Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
664/04.6TJVNF-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
NOTIFICAÇÃO DO TITULAR DA CONTA
Nº do Documento: RP20140121664/04.6TJVNF-C.P1
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo sido solicitadas informações referentes a conta de depósitos a uma instituição bancária, esta pode escusar-se legitimamente a prestar tais informações fundamentando-se para tal no dever de segredo bancário previsto no art. 78º do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12;
II - Sendo legítima a escusa da instituição bancária, há que desencadear, de modo a obter as informações em causa, o incidente de quebra de segredo, o qual será decidido pelo tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa ocorreu.
III - Porém, como diligência prévia, deverá neste caso, em que estamos perante um inventário destinado a separação de meações, determinar-se a notificação do cabeça-de-casal no sentido de, sendo titular da conta, prestar autorização para os efeitos do art. 79º, nº 1 do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12;
IV - Só na falta desta autorização, se desencadeará o incidente de quebra de segredo bancário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 664/04.6 TJVNF-C.P1
Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão – 4º Juízo Cível
Apelação (em separado)
Recorrente: B…, SA
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
No âmbito do inventário para partilha dos bens comuns do casal constituído pela requerente C… e pelo requerido D… dissolvido por divórcio, este, nomeado cabeça-de-casal, veio apresentar a respectiva relação de bens.
A requerente C…, notificada da relação de bens, reclamou da mesma, tendo referido, nomeadamente, que o cabeça-de-casal se esqueceu de relacionar duas contas bancárias, uma no E…, SA e outra no B…, SA, as quais contêm dinheiros comuns do ex-casal.
Solicitou assim a notificação destas entidades bancárias para virem aos autos juntar extractos das contas tituladas pelo cabeça-de-casal, isoladamente ou conjuntamente com a própria reclamante.
O cabeça-de-casal na sua resposta alegou que tal não correspondia à realidade.
O Mmº Juiz “a quo” proferiu depois o seguinte despacho, com data de 2.11.2012:
“Notifique as entidades bancárias referidas sob o ponto 11 de fls. 45, para, no prazo de 10 dias, informarem se os interessados C… e D… eram, aí, na data de 2 de Março de 2004, titulares ou co-titulares de contas bancárias e, na afirmativa, qual/quais os respectivos saldos, por referência a essa mesma data.”
O B…, SA, notificado deste despacho, apresentou a resposta que se passa a transcrever:
“(…) informamos que, nos termos dos arts. 78º e 79º do Diploma que regulamenta o Regime Geral das Instituições de Crédito, as informações solicitadas encontram-se abrangidas pelo segredo bancário, não nos sendo possível facultá-l(o)as, sem obtermos, previamente, autorização do(s) respectivo(s ) titular(es).
Pelos motivos invocados, requeremos a V. Exas., que nos sejam facultadas as respectivas autorizações, a fim de darmos cumprimento ao solicitado com o envio dos elementos e informações solicitados.”
A requerente C…, face ao teor desta resposta, suscitou o incidente de levantamento do sigilo bancário a ser decidido pelo Tribunal da Relação do Porto.
Todavia, o Mmº Juiz “a quo” proferiu o seguinte despacho com data de 16.1.2013:
“Fls. 73/74: Os elementos solicitados às referidas entidades bancárias são-no, no âmbito de um processo de inventário para separação de meações, na sequência de divórcio. Por isso, estando ambos os visados envolvidos, como partes, nesta acção, não pode, neste caso, deixar de considerar-se que tais elementos beneficiam, apenas, do regime de confidencialidade de dados, que o juiz pode dispensar, quando considere, como, de facto considera no caso sub judicio, essenciais ao apuramento da situação patrimonial dos ex-cônjuges.
Por isso mesmo, considero ilegítima a recusa invocada pelas entidades bancárias em causa, determinando que as mesmas, no prazo de 10 dias, prestem as informações que lhes foram solicitadas, sob pena de multa e sem prejuízo das demais sanções legalmente previstas.
Notifique.”
