Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7353/15.4T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
CONTRATO PROMESSA COM EFICÁCIA REAL
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP201709187353/15.4T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 09/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 658, FLS.2-15)
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Porém, verificada uma das situações do n.º 2 do art. 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.
III - A previsão legal da alínea d) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando, independentemente disso, é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio ficando aquela, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7353/15.4T8VNG-A-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
I- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II- Para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Porém, verificada uma das situações do n.º 2 do art. 186.º do CIRE presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa.
III- A previsão legal da alínea d) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando, independentemente disso, é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio ficando aquela, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Declarada a insolvência de B… e C…, teve lugar a abertura do presente incidente de qualificação de insolvência.
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O Sr. administrador da insolvência veio, a fls. 5 e seguintes, apresentar parecer de qualificação da presente insolvência como culposa, sendo afectados por essa qualificação os dois insolventes.
Alegou, em suma, que houve uma transmissão fictícia feita pelos insolventes com o intuito de prejudicar os credores das sociedades de que os insolventes eram sócios, bem como os credores dos próprios insolventes.
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Aberta vista ao Ministério Público, este pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, sendo afectados por essa qualificação os dois insolventes.
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Cumprido o disposto no art.º 188.º, n.º 5 do C.I.R.E., vieram os requeridos deduzir oposição pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
Alegaram, em síntese, que a insolvente C… sempre foi dona de casa e nunca foi sócia ou pertenceu a qualquer órgão social das sociedades identificadas pelo Sr. administrador da insolvência e pelo Ministério Público, tendo assinado documentação no âmbito de negócios que o seu marido mantinha, desconhecendo em rigor a sua natureza e extensão, tendo confiado no mesmo.
Alegaram, ainda, que toda a dívida bancária dos insolventes advém da prestação de garantia pessoal em contratos dessas empresas, sendo que, à data da insolvência em causa nestes autos, o requerido era apenas gerente da sociedade “D…, Lda.” que veio a ser declarada insolvente em 22/6/2009.
Relativamente ao crédito reclamado pela E1…, Lda.–o mesmo teve origem numa fiança dada pelos devedores em Abril de 2009. O crédito dessa credora está inexoravelmente reconhecido pois que não foi impugnado dentro do prazo legal.
Mais alegaram que não praticaram qualquer ato enquadrável em qualquer uma das alíneas do artigo 186.º, n.º 2 e 3, do C.I.R.E. sendo que o negócio com a E1… se iniciou em 2010 e prosseguiu em Janeiro de 2012, devendo concluir-se que o contrato celebrado em 24/10/2014 não agravou o passivo dos insolventes. Ademais, estes nunca se aperceberam que iriam cair em situação de insolvência.
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Foi proferido despacho saneador e, posteriormente, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades prescritas na lei.
A final, proferida decisão que:
1. Qualificou a presente insolvência como culposa;
2. Declarou afectados pela qualificação da insolvência como culposa os requeridos B… e C…;
3. Decretou a inibição de B… e C… para administrarem patrimónios de terceiros pelo período de sete anos;
4. Declarou B… e C… inibidos para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de sete anos;
5. Determinou a perda de quaisquer créditos dos requeridos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
6. Condenou os requeridos a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do activo, até às forças do respectivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os insolventes interpor o presente recurso concluindo pela forma seguinte:
1ª- O recurso é interposto da sentença proferida nos autos a folhas 365 e seguintes, a qual decidiu qualificar a insolvência como culposa, declarando afectados os aqui recorrentes, e ainda decretar as inibições dos pontos 3 e 4 da decisão, e a perda de créditos do ponto 5, para além da condenação do ponto 6. também da parte decisória;
2ª- As questões colocadas assentam (i) na violação dos princípios da imediação e da oralidade, conjugados com o princípio da livre apreciação da prova, também violado, quanto à fixação da matéria de facto não provada, o que acarreta também a violação do princípio da legalidade, (ii) na violação do disposto no artigo 186º nº1 e 2 al.s a), d) e f) do CIRE, quanto à qualificação da insolvência;
3ª- Os factos designados como causas da insolvência dos recorrentes assinalados supra nesta alegação e que constam do Relatório elaborado pelo Sr. A.I. ao abrigo do artigo 155º do CIRE, não foram impugnados na assembleia de credores que aprovou a liquidação do património dos insolventes, fazem parte dessa deliberação, e não foram contrariados/impugnados por qualquer forma ou por qualquer interveniente, razão pela qual estão admitidos por acordo.
