Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
247/16.8PAVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS
MEDIDAS DE COAÇÃO URGENTES
NÃO PERMANECER NA RESIDÊNCIA
Nº do Documento: RP20161026247/16.8PAVNG-A.P1
Data do Acordão: 10/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1027, FLS.185-188)
Área Temática: .
Sumário: I - A aplicação das medidas de coação urgentes previstas no art. 31.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 [Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência das suas Vítimas], depende da verificação, em concreto, dos respetivos pressupostos específicos (haver “fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos”) e de, pelo menos, um dos requisitos gerais elencados no art. 204.º, do Cód. Proc. Penal.
II - Assim, no momento em que aplica a medida o juiz há de formular um juízo probatório indiciário, ou seja, na fundamentação do despacho deve descrever, concretamente, os factos que considera indiciados (e que imputa ao arguido) e enunciar os elementos que constituem o suporte probatório indiciário desses factos (cf. alíneas a) e b) do n.º 6 do artigo 194.º do Cód. Proc. Penal).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 247/16.8PAVNG-A.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

IRelatório
No âmbito do processo comum, em fase de inquérito, que, sob o n.º 476/13.6 PDPRT, então, corria termos pelo DIAP (2.ª Secção) de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto, em que é arguido B…, devidamente identificado nos autos, na sequência de interrogatório judicial a que foi submetido, por decisão de 09.06.2016, foi este proibido de permanecer na habitação da ofendida, “obrigação esta a cumprir no prazo de 3 semanas a contar da presente data”.
Inconformado, o arguido interpôs recurso desse despacho para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que finalizou com as seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
“1- Não se encontra fortemente indiciada nos autos a prática pelo arguido B… do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º do Código Penal.
2- O artigo 31.º da Lei 112/09, de 06/09, consagra medidas de coação de carácter urgente e que, por esta razão devem ser aplicadas ao arguido no prazo máximo de 48 horas após a constituição de arguido, o que não sucedeu no caso dos autos.
3- Não se alteraram os pressupostos que determinaram em sede de primeiro interrogatório e aquando da constituição do Recorrente como arguido a aplicação ao mesmo do Termo de Identidade e Residência, pelo que, não se vislumbram razões para alteração da medida aplicada em primeiro lugar.
4- O Tribunal Criminal não pode nem deve substituir o Tribunal Cível/ Tribunal de Família e Menores, que é o tribunal especialmente competente para executar os acordos homologados por sentença no âmbito da ação de divórcio.
5- Os factos indiciados nos autos, não são suficientemente fortes para que, fazendo-se juízo de prognose necessário, se possa concluir que o arguido a final do inquérito, será acusado da prática do crime de violência doméstica tal como o mesmo se encontra configurado no artigo 152.º do Código Penal.
6- Os autos indiciam apenas uma eventual prática pelo arguido de um crime de ameaças ou de um crime injúrias, sendo qualquer um deles abstratamente punível com pena de prisão muito aquém dos três anos previstos pelo art. 200.ºdo CPP, razão pela qual, o despacho recorrido viola também o artigo 200.º, n.º1,do CPP.
7.º- Não se verificam factos concretos que permitam ao Tribunal concluir pelo perigo de continuação da atividade criminosa, nem tal pressuposto se encontra devidamente fundamentado no despacho recorrido, pelo que a decisão a quo viola também o disposto no artigo 204.º, c) do Código de Processo Penal, sendo que, mesmo as medidas previstas no artigo 31.º da Lei 112/09, dependem da verificação em concreto dos demais pressupostos gerais e específicos previstos no Código de Processo Penal para aplicação de qualquer medida de coação mais gravosa que o TIR.
8.º - Dos elementos probatórios contantes dos autos resulta que o arguido não tem possibilidades económicas que lhe permitam sair da casa de morada da família, pelo que, a medida de coação imposta ao arguido viola os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consagrados no artigo 193.º do CPP, designadamente porque a saída imediata do arguido do imóvel que também é seu não é proporcional à gravidade do crime indiciado nos autos – injúrias.