O B…, SA apresentou depois a seguinte resposta:
“Tomámos boa nota do teor do ofício desse Tribunal do qual resulta insistência que este Banco deverá informar esses autos se C… e D… eram, na data de 2 de Março de 2004, titulares ou co-titulares de contas bancárias e, na afirmativa, qual/quais os respectivos saldos, por referência a essa mesma data, alegando que tais elementos são solicitados no âmbito de um processo de inventário para separação de meações, na sequência de divórcio, estando ambos os visados envolvidos, pelo que tais elementos apenas beneficiam do regime de confidencialidade de dados. Concederam-nos o prazo de 10 dias para prestar tais informações, sob pena de multa e demais sanções legalmente previstas.
Ora, s.m.o., os elementos que nos solicitam encontram-se abrangidos por sigilo bancário. Nos termos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, mais precisamente por força do disposto no art. 78º, esta Instituição não pode revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da Instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
Nos termos do disposto no nº 3, do art. 519º do Código do Processo Civil, que “(…) A recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional (…)”. Os elementos ora pedidos encontram-se abrangidos pelo sigilo bancário.
A quebra deste dever implicará uma violação do segredo profissional a que este Banco se encontra sujeito (art. 78º e art. 84º, R.G.I.C.S.F.), bem como a prática de um crime previsto e punido nos termos do art. 195º do Código Penal.
Face ao exposto, e uma vez que da referida comunicação não consta que o pedido tenha sido apresentado pelos alegados titulares da(s) conta(s), nem que o respectivo Tribunal da Relação tenha deferido incidente de dispensa de sigilo bancário, vem-se por este meio, muito respeitosamente, comunicar que esta Instituição Bancária entende que não se verificam os pressupostos de quebra do sigilo bancário a que está adstrita, que expressamente invoca, considerando assim justificado o não envio dos elementos solicitados (para efeitos do disposto no art. 537º do C.P.C.).
Face ao acima exposto, vem este Banco, muito respeitosamente, solicitar a esse Tribunal se digne informar se o(s) alegados titular(es) da conta deu(ram) expressa autorização para o levantamento do sigilo bancário, se foi(oram) o(s) próprio(s) a requerer tal diligência, uma vez que directamente não o fez(izeram), ou se foi deduzido algum incidente de levantamento de sigilo bancário que tenha merecido acolhimento favorável por parte do Tribunal da Relação respectivo.
Logo que removidas as limitações legais acima expostas, esta Instituição Bancária estará em condições de dar cumprimento ao que vier a ser determinado sem violação do segredo bancário a que está adstrita, nem a prática do crime acima indicado.”
Sobre esta exposição incidiu o seguinte despacho datado de 3.4.2013:
“Face ao teor do despacho exarado a fls. 81 e à resposta da “B…, S.A.” constante de fls. 87 e vº, da qual se retira, com evidência, que violou, ostensivamente, o dever de colaboração, decide-se, nos termos do preceituado no art. 519º, nº 2 do C.P.C., condenar a aludida recusante numa multa correspondente a três Ucs.
Notifique, reiterando-se, no que à “B…, S.A.” respeita, o teor do despacho de fls. 81.”
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o “B…, SA” que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) Os elementos solicitados pelo Tribunal “a quo” ao B… (titularidade e valor do saldo de conta bancária) estão sujeitos a sigilo bancário.
B) O caso em apreço não integra nenhuma das excepções legalmente admitidas ao dever de sigilo.
C) Ou seja, a entrega por parte do B… dos elementos pretendidos traduzir-se-ia numa violação frontal do dever de segredo profissional a que o Banco se encontra sujeito (art. 78º e art. 84º, ambos do RGICSF), mas para além disso consubstanciaria ainda a prática do crime previsto e punido no art. 195º do Código Penal.
D) Face ao exposto, julga-se inequívoco que a matéria em causa não é susceptível de ser objecto de dispensa de confidencialidade pelo juiz da causa, nos termos do art. 519º-A do CPC, pois está sujeita a um dever de sigilo.
E) Com efeito, os elementos pretendidos pelo Tribunal estão abrangidos por um dever de segredo profissional, e não por um mero dever de confidencialidade, nos termos e para os efeitos do art. 519º-A do CPC.
F) Desta forma, a quebra do dever de segredo profissional a que o Banco está sujeito, neste caso em que não existiu autorização por parte do titular da conta, só pode ser concretizada mediante o recurso ao respectivo incidente de quebra de sigilo, regulado no art. 135º do CPP.
G) O que “in casu” não se verificou.