4ª-Reconhecida a autoria das 23 facturas, no confronto entre os recorrentes, o Sr. A.I. e os credores intervenientes, designadamente a F… (F1…), o valor probatório dos documentos é o que resulta do disposto no artigo 376º do C.C., ou seja, (i) fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, encontrando-se deste modo plenamente provado que a “D…, Ldª”, como credora, emitiu a “G…, Ldª”, como devedora, entre Março de 2008 e Dezembro de 2008 referentes a trabalhos executados por aquela nas obras desta, as 23 facturas, que atingem o valor global de €1.203.000,00, (ii) e, no que respeita à realidade dos factos afirmados, ou melhor, dos “factos compreendidos na declaração”, consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses da declarante.
5ª-Não vem alegado e provado que as facturas a que alude a conclusão que antecede tenham sido pagas pela devedora à credora.
6ª- Como resulta da motivação ou fundamentação que a Mª Julgadora confere à factualidade que fixou, as facturas acima mencionadas não foram analisadas de forma concatenada e crítica, à luz das regras da experiência comum e da normalidade das circunstâncias, o que constitui fundamento para a alteração que se pede quanto aos pontos 24 e 25 da alínea A) dos factos provados (cf.fls.367) e quanto aos pontos 1 e 2 da alínea B) dos factos não provados (cf. fls. 367).
7ª- Os recorrentes peticionam a reapreciação da prova produzida no que concerne aos pontos 24 e 25 da alínea A) dos factos provados (cf.fls.367) e quanto aos pontos 1 e 2 da alínea B) dos factos não provados (cf. fls. 367), porquanto as concretas respostas dadas quanto aos indicados pontos estão desapoiadas das provas recolhidas, razão pela qual ocorre erro de julgamento quanto à factualidade dessas alíneas.
8ª- Desde logo na prova documental, como acima referido, mas também na prova oral quanto a tal matéria, concretamente dos depoimentos testemunhais ouvidos em inquirição, designadamente das testemunhas H…, à data Técnico Oficial de Contas das sociedades “D…, Ldª” e “G…, Ldª”, Dr. I…, mandatário da “D…, Ldª” e J…, à data gerente da adquirente do crédito, devidamente cotejados e confrontados uns com os outros, assinalados pelos apelantes nestas alegações (depoimento de H… identificado na Acta de 24-01-2017, a fls. 347vº e ficou registado no sistema informático do minuto 00:00:01 ao 00:17:08, e com inicio de gravação das 10:22:47 e termo às 10:39:56, depoimento de I… identificado na Acta de 24-01-2017, a fls. 347vº e ficou registado no sistema informático do minuto 00:00:01 ao 00:19:55, e com inicio de gravação das 10:48:55 e termo às 11:08:51 e depoimento de J… identificado na Acta de 15-02-2017, a fls. 357vº e ficou registado no sistema informático do minuto 00:00:01 ao 00:32:28, e com inicio de gravação das 11:16:25 e termo às 11:48:5, concretamente quantos aos pontos de cada um desses depoimentos assinalados na alegação e que aqui se tem por reproduzidos), é admissível modificar-se com segurança, por aplicação do disposto no art. 662º do CPC, a matéria de facto referente aos pontos 24 e 25 da alínea A) dos factos provados (cf.fls.367) e quanto aos pontos 1 e 2 da alínea B) dos factos não provados (cf. fls. 367), no sentido enunciado na alegação.
9ª- As expressões “ …criar artificialmente um passivo…” do ponto 24 e “ … pretender subtrair ao património …” do ponto 25 de fls. 367, exprimem valorações jurídicas, próprias da subsunção de realidades factuais às previsões normativas das alíneas a) e b) do nº2 do art.186º do C.I.R.E., sendo certo que, no contexto dos autos, o thema decidendum consiste precisamente em saber se os insolventes praticaram ou não factos conducentes à sua integração no nº1 ou em qualquer das alíneas do nº2 do artigo 186º do C.I.R.E., pelo que elas assumem um significado eminentemente jurídico, o que obsta a que sejam incluídas na decisão da matéria de facto, razão pela qual e por ofensa ao disposto no artigo 607º nº4 do C.P.C., essas expressões devem ser retiradas do provado e tidas como não escritas.
