Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
130/13.9TBVFR-I.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO
Nº do Documento: RP20150526130/13.9TBVFR-I.P1
Data do Acordão: 05/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O IVA é um imposto indirecto e geral sobre o consumo, plurifásico e de auto-lançamento, cuja liquidação e cobrança por parte do Estado competem aos sujeitos passivos não isentos.
II - Todavia, há situações de liquidação oficiosa pela administração fiscal, regulamentadas no art.º 28.º do CIVA.
III - Alegado e provado que o período de tributação do IVA é posterior ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, não tem fundamento legal a acção para verificação ulterior do correspondente crédito, por não constituir um crédito sobre a insolvência.
IV - A constituição do crédito a que alude a parte final da alínea b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE nada tem a ver com o seu vencimento ou exigibilidade por serem conceitos absolutamente distintos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 130/13.9TBVFR-I.P1
Da Comarca de Aveiro – Instância Central - Oliveira de Azeméis – 2.ª Secção de Comércio – J2.
*
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

A Digna Magistrada do Ministério Público, em representação do Estado (Fazenda Nacional), instaurou a presente acção de verificação ulterior de créditos contra a Massa Insolvente, os Credores da Massa Insolvente e a Insolvente B…, Lda., pedindo o reconhecimento do crédito de 10.183,44 €, alegadamente, devido pela insolvente a título de IVA, relativo ao mês de Outubro de 2013, vencido em 8/7/2014.
Em virtude de ter sido alegado, no art.º 4.º da petição inicial, que a acção era tempestiva porque a sentença declarativa da insolvência tinha transitado há menos de seis meses, foi informado nos autos que o trânsito em julgado daquela sentença havia ocorrido em 15/3/2013.
Perante essa divergência, foi mandado abrir vista ao MP para que esclarecesse se mantinha interesse na “presente reclamação de créditos”.
O Digno Magistrado do Ministério Público, invocando que na certidão das Finanças junta aos autos constam os períodos de tributação de 1 a 30 de Setembro de 2013 e de 1 a 31 de Outubro de 2013, requereu, então, que se desse sem efeito o art.º 4.º da petição inicial, por se dever a mero lapso, e que, em sua substituição, fosse considerada a tempestividade da acção nos termos do art.º 146.º, n.º 2, al. b), segunda parte, “porquanto o crédito reclamado, apesar de respeitar a um período ocorrido em 2013, apenas se constituiu no dia 8 de Julho de 2014…”.
Este requerimento não foi apreciado, por se ter entendido que o seu conhecimento envolvia conhecimento de mérito, determinando-se o prosseguimento dos autos com o cumprimento do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CIRE, mostrando-se citadas a Massa Insolvente e a Insolvente, as quais não apresentaram contestação.

E, em 28/1/2015, foi proferida “sentença” com o seguinte teor:
“Conforme resulta da informação constante de fls. 14, a sentença que decretou a insolvência transitou em julgado no dia 15-03-2013.
Na sequência do despacho proferido a fls. 14, o requerente - MP -, veio esclarecer que os créditos reclamados ao abrigo do artigo 146º do CIRE reportam-se a impostos relativos ao período de tributação de Setembro de 2013 e Outubro de 2013.
Nessa altura já a empresa estava insolvente.
A verificação ulterior de créditos visa o reconhecimento de créditos sobre a insolvente (e não sobre a massa insolvente) que não foram reclamados no prazo previsto pelo artigo 128º do CIRE.
Expressamente refere o artigo 146º do CIRE o seguinte: "Findo o prazo das reclamações é possível reconhecer outros créditos (…)".
Os créditos são os sobre a insolvência - artigo 128º (Credores da insolvência).
O conceito de créditos sobre a insolvência está plasmado no artigo 47º (… cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração...).
Da análise do quadro normativo citado, consideramos que não restam dúvidas em que os créditos objecto da presente acção não são créditos sobre a insolvente, não podendo, nessa medida, ser objecto da presenta acção de verificação ulterior de créditos.
Em face do exposto e por falta de fundamento legal decide-se julgar improcedente a presente acção, absolvendo-se os requeridos da instância.
Custas pelo requerente.
Registe e notifique.
Valor: o da acção.”
Inconformado com o assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação e apresentou a correspondente alegação com as seguintes conclusões:
“O Tribunal, ao rejeitar a reclamação, violou o disposto no na alínea b), do nº 2, do artº 146º, do CIRE.