H) Em suma, entende-se que a recusa do B…, pelos motivos acima expostos, em fornecer os elementos solicitados pelo Tribunal “a quo” configura uma recusa legítima do dever de cooperação, não constituindo, assim, fundamento para a aplicação de qualquer tipo de sanção.
I) Ao entender diversamente o despacho recorrido incorreu em ilegalidade, por violação frontal dos arts. 78º do RGICSF, e 519º, 3, al. c) do CPC, pelo que deve ser revogado.
Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se a recusa do “B…, S.A.” em fornecer as informações solicitadas pelo Tribunal foi legítima e se há ou não fundamento para lhe ser aplicada sanção.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso são os que constam do precedente relatório, para o qual se remete.
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Passemos à apreciação jurídica.
De acordo com o disposto no art. 78º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
Porém, o art. 79º do mesmo diploma estabelece que os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição (nº 1). Fora desta situação, tais factos e elementos poderão ser revelados: a) ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições; b) à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições; c) ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respectivas atribuições[1]; d) às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal[2]; e) à administração tributária, no âmbito das suas atribuições[3]; f) quando exista outra disposição que expressamente limite o dever de segredo (nº 2).
O sigilo bancário serve o interesse público: mantém a confiança no sistema bancário, indispensável ao bom funcionamento dos bancos e da economia. Mas a possibilidade do seu levantamento por simples autorização do cliente revela estarmos perante um segredo fundamentalmente estabelecido para protecção de interesses particulares e como tal disponível, daí decorrendo que a confiança a manter radica, em última análise, no cliente do banco.[4]
Em termos jurídico-positivos, o segredo bancário começa por se apoiar na própria Constituição e, designadamente, nos seus arts. 26º, nº 1 (intimidade da vida privada e familiar) e 25º (integridade moral das pessoas). É que o banqueiro pode, através da análise dos movimentos das contas de depósitos ou dos movimentos com cartões, seguir a vida dos cidadãos. Facultar tais elementos a terceiros significaria pôr cobro à intimidade das pessoas. Por outro lado, a revelação de depósitos, movimentos e despesas pode ser fonte de pressão, de troça ou de suspeição. Daí que o segredo bancário só cesse com o consentimento do cliente.[5]
O segredo bancário deriva ainda da existência de uma relação jurídica bancária, de base contratual. Ao concluir a abertura de conta, o banqueiro e o seu cliente, explícita ou implicitamente, assentam em que o sigilo será respeitado, o que sempre se imporia como dever acessório, imposto pela boa fé (cfr. art. 762º, nº 2 do Cód. Civil).[6]
Por seu turno, no art. 519º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil de 1961 [art. 417º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil] estatui-se que «todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade...facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.»[7]
Contudo, face ao que se dispõe na alínea c) do nº 3 deste mesmo preceito a recusa em cooperar é legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do que se acha preceituado no seu nº 4.
Aí se estatui que «deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.»
Ora, estabelece-se o seguinte no art. 135º do Cód. do Proc. Penal, que tem a epígrafe “segredo profissional”:
«1. Os (...) membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3. O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.»
Do texto deste artigo, que se mostra essencial para a decisão do presente recurso, constata-se existirem duas situações distintas: as de legitimidade e as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações por parte das entidades bancárias às autoridades judiciárias.
A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, ou seja, do cumprimento do dever de segredo a que a instituição bancária está obrigada nos termos do art. 78º do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12, donde decorre que a medida da legitimidade da escusa é a da extensão do segredo bancário.
Por outro lado, a escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo bancário ou quando tiver havido consentimento do titular da conta.
O nº 2 do art. 135º reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, estatuindo que nessa hipótese o próprio tribunal onde ela é efectuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações.
Neste caso, a lei não impõe que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses de modo a determinar o que deverá prevalecer, nem tal faria sentido, uma vez que não existe segredo. Por isso, a lei autoriza o tribunal a ordenar a prestação de informações, desde que apurada a ilegitimidade da escusa, não podendo a instituição bancária subtrair-se ao cumprimento do ordenado. É que não estamos aqui perante uma situação de quebra de segredo, atendendo a que os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo bancário ou porque houve autorização do titular da conta.
Porém, bem distinto é o caso da legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização por parte do titular da conta.
Nesta hipótese, a obtenção das informações bancárias já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo bancário; do outro, os interesses na realização da justiça.