10ª- A constituição da fiança de 30-4-2009, a que alude o ponto 17. do provado de fls. 366, o contrato promessa de 27-9-2010 a que alude o ponto 18 do provado de fls. 366 verso e o contrato promessa de 30-1-2012 a que alude o ponto 19 do provado de fls. 366 verso são irrelevantes para a economia dos autos, porquanto não podem fundar a violação da norma do art.186º a qual, nos seus números, abrange o período temporal de três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, a partir de 18-8-2012, pelo que a sentença incorre em violação do art.186º do CIRE.
11ª- Quanto ao critério geral do nº1 do art.186º, a conduta dos insolventes não é censurável, do ponto de vista do homem comum, colocado na sua posição concreta, e muito menos gravemente culposa, uma vez que o passivo que acumularam resultou exclusivamente de avales e fianças dadas no âmbito das actividades comerciais do insolvente marido, inexistindo provado uma única divida contraída no interesse directo dos insolventes.
12ª- Também não é configurado, no confronto da factualidade apurada, o nexo de causalidade de acordo com o critério da causalidade adequada, na sua formulação negativa, pelo que nada permite concluir que a situação de impossibilidade dos insolventes de cumprir as suas obrigações vencidas tenha tido por causa, ou se haja agravado, por via da contracção de tais dívidas, que nem se mostram pagas.
13ª- A outorga de contrato promessa de compra e venda com eficácia real a favor da E… não integra a previsão da alínea a) do nº 2 do art. 186º do CIRE, porquanto os actos apurados como comportamentos dos insolventes não são assimiláveis a actos de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento, e, muito menos – na ausência de outros elementos –“no todo ou em parte considerável”, do património do devedor.
14ª- De igual forma, deve afastar-se a alínea d) do nº2 do art.186º do CIRE, porquanto esta não dispensa a ideia de diminuição da garantia patrimonial dos credores do insolvente, correlativa da diminuição do património deste em favor de outrem, sendo certo que a outorga do contrato promessa de compra e venda com eficácia real a favor da E… não envolve diminuição do património dos insolventes.
15ª- A norma da alínea f) do nº2 do art.186º do CIRE, nos termos da qual a outorga de contrato promessa de compra e venda com eficácia real a favor da E… poderá configurar uma quebra do princípio da igualdade entre os credores, já que cria um benefício a favor de um credor com o inerente prejuízo para os demais, não configura um uso do bem contrário ao interesse da devedora, para efeitos de qualificar a insolvência como culposa, para além de ser resolúvel em benefício da massa, o que in casu o Sr. A.I. já operou.
16ª- Daí que, a douta sentença em crise deva ser revogada, qualificando-se a insolvência como fortuita.

Devidamente notificado contra-alegou o Ministério Público concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, em qualquer dos casos, saber se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido deu como assente a seguinte factualidade:
1. H… intentou acção de insolvência contra B… e C… em 18/8/2015.
2. Os requeridos não deduziram oposição nessa acção, pelo que, por sentença de 5/10/2015, transitada em julgado, foram declarados insolventes.
3. O insolvente B… foi sócio e gerente das sociedades “D…, Lda.”, “G…, Lda.” e “K…, Lda.”
4. A insolvente C… nunca foi gerente dessas sociedades e nunca pertenceu a qualquer órgão social das mesmas.
5. Em 2/7/2009 foi declarada a insolvência de “D…, Lda.”–cfr. fls. 14.
6. Em 13/11/2012 foi declarada a insolvência de “G…, Lda.”–cfr. fls. 16
7. Em 1/10/2015 foi declarada a insolvência de “K…, Lda.” cfr. fls. 17
8. Os insolventes prestaram avais e fianças às sociedades referidas em 3., constituindo-se solidariamente responsáveis no âmbito de financiamentos concedidos a essas empresas.
9. Em virtude da declaração de insolvência das referidas sociedades, os insolventes foram interpelados para, na qualidade de avalistas, honrarem os seus compromissos.
10. A propriedade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 1007/19890712 encontra-se registada a favor de L… e de B… – fls. 86 insolvência.
11. Sobre esse imóvel encontra-se registada, desde 30/6/2005, uma hipoteca a favor da F… para garantia do montante máximo de €459.750,00.
12. Essa hipoteca foi outorgada por escritura pública em 9/6/2005 para garantia de todas as responsabilidade assumidas ou a assumir pela “D….”
13. Na execução que corre termos sob o n.º 1196/12.4T2OVR na comarca do Baixo Vouga em que é exequente a M…, CRL foi penhorado o imóvel referido em 8.