Nestes termos e nos demais de direito deverá a douta sentença de absolvição da instância, com a referencia nº 83127198 e constante de fls. 37, ser revogada e, consequentemente, proferir-se sentença de mérito que determine o reconhecimento do crédito reclamado.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Porém, foi corrigido o modo de subida, por este Tribunal, depois de para aqui ter sido remetido, visto que devia subir nos próprios autos da acção de verificação ulterior de créditos, por se tratar do recurso da decisão que lhe pôs termo, pelo que foi a mesma requisitada, tudo nos termos dos art.ºs 14.º, n.º 6, al. b) e 17.º, ambos do CIRE, e 653.º, n.º 1, do CPC.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se devem apreciar questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se pode ser reconhecido o crédito reclamado pelo autor.

II. Fundamentação

1. De facto

Para além do que consta do antecedente relatório e não obstante a ausência de discriminação dos factos provados na sentença recorrida, atentos os elementos constantes da respectiva acção a que, agora, temos acesso, ou dela resultantes, em especial a certidão de fls. 4 a 6, importa considerar aqui provados os seguintes factos:
A) A insolvência foi declarada por sentença de 15/2/2013 e transitou em julgado em 15/3/2013.
B) Na referida certidão de dívidas consta como entidade credora “AT – impostos englobados na conta corrente”, como “tributo” o IVA, como “período de tributação” 1 a 30 de Setembro de 2013, como “data de vencimento” 16/6/2014, como “quantia exequenda” o valor de 10.183,44 € e 69,49 € de juros de mora, num total de 10.252,93 €, bem como o montante de 10.183,44 € referente ao período de tributação de 1 a 31 de Outubro de 2013, com vencimento em 8/7/2014, e juros de mora de 35,52 €, num total de 10.218,96 €.
C) A presente acção foi instaurada em 29/9/2014.

2. De direito

Como é sabido, a verificação do passivo no processo de insolvência está regulamentada nos art.ºs 128.º a 140.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE, ao qual pertencerão todos os que forem indicados sem outra indicação).
Dessa regulamentação resulta, designadamente, que:
A verificação do passivo tem lugar após a sentença de declaração de insolvência e constitui um processo declarativo que corre por apenso ao processo de insolvência, compreendendo as fases de reclamação de créditos (cfr. art.ºs 128.º e segs.), saneamento (art.º 136.º), instrução (art.º 137.º), discussão e julgamento (art.ºs 138.º e 139.º) e sentença (art.º 140.º).
Os credores da insolvência, seu requerente incluído, que pretendam fazer valer os seus direitos de crédito no âmbito do respectivo processo, têm que apresentar a competente reclamação dos seus créditos.
A reclamação deve ser apresentada no prazo fixado na sentença de declaração de insolvência, por meio de requerimento endereçado e entregue ou remetido ao administrador da insolvência, acompanhado de todos os documentos probatórios disponíveis e com as indicações a que aludem as alíneas a) a e) do n.º 1 do citado art.º 128.º.
As reclamações de créditos assim apresentadas são apreciadas pelo administrador da insolvência, o qual deve, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, entregar duas listas na secretaria, organizadas por ordem alfabética, sendo uma respeitante aos créditos por si reconhecidos e outra relativa aos créditos não reconhecidos (art.º 129.º, n.º 1, primeira parte). O reconhecimento pode ter por base quer a reclamação, quer o facto de os direitos constarem dos elementos de contabilidade do devedor ou serem por outra forma do conhecimento do administrador (art.º 129.º, n.º 1, parte final).
Em caso de reconhecimento, é indicada na correspondente lista a identificação de cada credor, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas (art.º 129.º, n.º 2).
Em caso de não reconhecimento, a lista indica os respectivos motivos justificativos (art.º 129.º, n.º 3).
E o n.º 4 deste mesmo artigo impõe a notificação da lista aos credores não reconhecidos, aos reconhecidos que não tenham apresentado reclamação e aos reconhecidos em termos diversos do da respectiva reclamação.
Qualquer interessado pode impugnar a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art.º 130.º[1].
A inexistência de impugnações implica que o juiz profira de imediato sentença de verificação e graduação de créditos, a qual, salvo erro manifesto, se limita a homologar a lista dos credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e a graduar os créditos em atenção ao que conste dessa lista (art.º 130.º, n.º 3).