8.º- O despacho recorrido viola o artigo 152.º do Código Penal e ainda o artigo 31.º da Lei n.º 112/09 e, bem assim os artigos 193.º, 200.º, n.º 1 e 204.º, c) todos do Código de Processo Penal, devendo, por essa razão ser revogado, devendo aplicar-se ao arguido a medida prevista no artigo 96.º do CPP porquanto a mesma se mostra necessária, adequada e suficiente para assegurar as necessidades do inquérito”.
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Admitido o recurso (despacho reproduzido a fls. 33) e notificado o Ministério Público, veio este responder à respectiva motivação, concluindo que “o despacho recorrido deve manter-se com a fundamentação adoptada, excepto com recurso ao disposto no art. 31º da Lei n.º 112/2009, por não se verificar urgência”.
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Nesta instância, na intervenção prevista no n.º 1 do artigo 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, considerando que se mantém “uma situação de coabitação, ela própria potenciadora do perigo de novas agressões” e tendo em conta a gravidade do crime, conclui que não subsistem dúvidas, face ao disposto nos artigos 191.º, 193.º, 200.º, n.º 1, al. a) 2 204.º, al. c), do Cód. Proc. Penal, quanto à necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de afastamento do arguido da habitação da ofendida, “mesmo que se possa considerar a aplicação da medida em causa fora do âmbito do artigo 31.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro”.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

IIFundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum, ou seja, definem o objecto do recurso e fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj), naturalmente, sem prejuízo do poder-dever de apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Nos termos do disposto no artigo 212.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, as medidas de coacção têm de ser, imediatamente, revogadas sempre que se verificar terem sido aplicadas “fora das hipóteses ou das condições previstas na lei”.
É isso mesmo que defende o recorrente, que não se verifica o condicionalismo exigido pela lei para aplicação da medida de afastamento da habitação da denunciante, sua ex-mulher, porquanto:
- não está fortemente indiciada nos autos a prática pelo arguido do crime de violência doméstica, indiciando-se, apenas, a prática de um crime de ameaças ou de um crime de injúrias;
- não se verificam factos concretos que permitam ao Tribunal concluir pelo perigo de continuação da atividade criminosa, nem tal pressuposto se encontra devidamente fundamentado no despacho recorrido, pelo que a decisão a quo viola também o disposto no artigo 204.º, c) do Código de Processo Penal;
- o artigo 31.º da Lei 112/09, de 06/09, consagra medidas de coação de carácter urgente que, por esta razão, devem ser aplicadas ao arguido no prazo máximo de 48 horas após a constituição de arguido, o que não sucedeu no caso dos autos.
A questão a resolver está, pois, em saber se aquela medida coactiva foi aplicada dentro desse condicionalismo, ou se falha algum desses pressupostos e, na afirmativa, quais as consequências.
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Vejamos como apreciou o Sr. Juiz de instrução essa questão, reproduzindo aqui o despacho recorrido:
“O arguido nestes autos, tendo negado uma boa parte das imputações que constam da promoção de fls 67, trouxe aos autos um quadro de conflito familiar o qual aliás, redundou em divórcio dele e da ofendida.
Igualmente referiu que dadas as suas condições económico financeiras – auferindo apenas 180,00€ de RSI e cultivando uma pequena horta da qual colhe legumes para a sua subsistência, bem como criando gado miúdo - não tem possibilidades de dar cumprimento ao acordado em sede de ação de divórcio no que respeita ao abandono da habitação comum do casal.
Igualmente referiu que a ofendida igualmente o provoca e até insulta, desse modo explicando algumas das atitudes e expressões que confessadamente dirigiu à ofendida.
Fazendo fé nas declarações da ofendida e nas filhas do casal, a conduta do arguido poderá ser subsumivel ao crime de violência doméstica legalmente previsto.