14. A F… reclamou créditos nessa execução, tendo sido proferida sentença em 7/11/2013 que graduou os créditos reconhecidos a esse credor em primeiro lugar–cfr. fls. 131 e seguintes da insolvência.
15. No âmbito dessa execução foi designado o dia 6/5/2015 para a abertura de propostas em carta fechada–fls. 156.
16. A venda ficou sem efeito em virtude de PER que os, aqui, insolventes apresentaram a 04/03/2016–fls. 138/155.
17. Por documento particular intitulado “contrato de fiança” datado de 30/4/2009 os insolventes declararam constituíram-se fiadores e principais pagadores da sociedade “G…, Lda.” nos termos constantes de fls. 21 verso/22 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
18. Por contrato-promessa de compra e venda datado de 27/9/2010 os insolventes, conjuntamente com L… e mulher N…, proprietários em comum do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1746.º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 1007, declararam prometer vender à sociedade “E1…, Lda.” esse imóvel, livre de ónus e encargos, pelo preço de €290.000,00, declarando ter sido paga pela promitente compradora o valor de €250.000,00 por compensação com igual montante que a segunda é credora dos primeiros conforme cópia junta a fls. 22 verso e 23 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19. Por novo contrato particular datado de 30/1/2012 denominado “Contrato-promessa de compra e venda” os insolventes, conjuntamente com L… e mulher N…, declararam prometer vender à sociedade “E1…, Lda.” esse imóvel, livre de ónus e encargos, pelo preço de €300.000,00 o mesmo imóvel, sendo que foi declarado que como sinal era pago o valor de €250.000,00 por compensação com igual montante que os primeiros outorgantes estavam obrigados a restituir à segunda, conforme cópia junta a fls. 23/24 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20. No dia 24/10/2014 foi outorgado por escritura um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real cuja cópia se encontra junta a fls. 25 e seguintes e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. Sobre o imóvel referido em 10 encontra-se registada a promessa de alineação a favor de “E1…, Lda.” conforme resulta da cópia junta a fls. 35 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22. Em 24/10/2014 os insolventes, conjuntamente com L… e mulher N…, subscreveram o documento denominado “Declaração e Acordo” cuja cópia se encontra junta a fls. 28 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, através do qual declararam “reiterar nesta data a entrega, ou seja, a tradição material a favor de E1…, . (…) que já tinha recebido, as chaves do prédio urbano (…)”
23. Nos autos de insolvência da “K…, Lda.” sobre 16 prédios que garantem o crédito da F… por força de hipotecas em 2006 e 2010 encontram-se registadas promessas de alineação com eficácia real a favor da E1…, Lda.
24. Os insolventes criaram artificialmente um passivo perante a E… ao outorgarem a fiança referida em 17.
25. Ao outorgarem a escritura do contrato-promessa de compra e venda referido em 20. os insolventes pretenderam subtrair ao seu património o imóvel de que eram comproprietários sem que a massa insolvente recebesse qualquer contrapartida.
Factos não provados
Não se provou que:
1. A insolvente C… assinou documentação no âmbito dos negócios que o seu marido mantinha, desconhecendo a sua natureza e sem se aperceber quais as obrigações que assumia.
2. A “D…, Lda.” cedeu à E… um crédito no valor de €1.203.000,00 que detinha sobre a “G…, Lda.” pelo valor de €250.000,001.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão colocado no recurso consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões, os apelantes impugnaram a decisão da matéria de facto tendo dado, embora de forma deficiente, cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, os recorrentes não concordam com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 24. e 25. dos factos provados e 1. e 2. dos factos não provados.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos recorrentes, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
Os pontos 24. e 25. da fundamentação factual têm, respectivamente, a seguinte redacção:
24. Os insolventes criaram artificialmente um passivo perante a E… ao outorgarem a fiança referida em 17.
25. Ao outorgarem a escritura do contrato-promessa de compra e venda referido em 20. os insolventes pretenderam subtrair ao seu património o imóvel de que eram comproprietários sem que a massa insolvente recebesse qualquer contrapartida.
Referem os recorrentes que tais factos provados devem ser tidos como não escritos por conterem matéria conclusiva.
Analisando.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 previa, ainda, que têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Esta norma não transitou para o actual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”.[6]
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do colectivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito”.[7]
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
Postos estes breves considerandos torna-se evidente que os referidos factos têm manifestamente teor conclusivo.
