Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
521/18.9T8AMT-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP20190411521/18.9T8AMT-F.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º168, FLS.289-296 VRS.)
Área Temática: .
Sumário: I - Só têm a natureza de dívidas da massa as dívidas contraídas no próprio processo de insolvência onde o seu pagamento vai ter lugar e não dívidas contraídas em anterior processo de insolvência ainda que aí não sejam pagas e tenham depois de ser reclamadas em posterior processo de insolvência.
II - A remuneração do administrador judicial é um encargo com despesas de justiça pelo que goza do privilégio mobiliário previsto no artigo 738.º do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:521.18.9T8AMT-F.P1
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Sumário
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, UNIPESSOAL, LDA., pessoa colectiva n.º ………., com sede em …, Guimarães, representada por C…, contribuinte fiscal n.º ………, instaurou acção de verificação ulterior de créditos contra a MASSA INSOLVENTE DE D… UNIPESSOAL, LDA., representada pelo Administrador de Insolvência E…, com domicílio profissional em …, Vila Nova de Famalicão; os CREDORES da Massa Insolvente de D… UNIPESSOAL, LDA.; e a INSOLVENTE D… UNIPESSOAL, LDA., pessoa colectiva n.º ………., com sede em Felgueiras, formulando contra estes o seguinte pedido: ser reconhecido o crédito da autora, no montante de 26.776,43€ devendo ser considerado como crédito sobre massa e graduado no lugar que, por lei, lhe competir, com vista ao seu pagamento, subsidiariamente deverá ser classificado como crédito privilegiado.
Para o efeito, alega que foi nomeado Administrador Judicial no âmbito de um processo de insolvência anterior da ora insolvente e que em função dos serviços que ali prestou se tornou credor da quantia que menciona na petição inicial, a qual constitui uma dívida da massa insolvente ou, assim não se entendendo, uma divida dotada de privilégio.
Os réus citados com força de citação pessoal não apresentaram contestação, tendo sido julgados provados os factos alegados na petição inicial.
Após alegações, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente, reconhecendo o crédito reclamado, no montante global de €26.776,43, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a instauração da acção até integral pagamento, sobre os montantes de 5.379,45€ e 10.800,00€, e qualificando o crédito como comum.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
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Não houve resposta às alegações de recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o crédito reclamado pelo autor é uma dívida da massa insolvente ou, subsidiariamente, um crédito privilegiado sobre a insolvência.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. Por sentença prolatada no pretérito dia 05.04.2018, já transitada em julgado, foi declarada insolvente nos autos a devedora D… Unipessoal, Lda., tendo sido nomeado como seu Administrador de Insolvência o Sr. Dr. E….
2. Sucede que, a insolvente D… Unipessoal, Lda., já havia sido declarada insolvente em 15.12.2009, no âmbito dos autos de processo com o n.º 2855/09.4TBFLG, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de Felgueiras, 1º Juízo, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência o Sr. Dr. C…, legal representante da aqui autora.
3. No âmbito desse processo de insolvência com o n.º 2855/09.4TBFLG foi aprovado e homologado plano de insolvência (cf. documento de fls. 11 verso e ss. cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
4. Plano de insolvência no qual ficou previsto o pagamento ao Sr. Administrador de Insolvência C… do valor mensal de 300,00€ (trezentos euros) durante o período de fiscalização de três anos, bem como o pagamento da remuneração pelo acompanhamento e gestão do estabelecimento compreendido entre a declaração de insolvência e a homologação do plano de insolvência.
