Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12/13.4GDSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP2014121012/13.4GDSTS-A.P1
Data do Acordão: 12/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A conduta traduzida quanto ao arguido em – agarrar com força o braço direito da arguida (…) apelidando-a de puta e vaca e disse-lhe que caso ela regressasse àquele local, a mataria – e quanto à arguida – agarrou o pescoço do arguido (…) e apelidou-o de ladrão, bêbado e drogado – numa só ocasião, não revelam em relação a nenhum dos arguidos, aquela intensidade de ataque à dignidade pessoal ou de crueldade exigida pelo tipo de crime de violência doméstica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 12/13.4GDSTS- A.P1

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de inquérito n.º12/13.4GDSTS da 1ª secção da Procuradoria da Republica de Santo Tirso o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos B… e C…, pela prática cada um deles como autor material e na forma consumada de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º, nºs 1,a) e e 2 do CP, imputando-lhes os seguintes factos:
“. O arguido e B… foram casados entre si desde 03 de Maio de 1998 até 28 de Junho de 2012, altura em que se divorciaram – cfr. assento de casamento de fls. 142 e 143 que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos.
. Do casamento acima referido nasceu, em 26 de Maio de 2001, D… - cfr. assento de nascimento de fls. 150 e 151 que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos.
. No dia 05 de Janeiro de 2013, cerca das 19:20 horas, na via pública, na Rua …, …, Santo Tirso, na presença do filho menor de ambos, o arguido C… agarrou com força o braço direito da arguida B…, apelidou-a de puta e vaca e disse-lhe que, caso ela regressasse àquele local, a mataria.
. Por sua vez, a arguida B… agarrou o pescoço do arguido C… e apelidou-o de ladrão, bêbado e drogado.
. Em resultado das agressões supra descritas, a arguida B… sofreu traumatismo do braço direito e da perna e pé à esquerda, apresentando, no membro superior direito, equimose acastanhada com 1,5 cms de diâmetro no terço médio da face anterior do antebraço e no membro inferior esquerdo, equimose acastanhada com 2,5 cms de diâmetro sobre o 5º metatarsiano, equimose de cor azulada com 2 por 1 cms e com 3 cms de diâmetro no terço médio da face posterior da pena, o que lhe determinou 5 dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional – cfr. relatório médico-legal de fls. 11 a 13 que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos.
. Agindo da forma descrita, tinham os arguidos a vontade livre e a perfeita consciência de estar infligindo e sujeitando o outro arguido, seu ex-cônjuge a tratamentos cruéis e desumanos, causando-lhe danos psicológicos e ofendendo os seus bem-estar e equilíbrio emocionais, assim como a liberdade e segurança dos mesmos, designadamente, insultando, agredindo e, no caso do arguido C…, prometendo atentados à vida e integridade física da arguida B…, tudo na presença do filho menor de ambos, pelo que, adoptaram os dois arguidos intencionalmente as referidas condutas apesar de saberem que as mesmas eram, como são proibidas e puníveis por lei penal vigente.”
Distribuídos os autos ao 1º Juízo Criminal do tribunal, a Srª Juiz proferiu despacho no qual não recebeu a acusação deduzida por considerar a mesma manifestamente infundada nos termos do artº 311º nº2 al.a) e nº3 do CPP com a seguinte fundamentação: (transcrição)
(…)
O Tribunal é competente. O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo criminal, não se verificam nulidades, excepções ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
O M.P. acusa C… e B… da autoria, por cada um deles, de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152º, nºs 1, al. a), e 2, Código Penal. Transcreve-se esse tipo legal nas partes pertinentes:
1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena d prisão de dois a cinco anos.
O bem jurídico protegido por esta norma é a saúde, tanto física como psíquica e, em derradeira instância, defende-se a própria dignidade humana, colocada em causa por tratamentos degradantes. As condutas típicas não estão taxadas. Podem ser de variada ordem, mas devem reconduzir-se a ofensas físicas (agressões no corpo) ou psicológicas (insultos, ameaças, humilhações, etc).
Ponto é que exista reiteração nas condutas, isto é, que sejam repetidas ou que, sendo apenas uma conduta, atinja uma gravidade tal que ponha em crise a protegida dignidade da pessoa humana. Isto é, a agressão há-de ter uma elevada intensidade. Caso contrário, não integrará este crime mas, eventualmente, um dos diversos que este engloba: ofensa à integridade física, injúria, difamação, ameaça entre outros.
Ora na acusação é apenas mencionado um acontecimento em que o arguido C… agarra com força o braço de B…, que lhe causaram equimoses, chama-a de puta e vaca e diz-lhe que a mataria se voltasse àquele local.
Por seu turno, o que B… fez foi, na mesma ocasião, chamar ladrão, bêbedo e drogado ao C….