Com efeito, as expressões “criar artificialmente um passivo” do ponto 24. e “pretender subtrair ao património” do ponto 25. exprimem valorações jurídicas, próprias da subsunção de realidades factuais às previsões normativas das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 186.º do C.I.R.E.[8]
Portanto, o tribunal, partindo de realidades factuais provada nos autos, é que teria de concluir pelo preenchimento da factie sepecies das referidas alíneas, não podia era, como o fez, fazer constar do rol dos factos provados a estatuição das citadas alíneas.
Significa, pois, que têm que ser eliminados da fundamentação factual os seus pontos 24. e 25., por violação clara do já citado artigo 607.º, nº 4 do CPCivil.
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Os pontos 1. e 2. dos factos não provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
1. A insolvente C… assinou documentação no âmbito dos negócios que o seu marido mantinha, desconhecendo a sua natureza e sem se aperceber quais as obrigações que assumia.
2. A “D…, Lda.” cedeu à E… um crédito no valor de €1.203.000,00 que detinha sobre a “G…, Lda.” pelo valor de €250.000,001.
Subentende-se das alegações recursivas, pois que nelas não é dito de forma expressa, qual o sentido da decisão que tais factos deviam merecer, que os recorrentes entendem que tais factos deviam ter sido dados como provados.
Relativamente ao ponto 2. os recorrentes para a alteração pretendida, convocam quer prova documental quer prova testemunhal constante dos autos.
No que concerne à prova documental alegam os recorrentes que estão juntas ao apenso de reclamação de créditos 23 facturas emitidas pela sociedade “D…, Ldª”, como credora, a “G…, Ldª” como devedora, entre Março de 2008 e Dezembro de 2008 referentes a trabalhos executados por aquela nas obras desta, que atingem o valor global de €1.203.000,00 documentos esses que nunca foram impugnados.
É certa a existência dos referidos documentos e a sua falta de impugnação, todavia o seu valor probatório não leva, só por si, à prova do mencionado ponto 2..
Atentemos.
No artigo 373.º do C.Civil (diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem) estabelecem-se os requisitos dos documentos particulares: estes devem ser assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (nº 1), admitindo-se, em certos casos, a substituição da assinatura por simples reprodução mecânica (nº 2).
Só os documentos particulares que satisfaçam os requisitos previstos naquele normativo podem ter força probatória formal nos termos previstos nos artigos 374.º a 376.º.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular, consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídos, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artigo 374.º, nº 1).
Como refere Vaz Serra[9] a assinatura é requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular. A assinatura é o acto pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o acto, portanto, que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento.
Os documentos que não tenham os requisitos legais-o que, tratando-se de documentos particulares, repetimos, são os que não contenham a assinatura do seu autor-não podem fazer prova plena nem quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nem quanto aos factos contidos nas mesmas, nos termos do citado artigo 376.º.
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos do normativo anterior, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artigo 376.º, nº 1).
Já os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº 2 do mesmo normativo).[10]
Portanto, este normativo estabelece:
a) - por um lado a força probatória formal-o documento prova que as declarações nele contidas foram realmente emitidas pelos seus autores (o que não significa, desde logo, que essas declarações sejam verdadeiras)[11] -nº 1;
b) - e por outro a força probatória material-as declarações vinculam o respectivo autor, na medida em que forem contrárias aos seus interesses-nº 2.
Resulta daqui que, quando o nº 2 do artigo em questão diz que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados”, isso significa que as declarações feitas no documento exprimem a verdade, e, portanto, obrigam o declarante, até onde sejam contrárias ao interesse deste.[12]
Diante do exposto, torna-se vidente que as referidas facturas não fazem prova, e muito menos plena, da existência de qualquer crédito da sociedade “E…., Ldª”, sobre a sociedade “G…, Ldª”.
Com efeito, as referidas facturas só fazem, nos termos sobreditos, prova da declaração nelas contida e nada mais que isso. É que, tal como supra referido, a sua força probatória respeita apenas à respectiva materialidade nelas contida e não à sua veracidade.
Por outro lado, o seu valor probatório pleno quanto aos factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte apenas no confronto entre os dois (declarante e declaratário).
