Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3965/13.9TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
EXCLUSÃO DA EXONERAÇÃO
CRÉDITO RECLAMADO PELO FGA
Nº do Documento: RP201409163965/13.9TBGDM.P1
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exclusão da exoneração do passivo restante, prevista no art. 245º, nº 2, al. b) do CIRE, abrange apenas as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade.
II - Essa exclusão não abarca o caso de um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel referente a uma indemnização paga por este em virtude de um acidente de viação em que foi responsável o devedor, que conduzia o veículo, mas não era seu proprietário, e em que o Fundo foi accionado por inexistir à data do acidente seguro válido e eficaz.
III - Com efeito, a obrigação de efectuar o seguro recaía sobre o proprietário e, por isso, o crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel não se funda em facto ilícito doloso praticado pelo devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3965/13.9 TBGDM.P1
Tribunal Judicial de Gondomar – 2º Juízo Cível
Apelação
Recorrente: Fundo de Garantia Automóvel
Recorrido: B…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Por despacho datado de 1.11.2013 foi declarada a insolvência do requerente B… – cfr. 61 e segs.
Da relação que apresentou consta como único credor o Fundo de Garantia Automóvel, correndo o respectivo processo executivo no Tribunal Judicial de Gondomar sob o nº 2616/03.4 TBGDM do 2º Juízo Cível para pagamento da quantia de 55.583,02€ e tendo-se o crédito correspondente vencido em 19.3.2009 – cfr. fls. 59.
Foi junta aos autos cópia da sentença proferida neste processo – cfr. fls. 139 e segs.
Da matéria fáctica que nesta sentença foi dada como provada resulta, com relevância para o presente recurso, que:
- o veículo interveniente no acidente de viação, Honda …, matrícula ..-..-GC, pertencia a C…;
- este veículo aquando do acidente não possuía qualquer seguro de circulação automóvel válido e eficaz;
- era conduzido pelo insolvente B….
Na reclamação de créditos entretanto apresentada pelo Fundo de Garantia Automóvel alega esta entidade que pagou a quantia a que foi condenada solidariamente com o insolvente, pagando 27.791,51€ à autora D… e a mesma quantia ao autor E….
Por isso, considera ter ficado sub-rogado nos direitos do lesado, nos termos do disposto no art. 54º do Dec. Lei nº 291/2007, tendo assim direito ao reembolso daquele valor, bem como dos juros de mora calculados à taxa legal e às despesas com a liquidação e a cobrança – cfr. fls. 172 e segs.
Com a data de 28.3.2014, foi depois proferido despacho onde se considerou não existir motivo legal para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.
Mais se decidiu neste despacho que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir, calculado nos termos do art.º 239.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e ressalvado o recebimento de €485,00, seja cedido ao fiduciário a seguir indicado – cfr. fls. 184 e segs.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Fundo de Garantia Automóvel que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A indemnização que deu origem ao crédito decorre do acidente de viação, em que o veículo de que o insolvente era condutor foi interveniente, e a sua condenação solidária, com o ora credor, decorre do facto de o mesmo circular sem seguro válido e eficaz à data do acidente;
2. O crédito do FGA subsume-se à previsão legal constante no artigo 245.º n.º1 al. b) do CIRE, porquanto o mesmo emerge de um facto negligente e de um facto doloso: o facto negligente é o acidente de viação, o facto doloso é a inexistência de seguro válido e eficaz;
3. O devedor que omite o dever de celebrar ou manter um seguro válido e eficaz e que, ainda, assim, deixa circular o veículo automóvel desprovido de tal seguro, procede com dolo face à circunstância de não dispor de seguro;
4. A indemnização a que o insolvente foi condenado decorre de um facto doloso, a falta de seguro;
5. A exoneração do passivo restante não abrange a dívida do insolvente ao FGA, por se entender que a mesma é abrangida pela excepção prevista no artigo 245.º n.º1 al. b);
6. Ao não aplicar da forma acima assinalada, o tribunal “a quo” violou o artigo 245.º, n.º 2, alínea b) do CIRE. O insolvente apresentou contra-alegações, mas quais se pronunciou no sentido da confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se o crédito do Fundo de Garantia Automóvel deve ser excluído da exoneração do passivo restante por força do disposto no art. 245º, nº 2, al. b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do precedente relatório para o qual se remete.
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Passemos à apreciação jurídica.
O art. 245º do CIRE no seu nº 1 estabelece que «a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do art. 217º».
Depois, no nº 2, al. b) deste mesmo preceito excluem-se da exoneração «as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade».
Carvalho Fernandes e João Labareda (in “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 919) colocam algumas dúvidas a esta solução, que afasta da extinção os créditos relativos a indemnizações por factos ilícitos dolosos do devedor. Escrevem o seguinte: “É certo que esta norma só lhes concede esta tutela quando sejam dolosos e tenham sido reclamados no processo de insolvência com essa qualidade. Todavia, a formulação ampla da lei compreende tanto os ilícitos contratuais como extracontratuais e aí reside a causa do nosso reparo. Temos por excessivo atribuir ao crédito de indemnização por ilícito contratual, mesmo doloso, um tratamento mais favorável do que ao crédito emergente de um negócio jurídico – como seja o preço devido, numa compra e venda.”