Portanto, não há reiteração de comportamentos qualificáveis como maus tratos. Existe somente um episódio.
E os comportamentos referidos na acusação não têm gravidade suficiente para serem qualificados como de maus tratos para que se possa falar da prática de um crime de violência doméstica. O que se é mais evidente quanto aos factos imputados à arguida B… (limitou-se aos insultos) também é aplicável à actuação do arguido C….
É certo que quanto à arguida B… está dito na acusação que ela agarrou o pescoço do outro arguido. O que quanto a nós é um facto inócuo.
Acresce que dificilmente existirá violência doméstica quando os maus tratos são recíprocos, como se retira do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/1/2013, disponível em www.dgsi.pt, que aliás nega essa possibilidade.
Assim, não se concorda com a qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos. Entendemos nós que estes traduzirão a prática:
- pelo arguido C… de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos art.s 143º, nº 1, 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b), um crime de coacção agravada na forma tentada, p.p. pelos art.s 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), por referência aos art.s 22º, 23º e um crime de injúria, p.p. pelo art. 181º, nº 1, todos do Código Penal.
- pela arguida B… de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181º, nº 1, do Código Penal.
Sucede que, quanto aos crimes de injúria, nenhum dos arguidos acompanhou a acusação pública. Nem se constituíram assistentes. Logo, como aquele crime depende de acusação particular, o processo não pode prosseguir para apreciação desses factos por esse crime Corolário de tudo isto é que a acusação contra a arguida B… não pode ser recebida para julgamento por falta de legitimidade do MP para esse o efeito quanto ao crime de injúria. Entendendo-se que os factos descritos na acusação não são subsumíveis aos crime de violência doméstica.
Recebe-se apenas a acusação contra o arguido C… pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos art.s 143º, nº 1, 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b),e de um crime de coacção agravada na forma tentada, p.p. pelos art.s 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), por referência aos art.s 22º, 23º.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 311º, nºs 2, al. a), e 3, CPP rejeita-se a acusação do M.P. deduzida contra a arguida B….
*
Recebe-se a acusação do MP de fls. 168 e e ss, contra o arguido
- C…, id a fls. 168
pela prática dos seguintes factos:
1º O arguido e B… foram casados entre si desde 03 de Maio de 1998 até 28 de Junho de 2012, altura em que se divorciaram – cfr. assento de casamento de fls. 142 e 143 que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos.
2º Do casamento acima referido nasceu, em 26 de Maio de 2001, D… - cfr. assento de nascimento de fls. 150 e 151 que aqui se dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos.
3º No dia 05 de Janeiro de 2013, cerca das 19:20 horas, na via pública, na Rua …, …, Santo Tirso, na presença do filho menor de ambos, o arguido C… agarrou com força o braço direito da arguida B…, apelidou-a de puta e vaca e disse-lhe que, caso ela regressasse àquele local, a mataria.
4º Em resultado das agressões supra descritas, a arguida B… sofreu traumatismo do braço direito e da perna e pé à esquerda, apresentando, no membro superior direito, equimose acastanhada com 1,5 cms de diâmetro no terço médio da face anterior do antebraço e no membro inferior esquerdo, equimose acastanhada com 2,5 cms de diâmetro sobre o 5º metatarsiano, equimose de cor azulada com 2 por 1 cms e com 3 cms de diâmetro no terço médio da face posterior da pena, o que lhe determinou 5 dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional – cfr. relatório médico-legal de fls. 11 a 13 que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos.
5º Agindo da forma atrás descrita, tinha o arguido C… a vontade livre e a perfeita consciência de estar agredindo e prometendo atentados à vida e integridade física de B…, tudo na presença do filho menor de ambos, pelo que, adoptou o arguido intencionalmente as referidas condutas, apesar de bem saber que as mesmas eram, como são, proibidas e puníveis por lei penal vigente.
Factos que traduzem a prática pelo arguido, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos art.s 143º, nº 1, 145º, nºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, al. b), e um crime de coacção agravada na forma tentada, p.p. pelos art.s 154º, nº 1, e 155º, nº 1, al. a), por referência aos art.s 22º, 23º todos do Código Penal.
Alterando-se, assim, a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública.
*
A alteração da qualificação jurídica dos factos implica que a soma das penas máximas abstractamente aplicáveis ultrapasse os cinco anos de prisão. Assim, a fim de determinar qual o tribunal competente abra vista ao M.P. para dizer se pretende lançar mão do disposto no art. 16º, nº 3, do CPP.
*
Até o MP se pronunciar sobre o acima referido, fica prejudicada a marcação de julgamento.