A fase do saneamento do processo inicia-se com a marcação pelo juiz de uma tentativa de conciliação, agora com carácter facultativo face à redacção dada ao n.º 1 do art.º 136.º pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, destinada a permitir o reconhecimento de créditos impugnados, que depende da aprovação de todos os presentes e ocorre nos precisos termos dessa impugnação (art.º 136.º, n.º 2).
Segue-se a elaboração do despacho saneador (art.º 136.º, n.º 3 e art.ºs 595.º e 596.º, estes do actual CPC, correspondentes aos art.ºs 510.º e 511.º do CPC de 1961, ali mencionados), estando o juiz vinculado a reconhecer imediatamente os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados, bem como os créditos que, embora impugnados, tenham sido aprovados na tentativa de conciliação (art.º 136.º, n.º 4), e ainda os créditos que tenham sido parcialmente impugnados sem resposta, nos termos constantes da impugnação[2].
Para além disso, o juiz pode, ainda, considerar reconhecidos os créditos em relação aos quais considere suficiente os elementos de prova constantes dos autos, nos termos do n.º 5 do art.º 136.º, que prevê exactamente: “Consideram-se ainda reconhecidos os demais créditos que possam sê-lo face aos elementos de prova contidos nos autos”.
Em relação aos créditos que reconheça, o despacho saneador tem a forma e o valor de sentença, declarando-os verificados e graduando-os em conformidade com as disposições legais (art.º 136.º, 6).
Diferente da verificação do passivo que temos vindo a referir, para um melhor enquadramento da questão, é a verificação ulterior de créditos, prevista nos art.ºs 146.º a 148.º.
Esta pode ser exercida posteriormente ao decurso do prazo daquelas reclamações, em acções propostas contra a massa insolvente, os credores e o devedor, as quais correm por apenso ao processo de insolvência e seguem a forma do processo sumário[3], independentemente do seu valor (art.ºs 146.º, n.º 1 e 148.º).
Neste caso, a reclamação é possível, nesses termos, relativamente a créditos anteriormente constituídos, no prazo de seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, desde que os credores não tenham sido avisados nos termos do art.º 129.º, bem como a créditos de constituição posterior, no prazo de três meses após essa constituição, caso termine posteriormente (art.º 146.º, n.ºs 1 e 2).
Efectivamente, este artigo, depois de permitir, no n.º 1, o reconhecimento de créditos após o decurso do prazo das reclamações ao abrigo do art.º 128.º, dispõe, no seu n.º 2, que a reclamação de tais créditos:
“a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior;
b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente.”
Mas não pode ser deduzida ulteriormente por parte dos credores que tenham sido notificados nos termos do n.º 4 do art.º 129.º. Perdem assim o direito à reclamação ulterior os credores cujos créditos não tenham sido reconhecidos, aqueles cujos créditos tenham sido reconhecidos pelo administrador da insolvência sem que os tenham reclamado ou em termos diversos da reclamação e tenham sido objecto de notificação por parte do administrador [art.º 146.º, n.º 2, al. a)]. A estes credores resta assim deduzir impugnação das listas (art.º 130.º)[4].
Expostas estas regras e feitos estes esclarecimentos considerados necessários, vejamos o caso dos autos.
Não há dúvida de que estamos perante um caso de verificação ulterior de créditos ao abrigo do art.º 146.º.
Como tal foi configurada a acção e assim foi entendido na sentença recorrida.
O recorrente não reclamou o alegado crédito no prazo fixado para esse efeito na sentença que declarou a insolvência, nem o podia fazer, para poder ser considerado no âmbito do processo de verificação de créditos, visto que ele teve a sua génese em data posterior.
Na verdade, segundo a correspondente alegação, ele respeita a IVA do mês de Outubro de 2013, com data de vencimento de 8/7/2014, de acordo com o art.º 1.º da petição inicial, ou também ao mês de Setembro de 2013, com vencimento a 8/6/2014, segundo o aditamento à petição, feito em 18/10/2014, com base na certidão de dívida das Finanças.
Porém, nesse aditamento, não se atentou que, de acordo com a mesma certidão, se trata de dois montantes, referentes a dois períodos de tributação diferentes – um de 1 a 30 de Setembro de 2013 e outro de 1 a 31 de Outubro de 2013 –, no valor total de 20.678,01 €, e que o primeiro não foi reclamado nesta acção, pois apenas se pede o reconhecimento do crédito de 10.183,44 €, relativo ao mês de Outubro de 2013, com vencimento em 9/7/2014, omitindo-se, por completo, o valor referente ao período de Setembro de 2013.