Feita esta observação, há que regressar ao caso dos autos.
Verifica-se então que estamos perante um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel e que tem a sua origem no pagamento de uma indemnização por parte desta entidade em virtude da ocorrência de um acidente de viação em que o insolvente foi responsável.
Com efeito, dispõe o art. 25º do Dec. Lei nº 522/85, de 31.12, em vigor à data do acidente ocorrido em 2002, que “satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança.”[1]
Neste caso, a sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel decorre do facto de o veículo que teve intervenção no acidente não possuir, aquando desse sinistro, seguro válido e eficaz, o que configura conduta contravencional.
A sub-rogação, prevista nos arts. 589º e segs. do Cód. Civil, consiste na situação que se verifica quando, cumprida uma obrigação por terceiro, o crédito respectivo não se extingue, mas antes se transmite por efeito desse cumprimento para o terceiro que realiza a prestação ou forneceu os meios necessários para o cumprimento.[2]
Num critério puramente descritivo pode então definir-se a sub-rogação como a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.[3]
Como já se assinalou, no caso aqui em apreço a sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel radica na circunstância de o veículo interveniente no acidente de viação não ter, aquando da sua ocorrência, seguro válido e eficaz, sendo que a omissão deste seguro sempre constituirá facto ilícito doloso.
Ora, é nesta circunstância que o recorrente Fundo de Garantia Automóvel assenta a a sua argumentação com vista a excluir da exoneração do passivo restante, por via do disposto no art. 245º, nº 2, al. b) do CIRE, o crédito que reclamou, porquanto este teria a sua origem num facto ilícito doloso praticado pelo devedor – a ausência de seguro.
Apoia-se, inclusive, no recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.1.2014 (proc. 915/13.6 TBGDM-C.P1, disponível in www.dgsi.pt.), em cujo sumário se escreveu que “não deve ser abarcado pela exoneração o crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel relativo a uma indemnização paga por este em acidente de viação de que foi responsável o devedor, tendo sido o Fundo accionado por força da ausência de seguro, válido e eficaz, à data do sinistro.”
Só que a situação dos presentes autos é diferente da que foi apreciada neste acórdão.
É que, neste, o devedor era simultaneamente o proprietário e o condutor do veículo interveniente no acidente, donde decorria, de forma evidente, que a responsabilidade pela ausência de seguro recaía sobre ele.
Já no caso destes autos, o que se constata é que o devedor era apenas o condutor do veículo, sendo seu proprietário uma outra pessoa – C…. Assim, era sobre este que, enquanto proprietário, impendia a obrigação de efectuar o seguro, tal como decorre do art. 2º, nº 1 do Dec. Lei nº 522/85, de 31.12 [actualmente art. 6º, nº 1 do Dec. Lei nº 291/2007, de 21.8].
Por conseguinte, o aqui insolvente – B… – não pode ser responsabilizado pelo facto da viatura interveniente no acidente não possuir seguro válido, sendo que é precisamente neste facto que se fundamenta o crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel.
Sucede que a exclusão do benefício da exoneração do passivo restante, prevista no art. 245º, nº 2, al. b) do CIRE, abrange apenas as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor.
Só que na linha do que se vem expondo a ausência de seguro válido e eficaz não se funda em qualquer conduta do devedor, que apenas era o condutor do veículo, mas sim na actuação do seu proprietário, que não o efectuou.
Deste modo, não assentando a indemnização reclamada pelo Fundo de Garantia Automóvel em facto ilícito doloso praticado pelo insolvente, não pode o crédito respectivo, por força da disposição legal acima referida, ser excluído da exoneração do passivo restante.
Improcede pois o recurso interposto.
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Sintetizando:
- A exclusão da exoneração do passivo restante, prevista no art. 245º, nº 2, al. b) do CIRE, abrange apenas as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade.
- Essa exclusão não abarca o caso de um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel referente a uma indemnização paga por este em virtude de um acidente de viação em que foi responsável o devedor, que conduzia o veículo, mas não era seu proprietário, e em que o Fundo foi accionado por inexistir à data do acidente seguro válido e eficaz.
- Com efeito, a obrigação de efectuar o seguro recaía sobre o proprietário e, por isso, o crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel não se funda em facto ilícito doloso praticado pelo devedor.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas, uma vez que o recorrente delas está isento (cfr. art. 4º, nº 1, al. n) do Regulamento das Custas Processuais).
Porto, 16.9.2014
Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
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[1] Corresponde no essencial à redacção do actual art. 54º, nº 1 do Dec. Lei nº 291/2007, de 21.8.
[2] Cfr. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª ed., pág. 35.
[3] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., págs. 335/6.