(…)
*
Inconformado, o Magistrado do Ministério Público interpôs recurso, no qual retira da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…)
1. Recorre-se do despacho proferido em 09 de Julho de 2014 em que o Meritíssimo Juiz de Direito a quo, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.os 2, a) e 3 do CPP, rejeitou a acusação pelo crime de violência doméstica contra a arguida B…, atenta a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação pelo crime de injúria em que foi convolado e alterou a qualificação jurídica também relativamente aos fatos descritos na acusação imputados ao arguido C… e recebeu estes (fatos) convolando-os para a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, 145º, n.os 1, a) e 2 e um crime de coação agravada na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, a) do Código Penal por referência aos artigos 22º e 23º, todos do Código Penal.
2. O artigo 311º do CPP, na sua atual redação, não autoriza a prolação do despacho recorrido, nem no que tange ao não recebimento da acusação, nem no que respeita à alteração da qualificação jurídica dos fatos descritos na acusação.
3. Esta norma permite apenas ao Juiz o controlo dos “(…) vícios estruturais graves da acusação referidos (…)” taxativamente no seu número 3.
4. A decisão do Meritíssimo Juiz de Direito a quo não encontra eco em qualquer norma atualmente em vigor no ordenamento jurídico português e ofende o espírito do nosso sistema processual-penal nos seus mais essenciais pressupostos – o princípio acusatório e a separação das magistraturas.
5. A acusação deduzida nos autos não integra qualquer das previsões de qualquer das alíneas do artigo 311º, n.º 3 do CPP.
6. Existe manifesta contradição interna no raciocínio ínsito despacho recorrido. É o próprio Meritíssimo Juiz de Direito a quo quem expõe argumentação – no próprio despacho que profere - que inviabiliza a utilização de cada uma das alíneas da norma jurídica invocada para rejeitar a acusação.
7. A decisão do Meritíssimo Juiz de Direito a quo é ilegal por violação do artigo 311º, n.º 3 do CPP, devendo ser substituído este despacho por outro que receba a acusação proferida nos autos in totum.
8. A lei não prevê a alteração da qualificação jurídica dos fatos aquando do recebimento da acusação mas apenas em sede de julgamento – cfr. artigos 358º e 359º do CPP – sendo bastante clara quando refere que este mecanismo só poderá ser usado “(…) no decurso da audiência (…)” – cfr. artigo 358º, n.º 1 do CPP – e não antes.
9. Entendimento contrario, mais uma vez, brigaria com o princípio acusatório do processo penal, pois permitiria ao Juiz efetuar um pré-julgamento sobre o elemento jurídico da acusação ou até mesmo sobre os fatos ali descritos, sindicar os elementos de prova elencados no libelo acusatório, alterar a matéria de fato descrita na acusação, como que adiantando o seu entendimento relativamente à sentença a proferir e a ferir de morte o princípio acusatório que preside ao processo penal português, confundindo na mesma entidade o acusador e o julgador.
10. A “(…) solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16°, n.º 3 (…)” do CPP.
11. Pelo que, deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação na sua totalidade, incluindo a qualificação jurídica ali expressa.
Sem prescindir,
12. Nos termos do disposto no artigo 2º, a) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro, é vítima de um crime de violência doméstica quem tenha sofrido um dano, o qual se traduz por um atentado à sua integridade física ou mental ou um dano moral.
13. A lei não referiu qualquer reiteração nem modalidade de ação – mais ou menos grave – para integrar uma única conduta no conceito de violência doméstica.
14. A lei basta-se com um único atentado à integridade física da vítima, tal como aconteceu no caso descrito na acusação proferida nos autos.
15. A Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro tem uma aplicação abrangente, concretizando conceitos jurídicos e medidas de prevenção previstas no Código Penal e no Código de Processo Penal.
16. No despacho recorrido faz-se uma nítida interpretação restritiva do artigo 152º, n.º 1, a) do Código Penal, porquanto o legislador estabeleceu que pratica um crime de violência doméstica “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
17. Considerar que um único mau trato não integra o crime de violência doméstica exige que se restrinja o âmbito de aplicação da norma, a qual até inclui na sua letra um esclarecimento (dir-se-ia inútil caso não se conhecesse a evolução jurisprudencial da interpretação do preceito) que não admite margem para dúvidas, traduzido na expressão “reiterado ou não”.
18. Não é possível fazer uma interpretação do artigo 152º, n.º 1 do Código Penal igual à efetuada pelo despacho recorrido, sob pena de se atacar o princípio da separação de poderes pois, desta forma, o tribunal elimina do evidente campo de aplicação de uma norma uma matéria que o legislador quis, inequivocamente, abranger.
19. No despacho recorrido, o Meritíssimo Juiz de Direito a quo reputou a circunstância de a arguida B… ter agarrado o pescoço do arguido C… como um “fato inócuo”, nem sequer o tendo integrado na prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, 145º, n.os 1, a) e 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, b) do Código Penal.