É justo e fundado o receio que a situação retratada nos autos e parcialmente confirmada pelo arguido possa redundar em condutas do arguido lesivas da integridade psicológica e até física da ofendida pelo que, o perigo de continuação da actividade criminosa é actual.
Por outro lado, não pode nem deve o tribunal ser insensivel à situação de debilidade económica do arguido que justificadamente o impediu de, até este momento, abandonar a casa de morada da família conforme acordado em sede de processo de divórcio.
Por conseguinte, e dando-se parcial provimento ao promovido pelo Ministério Público, se determina nos termos dos artigos 31º nº1 al.c) da Lei 112/09 de 16 de Setembro, 191º a 194º, 200 n.º1 al. a) e 204 al. c) todos do C. P. Penal, determina-se que o arguido não permaneça na habitação da ofendida, obrigação esta a cumprir no prazo de 3 semanas a contar da presente data”.
O citado artigo 31.º da Lei n.º 112/09, de 16/9, na parte que para aqui interessa, dispõe o seguinte:
1 - Após a constituição de arguido pela prática do crime de violência doméstica, o tribunal pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, sem prejuízo das demais medidas de coacção previstas no Código de Processo Penal e com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação nele referidos, de medida ou medidas de entre as seguintes:
(…)
c) Não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima;
Cremos ser consensual o entendimento de que aquele diploma legal não criou um regime jurídico especial que leve ao afastamento do regime geral plasmado no Código de Processo Penal, limitando-se a introduzir alterações pontuais a este regime geral, a fim de o adaptar às características específicas deste tipo de criminalidade.
As medidas de coacção urgentes ali mencionadas constituem, na realidade, uma adaptação das proibições e imposições de condutas, respectivamente, elencadas nas alíneas e), f), a) e d), do n.º 1, do artigo 200.º, do Código de Processo Penal, tendo sido escolhidas pela sua particular adequação às situações de violência doméstica e buriladas com vista à aplicação a este especial tipo de crime.
Por isso, também a sua aplicação depende da verificação, em concreto, dos respectivos pressupostos específicos (haver “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos”) e de, pelo menos, um dos requisitos gerais elencados no artigo 204.º do Código de Processo Penal.
Assim, o juiz há-de formular um juízo probatório indiciário, ou seja, na fundamentação do despacho que aplicar a medida de coacção há-de descrever, concretamente, os factos que considera indiciados, e que imputa ao arguido, e enunciar os elementos que constituem o suporte probatório indiciário desses factos (cfr. alíneas a) e b) do n.º 6 do artigo 194.º do Cód. Proc. Penal)
Fá-lo-á em função dos indícios existentes no momento em que aplica a medida de coacção e não em função do que pode vir a ser recolhido no decurso do inquérito.
Ora, o despacho recorrido omite completamente esse juízo, pois nele o Sr. Juiz de instrução limitou-se a consignar que “fazendo fé nas declarações da ofendida e nas filhas do casal, a conduta do arguido poderá ser subsumivel ao crime de violência doméstica legalmente previsto” (sublinhado nosso).
O que se extrai do trecho citado é que o Sr. Juiz de instrução admite a mera possibilidade de a conduta do arguido consubstanciar um crime de violência doméstica, mas não diz em que factos se alicerça para assim concluir. E quanto aos elementos probatórios indiciários, não é claro que tenha considerado fidedignas as declarações da denunciante e das filhas.
Compreende-se a dificuldade do Sr. Juiz de instrução em fundamentar a sua decisão, pois são muito ténues os indícios da prática de um crime de violência doméstica.
Sufragamos a tese de que indícios fortes, tal e qual como os indícios suficientes, são os que permitem adquirir a convicção segura, inequívoca de que no momento em que é proferida uma decisão (seja uma decisão interlocutória como é a aplicação de uma medida de coacção, seja a decisão de deduzir acusação, seja ainda quando é proferido despacho de pronúncia) o facto se verifica e, por conseguinte, mantendo-se os elementos de prova já recolhidos nesse momento, levarão, com maior probabilidade, à condenação do que à absolvição do agente.
