factos que evidenciem a concretização de um comportamento indesejado - por parte da entidade empregadora ou de um ou determinados superiores hierárquicos-, bem assim que demonstrem estar-lhe subjacente a intenção de produzir um resultado que se reconduza aos estados subjectivos mencionados na norma, isto é, perturbando-o, constrangendo-o, afectando a sua dignidade ou criando-lhe um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador; ou, não havendo essa prova sobre a intenção, que aquele resultado se verificou em consequência daquele comportamento.
Como assinala o Professor Júlio Gomes, “importa também advertir que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um mobbing, sendo, aliás, importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direcção são necessariamente um mobbing, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante, quer porque não são realizados com tal intenção” [“Algumas observações sobre o mobbing nas relações de trabalho subordinado”, O Assédio no Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, 2014, p. 120, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/trabalho].
Sobre essa necessidade de distinção entre assédio moral e conflito laboral, alerta também Maria Regina Gomes Redinha, pronunciando-se nos termos seguintes:
-“(..) importa não dissolver o assédio persecutório na conflitualidade laboral. A relação de trabalho radica ela própria num conflito e, por isso, a empresa é um espaço particularmente atreito ao surgimento de disputas e antagonismos. Ora, o mobbing não se reduz a uma mera situação conflitual, apesar de pressupor animosidade e confrontação.
No conflito avulta o que se faz ou como se faz, enquanto “no assédio mais importante é a frequência e a duração do que é feito”. Se o conflito é “uma guerra aberta”, o assédio é uma “guerrilha”. Por outro lado, o conflito pode ser regenerador e renovador, mas, ao invés, o assédio é sempre fonte de erosão e destruição. ” [“Assédio moral ou mobbing no trabalho”, O Assédio no Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, 2014, p. 140/141, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/trabalho].
No mesmo sentido, observa Monteiro Fernandes [Direito do Trabalho, 17.ª edição, p. 173], que “a definição do artigo 29º não parece constituir o instrumento de diferenciação que é necessário”, uma vez que “nela cabem, praticamente, todas as situações que o mau relacionamento entre chefes e empregados pode gerar”. Prossegue o autor [Op. cit.p 174], para concluir que “entrando em conta com o texto da lei e os contributos da jurisprudência, parece possível identificar os seguintes traços estruturais da noção de assédio no trabalho:
a) Um comportamento (não um ato isolado) indesejado, por representar incómodo injusto ou mesmo prejuízo para a vítima (…); b) Uma intenção imediata de, com esse comportamento, exercer pressão moral sobre o outro (…);
c) Um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, consistente na obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (…)”.
Por último, é de referir que esta Relação e secção também já foi diversas vezes chamada a pronunciar-se a problemática do assédio moral e as questões suscitadas em torno da interpretação e aplicação do art.º 29.º do CT, entre eles contando-se, na jurisprudência mais recente, o acórdão de 07-05-2018 [proc.º 326/16.2T8VNG.P1, Desembargador Domingos Morais], bem assim o invocado na sentença e pelo recorrente nas alegações de recurso, nomeadamente, de 18-12-2018 [proc.º 4881/16.8T8MTS.P2, Desembargador Nelson Fernandes, disponível em www.dgsi.pt], em cujos sumários pode ler-se o seguinte:
i) Acórdão de 07-05-2018
I - A distinção entre conflito e mobbing não se foca no que é feito ou como é feito, mas na frequência ou duração do que é feito. O mobbing deve ser visto como um conflito exagerado.
II - Configura-se uma situação de assédio moral ou mobbing quando há aspectos na conduta do empregador para com o trabalhador (através do respectivo superior hierárquico), que apesar de isoladamente analisados não poderem ser considerados ilícitos, quando globalmente considerados, no seu conjunto, dado o seu prolongamento no tempo (ao longo de vários meses), são aptos a criar no trabalhador um desconforto e mal estar no trabalho que ferem a respectiva dignidade profissional e integridade moral, física e psíquica.
III - O assédio laboral tem como fim intimidar, diminuir, humilhar, amedrontar e consumir emocional e intelectualmente a vítima, com o objectivo de eliminá-la da organização ou satisfazer a necessidade insaciável de agredir, controlar e destruir que é apresentada pelo assediador que aproveita a situação organizacional particular (reorganização, redução de custos, burocratização, mudanças drásticas, etc.) para canalizar uma série de impulsos e tendências psicopáticas.