5. Nesta sequência, em 07.12.2010 foi proferido, ainda no âmbito desse processo de insolvência, o seguinte despacho “Aquando da assembleia de apreciação do relatório a que alude o art.º 156.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas e, relativamente ao ponto 10.6 do relatório, foi votada a proposta de “remuneração do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência pela fiscalização e acompanhamento da Administração no valor de 750,00€/mês pelo período compreendido entre a declaração de insolvência, em 15/12/2009 e o encerramento do estabelecimento contido na massa insolvente ou o encerramento do processo com a aprovação do plano de insolvência”, a qual foi aprovada com 69,19% dos votos presentes (…). Ora, sendo certo que não foi determinado o encerramento do estabelecimento, prosseguindo a insolvente a sua actividade como decorre do plano de insolvência aprovado e já devidamente homologado, ou seja, tendo sido viabilizada a insolvente, compete o supra referido pagamento dos 750,00€/mês insolvente/devedora. Assim, determino se notifique o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos nota de honorários devidamente discriminada e, pela totalidade ainda em dívida pelos serviços que prestou, de acordo com o aprovado na assembleia de credores supra aludida.” (cf. documento de fls. 44 cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
6. Em resposta a este despacho, o Sr. Administrador de Insolvência C…, em 23.12.2010, informou o Venerando Tribunal do seguinte “1 – Que apesar de ter sido deliberado o pagamento de 750,00€/mês (+IVA-IRS) ao aqui Signatário, somente ainda foi pago o valor líquido de 1.496,25€, consoante comprovativos em anexo, estando ainda por liquidar o total de 4.104,38€ (já c/IVA a 21% e retenção de IRS a 21,5%). 2 – Acresce que o Plano de Insolvência aprovado e homologado previa o pagamento mensal de 300€ (+IVA-IRS) ao Administrador de Insolvência pelas tarefas de fiscalização, não tendo nada sido pago a esse respeito pela Insolvente.”
7. Tendo, uma vez mais, em resposta ao requerimento apresentado por este AI, atribuído o Venerando Tribunal, em 24.01.2011, a responsabilidade por esse pagamento à ora insolvente (cf. documento de fls. 44 e 45 cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
8. Nesta sequência, mercê do não pagamento pela devedora D…, ora insolvente, à aqui autora dos valores supra mencionados em dívida, foram pelo Sr. Administrador de Insolvência C… enviadas várias missivas a interpelá-la para o competente pagamento (cf. Documentos de fls. 55 e ss cujo teor se dá aqui por integrado e reproduzido para os devidos e legais efeitos).
9. Sem que, contudo, tenha procedido a devedora, ora insolvente, ao seu pagamento até à presente data à Autora.
IV. O mérito do recurso:
As únicas questões de que cumpre conhecer consistem em saber se o crédito da autora é uma dívida da massa ou uma dívida da insolvência e, neste caso, se possui privilégio creditório, devendo ser graduada como tal e não como crédito comum.
O crédito da autora corresponde à remuneração pelo trabalho que a autora realizou, no exercício das funções de Administrador Judicial, no âmbito de um anterior processo de insolvência da sociedade comercial agora declarada insolvente no presente processo, sendo que aquele anterior processo terminou com a homologação de um plano de insolvência que compreendeu a manutenção do estabelecimento.
Dito de outro modo, o que sucedeu foi que uma sociedade comercial foi alvo de um primeiro processo de insolvência, no qual exerceu funções de Administrador Judicial uma entidade que se tornou credora da respectiva remuneração. Naquele processo foi homologado plano de insolvência, tendo o processo sido encerrado sem que a remuneração do Administrador tivesse sido paga. Quando o Administrador Judicial ali foi, mais tarde, reclamar o pagamento, por despacho judicial foi consignado que a responsabilidade do pagamento era da insolvente. Posteriormente, a mesma sociedade comercial foi objecto de um segundo processo de insolvência, o presente, no qual aquela credora veio reclamar o seu crédito, pretendendo que o mesmo seja reconhecido como dívida da massa ou como crédito privilegiado.
Vejamos pois.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas faz uma distinção essencial entre dívidas da insolvência (a que correspondem, do lado activo da relação, créditos sobre a insolvência) e dívidas da massa (a que correspondem, do lado activo da relação, créditos sobre a massa).