20. Com tal decisão, o Meritíssimo Juiz de Direito a quo ignorou a lei que tipifica como crime de ofensa à integridade física qualquer ataque ao “(…) corpo ou a saúde de outra pessoa (…)” – cfr. artigo 143º, n.º 1 do Código Penal – decidiu contrariamente à generalidade da doutrina – cfr. entre outros, a este respeito, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 204 e Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal, II Edição, vol. II, pág. 135 – e com desrespeito pela jurisprudência fixada no Assento STJ de 18 de Dezembro de 1991 onde se tipificou como crime de ofensa à integridade física simples uma bofetada que nem sequer causou lesões físicas.
21. O Meritíssimo Juiz de Direito a quo não explicou por que entendeu que os fatos imputados ao arguido C… não têm “gravidade suficiente” para serem integrados no crime de violência doméstica, incorrendo, assim, na ilegalidade prevista no artigo 97º, n.os 1, b) e 5 do CPP.
22. Com a prolação da decisão recorrida, o Meritíssimo Juiz de Direito a quo violou o disposto nos artigos 16°, n.º 3, 97º, n.os 1, b) e 5, 311º, 358º e 359º do CPP, 152º, n.os 1, a) e 2, 181º, n.º 1, 143º, n.º 1, 145º, n.os 1, a) e 2, 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, a) do Código Penal, 2º, a) e 14º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro, 9º do Código Civil, 219º, n.º 1 e 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 75º, n.º 1 do Estatuto do Ministério Público e a jurisprudência fixada no Assento STJ de 18 de Dezembro de 1991.
23. Pelo que, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que receba na íntegra a acusação deduzida nos autos nos termos do disposto no artigo 311º do CPP.
(…)
Não foi apresentada qualquer resposta.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada qualquer resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
.Se o despacho recorrido ao alterar a qualificação jurídica constante da acusação quanto ao arguido C… e ao rejeitar a acusação quanto à arguida B…, violou o disposto no artº 311º nº2 e 3 do CPP, e o princípio do acusatório;
.Se os factos constantes da acusação integram a prática por cada um dos arguidos de um crime de violência doméstica;
.Se ao considerar que “a circunstância de a arguida B… ter agarrado o pescoço do arguido C… como “ um facto inócuo” nem sequer o tendo integrado na prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos artigos 143º, nº1,145º, nºs 1, a) e 2, por referência ao artº 132º nº2, al.b) do Código Penal, (…) ignorou a lei, (…) decidiu contrariamente à generalidade da doutrina (…) e com desrespeito pela jurisprudência fixada no Assento STJ de 18 de Dezembro de 1991(..).
Se o despacho recorrido violou o disposto no artº 97ºnº1 al.b) e nº5 do CPP.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
A primeira questão colocada pelo recorrente, prende-se com a alegação de que ao alterar a qualificação jurídica dos factos constantes na acusação no despacho de recebimento, o despacho recorrido violou o princípio do acusatório, e o disposto nos artsº 358º, 359º, 16º nº3 do CPP.
O princípio do acusatório encontra-se consagrado no artº 32º nº5 do CPP que dispõe que “ O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
Deste princípio resulta um sistema processual em que o julgador fica numa situação de independência, apenas podendo apreciar a situação objectiva do caso que lhe é submetido pela acusação, não podendo promover o processo nem condenar para além da acusação.[1] Há pois uma vinculação temática à acusação por parte do julgador.
A lei processual contempla contudo situações em que podem ser considerados novos factos ou uma nova qualificação jurídica, desde que observados os pressupostos dos artº 358º e 359º do CPP. Estes dispositivos ao limitarem e disciplinarem a possibilidade de consideração de novos factos, são ainda eles um reflexo do princípio do acusatório.
O que se pretende assegurar em qualquer caso são as garantias de defesa do arguido perante os novos factos que lhe são imputados, possibilitando-lhe a preparação de defesa pelos mesmos.
No que concerne à alteração da qualificação jurídica dos factos durante a audiência, a mesma encontra-se prevista no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP, aí se impondo a comunicação da mesma ao arguido e a concessão de prazo necessário à preparação da defesa.
No caso dos autos, o Tribunal procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos constante da acusação, no despacho de saneamento do processo nos termos do artº 311º do CPP.
E é precisamente nesta situação que a jurisprudência vem divergindo, quanto à possibilidade ou não, de o juiz proceder a tal alteração, divergências de que dá conta de forma esclarecedora e abrangente o acórdão desta Relação de 20/11/2014 e para o qual nessa parte se remete.[2]
Pela nossa parte aderimos ao entendimento de que o juiz pode como fez alterar a qualificação jurídica ao proceder ao saneamento do processo nos termos do artº 311º.