Acontece que este juízo, face ao que se preceitua no nº 3 do art. 135º, deverá ser efectuado no âmbito de um incidente específico – o incidente de quebra do segredo profissional -, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.
Verifica-se, assim, que existe um tratamento diferenciado para os casos de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de informações por parte das instituições bancárias, sendo mais simples esta segunda hipótese, que é da competência do próprio tribunal onde a escusa tenha sido invocada, porquanto há tão somente que constatar a inexistência de sigilo e, apurada a ilegitimidade da escusa, determinar a prestação das informações.
Já no caso da legitimidade da escusa, pois os elementos pretendidos acham-se cobertos pelo segredo, torna-se imprescindível desencadear o incidente de quebra de segredo para obrigar a entidade bancária a prestar tais elementos, sucedendo que o juízo sobre os interesses em conflito deverá, face ao texto legal, ser cometido a um tribunal superior.
Deste modo, tendo sido invocado o sigilo bancário, deverá o tribunal decidir se a correspondente escusa é legítima ou ilegítima. Concluindo pela ilegitimidade da escusa, ordenará a prestação das informações em causa, sem que a instituição bancária possa deixar de cumprir o ordenado. Concluindo, ao invés, pela legitimidade da escusa, dois caminhos podem ser trilhados pelo tribunal: ou se conforma com a invocação do segredo e não insiste na obtenção das informações, ou desencadeia então o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior.
Com efeito, a quebra do segredo bancário, por opção do legislador, é necessariamente da competência de um tribunal superior (Tribunal da Relação ou Supremo Tribunal de Justiça), o qual não surge como uma instância residual, apenas para os casos de dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como a instância competente para a decisão do incidente de quebra de segredo, sempre que se esteja perante uma situação em que a escusa é legítima.[8] [9]
Regressando agora ao caso concreto, o que se constata é que o tribunal “a quo”, na sequência do que foi requerido nesse sentido, notificou o “B…, S.A.” para informar se os interessados C… e D… eram aí, na data de 2.3.2004, titulares ou co-titulares de contas bancárias e, na afirmativa, quais os respectivos saldos por referência a essa mesma data.
Sustentava a reclamante que tais contas conteriam dinheiros comuns do ex-casal.
Sucede que o “B…, S.A.” não forneceu tais informações, invocando que as mesmas estão sujeitas a segredo bancário nos termos dos arts. 78º e 79º do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12.
Porém, o Mmº Juiz “a quo” considerou ilegítima tal escusa, entendendo que os elementos solicitados beneficiam apenas do regime da confidencialidade de dados, e voltou a insistir pela prestação de tais informações bancárias, sob pena de multa.
O “B…, S.A.” mais uma vez não forneceu as referidas informações, tendo solicitado ao Tribunal que o informasse sobre a existência de autorização para o levantamento do sigilo bancário por parte dos titulares da conta ou sobre a dedução de incidente de levantamento desse sigilo com acolhimento favorável pelo Tribunal da Relação.
O Mmº Juiz “a quo”, perante tal posição do “B…, S.A.”, condenou esta entidade na multa de três Ucs e reiterou anterior despacho no sentido da prestação das informações.
Acontece, contudo, que a escusa do “B…, S.A.”, centrada no dever de segredo bancário se mostra legítima. Com efeito, visando a informação solicitada apurar o saldo de uma conta bancária e a sua titularidade com referência à data de 2.3.2004, é inequívoco que tais elementos se encontram a coberto do sigilo bancário nos termos do art. 78º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 282/92, de 31.12.
Acresce não resultar dos autos que o cabeça-de-casal D…, suposto titular da dita conta, tenha dado autorização expressa com vista à prestação de tais informações e também não se verifica aqui nenhuma das excepções ao dever de sigilo previstas no art. 79º, nº 2 do Dec. Lei nº 282/92.
Não podia, por isso, o Mmº Juiz “a quo”, considerando sem mais que os elementos solicitados beneficiam somente do regime da simples confidencialidade de dados, dispensar esta, ao abrigo do art. 519º-A do Cód. do Proc. Civil de 1961 [art. 418º do Novo Cód. do Proc. Civil], por entender que esses elementos são essenciais para o apuramento da situação patrimonial dos ex-cônjuges e consequentemente para a justa composição do litígio.