Nos termos do artigo 47.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez «declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio». Esses créditos «bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência
Assim, os créditos cujo fundamento (cuja relação jurídica fundante) seja anterior à declaração de insolvência, são créditos sobre a insolvência (dívidas da insolvência), estão sujeitos à obrigação de reclamação no processo de insolvência, só obterão pagamento se aí forem julgados verificados, e só podem ser pagos após o trânsito em julgado dessa decisão, pela ordem de graduação determinada e na medida em que a receita financeira gerada pela liquidação da massa o permita.
Nos termos do artigo 51.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas «são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código: a) As custas do processo de insolvência; b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) As dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) As dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º». Estas dívidas da massa correspondem a créditos sobre a massa (titulados por credores da massa).
Os créditos sobre a massa (dívidas da massa) são pagos antes dos créditos sobre a insolvência (dívidas da insolvência), devendo o administrador deduzir da massa insolvente os bens ou direitos necessários à sua satisfação, bem como dos créditos de igual natureza que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo (artigo 172º, n.º 1, do CIRE). Os créditos sobre a massa são pagos nas datas do respectivo vencimento, qualquer que seja o estado do processo (artigo 172º, nº 2), à custa dos rendimentos da massa e, no excedente, e na devida proporção, imputadas ao produto de cada bem móvel ou imóvel, sendo que esta imputação não poderá ultrapassar os 10% do valor do bem, quando se trate de bem onerado com garantia real (artigo 172º, nº 2) – cf. Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 5.ª edição, pág. 268 -.
Mas porquê e o que implica esta distinção?
Nos termos do n.º 1 do artigo 46.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas.
A qualificação dos créditos no processo de insolvência tem como única razão de ser o estabelecimento de preferências de pagamento. A distinção entre créditos sobre a insolvência e créditos sobre a massa insolvente apenas serve para assegurar que primeiramente se paguem as dívidas relativas a actos sem os quais a própria liquidação não teria lugar e que redundam afinal em proveito comum dos credores. O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não é fonte jurídica material de novas obrigações alheias ao devedor, nem interfere materialmente com a estrutura das obrigações creditícias cuja liquidação se vai fazer no processo de insolvência.
A liquidação forçada em benefício dos credores no processo de insolvência tem como causa jurídica a insolvência do devedor e a necessidade de exercer a garantia patrimonial representada pelo seu património. Nessa medida, do ponto de vista da relação jurídica que é causa da obrigação creditícia, o titular da obrigação continua a ser o devedor e não passa a ser o Estado ou o Administrador de Insolvência que apenas são chamados a substituir o devedor para suprir a sua vontade ou inércia, num exercício do poder público de impor a liquidação patrimonial.
Se o devedor quisesse cumprir voluntariamente as suas obrigações perante os seus credores era ele que tinha de suportar os custos da actividade de obter as receitas que lhe permitiriam satisfazer os créditos dos seus credores (v.g. os custos da venda de património para obter dinheiro com que fazer esse pagamento). A situação não muda, do ponto de vista jurídico, quando o cumprimento é obtido por via coerciva e para o efeito se torna necessário realizar a venda do património (razão pela qual, por exemplo, também se houver remanescente do produto da liquidação ele é entregue ao devedor e não, por exemplo, repartido entre os credores ou perdido a favor do Estado).
Na verdade, a declaração de insolvência conduz à apreensão de todos os seus bens susceptíveis de penhora, que passam a constituir a massa insolvente. Essa separação de património para afectação às finalidades específicas da insolvência (a liquidação em benefício dos credores) não significa que os bens deixem de pertencer ao devedor; é precisamente por lhe pertencerem que o respectivo produto irá ser usado para responder pelas dívidas do insolvente! A separação patrimonial significa somente que esses bens passam a constituir um património autónomo, separado, afecto à satisfação de dívidas específicas, transferindo-se do insolvente para o administrador de insolvência (para que se possa concretizar a sua liquidação coerciva) os poderes de administração e disposição dos bens que passaram a integrar a massa insolvente – artigo 81.º, n.º 1, do CIRE –.