Com tal procedimento observou o disposto no artº 313º nº1 al.a) do CPP que exige que do despacho que designa dia para a audiência conste “a indicação dos factos e das disposições aplicáveis, o que pode ser feito por remissão para a acusação”. A lei refere que pode ser feito por remissão, mas não impõe que assim o seja, antes impondo ao juiz que indique as disposições aplicáveis, não impedindo pois que o juiz proceda a outra qualificação jurídica dos factos caso considere ser a correcta. E foi o que o Tribunal fez no caso dos autos, alterando a qualificação da qualificação jurídica no despacho a que se refere o artº 311º do CPP.[3] Ora, sendo este despacho oportunamente notificado aos arguidos, é lhes dada a oportunidade de preparar a sua defesa em relação à nova qualificação jurídica, pelo que não se verifica pois violação do disposto no artº 32º nº5 da CRP, nem dos princípios do acusatório e do contraditório, não sendo necessário o cumprimento do artº 358º do CPP, nunca estando em causa no caso em apreciação o cumprimento do artº 359º do CPP, pois a alteração efectuada não incidiu sobre os factos constantes da acusação, mas apenas sobre a qualificação jurídica que dela constava.
Alega o recorrente que ao proceder dessa forma o despacho recorrido violou também o disposto no artº 16º nº3 do CPP.
O artº 16º nº3 do CPP dispõe que «Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do nº2 do artº 14º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.»
Com o devido respeito, por entendimento contrário, afigura-se que o despacho recorrido assegurou de forma plena, o cumprimento do disposto no nº3 do artº 16º do CPP, já que expressamente, e perante a existência de concurso de crimes que determinava que as penas abstractamente aplicáveis ultrapasse os 5 anos de prisão, se determinou a abertura de vista ao MP para no caso de entender que não deveria ser aplicada pena superior a 5 anos de prisão, usar o disposto naquele preceito.
Face à qualificação jurídica constante do despacho recorrido, resultou uma situação superveniente de concurso, situação que a lei previu no artº 16º nº3, e que mais uma vez com o devido respeito não consubstancia qualquer sindicância ao uso da faculdade prevista naquele preceito pelo MP, uma vez que efectuada a nova qualificação jurídica, lhe é atribuída tal faculdade.
Não se vê pois que tenha ocorrido alguma violação do disposto no artº 219º nº1 da CRP ou sequer do artº 75º nº1 do Estatuto de Ministério Público.
Improcede pois esta questão.
Alega também o Digno recorrente a violação pelo despacho recorrido do disposto no artº 97º nº1 b) e nº5 do CPP, por não ter explicado “por que entendeu que aqueles factos não têm “gravidade suficiente” para serem integrados no crime de violência doméstica”.
Nos termos do artº 97º nº5 do CPP “ Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito.”
Este dever de fundamentação das decisões tem consagração constitucional no artº 205º nº1 da CRP.
O despacho recorrido considerou que os comportamentos imputados na acusação não têm gravidade suficiente para serem qualificados como maus tratos. Tendo-se escrito quanto à conduta imputada à arguida B… que o descrito na acusação “é um facto inócuo”.
Mais se escreveu que “dificilmente existirá violência doméstica quando os maus tratos são recíprocos.”
Afigura-se não estarmos perante uma situação de falta de fundamentação, mas antes perante a discordância do recorrente da fundamentação utilizada no despacho.
De todo o modo ainda que se tratasse de falta de fundamentação, tal omissão não acarrearia a nulidade do despacho recorrido, o que aliás o recorrente também não alega, antes se quedando pela invocação de uma ilegalidade.
Na verdade só para a sentença é que a lei comina a omissão de fundamentação como nulidade nos termos do artº 370º nº1 a) e 3 e artº 374º nº2 do CPP.
Sabido que em matéria de nulidades vigora o princípio da tipicidade legal, nos termos do artº 118º do CPP e artº 119º e 120º do CPP, pelo que não estando prevista tal nulidade em relação aos despachos, isto é, não havendo norma que genericamente determine a nulidade por falta de fundamentação em relação a outras decisões, para além das sentenças, como decorre do artº 379º do CPP, tal omissão apenas geraria uma irregularidade nos termos do artº 123º do CPP, sujeita ao regime de arguição aí previsto.
Como tal, ainda que se verificasse uma irregularidade devia a mesma ter sido arguida no prazo de 3 dias após a notificação do despacho recorrido e perante o tribunal que proferiu a decisão, pelo que sempre a arguição agora efectuada seria extemporânea, por já estar sanada pelo decurso do tempo.
Improcede pois esta questão.
Alega o recorrente que os factos constantes da acusação integram a prática por cada um dos arguidos de um crime de violência doméstica p.p. pelo artº 152º nº1 do CP e como tal deviam ter sido recebidos.
Para fundamentar tal alegação e discordância do despacho proferido pelo Exmº Srº Juiz, invoca o recorrente que o despacho recorrido fez uma interpretação restritiva do artº 152º a), já que no mesmo preceito se prevê a integração de tal ilícito, ainda que com um único acto.