IV - Atenta a materialidade apurada nos autos (v.g., diminuição de funções, funções atribuídas a subordinados, comentários jocosos e apreciações pessoais descabidas na presença de terceiros, relatórios diários pormenorizados no tempo, promoção de subordinados sem conhecimento, sentado contra a parede e de costas para os subordinados) é de concluir por uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre o trabalhador, que atingiu os valores da sua dignidade profissional e da sua integridade física e psíquica.
i) Ac. de 18-12-2018:
I - Dada a diversidade de regimes, há que distinguir-se entre, por um lado, as situações em que esteja em causa apurar do preenchimento ou não do elemento subjetivo da contraordenação prevista no artigo 29.º do CT/2009 e, por outro, aquelas em que, por exemplo, a análise incida sobre saber se nos termos do mesmo preceito os atos poderiam ou não integrar justa causa para a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador.
II - Daí que, conhecendo-se a divergência doutrinária e mesmo jurisprudencial existente a propósito da dimensão volitiva/final do conceito de assédio em geral, não possamos porém, no que se refere a intencionalidade, esquecer que o elemento subjetivo nas contraordenações materializa algo que está para além dos elementos objetivos que integram a conduta sancionável, não podendo pois confundir-se a duplicidade de planos em que a questão do assédio pode assim ser colocada.
III - Havendo que reconhecer a necessidade de uma interpretação prudente do disposto no artigo 29.º do CT/2009, face aos critérios enunciados no artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil, teremos de concluir que, para efeitos da prática da contraordenação a que naquele se alude a lei não estipula que no “assédio” tenha de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja efeito do comportamento adotado pelo “assediante”, não resultando assim desse normativo, por um lado, qualquer referência a que se exija necessariamente o dolo (em qualquer das suas modalidades), sendo que, por outro, o legislador, tal como resulta expressamente do artigo 550.º estabeleceu que nas contraordenações laborais a negligência “é sempre punível”.
IV - Assim, se na verificação dos requisitos do “assédio” em geral se poderá defender a exigência da referida intencionalidade do agente, essa intencionalidade, porém, consubstanciar-se-á então como elemento específico desse conceito, mas já não, por ser coisa diversa, como pressuposto da verificação do elemento subjetivo da contraordenação laboral, pois que quanto a esta, como se viu, por previsão expressa de norma legal, é sempre punível.
V - Integra a prática da contraordenação analisada a conduta da entidade patronal que, no âmbito de um processo de reorganização e reestruturação da empresa, não instaurando qualquer processo de despedimento por extinção do posto de trabalho, em face da recusa do trabalhador em celebrar acordo de cessação do seu contato de trabalho esse mantém sem exercer quaisquer funções, não obstante saber que tal lhe provocava sentimentos negativos de angústia, humilhação e desgaste psicológico.
Para a apreciação das questões suscitadas pela recorrente relevam, essencialmente, os factos que se passam a indicar, aqui enunciados em sequência cronológica, por se nos afigurar mais lógica e, logo, melhor elucidando sobre o contexto geral a que devemos atender. Assim:
oo) A trabalhadora G… foi admitida ao serviço da arguida por contrato de trabalho sem certo, celebrado a 04 de maio de 2015, para o exercício de funções de direção, controlo e coordenação dos chefes de equipa e restantes trabalhadores das lojas da arguida nomeadamente o controlo de vendas, a contratação de trabalhadores, definição das condições de trabalho, como horários de trabalho, férias, feriados e falta e controlo respetivo dos mesmos;
m) A trabalhadora G…, em junho de 2018, desenvolvia funções de supervisão num total de dez lojas em toda a zona Norte do país;
n) A trabalhadora G… tinha como a sua “Loja sede” a loja do “H…” – a Loja com maior faturação e maior responsabilidade no Norte do país;
o) No exercício das suas funções de supervisora, a trabalhadora G… visitava diariamente as Lojas, supervisionava todas as Lojas como um todo a nível de merchandising, financeiro, recursos humanos, horários, limpeza de loja, cumprimento das diretrizes da empresa, motivação e formação da equipa, vendas, atendimento a clientes, caixa, conferência de valores, análise da concorrência, identificação de perfis de vendedores para a empresa, realizava entrevistas a candidatos, angariava candidatos na concorrência com perfil para a empresa, rececionava mercadoria, promovia a exposição de novidades e merchandising comercial, realizava inventários parciais e anuais, realizava montras, organizava o armazém e procedia à vaporização;
p) A trabalhadora G… deu apoio à abertura de cinco Lojas após reformulação;
q) Antes de 22 de maio de 2018, a trabalhadora G… foi convocada para uma reunião em Lisboa com a superior hierárquica tendo sido confrontada com uma crítica feita pela coordenadora do Porto, I…, que alegava ter sido humilhada pela G… na montagem da Loja do “J…” tendo afirmado ter sido deselegante, utilizando tom de voz elevado, atirava coisas para o chão, desautorizou a colega e tomou controlo da equipa de obras, tendo-se a trabalhadora manifestado ofendida;