O administrador de insolvência (ou o Estado) não se torna proprietário dos bens do insolvente, apenas se substitui legalmente ao proprietário insolvente no exercício dos poderes de administração e disposição inerentes à propriedade. Por essa razão, os encargos com a liquidação da massa insolvente são ainda encargos do próprio devedor porque era sobre ele que recaia o dever jurídico de cumprir as suas obrigações, suportando os encargos inerentes a esse cumprimento juridicamente exigível.
Ao assumir obrigações e contrair dívidas exigíveis, responde com todo o seu património susceptível de penhora pelo cumprimento das suas obrigações (artigo 601.º do Código Civil) e, nessa medida, torna-se juridicamente responsável pelas despesas que o cumprimento possa demandar. Independentemente de o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas qualificar determinadas despesas como créditos sobre a massa (para lhe dar um tratamento preferencial ao nível do pagamento e assim agilizar a liquidação ou mesmo viabilizá-la porque na maior parte dos casos os actos da liquidação geram despesas que necessitam de ser liquidadas), o sujeito passivo da obrigação creditícia geradora das correspondentes dívidas é o devedor insolvente. Só assim se justifica, aliás, a disposição da alínea d) do n.º 1 do artigo 233.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo a qual, após o encerramento do processo os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos (o que não seria possível juridicamente se o devedor não fosse afinal o titular da relação material que é causa do direito de crédito e do correspondente estado de sujeição do devedor).
Isto posto, centremos a atenção nos dados do caso concreto.
Parece tautológico afirmar que não pode haver dívidas da massa … sem massa insolvente. Só após a declaração de insolvência e a entrada em funções do Administrador nomeado podem vir a constituir-se dívidas cuja fonte é o próprio processo de insolvência, e mais especificamente a administração, conservação e liquidação do património que, autonomizado sob a veste de massa insolvente, irá responder pela satisfação dos créditos.
A qualificação de uma dívida como dívida da massa é feita estritamente para efeitos do próprio processo que a gerou, não constituindo a atribuição de um título que acompanhe a dívida para além do âmbito do processo onde ela tinha aquela natureza. Qualquer dívida que no âmbito de outro processo de insolvência assumisse a natureza de dívida da massa, não assume a mesma natureza num novo e distinto processo de insolvência, instaurado anos depois da cessação do anterior, precisamente porque só têm tal natureza os créditos que por referência ao processo onde se constituíram se integram na previsão do artigo 51.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas., a qual tem sempre como critério de determinação o próprio processo de insolvência.
Para contornar essa evidência a autora defende a aplicação analógica do disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Segundo este preceito, na sentença de graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora, mas as custas pagas pelo autor ou exequente constituem dívidas da massa insolvente.
Esta previsão reporta-se às situações em que um credor instaurou uma acção judicial contra o devedor e este foi condenado a satisfazer o crédito, ficando o credor a beneficiar, nos termos do artigo 710.º do Código Civil, de hipoteca judicial sobre quaisquer bens do devedor que lhe confere, nos termos do artigo 686.º preferência de pagamento sobre os restantes credores. A outra situação prevista é a de o credor dispor de um título executivo, ter instaurado uma execução para pagamento do crédito e nesta ter sido realizada penhora de bens do executado, caso em que, nos termos do artigo 822.º do Código Civil, o exequente ficava com preferência de pagamento sobre os demais credores em relação ao produto da venda dos bens penhorados.
O que a norma estabelece é que na sentença de graduação de créditos essas preferências não são reconhecidas. A norma percebe que através da acção judicial e registo da hipoteca judicial ou da execução e penhora dos bens do devedor, a actuação judicial desses credores acabou por redundar em benefício antecipado da massa pois permitiu conservar esses bens através dos efeitos próprios da hipoteca e da penhora. Deste modo, a norma atribui um benefício - qualificação das custas de outra acção como dívida da massa na insolvência -, para compensar o prejuízo imposto legalmente - a perda da preferência de pagamento - suportado por estes credores.