Haveria pois que desencadear o incidente de quebra de segredo de forma a obrigar a entidade bancária a fornecer os elementos em causa, sendo a decisão deste incidente da competência do tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa ocorreu, que, neste caso, seria o Tribunal da Relação do Porto, o que não se verificou, apesar de ter sido suscitado pela própria requerente C….
Deste modo, mostrando-se legítima a recusa do “B…, S.A.” em fornecer os elementos bancários solicitados, em consonância com o disposto no art. 519º, nº 3, al. c) do Cód. do Proc. Civil de 1961 [art. 417º, nº 3, al. c) do Novo Cód. do Proc. Civil], concluir-se-á que da parte desta entidade não houve qualquer violação do dever de cooperação justificativa de aplicação de sanção, como se fez no despacho recorrido.
Por conseguinte, há que revogá-lo e substitui-lo por outro que determine, num primeiro momento, a notificação do cabeça-de-casal D… no sentido de, sendo titular da conta no “B…, S.A.”, prestar autorização para os efeitos do art. 79º, nº 1 do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12.
Só na falta desta autorização, se deverá desencadear o incidente de quebra de segredo bancário a ser decidido, após extracção e subsequente envio de certidão das peças processuais pertinentes, pelo Tribunal da Relação do Porto. [10]
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Sintetizando:
- Tendo sido solicitadas informações referentes a conta de depósitos a uma instituição bancária, esta pode escusar-se legitimamente a prestar tais informações fundamentando-se para tal no dever de segredo bancário previsto no art. 78º do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12;
- Sendo legítima a escusa da instituição bancária, há que desencadear, de modo a obter as informações em causa, o incidente de quebra de segredo, o qual será decidido pelo tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa ocorreu.
- Porém, como diligência prévia, deverá neste caso, em que estamos perante um inventário destinado a separação de meações, determinar-se a notificação do cabeça-de-casal no sentido de, sendo titular da conta, prestar autorização para os efeitos do art. 79º, nº 1 do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12;
- Só na falta desta autorização, se desencadeará o incidente de quebra de segredo bancário.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso interposto pelo “B…, S.A.” e em consequência:
a) Revoga-se o despacho recorrido;
b) Determina-se a notificação do cabeça-de-casal D… para prestar autorização para os efeitos do art. 79º, nº 1, do Dec. Lei nº 298/92, de 31.12 e, não sendo esta obtida, determina-se a subsequente tramitação do incidente de quebra do segredo bancário a ser decidido, após extracção e subsequente envio de certidão das peças processuais pertinentes, pelo Tribunal da Relação do Porto.
Sem custas.

Porto, 21.1.2014
Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
________________
[1] Redacção do Dec. Lei nº 222/99.
[2] Redacção da Lei nº 36/2010.
[3] Redacção da Lei nº 94/2009.
[4] Cfr. Lebre de Freitas, “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 564.
[5] Cfr. Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 3ª ed., págs. 264/5.
[6] Cfr. Menezes Cordeiro, ibidem, pág. 265.
[7] Dever de cooperação a que alude igualmente o art. 266 do Cód. do Proc. Civil de 1961 [art. 7º do Novo Cód. do Proc. Civil].
[8] Cfr. Acórdão – de fixação de jurisprudência - do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2008, de 13.2.2008, proferido pelo plenário das secções criminais, disponível in www.dgsi.pt. (p. 07P894).
[9] Deixa-se assinalado que o facto de ter sido alterada a redacção da alínea d), do n.º 2, do artº 79º do Dec. Lei n.º 298/92, de 31.12. pela Lei n.º 36/2010, de 2.9, dela passando constar a expressão: “Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal”, em vez da expressão: “nos termos previstos na lei penal e de processo penal”, em nada contende com a aplicação do incidente de quebra de segredo, reportado ao sigilo bancário, no âmbito do processo civil. – Cfr., por ex., Ac. Rel. Lisboa de 4.12.2012, p. 1555/09.0 TBALM-A.L1, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr., em sentido idêntico, entre outros, Ac. Rel. Porto de 12.9.2011, p. 3553/06.6 TJVNF-D.P1 (proferido também em inventário para separação de meações); Ac. Rel. Porto de 14.10.2013, p. 2237/12.0 TJLSB-A.P1; Decisão sumária da Rel. Coimbra de 6.4.2010, p. 120-C/2000.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.