Vejamos:
Dispunha o artº 152º 1 a) do CP, na redacção resultante da revisão operada pelo DL. 48/95 de 15/3, com as alterações introduzidas pelas Leis nº65/98 de 2/9 e 7/2000 de 27/5 “Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência , doença ou gravidez, e: a) lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente é punido com pena de prisão 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artº 144º.”
E no nº2 do artº 152º dispõe-se que a mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas ás dos cônjuges maus tratos físicos ou psíquicos
Realça-se como principal alteração á anterior redacção da lei nº65/98 de 2 de Setembro em que se dispunha “ O procedimento criminal depende de queixa, mas o MP pode dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida acusação”, a actual natureza pública do ilícito em causa. ”.
Após a entrada em vigor da Lei nº59/2007 de 4/9 dispõe o artº 152º nº1 al.a)
“1. Quem, de modo reiterado, ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) (…)
c) (…)
d( (…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Sendo que no nº2 do mesmo preceito se dispõe “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”
Estamos perante um ilícito em que o bem jurídico protegido é como refere Taipa de Carvalho, “a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agrave as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge(...)” [4]
Por outro lado as condutas abrangidas por este tipo de ilícito abrangem tanto os maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples) como os maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradores em si do crime de ameaças).
Vinha ainda sendo entendido pela doutrina e a jurisprudência, designadamente Taipa de Carvalho e ainda Simas Santos e Leal Henriques, e ainda Ac. da Relação do Porto de 3 de Novembro de 1999, que a ratio da autonomização deste tipo de crime, em relação a outros ilícitos, designadamente o crime de ofensas corporais, pressupunha uma reiteração das respectivas condutas, que lesem aquela falada dignidade [5]. Nas palavras de Leal Henriques e Simas Santos, loc.cit. “ não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física pelo menos) mas também não se exige habitualidade da conduta. Afigura-se nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento em determinado período de tempo.”
Entendia-se assim para que se verificasse o crime de maus tratos, por contraposição a um mero crime de ofensa à integridade física, era necessário uma mínima reiteração ou repetição, não se esgotando num acto isolado ou numa única agressão,[6] embora admitindo-se casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.[7]
Como decorre da actual redacção dos artº 152º e 152º A, afastou-se expressamente essa exigência de reiteração como elemento do tipo, ao se introduzir no tipo a expressão “de modo reiterado ou não”. No entanto e como escreve Plácido Fernandes, “pese embora a supressão da distinção ente maus tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração - para poder ser considerado maus –tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua na redacção vigente a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.”[8] (realçado nosso)
Como se escreve no ac. da Relação do Porto de 26 de Maio de 2010, relator desembargador Joaquim Gomes, “…podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do art.152º do Cód. Penal, que a acção típica aí enquadrada tanto se pode revestir de maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais ou as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradantes da condição humana da sua vítima» - cfr. CJ, ano XXXV, tomo III, págs 216 e ss.”
Ou, seja sendo embora possível o cometimento do crime de violência doméstica através de um só acto, exige-se contudo que o mesma atinja de modo intenso, a dignidade pessoal da vítima, quer através da humilhação que oprima e degrade a sua condição, psíquica quer através do natureza tratamento cruel das agressões físicas.
Como bem se salienta no acórdão desta Relação de 19/9/2012,[9] tal ideia de intensidade está expressa pelo legislador na exposição de motivos da Proposta de Lei nº98/X de alteração do Código Penal, da Lei 59/2007, quando aí se escreve: “Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa”, pelo que como se afirma em tal acórdão “um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge.”
Não tendo por isso e com o respeito devido, razão o recorrente quando pretende definir o ilícito de violência doméstica através do conceito de vítima constante do artº 2º ala) da Lei 112/2009 que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, já que as expressões “um atentado”, “ um dano moral” e “uma perda material” se reportam apenas àquelas que nos termos da mesma lei tiver sido «directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152º do Código Penal».
Do que ficou dito, resulta que actualmente o crime de violência doméstica pode ser cometido de modo reiterado ou não. No caso dos autos face à materialidade imputada na acusação e supra transcrita, entendemos que a conduta dos arguidos descrita na acusação, quanto ao arguido, - agarrou com força o braço direito da arguida B…(…), apelidou-a de puta e vaca e disse-lhe que caso ela regressasse àquele local, a mataria- e quanto à arguida – agarrou o pescoço do arguido C… (…) e apelidou-o de ladra, bêbado e drogado - circunstanciadas a uma só ocasião, - ainda que na presença do filho menor de ambos, circunstância que releva como qualificativa do facto, e não como preenchimento do mesmo - não revelam em relação a nenhum dos arguidos, aquela intensidade de ataque à dignidade pessoal, ou de crueldade exigida pelo tipo legal nos termos supra expostos.