Em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
Portanto, a referida força probatória plena só podia ser invocada se estivessem em confronto as duas referidas sociedades, aliás, diga-se, que nem nesse confronto se descortina como podiam tais documentos ter a referida força probatória plena, pois que neles não consta qualquer declaração atribuída à sociedade devedora contrária aos seus interesses sendo antes documentos da autoria da sociedade credora.
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Sob este conspecto e também quanto ao ponto 1. dos factos não provados convocam também os recorrentes os depoimentos das testemunhas H…, I… e J….
Acontece que os recorrentes, sob este conspecto, limitaram-se a indicar determinadas passagens dos depoimentos das indicada testemunhas.
Todavia, isso não basta.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, transcrever os depoimentos não é fazer a sua análise crítica, esta pressupõe que se construa um raciocínio lógico e fundamentado que leve a extrair uma conclusão baseada naqueles, ou seja, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
O que se pretende que o advogado faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
A razão pela qual se afirma que o advogado deve produzir uma análise crítica mínima é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, o advogado tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta pois identificar meios de prova.
O advogado terá de elaborar e expor uma análise crítica da prova formalmente análoga à realizada pelo juiz e concluir no sentido que pretende, não bastando dizer, como fazem os recorrentes, que os depoimentos convocados mostram-se isentos, sérios e credíveis.
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Decorre do exposto que se devem manter no rol dos factos não provados os referidos pontos.
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Alterada a matéria factual nos que ficaram expostos a segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:

a)- saber se a sua subsunção jurídica se encontra correctamente feita.

Na sentença recorrida entendeu-se que a insolvência deveria ser qualificada como culposa por estar preenchida a factie species das alíneas a), d) e f) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE.
Deste entendimento dissentem os recorrentes.
Que dizer?
Conforme consta no preâmbulo do diploma que aprovou o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas - CIRE– (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18.3), o incidente de qualificação da insolvência tem como objectivo “a obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas”.
Segundo o legislador, “as finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais aos credores”.
Inspirado na Ley Concursal espanhola, o dito incidente destina-se a apurar, sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil, “se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”. (n.º 40 do preâmbulo).
Conforme se sintetiza no preâmbulo, “a qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as pessoas afectadas que podem ir da inabilitação por um período determinado[13] a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos”.
O supra referido propósito sancionatório concretizou-se, no que diz respeito à delimitação do conceito de insolvência culposa e à caracterização das situações aplicáveis, no artigo 186.º do CIRE, que aqui se reproduz:
Insolvência culposa”:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Portanto, este normativo, estabelece no seu nº 1 o conceito geral de insolvência culposa, com diversos pressupostos a saber:
a) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito;
b) essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência;
c) que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência;
4) e que essa conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.
Postula-se ali não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.
Acontece que o legislador não se ficou por ali, indo mais longe ao estatuir, no nº 2 daquele mesmo preceito legal, que se “considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto”, tenham praticado alguns dos factos elencados nas diversas alíneas desse número.
Portanto, o citado n.º 2 enumera um conjunto de actos que, cada um de per se, constituem fundamento bastante para o preenchimento do conceito de insolvência culposa, ou seja, da verificação de qualquer dos factos inscritos no nº 2 desta norma, a lei faz presumir, de forma inilidível (iures et de iure) quer a culpabilidade na insolvência, quer o nexo de causalidade entre esse facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Ou seja, não apenas se presume juris et de jure a existência culpa, mas também a causalidade entre a actuação dos administradores, de facto ou de direito, do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência não admitindo a produção de prova em sentido contrário[14], sendo certo que, como resulta do artigo 186.º, nº 4 do CIRE as circunstâncias previstas pelos nº 2 e 3 são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
Esse é, aliás, como unanimemente se lhe reconhece, o sentido conferido à norma pela expressão “sempre” que a integra.[15]
Postos este breves considerandos e como noutro passo já se referiu, o tribunal recorrido considerou dever ser qualificada a insolvência como culposa por estar preenchida a factie species das alíneas a), d) e f) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE.
Vejamos se assim é.
Importa, porém, antes de avançarmos na referida análise, referir que mesmo nas situações do nº 2 do artigo 186.º é sempre necessário o preenchimento do limite temporal dos 3 anos previsto no nº. 1 do mesmo normativo, ou seja, apenas os actos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência serão relevantes para efeitos do preenchimento do nº. 2. Só não será assim relativamente à hipótese prevista na sua alínea i) que poderá respeitar a período posterior à declaração de insolvência.[16]
Ora, tendo tido início o processo de insolvência em 18/08/2015, data da remessa a juízo da petição inicial de insolvência (cfr. facto descrito em 1. da fundamentação factual) tal significa que, no caso concreto, apenas relevam os comportamentos (por acção ou omissão) que tenham decorrido entre 18/08/2015 (data de início do processo) e 18/08/2021 (data de início do período de 3 anos).