Tanto basta para demonstrar que não há analogia com a situação dos autos porque na própria acção onde se constituiu e onde devia ter sido requerido e obtido o seu pagamento o crédito do administrador judicial já possuía o benefício de ser qualificada como dívida da massa, não suportando qualquer prejuízo que lhe seja legalmente imposto, para além daquele que a inércia do próprio credor gerou ao desperdiçar a oportunidade de obter o seu pagamento na sede própria.
Na verdade, nada obstava a que a autora tivesse obtido em devido tempo o pagamento do seu crédito no processo onde foi constituído e então ainda na veste de crédito sobre a massa. A isso não obstava o encerramento do processo após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência.
Com efeito, nos termos do artigo 233º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o encerramento do processo permite aos credores da massa reclamarem do devedor os seus direitos não satisfeitos [n.º 1, alínea d)]. As dívidas geradas no âmbito do próprio processo de insolvência, designadamente na liquidação da massa, não são exclusiva responsabilidade da massa insolvente, pelo que não é possível defender que tais dívidas ou são pagas pela própria massa ou deixam de ser exigíveis por não haver quem responda por elas; pelo contrário, as dívidas que a lei considera dívidas da massa para efeitos de preferência de pagamento são ainda mas também dívidas do próprio insolvente, pelo que se elas não tiverem sido satisfeitas no processo de insolvência (ou na medida em que o não foram) o respectivo titular pode, depois do encerramento do processo de insolvência após o rateio final, exigir do devedor que deixou de estar insolvente o seu pagamento.
Se o administrador não reconhecer e/ou pagar uma determinada dívida sobre a massa, a pessoa que se apresenta como credor poderá pois intentar acção destinada a obter a condenação da massa no pagamento. Essa possibilidade está expressamente prevista no artigo 89.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que apenas consagra um período de tréguas de três meses seguintes à declaração de insolvência dentro do qual tais acções não poderão ser instauradas. Segundo o n.º 2 do preceito as acções, declarativas ou executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência. Daí resulta que a autora podia perfeitamente ter exercido o seu direito no processo de insolvência e aí feito valer a preferência de pagamento inerente à sua qualificação como dívida da massa, não lhe foi imposto qualquer prejuízo nessa posição que houvesse de ser compensado no âmbito de outro processo.
Subsidiariamente, a recorrente sustenta que o seu crédito é um crédito privilegiado porque deve ser considerado como custas judiciais, beneficiando por isso dos privilégios de pagamento dos artigos 738.º, para os bens móveis, e 743.º do Código Civil, para os bens imóveis.
Quid iuris?
Em relação ao último dos normativos indicados, refere-se na sentença recorrida, sem que a recorrente sustente nas alegações ser incorrecta tal informação, que não foram apreendidos para a massa insolvente quaisquer bens imóveis, pelo que não se pode colocar sequer a questão da existência de privilégio imobiliário.
Isso é efectivamente assim: a graduação dos créditos não visa a declaração judicial da existência de preferências de pagamento, visa sim a definição da ordem de pagamentos que deve ser observada na distribuição do produto da venda dos bens da massa.
Por conseguinte, não havendo bens imóveis apreendidos, cujo produto da venda houvesse que distribuir pelos credores, está prejudicada a verificação e/ou afirmação se um determinado crédito possuía privilégio imobiliário ao abrigo do disposto no artigo 743.º do Código Civil.
Mas porque foram apreendidos bens móveis, vejamos se sobre os mesmos a autora dispõe de privilégio mobiliário.
Dispõe o artigo 738.º que os créditos por despesas de justiça feitas directamente no interesse comum dos credores, para a conservação, execução ou liquidação de bens móveis, têm privilégio sobre estes bens. As despesas de justiça são as despesas suportadas com acções judiciais, isto é, as respectivas custas judiciais.
Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento das Custas Processuais, «as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte». Por sua vez o artigo 16.º do mesmo diploma inclui entre os tipos possíveis de encargos compreendidos nas custas, as retribuições devidas a quem interveio acidentalmente no processo [alínea h)].