Independentemente desse desfasamento, o certo é que o crédito reclamado se reporta a IVA e que o período de tributação é relativo ao mês de Outubro de 2013, com vencimento em 8/7/2014, de acordo com o art.º 1.º da petição inicial, sendo que no aditamento não se procedeu à rectificação dessa alegação, mas tão só do art.º 4.º, e que, nele, se refere também o período de tributação de 1 a 30 de Setembro de 2013, com vencimento a 16/6/2014.
Com base na alegação destes dois períodos de tributação foi considerado, na sentença, que não se tratava de créditos da insolvência e, por falta de fundamento legal, foi a acção julgada improcedente.
No recurso, em bom rigor, não pode falar-se em tempestividade da acção ou caducidade do direito de reclamação, como parece depreender-se da parca alegação do recorrente[5], ou melhor falta da sua verificação, visto que não foi esse o fundamento invocado na decisão impugnada.
Nela, repete-se, a acção foi julgada improcedente por falta de fundamento legal, por se ter entendido que o crédito reclamado não constituía um crédito sobre a insolvente, e não por ter decorrido o prazo legalmente previsto para a propositura da acção de verificação ulterior de créditos, nomeadamente o da parte final da alínea b) do n.º 2 do citado art.º 146.º, invocado no aditamento feito à petição inicial.
Coloca-se, assim, a questão, não da caducidade[6], mas do eventual reconhecimento do crédito reclamado, o que passa pela sua caracterização.
O IVA é um imposto indirecto que incide sobre as transmissões de bens e prestações de serviços efectuadas em território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, e sobre as importações de bens (art.º 1.º do CIVA).
Visa tributar todo o consumo de bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todo o circuito económico desde a produção ao retalho, repercutindo-se no consumidor final. Determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período de tempo, e deduzindo ao montante assim obtido o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo período, revelado nas respectivas facturas de aquisição. O resultado apurado desta forma corresponde ao montante a entregar ao Estado (cfr. art.ºs 7.º, 9.º e 22.º do CIVA).
Trata-se de um imposto de auto-lançamento, em que a liquidação cabe ao contribuinte (cfr. art.ºs 19.º, 26.º e 40.º do CIVA).
É um imposto plurifásico, porque é liquidado em todas as fases do circuito económico, desde o produtor ao retalhista. Sendo plurifásico, não é cumulativo, pois o seu pagamento é fraccionado pelos vários intervenientes do circuito económico, através do método do crédito do imposto.
Depois de verificado algum daqueles elementos – transmissão do bem ou a prestação do serviço mediante um preço -, surge o imposto e a obrigação torna-se certa e exigível.
Ao comprador do bem ou ao utente do serviço compete pagar o imposto, enquanto ao vendedor ou ao prestador do mesmo serviço incumbe proceder à sua liquidação e cobrança substituindo-se à Administração Fiscal.
A liquidação deve ser efectuada na factura ou em documento equivalente, devendo conter todos os elementos referidos no art.º 35.º do CIVA.
Um desses elementos consiste na indicação do preço, líquido de imposto, bem como a taxa aplicável e o montante de imposto devido.
São os sujeitos passivos não isentos que efectuam a liquidação do IVA, relativamente às suas vendas de bens e prestação de serviços, depois de deduzido o imposto por si suportado, devendo entregar, atempadamente, ao Estado a diferença entre o imposto liquidado e o imposto suportado[7]. São, pois, eles quem liquida e cobra o imposto por conta do Estado[8].
As quantias retidas pela empresa, a título de IVA liquidado, aparecem discriminadas contabilisticamente, de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística, na conta 2433 do balancete analítico. No entanto, por vezes, constata-se que esses valores, apesar de referidos no balancete, não existem efectivamente nos cofres da empresa, porque ainda não os recebeu[9].
Os prazos de entrega do imposto liquidado estão previstos no art.º 41.º do CIVA.
O art.º 88.º do mesmo Código prevê os casos de liquidação oficiosa do imposto pelos serviços centrais, o art.º 89.º a liquidação oficiosa pelo chefe do serviço de finanças e o art.º 91.º estabelece que se considera efectuada a liquidação do imposto depois de concluído o procedimento de revisão previsto na lei geral tributária notificando-se o sujeito passivo nos termos e para os efeitos do artigo 28.º.