Significa, portanto, que perscrutando a matéria factual que se encontra assente, é de concluir que a constituição da fiança de 30/04/2009, a que alude o ponto 17., o contrato promessa de 27/09/2014 a que alude o ponto 18., o contrato promessa de 30/01/2012 a que alude o ponto 19. são irrelevantes para o desfecho da acção, já que não podem fundar a violação da citada norma.
Resta-nos, assim, para apreciação a celebração do contrato promessa a que alude o ponto 20. da fundamentação factual, nos termos do qual no dia 24/10/2014, os insolventes outorgaram uma escritura de “um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real” na qual prometeram vender à “E…, Lda.” (actualmente designada por E1…, Lda.) pelo preço de €290.000,00 o único bem imóvel de que eram proprietários e cuja entrega e, portanto, tradição material, ocorreu também nessa data (cfr. ponto 22. da fundamentação) que aquela passou a gozar, usar e usufruir (cfr. citado documento).
A questão que agora importa dilucidar é se a outorga do referido contrato promessa com tradição da coisa (imóvel) integra a factie species de alguma das alíneas do citado artigo 186.º do CIRE e concretamente das referidas pelo tribunal recorrido.
Ora, pensamos, salvo melhor entendimento, que a referida factualidade se enquadra na alínea d) do nº 2 citado normativo.
A referida alínea contempla a situação de os administradores terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Efectivamente, o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando, independentemente disso, é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Como atrás supra se referiu o imóvel objecto do contrato promessa foi entregue, no acto da sua celebração à promitente compradora, que dele passou a usar, gozar e usufruir em seu benefício e que logo arrendou em 18/10/2014 (cfr. cópia do contrato de arrendamento junto aos autos)
Aliás, a celebração do referido contrato promessa dotado de eficácia real com tradição da coisa a favor do promitente-comprador equivale, em termos práticos, a um acto de transferência da sua propriedade já que, nos termos do artigo 106.º, nº 1 do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa sob pena da produção dos efeitos previstos no n.º 5 do artigo 104º.[17]/[18]
E a circunstância de o Administrador poder resolver tal acto a favor da massa insolvente, nos termos dos artigos 120º e 121º, do CIRE, não retira o carácter culposo da conduta dos ora recorrentes insolventes, pois que, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a referida resolução.
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Improcedem, assim todas as conclusões formuladas pelos apelantes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e consequentemente confirmar a decisão recorrida embora por fundamentação não totalmente coincidente.
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Custas da apelação a cargo da massa insolvente (artigos 303º e 304º do CIRE e 527.º nº 1 do CPCivil).
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Porto, 18 de Setembro de 2017.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código de Processo Civil-Anotado,Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606.
[7] Antunes Varela, J.M.Bezerra, Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 648.
[8] As referidas alíneas têm a seguinte redacção:
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.
[9] In BMJ 111º-155 e 161.
[10] Escreve o seguinte Vaz Serra in “Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 114, pág. 287 “Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal”.
[11] É que a força probatória de um documento particular concerne tão só à materialidade das declarações nele contidas e não à sua veracidade.
[12] Cfr. no mesmo sentido Alberto dos Reis, Código Processo Civil Ant. Vol. III, pág. 436.
[13] Esta consequência, prevista na alínea b) do art.º 189.º do CIRE, veio a ser julgada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/2009, de 02.4.2009, por violação do princípio da proporcionalidade, no que diz respeito à imposição da inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.
[14] Cfr. neste sentido Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2012, pág. 274.
[15] Cfr. neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 2013, Quid Juris, pág. 718 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª ed., 2013, Almedina, pág. 131 a 133.
[16] Cfr. Carvalho Fernandes a João Labareda, ob. cit., pág. 719 e Catarina Serra, ob. cit., pág. 133.
[17] O artigo 106.º sob a epígrafe “Promessa de contrato” tem a seguinte redacção:
1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.
2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor.
[18] Contra o entendimento de que independentemente da tradição da coisa o Administrador nunca pode recusar a celebração do contrato promessa com eficácia real vide Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 4ª Ed. pag. 188.