E como tal só podemos concordar com o Srº Juiz quando afirma que os factos não integram os crimes de violência doméstica imputados aos arguidos, tendo por isso alterado a qualificação jurídica dos factos imputados na acusação.
E o despacho recorrido considerou que aqueles factos integram a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelos arts 143º nº1, 145º nºs 1 al.a) e 2, por referência ao artº 132º nº2 al.b) por referência ao artº 132º nº2 al.b) um crime de coacção agravada na forma tentada p.p. pelos arts 154º nº1 e 155º nº1 al.a) por referência ao artº 22º e 23º e um crime de injúria p.p. pelo artº 181º nº1 todos do CP e em relação à arguida B… de um crime de injúria, p.p. pelo artº 181º nº1 do CP.
Embora pugnando a final pelo recebimento da acusação deduzida, no que já vimos não lhe assiste razão, entende-se que o recorrente põe implicitamente também em causa a integração jurídica efectuada pelo tribunal, quando alega que ao considerar que a circunstância de a arguida B… ter agarrado o pescoço do arguido é “um facto inócuo” sem sequer o ter integrado na prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos artigos 143º, nº1,145º, nºs 1, a) e 2, por referência ao artº 132º nº2, al.b) do Código Penal, “ignorou a lei,” e decidiu “contrariamente à generalidade da doutrina” e com “desrespeito” pela jurisprudência fixada no Assento STJ de 18 de Dezembro de 1991.
“Por ofensa no corpo entende-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem –estar físico de forma não insignificante” Lackner 4, LIlie, LK,6 S/S/Eser 223 3 e Trondle/Fisher 3ª falando aqui de “ um mau trato que afecta o bem estar físico ou a integridade física de forma não insignificante”) citado por Paula Ribeiro de Faria,Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo I, pág .305, 2ª Edição Maio de 2012.
Temos como boa a doutrina e jurisprudência que consideram que “O tipo legal do artº 143º preenche-se através de uma ofensa no corpo ou na saúde, da vítima independentemente da dor ou sofrimento causados”, cfr Paula Ribeiro de Faria, ob cit pág. 304, Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Dezembro de 1991, publicado no Diário da República, Série I-A, nº33 de 8 de Fevereiro de 1992, fixou a seguinte Jurisprudência:
«Integra o crime do artº 142ºdo Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.»
Como tal e face ao que supra se deixou exposto temos que o comportamento da arguida B… de agarrar o pescoço do arguido C… com intenção de agredir aquele integra uma ofensa corporal para efeitos do disposto no artº 143º nº1 do CP.
Porém já não podemos concordar com o recorrente quando a ser tal ofensa qualificada nos termos do artº 145 nºs 1.ala) e 2 por referência ao artº 132º, nº2 al.b) do código Penal.
A lei prevê, no seu artigo 145º números 1 alínea a) e 2 por referência ao preceituado no nº 2 do artigo 132º ambos do Código Penal, como ofensa à integridade física qualificada, a que for praticada contra o ex cônjuge.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a técnica legislativa para caracterizar o homicídio qualificado do artº 132º do CP, revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade, foi “a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa com a técnica chamada dos exemplos- padrão.”[10]
Esta técnica tem como efeito que a formação do juízo de culpa não seja automática, o que se evidencia pela utilização da expressão “ è susceptível de revelar”, e por outro lado implica que possa haver outras circunstâncias análogas aquelas, que levem à culpa qualificada. [11]
No caso da alínea b) do nº2 do art132º, o efeito qualificador decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se resolveu constituir família, o que segundo o Prof. Figueiredo Dias, “normalmente será susceptível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o outro”. Porém e como este autor alerta “trata-se, não obstante e como sempre de um indício que carece de confirmação pela imagem global do facto, sendo as relações conjugais um campo privilegiado para a derrogação da força qualificadora do exemplo padrão”.[12]
Daqui resulta que face à remissão do artº 145 nº2 do CP para que a qualificação ocorra é necessário que a ofensa tenha sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é têm de emergir circunstâncias das quais resulte que a ofensa foi praticada por forma que revele uma maior culpa do agente ou uma ilicitude mais acentuada. Recorrendo mais uma vez às palavras do Prof. Figueiredo Dias “Trata-se, não obstante e como sempre de um indício que carece de confirmação pela imagem global do facto, sendo as relações conjugais um campo privilegiado para a derrogação da força qualificadora do exemplo padrão.”
Tendo presentes estas noções, facilmente se conclui face à singeleza dos factos imputados à arguida na acusação, e é esta que fixa o objecto do processo, que a ofensa em causa não evidencia alguma circunstância que sedimente a susceptibilidade de revelar uma especial censurabilidade ou perversidade, quer por força de uma mais acentuada ilicitude ou intensidade da culpa.