Deste modo, de facto a retribuição do Administrador Judicial é um encargo compreendido no conceito de custas processuais. E tanto é assim que, conforme se observa num dos despachos proferidos no processo a que respeitam e cuja cópia foi junta pelo autor, datado de 24-01-2011 (doc. 7), o juiz titular do processo ordenou a remessa dos autos «à conta onde devem ser incluídas as quantias supra referidas, sendo a quantia relativa ao ponto 2) pelo montante que ainda se encontra em dívida de acordo com o referido pelo Exmo Senhor Administrador da Insolvência a fols. 481 e até à presente data». As quantias a que se alude no referido despacho são precisamente as que ora são reclamadas na acção e que como tal não terão sido pagas no âmbito do aludido processo.
Note-se que para o efeito o que releva é que o crédito em causa tenha a natureza de crédito de custas, isto é, seja relativo a uma despesa de justiça feita directamente no interesse comum dos credores, para a conservação, execução ou liquidação de bens móveis, independentemente de saber quem é o responsável final pelo pagamento das custas. Por isso não impede a existência do privilégio a circunstância de a responsabilidade pelas custas recair sobre a massa insolvente ou sobre o devedor insolvente mas objecto de um plano de insolvência.
A Mma. Juíza a quo não se afastou deste entendimento mas considerou que os factos provados são «absolutamente escassa quanto à identificação dos concretos actos praticados pelo Exmo. Sr. AI no âmbito do processo anterior que possam ser enquadrados na noção de actos de conservação, execução ou liquidação, sendo também inexistente a identificação dos concretos bens sobre que tais concretos actos porventura tenham incidido. Além do mais, também não foi alegado (nem resulta dos autos) que os eventuais concretos actos praticados com tal desiderato tenham sido efectuados no interesse comum de todos os credores do presente processo de insolvência».
Não conseguimos concordar com este raciocínio que é válido de princípio mas não evita o seu ajustamento ao caso concreto. Com efeito, sendo a despesa em causa relativa ao pagamento da remuneração do administrador de insolvência e possuindo esta a natureza de liquidação coerciva em benefício de todos os credores que são chamados a intervir no processo de insolvência e a reclamarem os seus créditos para poderem obter pagamento dos mesmos, não há como deixar de reconhecer que no caso concreto a actuação do administrador de insolvência teve por objecto a realização de actos de conservação, execução ou liquidação em benefício do conjunto dos credores e não de qualquer deles em particular ou só de algum deles em específico. As funções do Administrador da Insolvência têm precisamente essa natureza e objectivo, anormal e passível de sanção será que tal não suceda.
Também não nos parece aceitável a exigência de que o Administrador de Insolvência esclareça quais os actos concretos que praticou. Essa necessidade existia sim no processo onde o direito à remuneração foi constituído. A partir do momento em que nesse processo de insolvência os credores aprovaram e o juiz homologou a decisão da assembleia de credores de fixar a remuneração ao Administrador da Insolvência, ficou definido não apenas o valor da remuneração mas igualmente aquilo a que a mesma corresponde.
O que podia suceder era no âmbito do presente processo algum credor deduzir impugnação ao crédito do autor, caso em que então sim, o credor necessitava de fazer a demonstração reclamada pelos termos da impugnação apresentada. Não tendo sido apresentada qualquer impugnação, não vislumbramos norma legal ou razão de ser para exigir ao Administrador da Insolvência que concretize aqui a actuação em função da qual no processo próprio e no devido momento lhe foi fixada a remuneração cujo pagamento está por fazer.
Por conseguinte, nesta parte procede o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida na parte em que qualificou o crédito do autor como crédito comum e que modificam para a qualificação de crédito dotado do privilégio mobiliário previsto no artigo 738.º do Código Civil.
As custas do recurso são responsabilidade do autor (artigo 148.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
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Porto, 11 de Abril de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]