Neste artigo regulamentam-se “as situações em que o apuramento do imposto a pagar pelo sujeito passivo compete à administração fiscal (rectificação de declarações, liquidação oficiosa, liquidação feita pelos serviços em caso de arrematação, venda judicial ou administrativa, conciliação, contratos de transacção e importações)”, havendo “a preocupação de as autonomizar relativamente àquelas em que a obrigação de pagamento aparece na sequência de um apuramento de imposto efectuado pelo sujeito passivo.
No caso de, fundamentadamente, a administração fiscal considerar que das declarações de imposto apresentadas pelo sujeito passivo consta um montante de imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, compete aos serviços proceder à rectificação das declarações em ordem à liquidação adicional da diferença (artigo 87.º).
Também no caso de fundamentadamente a administração fiscal concluir pela prática de omissões e inexactidões na escrituração ou na declaração a que são obrigados os pequenos retalhistas do regime especial respectivo, competirá aos serviços determinar qual o montante de imposto a pagar por tais sujeitos passivos, determinação essa que não terá em conta o modo especial de tributação (e consequente apuramento de imposto), referido no artigo 60.º.
A não apresentação da declaração periódica devida levará também à necessidade de os serviços de administração fiscal procederem ao apuramento (oficioso) da dívida do sujeito passivo (artigo 88.º).
Todas estas situações motivarão a notificação do seu resultado ao contribuinte, para que este efectue o pagamento do imposto junto das entidades competentes no prazo de 15 dias a contar da notificação e para que possa accionar os meios de defesa que fazem parte das suas garantias gerais”[10].
Não foi alegado, nem se mostra provado, que o crédito reclamado resulte de alguma das situações em que a liquidação do imposto a pagar pelo sujeito passivo compete à administração fiscal.
No aditamento à petição inicial foi citado o art.º 28.º, mas sem qualquer suporte fáctico.
Na certidão das Finanças junta com a petição e que constitui as fls. 4 a 6 dos autos, também nada consta a esse respeito, referindo-se apenas que se trata de “impostos englobados na conta corrente”, o que afasta a liquidação oficiosa.
Na mesma certidão constam dois períodos de tributação, sendo um de Setembro e outro de Outubro de 2013.
Qualquer desses períodos situa-se muito depois do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência, o qual ocorreu em 15/3/2013.
Por isso, a devedora dos valores nela mencionados jamais pode ser a sociedade insolvente, como ali também é referido.
Consequentemente, o Estado não é credor da insolvência relativamente ao valor que reclama nesta acção, através do Ministério Público, já que não preenche o conceito de credores da insolvência nos termos definidos pelo art.º 47.º.
Com efeito, este preceito dispõe:
“1. Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2.…
3. São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo.
4.…”
Daqui resulta que são considerados créditos sobre a insolvência “aqueles créditos sobre o insolvente que tenham natureza patrimonial, ou sejam garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à declaração de insolvência (art.º 47.º, n.º 1), e ainda aqueles cujos titulares mostrem tê-los adquirido no decurso do processo (art.º 47.º, n.º 3).”[11]
Não sendo esse o presente caso, por se reportar a crédito cujo fundamento é posterior à data da declaração de insolvência, o crédito reclamado não é um crédito sobre a insolvência e, como tal, não pode basear uma acção de verificação ulterior de créditos como a presente, a qual carece, assim de fundamento legal.
Tudo indica que se trata de uma dívida da massa insolvente, resultante de actos de administração, susceptível de ser enquadrada no art.º 51.º, n.º 1, al. c).
É que aqui incluem-se as dívidas relativas às obrigações tributárias geradas pelos actos praticados após a declaração de insolvência, com a manutenção da empresa em actividade ou com a própria liquidação e venda dos bens que compõem a massa insolvente[12].
Assim sendo, como é, o autor jamais poderia ver reconhecido o crédito invocado, por falta de fundamento legal, como decidiu a sentença recorrida.
Resta acrescentar que o preceito legal indicado no recurso como violado – o art.º 146.º, n.º 2, al. b), parte final – “refere expressamente constituição do crédito e não vencimento ou exigibilidade, conceitos absolutamente distintos”[13].
A constituição do crédito ocorreu com a liquidação do imposto, no caso no fim do período da tributação, e não com o vencimento, como parece pressupor o apelante, pelo que há muito teria sido ultrapassado o prazo previsto naquele preceito legal quando a acção foi instaurada, o que daria lugar à verificação da caducidade, mas que não se declara, atenta a falta de fundamento legal para a instauração da mesma acção, como se deixou dito.