Como tal, a ofensa à integridade física levada a cabo pela arguida integra-se na previsão da ofensa à integridade física simples prevista no artº 143º nº1 do CP e não a ofensa à integridade física qualificada prevista no artº o crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelo artº 143º nº145 nº1 al.a) e 2 por referência ao artº 132º n2 al.b) do CP.
Mas se assim é, tal ilícito depende de queixa do ofendido nos termos do artº 143º nº2 do CP, pressuposto que não se mostra verificado nos autos, já que tendo segundo a acusação os factos ocorrido em 5 de Janeiro de 2013, o ofendido /arguido C…, nunca no prazo de 6 meses previsto no artº 115º do CP, manifestou a vontade de proceder criminalmente por tais factos contra a arguida, apenas tendo sido ouvido como arguido no autos em 11 de Agosto de 2013 conforme interrogatório de fls 59. Como tal, inexiste um pressuposto processual para que a acusação por tais factos possa ser recebida, pelo que inexistindo também acusação particular pelo crime de injúrias, e ainda que com diversa fundamentação no que concerne ao crime de ofensa à integridade física não restava outro caminho ao Sr Juiz que não fosse o de rejeitar a acusação relativamente à arguida B…, nos termos do artº 311 nº2 a) e 3 al.d) do CPP, uma vez que os factos imputados não constituem qualquer crime pelo qual a mesma possa ser julgada e punida.
Porém, e uma vez que se colocou perante este Tribunal da Relação a apreciação da qualificação jurídica efectuada no despacho recorrido, há que retirar consequências do que ficou dito supra a propósito do funcionamento da qualificativa do artº 132º nº2 alb) do CP, também para os factos imputados ao arguido C….
Na verdade também em relação ao arguido os factos imputados na acusação, não permitem afirmar minimamente uma qualquer circunstância que revele a possibilidade de a conduta ser especialmente censurada quer quanto à culpa quer quanto à ilicitude. A acusação imputa que o arguido agarrou com força o braço direito da arguida, acção que surge descontextualizada e de pouca intensidade.[13]
Como tal há que concluir que os factos imputados ao arguido no segmento “agarrou com força o braço direito da arguida B….” integram o crime de ofensa à integridade física simples p.p. pelo artº 143º nº1 do CP e não o crime de ofensa à integridade física qualificada como foi considerado no despacho recorrido.
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III – DISPOSITIVO:
Nos termos apontados, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público na pretensão de recebimento da acusação pelos crimes de violência doméstica imputados na acusação a cada um dos arguidos, mas alterar a qualificação jurídica efectuada no despacho recorrido dos factos imputados ao arguido C…, os quais integram um crime de ofensa à integridade física simples p.p. pelo artº 143º e não o crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelo artº 143º nº145 nº1 al.a) e 2 por referência ao artº 132º n2 al.b) do CP, mantendo no mais o despacho recorrido.
Sem tributação.

Porto, 10-12-2014
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo penal I, pág. 33.
[2] Ac.RP de 20/11/2013 proferido no processo 438/12.OSLPRT.P1.
[3] Neste sentido realçamos o acórdão desta Relação de 3/10/2007 proc. 0713707 (relator Francisco Marcolino.
[4] In Comentário Conimbricense, pág. 332.
[5] Comentário Conimbricense fls.332, CP «Código Penal Anotado» 2º vol.pág182, CJ Ano XXIV-tomo V, pá g 223.
[6] (neste sentido entre outros v.d. AcRP de 22 de Março de 1995, CJ de 1995 tomo II,pág.227, Ac do STJ de 14 de Novembro de 1997, tomo III pág.235),
[7] Cfr. Ac. da Rel. Do Porto de 30/1/2008, proc. 0712512 (relatora Maria Leonor Esteves), Ac.Rel.Porto 11/7/2007, proc. 0711856, (relator Paulo Valério), Ac. Rel. Coimbra 21/10/2009, proc. 21/10/2009, (relator Paulo Guerra).
[8] Cfr. Revista do CEJ,nº8, Jornadas do CEJ sobre a Revisão do Código Penal, pág.308. No mesmo sentido o referido Ac. Rel. Coimbra 21/10/2009
[9] Ac. Rel. do Porto de 19/9/2012, proferido no processo 2049/11.9PAVNG.P1 (relatora Maria Dolores Silva e Sousa)
[10] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial Tomo I, artigos 131º a 201º, Coimbra Editora Maio 2012, pág. 49.
[11] Cf. Jorge Figueiredo Dias ibidem.
[12] Ob.cit pá 58 e 59.
[13] Porque não cabe neste momento processual efectuar qualquer juízo sobre indícios, nenhuma alteração se efectua a nível dos factos, apesar de não se apreender como agarrar o braço terá causado à ofendida para além do traumatismo no braço direito, traumatismo da perna e pé à esquerda.