Dos elementos existentes no processo, o que pode dizer-se suficientemente indiciado é que, no dia 06.02.2016, houve um desentendimento entre o arguido e a denunciante C…, que residiam na mesma casa, apesar de já estarem divorciados, altura em que aquele retirou a porta do corredor que dá acesso aos quartos de dormir e proferiu a afirmação: “eu vou tirar a porta para não te fazer pior”.
Além disso, em indeterminadas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido terá dirigido à ofendida as seguintes palavras: “não te dás ao respeito, estás a ladrar, estás maluca da cabeça, pois tomas ansiolíticos, vai à merda”.
Nesta fase (embrionária) do processo, não pode desprezar-se o que diz o arguido e, “fazendo fé” nas suas declarações, a sua conduta de retirar a porta foi motivada pelo facto de a denunciante a ter trancado, impedindo o seu acesso à casa de banho da casa.
Além disso, os insultos seriam recíprocos e a denunciante até já teria manifestado desejar a morte do arguido.
Tenha ou não havido reciprocidade, certo é que não pode ter-se por fortemente indiciado um crime de violência doméstica, mas tão só um crime de injúria.
Decididamente, a denunciante C… não foi vítima de maus tratos.
Mas não ficam por aqui as debilidades da fundamentação do despacho recorrido.
Também em relação aos pericula a que se refere o artigo 204.º do Cód. Proc. Penal não se alcança onde encontrá-los.
A aplicação de qualquer medida de coacção (com excepção do termo de identidade e residência) depende da verificação, em alternativa, de qualquer dos requisitos gerais enunciados nas três alíneas do citado artigo 204.º: perigo de fuga; perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo; perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou perigo de continuação da actividade criminosa, devido à natureza e às circunstâncias do crime ou à personalidade do arguido.
Cabe fazer notar que qualquer destas condições deve configurar-se como um perigo real e não meramente hipotético ou virtual e resultar de todos os elementos factuais disponíveis no processo, analisados e ponderados de acordo com as regras da experiência comum.
No despacho recorrido concluiu-se pela existência do perigo de continuação da actividade criminosa e justifica-se assim a conclusão:
É justo e fundado o receio que a situação retratada nos autos e parcialmente confirmada pelo arguido possa redundar em condutas do arguido lesivas da integridade psicológica e até física da ofendida pelo que, o perigo de continuação da actividade criminosa é actual”.
Antes de mais, o documento de fls. 8 e 9 (elaborado com base nas informações fornecidas pela própria denunciante) desmente a afirmação da existência do perigo de que o arguido possa ter “condutas lesivas da integridade física da ofendida”.
Em tal documento consta que nunca o arguido usou de qualquer tipo de violência física contra a (ex-)mulher.
É evidente que isso, por si só, não constitui garantia nenhuma de que não ocorrerá qualquer agressão física, mas, como se referiu, o perigo não pode ser hipotético, tem de ser real e resultar dos elementos existentes no processo.
Ora, não há no despacho recorrido nenhuma concretização do perigo, não são indicados quaisquer factos em que um tal perigo se alicerçaria.
É, pois, inevitável concluir que a medida coactiva em causa foi aplicada fora das condições legais, pelo que se impõe a sua imediata revogação.
O que não quer dizer que o arguido/recorrente possa ir a correr introduzir-se na casa de habitação da denunciante C… e aí “assentar arraiais”.
Existe uma decisão judicial que o obrigava a sair de casa até ao final de Março de 2016 e o arguido tem de respeitar e cumprir essa decisão.

IIIDispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida (despacho de 09.06.2016, reproduzido a fls. 23/24 destes autos, pelo qual foi o arguido B… sujeito à medida de afastamento da casa de habitação de C…).
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 26/10/2016
Neto de Moura
Ana Bacelar