r) A trabalhadora G… revelou sentiu-se humilhada, ao ponto de ter colocado o seu lugar à disposição;
s) A sua superiora solicitou-lhe que reconsiderasse, tendo a trabalhadora acedido;
t) No dia 24 de julho de 2018, a superior hierárquica visitou sozinha as Lojas do Norte do país, contrariando o que havia sido previamente combinado com a trabalhadora G…;
u) A determinada altura a superior hierárquica atribuiu as Lojas que se encontravam sob supervisão da trabalhadora G… à trabalhadora K…, com exceção do “H…”, do “L…” e “D…”;
v) Na sequência de uma taquicardia sofrida pela trabalhadora G… no dia 2 de agosto (episódio de urgência n.º …….. e médico, Dr. M…), a superior hierárquica, após contato pelo marido da trabalhadora para a superior assumir as suas funções por ela estar no hospital, enviou um e-mail às Lojas a dar indicação de não contactar a trabalhadora G… durante 10 dias. No dia seguinte, às 8h da manhã, a superior hierárquica reforçou o e-mail remetido no dia anterior.
w) No dia 15 de agosto, na sequência de uma troca de correio eletrónico a superior hierárquica C… dirigiu-se à trabalhadora G… utilizando expressões como: “parece que ultimamente não entende bem nenhuma diretriz da empresa. Portanto não adiantará de nada continuar a dar-lhe explicações” e “considero que não está nas melhores condições para inputs ou decisões quer nas lojas quer nas equipas de gestão”;
x) Nos dias 20 e 21 de agosto a superior hierárquica continuou a remeter mensagens como, entre outras: “digo-lhe honestamente que estou envergonhada com os seus resultados”; “um trabalho desastroso que coloca toda a imagem da supervisão e coordenação em causa perante a direção desta empresa”; “em vez de trabalhar em prol da empresa para si tanto faz” e “continue a fazer o que tem feito porque realmente é bonito de profissional exemplar”;
y) No primeiro dia após baixa que se tinha iniciado no dia 22 de agosto, a trabalhadora G… foi informada pela superior hierárquica, C…, de que apenas se podia deslocar para o “D…”;
z) Simultaneamente a superior hierárquica ordenou à trabalhadora G… para fazer cessar os contratos de trabalho de colegas que eram da confiança da G…, designadamente, o da N… (O…), P… (D…) e Q…;
aa) Quanto à Q…, a trabalhadora I…, coordenadora do Porto, deslocou-se ao “H…” no último dia do seu período experimental e cessou-lhe o contrato de trabalho;
bb) A trabalhadora G… sofreu nova taquicardia tendo sido observada no serviço de urgência do Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, E.P.E. e médica Dr.ª S…;
cc) No dia 5 de setembro, foi realizada uma reunião com todas as gerentes das Lojas sob supervisão da trabalhadora G…, sem que esta fosse convocada;
dd) Na reunião foi apresentada a reestruturação das Lojas e comunicaram à trabalhadora T…, gerente de Vila Real, que a supervisão das Lojas seria da competência da trabalhadora I…, retirando essas funções à G…;
ee) No dia 13 de setembro a trabalhadora G… deu conhecimento por escrito à empresa de que se encontrava a ser vítima de assédio;
ff) No dia 24 de setembro a empresa apresentou resposta, não enquadrando a situação reportada anteriormente pela trabalhadora como assédio;
gg) No dia 27 de setembro de 2018, na sequência da instrução recebida para se apresentar na loja de Vila Real, a trabalhadora G… manifestou, por escrito, à empresa arguida que teria sido objeto de uma “transferência ilegal do local de trabalho”;
hh) No dia 1 de outubro a empresa remeteu resposta via eletrónica informando a trabalhadora G… de que teria de cumprir o determinado sob pena de incorrer numa “falta disciplinar”;
ii) No dia 21 de setembro a trabalhadora G… informou a empresa de que, tendo-lhe sido atribuída a coordenação da Loja de Vila Real, a respetiva gerente ainda desconhecia tal facto;
jj) No dia 17 de outubro foi apresentada a nova gerente do “D…”, dia em que a superior hierárquica, C…, informou a trabalhadora G… de que teria de se apresentar todos os dias em Vila Real;
kk) A partir daquela data a trabalhadora G… passou a desenvolver todas as suas funções apenas em Vila Real, tendo-lhe sido retirada pela recorrente a supervisão de todas as Lojas, passando a estar limitada às funções de caixeira, atendendo cliente na loja, e tendo a competência de admitir/demitir passado a ser exercida pela superior hierárquica C…;
ll) No dia 23 de outubro de 2018 a empresa remeteu à trabalhadora G… duas notas de culpa;
mm) A trabalhadora G… respondeu às notas de culpa no dia 2 de novembro de 2018;
nn) A trabalhadora G… reportou a situação de alegado assédio à empresa arguida, não tendo esta assumido qualquer posição;
pp) A trabalhadora G… esteve de “baixa médica” de 03 a 09 de agosto de 2018; de 22 de agosto a 02 de setembro de 2018 e de 30 de outubro a 25 de novembro de 2018;
qq) O contrato de trabalho celebrado entre a empresa arguida e a trabalhadora G… cessou por acordo com fundamento em extinção do posto de trabalho, celebrado e com produção de efeitos a 27/11/2018.