Finalmente, há que dizer que a improcedência da acção daria lugar à absolvição do pedido e não da instância, como se decidiu na sentença, mas que não podemos alterar, atento o princípio da proibição da reformatio in peius.
Destarte, improcede a apelação, pelo que a sentença tem que ser mantida.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC:
1. O IVA é um imposto indirecto e geral sobre o consumo, plurifásico e de auto-lançamento, cuja liquidação e cobrança por parte do Estado competem aos sujeitos passivos não isentos.
2. Todavia, há situações de liquidação oficiosa pela administração fiscal, regulamentadas no art.º 28.º do CIVA.
3. Alegado e provado que o período de tributação do IVA é posterior ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, não tem fundamento legal a acção para verificação ulterior do correspondente crédito, por não constituir um crédito sobre a insolvência.
4. A constituição do crédito a que alude a parte final da alínea b) do n.º 2 do art.º 146.º do CIRE nada tem a ver com o seu vencimento ou exigibilidade por serem conceitos absolutamente distintos.

III. Decisão

Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pelo apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), visto que, neste caso, não beneficia da isenção subjectiva prevista no art.º 4.º, n.º 1, al. a) do RCP.
*
Porto, 26 de Maio de 2015
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
____________
[1] Apesar de a letra da sua epígrafe e do seu corpo parecer resultar que o que se impugna é apenas o reconhecimento de créditos e não também o não reconhecimento, quando é manifesto que a impugnação abrange as duas situações, porquanto, se é da lista de créditos não reconhecidos que constam as razões do não reconhecimento, não se vislumbra como possa deixar de ser tomada em consideração na impugnação (cfr., neste sentido, Maria José Costeira, Themis, edição especial (2005), pág. 31, e Salvador da Costa, Revista do CEJ, IV (1.º Semestre 2006), pág. 106, ambos citados por Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.ª edição, pág. 232, que aqui temos vindo a seguir].
[2] Neste sentido, Mariana França Gouveia, Themis, edição especial (2005), pág. 160 e, ao que parece, Menezes Leitão, obra citada, pág. 235, que ali cita aquela.
[3] Forma de processo extinta pelo actual CPC, a partir de 1/9/2013, passando a existir uma única forma para o processo comum de declaração (art.º 548.º do CPC e art.ºs 5.º, n.º 2 e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6).
[4] Cfr. Menezes Leitão, obra citada, págs. 241 e 242.
[5] Ao invocar o acórdão desta Relação de 21/2/2013, proferido no processo n.º 2981/11.0TBSTS-G.P1, disponível em www.dgsi.pt, que se debruçou, exclusivamente, sobre a aplicação da lei no tempo, em face da redacção dada à al. b) do n.º 2 do art.º 146.º pela Lei n.º 16/2012, de 20/4, e o prazo nela previsto, considerando-o como de caducidade, não susceptível de conhecimento oficioso, como, aliás, já foi afirmado noutros arestos (cfr., entre outros, os acórdãos desta Relação de 21/10/2008, proc. 0822995 e de 17/6/2014, processo n.º 1218/12.9TJVNF-Q.P1, disponíveis no mesmo sítio), entendimento que nem sequer é unânime, nomeadamente na jurisprudência, pois há quem entenda que se trata de um prazo de natureza processual, aplicando-se-lhe, quanto aos efeitos e regime de conhecimento, o Código de Processo Civil (v.g. acórdãos desta Relação de 13/3/2014, processo n.º 1218/12.9TJVNF-N.P1, de 27/03/2014, processo n.º 1218/12.9TJVNF-W.P1 e de 10/4/2014, processo n.º 1218/12.9TJVNF-P.P1, disponíveis no mesmo sítio da internet).
[6] Pelo que não há que tomar posição relativamente à divergência acerca do seu conhecimento.
[7] É o denominado método do crédito do imposto ou método subtractivo indirecto.
[8] José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6.ª ed., p. 620, citado por Sara Luís da Silva Veiga Dias na sua tesse de mestrado “O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência”, pág. 32, in http://repositorium.sdum.uminho.pt.
[9] Cfr. Sara Dias, obra citada, pág. 34.
[10] In anotações ao art.º 28.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado - Notas explicativas do Núcleo do IVA, de 1985, ed. da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
[11] Menezes Leitão, obra citada, págs. 97 e 98.
[12] Cfr. Sara Dias, local citado, pág. 36.
[13] Neste sentido, o acórdão desta Relação de 2/6/2014, processo n.º 495/12.0TBVFR-F.P1, disponível em www.dgsi.pt.