rr) Com a sua conduta a arguida, através da superior hierárquica C… e de outros superiores hierárquicos, procurou retirar progressivamente o trabalho de supervisão à trabalhadora G… o que culminou no exercício por esta de funções equivalentes a caixeira, retirando-lhe, entre agosto e outubro de 2018, em vários momentos, as funções integradas na categoria de supervisora de lojas, o que produziu o efeito de constranger a dignidade da trabalhadora.
Aplicando os princípios acima enunciados a esta matéria fáctica, consideramos que o tribunal a quo decidiu com acerto ao concluir que as várias situações que aponta, com desfecho na colocação da trabalhadora numa só loja – na sequência de uma decisão tomada em reunião para a qual aquela nem tão pouco foi convocada -, retirando-lhe o núcleo essencial das funções para que foi contratada e que vinha desempenhando, ficando “reduzida a um local de trabalho, sem fazer uma efetiva supervisão, com a retirada de outras lojas, até estar colocada numa situação de desempenho de funções semelhantes às de caixeira com violação da sua categoria profissional”, consubstanciam um encadeamento sequencial de condutas, num processo conduzido pela superior hierárquica C…, que vistas no seu conjunto, integram o tipo objectivo de assédio moral, nos termos previstos no art.º 29.º 1 e 2, do CT, na medida em que evidenciam o objectivo ou o efeito ai mencionados, ou seja, são adequadas a “perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Na verdade, como igualmente bem assinala o Tribunal a quo, esse conjunto sequencial de factos, verificados ao longo de um período de quase três meses, para culminar com a colocação da trabalhadora em uma só loja, passando “ a desenvolver todas as suas funções apenas em Vila Real, tendo-lhe sido retirada pela recorrente a supervisão de todas as Lojas, passando a estar limitada às funções de caixeira, atendendo cliente na loja” [facto kk], são inequivocamente adequados a “produzir o efeito de constranger a trabalhadora na sua dignidade profissional pois é colocada numa situação em que de chefia passou a desempenhar funções numa categoria inferior a alguns dos trabalhadores que chefiava”.
Sendo certo, também, que a norma basta-se com esse efeito de constrangimento relevante da dignidade do trabalhador, demonstrando os factos com suficiência estar-se perante um processo, em crescendo, de humilhação da trabalhadora, degradando progressivamente as suas condições de trabalho, adequado a que se sinta indesejada e desrespeitada na organização produtiva em que se encontra inserida.
Para além disso, acompanhamos ainda a decisão recorrida quando conclui que “no caso, existe pelo menos dolo eventual”, bastando para conjugar o facto provado rr), onde consta assente que “Com a sua conduta a arguida, através da superior hierárquica C… e de outros superiores hierárquicos, procurou retirar progressivamente o trabalho de supervisão à trabalhadora G… o que culminou no exercício por esta de funções equivalentes a caixeira, retirando-lhe, entre agosto e outubro de 2018, em vários momentos, as funções integradas na categoria de supervisora de lojas, o que produziu o efeito de constranger a dignidade da trabalhadora”, com os factos provados ee) e ff), dos quais resulta que a trabalhadora G…, no dia 13 de setembro, ou seja, depois de ser colocada na loja de Vila Real e ver alteradas as suas funções, deu conhecimento por escrito à empresa de que se encontrava a ser vítima de assédio, tendo a empresa respondido, em 24 de setembro, não enquadrando a situação reportada pela trabalhadora como assédio.
Por conseguinte, contrariamente ao que defende o recorrente, não vimos que colha apoio para a sua posição no acórdão desta Relação de 18-12-2018, para pretender que a matéria provada não é suficiente para se concluir pela existência de dolo eventual. Com o devido respeito, cremos que o recorrente não atentou na parte da fundamentação que passamos a transcrever:
-«(..) e aqui entramos já também na análise da última questão levantada pela Recorrente, assim sobre o elemento subjetivo da infração, que se assume como se disse anteriormente como diversa do preenchimento dos elementos exigidos para ser considerada assediante uma conduta, permitimo-nos dizer que, sendo sem dúvida voluntários os atos provados que integram a atuação da arguida considerada como assediante, a questão da imputação da infração a título de dolo poderia mesmo ter sido eventualmente equacionada, que mais não seja de dolo eventual – de um modo sintético, o dolo pode definir-se como o conhecimento e vontade de praticar o facto, revestindo qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º, do Código Penal: dolo direto (caso em que o agente representa o facto que preenche o tipo e atua com intenção de o realizar); dolo necessário (o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequência necessária da sua conduta); dolo eventual (o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequência possível da sua conduta e atua conformando-se com aquela realização).
Mas para que não subsistam dúvidas à recorrente, para que se melhor se perceba a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, deixamos a elucidativa explicação do Professor Faria Costa [Colectânea de Jurisprudência, 1997, Tomo I, p. 13]:
- «O fundamento de agir doloso reside na atitude ética do agente de hostilidade ou acomodação ou indiferença perante o dever ser jurídico-penal, enquanto o fundamento da actuação negligente se encontra na omissão de um dever objectivo de cuidado que o agente era capaz de representar no circunstancialismo concreto. Por isso, a distinção entre eventual e negligência consciente não pode arrancar do elemento intelectual. Representar o preenchimento do tipo legal como resultado possível ou provável da conduta é um traço comum, quer ao dolo eventual, quer à negligência consciente. O conteúdo volitivo do dolo eventual deve ser detectado na passividade do agente de não querer desencadear os mecanismos volitivos que levassem a evitar, quer a acção principal intencionalmente querida, quer os resultados adjacentes que aquela acção provavelmente desencadearia. O elemento configurador da censurabilidade da negligência reside na capacidade do dever objectivo de cuidado”.
Acolhemos este entendimento, que se reconduz, em suma, à afirmação de que “[O] conteúdo volitivo do dolo eventual deve ser detectado na passividade do agente de não querer desencadear os mecanismos volitivos que levassem a evitar, quer a acção principal intencionalmente querida, quer os resultados adjacentes que aquela acção provavelmente desencadearia”.
Ora, é precisamente nessa base de raciocínio que assenta a explicação dada pelo Tribunal a quo no final da sua fundamentação, para justificar a conclusão a que chegou sobre a verificação de dolo eventual. Senão veja-se:
«(..) consideramos que a partir do momento em que a trabalhadora comunica que considera que está a ser vítima de uma situação de assédio [e nesse momento a trabalhadora já estava reduzida a uma loja, sem uma supervisão efetiva de um conjunto de lojas], existe claramente um conhecimento da ré no sentido de que a conduta da superior hierárquica está a constranger a dignidade da trabalhadora e a recorrente, em vez de pôr termo à situação, acabou por a intensificar, deixando desenvolver os factos para uma situação em que a trabalhadora já não tem quaisquer funções de supervisão, acabando a desempenhar funções equivalentes à função de caixeira, nas lojas mais distantes da sua residência, de entre aquelas que estavam no seu âmbito de trabalho, não podendo deixar de afirmar-se que a recorrente, através das suas chefias, sabia que estava a constranger a dignidade da trabalhadora e agiu com a intenção de, pelo menos, permitir a manutenção dessa situação [não é certamente, por acaso, que a recorrente fez cessar o contrato de trabalho da trabalhadora, através de acordo que pôs fim a um litígio existente entre a recorrente e a trabalhadora, pagando uma compensação de € 30.000, quando a trabalhadora tinha pouco mais de três anos de antiguidade e auferia uma retribuição base de € 1.200, sendo certo que nesse âmbito a recorrente reconheceu-lhe uma retribuição base de € 1.500]».
Por conseguinte, não se reconhece razão à recorrente, logo, improcedendo o recurso e, em consequência, mantendo-se a decisão recorrida.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, em consequência mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º, nº 4 do RGCO e 59º e 60º, ambos da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro e 8º, nº 9 e Tabela III do RCP].

Porto, 18 de Maio de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes