Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2983/19.8T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LIVRANÇA
PRESCRIÇÃO
NULIDADE POR VÍCIO DE FORMA
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
IDENTIDADE DE CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RP202006152983/19.8T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.
II - Porém, encontrando-se prescrita a respectiva obrigação cambiária, a livrança só poderá valer como título executivo desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou estejam alegados no requerimento executivo.
III - Não terá, porém, essa força executiva a livrança, se o negócio causal for um negócio formal, pois, nesse caso, é o próprio documento mediante o qual foi celebrado o negócio que serve de título executivo e, não existindo esse documento, o negócio será nulo, sendo a nulidade de conhecimento oficioso.
IV - Contudo, no caso do mútuo nulo por violação da forma exigida no artigo 1143.º do CCivil, a força executiva do documento não fica inquinada, por se manter a obrigação de restituição do prestado, por imposição do artigo 289.º do mesmo diploma legal.
V - Não se verifica a excepção de caso julgado por inexistir identidade de causa de pedir, se numa execução se considerou prescrito o direito de acção cambiária de uma livrança e, mais tarde, se vem instaurar nova execução servindo agora a mesma livrança como quirógrafo e com a alegação, no requerimento executivo, dos factos correspondentes à relação subjacente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2983/19.8T8PRT-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-
Juízo de Execução do Porto-J2
Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Por apenso à execução comum que B…, Ld.ª, com sede na Rua…, n.º …/… Porto move contra C…, residente na …, nº .. Póvoa do Varzim, veio o mesmo deduzir os presentes embargos.
Em resumo, invoca o embargante a existência de caso julgado, atendendo a que a livrança dada à execução constituiu título executivo no âmbito do processo nº 20026/17.4T8PRT-A, e neste processo foi declarado prescrito o direito de acção e julgados procedentes os embargos.
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Recebida a oposição a embargada contestou, alegando que a livrança foi aqui apresentada como quirografo de dívida da alegada a relação subjacente.
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Conclusos os autos foi proferido despacho saneador sentença que julgou procedente, por provada, a excepção dilatória de caso julgado e determinou a extinção da instância executiva.
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Não se conformando com o assim decidido veio a exequente embargada interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
A) Não se conforma a apelante com a sentença que declarou procedentes os embargos deduzidos à execução por verificação da excepção dilatória de caso julgado.
B) O presente recurso tem por objecto aferir se nos presentes autos se verifica a aquela excepção de caso julgado.
C) Aferir se estes autos ofendem caso julgado anteriormente formado.
D) A apreciação desta matéria constitui uma das excepções onde o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, conforme nos diz a alínea a) do n.º 2, do artigo 629º do Código de Processo Civil.
E) A embargada tem legitimidade para recorrer, de acordo com os n.ºs 1 e 2 do artigo 631º do Código de Processo Civil.
F) Legitimidade que também lhe é conferida pelo Principio da igualdade das partes, estabelecido no artigo 4º daquele diploma, que pressupõe uma igualdade de armas entre as partes na defesa da pretensão que pretendem sustentar em juízo.
G) Resulta ainda essa legitimidade, por fim, da previsão estabelecida no artigo 13º da Constituição da República, que garante a igualde de todos perante a lei.
H) Considere-se então, existe caso julgado quando uma causa se repete, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.
I) Estabelece o artigo 581º do Código de Processo Civil que para que a causa se considere repetida para efeitos de caso julgado, têm de se verificar cumulativamente três requisitos.
J) A identidade dos sujeitos, a identidade do pedido e a identidade da causa de pedir
K) Com o devido respeito e salvo melhor opinião, entende a apelante não se verificar nestes autos a repetição da causa de pedir, considerando a causa de pedir apresentada no processo n.º 20026/17.4T8PRT, que correu termos no Juiz 8 dos Juízos de Execução do Porto.
L) Com efeito, estabelece o n.º 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil que há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
M) Isto porque, naquele processo, a pretensão da aqui apelante assenta na livrança enquanto título de crédito em sentido estrito.
N) Aqui, nos autos, assenta a pretensão no contrato que está na génese da emissão daquele título, conforme se disse no requerimento executivo.
O) A livrança vale aqui como quirógrafo de uma obrigação não cambiária.
P) Ou, por outras palavras, como título ou escrito comprovativo de uma qualquer obrigação, de natureza diferente, existente entre as pessoas que se propunham figurar na livrança e que devia dar origem à obrigação cambiária.
Q) Não se considera aqui a livrança como um título de crédito, com todas as suas características e propriedades intrínsecas, antes se considera aquele documento como escrito ou título da relação jurídica subjacente.
R) Caminho que nos parece ser seguido no AC STJ 10/29/2009.
S) É pois forçosa a conclusão que o facto jurídico onde assenta a pretensão da apelante nos presentes autos não é idêntico àquele onde radicou a sua pretensão no processo 20026/17.4T8PRT, que correu termos no Juiz 8 dos Juízos de Execução do Porto.
T) Aqui o facto jurídico onde assenta a pretensão da exequente não é o título de crédito, mas sim a relação jurídica da qual ele nasce.
U) Relação da qual ele constitui tão-somente um meio de prova daquela existência.
V) Assim sendo, não estão preenchidos todos os requisitos que a lei cumulativamente exige para que se declare a verificação de caso julgado.
W) A decisão recorrida viola, entre outros normativos, o n.º 1 do artigo 580.º do Código de Processo Civil e os n.ºs 1, 2 e 3, do artigo 581º do mesmo diploma.
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Devidamente notificado contra-alegou o embargante concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a) - saber se se verifica, ou não, a excepção de caso julgado.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em conta para a análise da questão supra colocada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida e ainda o seguinte:
1º) No seu requerimento executivo a embargada alegou o seguinte:
A exequente é uma instituição financeira que tem por objecto a celebração de diversos contratos de financiamento, entre eles contratos de mútuo.
No exercício da sua actividade, a exequente celebrou com o executado um contrato de mútuo com o nº …….
No âmbito do referido contrato, a exequente concedeu um empréstimo ao executado no montante de 3.242,40€.
O executado ficou obrigado a reembolsar aquela quantia em 60 prestações mensais de 54,04€, com inicio em 05-01-2010.
No entanto o executado não pagou as prestações a que estava obrigado, apesar das várias diligências efectuadas pela exequente nesse sentido, pelo que, em 12-08-2014 a exequente enviou ao executado carta registada com aviso de recepção a informar que o contrato chegara a seu termo sem terem sido cumpridas todas as prestações.
Mais informou que iria ser preenchida a respectiva livrança em 10-09-2014 pelo valor em divida à data, 1.359,48€, ao abrigo do pacto de preenchimento previsto na cláusula nº 11 do contrato.
A referida livrança carece de validade para ser considerada título executivo pois o seu vencimento já ocorreu, contudo, não valendo como título, pode valer como quirógrafo, i.e., como documento probatório da relação subjacente. Basta, a título meramente exemplificativo, lembrar J.G. PINTO COELHO, que–referindo-se à letra-escreve(2) que “o título não produzirá efeitos como letra” embora possa valer possivelmente “como quirógrafo duma obrigação não cambiária, isto é, como título ou escrito comprovativo de uma qualquer obrigação, de natureza diferente existente entre as pessoas que se propunham figurar na letra e que devia dar origem à obrigação cambiária: isto é, o título pode valer como escrito ou título da relação jurídica subjacente”.–AC STJ 10/29/2009.
Face ao supra exposto, a relação subjacente alegada resulta, em suma, da celebração do contrato de mútuo entre a aqui exequente e o agora executado no âmbito do qual foi emitida uma livrança como garantia de bom pagamento.
Assim, ao capital em dívida à data do preenchimento da livrança–1.359,48€ -acrescem juros de mora vencidos no valor de 176,22€ calculados sobre o capital em dívida em cada momento até 29-01-2019, à taxa legal de 4% ao ano, bem como imposto de selo no valor de 7,05€, perfazendo um total de 1.542,75€ (mil quinhentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos).
À quantia exequenda acrescem juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento”.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar:
a) - saber se se verifica, ou não, a excepção de caso julgado.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que, no caso em apreço, ocorria a excepção de caso julgado por se verificar a tríplice identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.
Desse entendimento dissente a embargada recorrente referindo que a livrança foi aqui apresentada como quirógrafo de dívida da alegada a relação subjacente.
Quid iuris?
O artigo 703.º do CPCivil, que corresponde ao artigo 46.º do anterior Código, estabelece no seu nº 1 que à execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
A exequibilidade dos títulos de crédito nunca foi posta em causa e a questão que na jurisprudência se suscitava era a de saber se os mesmos, depois de prescrito o respectivo direito de acção, poderiam ser dados à execução como meros quirógrafos.
Acontece que a corrente jurisprudencial mais significativa, acompanhando a generalidade da doutrina, entendia que estes documentos, mesmo depois de prescrito o direito de acção, poderiam ser dados à execução, desde que o exequente no requerimento executivo alegasse a respectiva relação subjacente.
Solução que ficou agora expressamente consagrada na alínea c) do nº 1 do artigo 703.º supra transcrito, sendo certo que, se assim não fosse, os títulos de crédito só poderiam ser apresentados à execução na sua vertente cartular, uma vez que os documentos particulares foram banidos do elenco dos títulos executivos.[1]
No caso dos autos, não oferece dúvidas que a obrigação cambiária está prescrita, atendendo a que entre a data do vencimento aposta na decorreram muito mais do que os três anos previstos no artigo 70.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (aplicável “ex vi” do artigo 77.º do mesmo diploma legal) para o exercício da acção cambiária.
Assim, prescrita a livrança, esta só poderá valer como título executivo desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou estejam alegados no requerimento executivo.
Ora, entende o embargante/executado que, não constando da livrança os factos constitutivos da relação subjacente, nem se mostrando alegados no requerimento executivo e estando, por isso, o direito de acção prescrito, verifica-se a excepção de caso julgado face à decisão proferida no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT.
Asserção esta que o tribunal recorrido veio corroborar na sua decisão.
Todavia, salvo o devido respeito, não se pode sufragar este entendimento.
Analisando.
Por via do disposto no artigo 724.º, n.º 1, al. e), do CPCivil, no requerimento executivo o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
Portanto, o regime legal vigente traduz a afirmação de que, no âmbito da acção executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo.
Como se sabe era entendido e sustentado, à luz dos preceitos legais originários insertos no CPCivil nesta matéria e quando os títulos executivos eram maioritariamente de natureza cambiária e, por isso, abstractos (cheques, letras e livranças), que a causa de pedir numa acção executiva era consubstanciada pelo próprio título executivo.[2]
Actualmente, porém, temos por certo que a causa de pedir na acção executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração.[3]
Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstracção), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.[4]
Ora, no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT, a embargada/exequente veio dar à execução o título de crédito “tout court”, ou seja, a livrança, e onde não foi alegada a relação subjacente que a mesma titulava.
Aliás, se aí tivesse sido alegada a referida relação subjacente nunca se poderia ter concluído pela extinção da execução com base na excepção da prescrição.
Acontece que, no caso em apreço a embargada exequente além de apresentar como título executivo a livrança enquanto mero quirógrafo, veio também alegar no requerimento executivo e, ao contrário do que refere o embargante/executado, os factos constitutivos da relação subjacente.
Na verdade, como decorre da transcrição da alegação constante da fundamentação factual, a embargada/exequente veio dizer que no exercício da sua actividade celebrou com o executado um contrato de mútuo com o nº ……, no âmbito do qual lhe concedeu um empréstimo no montante de 3.242,40€, empréstimo esse que o executado ficou obrigado a reembolsar aquela quantia em 60 prestações mensais de 54,04€, com início em 05-01-2010.
Alegou ainda que, como executado não pagou as prestações a que estava obrigado, apesar das várias diligências efectuadas nesse sentido, em 12-08-2014 enviou-lhe uma carta registada com aviso de recepção a informar que o contrato chegara a seu termo sem terem sido cumpridas todas as prestações.
Mais o informando que iria ser preenchida a respectiva livrança em 10-09-2014 pelo valor em divida à data, 1.359,48€, ao abrigo do pacto de preenchimento previsto na cláusula nº 11 do contrato.
Perante esta alegação cremos, salvo o devido respeito, por entendimento diverso, que a relação subjacente entre a embargada/exequente e o executado/embargante foi devidamente alegada e identificada no requerimento executivo.
Como assim, servindo de título executivo a livrança como mero quirógrafo e tendo sido vertidos no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente, torna-se evidente que a causa de pedir nesta execução não é a mesma que foi invocada na execução que correu no âmbito da execução que correu termos no J8 dos Juízos de Execução do Porto com o nº 20026/17.4T8PRT.
E não havendo identidade de causa de pedir não se pode dar como verificada a excepção de caso julgado.
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Obtempera o exequente, nas suas contra-alegações, que não poderá ser reconhecida a exequibilidade do título de crédito como quirógrafo da obrigação extra-cartular dado estarmos perante um negócio jurídico formal e do mesmo não consta a causa da obrigação.
Vejamos o acerto deste fundamento.
Como refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa[5], “no âmbito da acção executiva há que distinguir entre exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título (exequibilidade extrínseca) e a validade ou eficácia do acto ou negócio nele titulado (exequibilidade intrínseca). O título executivo é autónomo, no sentido de que a sua inexequibilidade é independente da inexequibilidade da pretensão. Aquela deriva da falta de preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica; esta baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo, ou extintivo do dever de prestar. Simplesmente, a autonomia a que se aludiu não é total; e assim, se, por exemplo, o título executivo não garantir a validade formal do negócio jurídico subjacente e a nulidade deste for de conhecimento oficioso, procede a oposição à execução com tal fundamento, devendo a execução ser julgada extinta (art. 816º do CPC)”. “A invalidade formal do negócio jurídico–afirma o Autor citado-afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo. Essa invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do título”.
Em idêntico sentido, Eurico Lopes Cardoso[6] afirma que, “nos casos em que a lei substantiva exija certas condições de forma para a constituição ou prova da obrigação, o título que não obedeça a tais condições não pode servir para exigir executivamente a dita obrigação”.[7]
E compreende-se que assim seja, pois, tratando-se de negócio formal, será o próprio documento mediante o qual o negócio foi celebrado que constituirá o título executivo e, se esse documento não existir, o negócio será nulo, invalidade esta que é de conhecimento oficioso (artigos 220.º e 286.º do CCivil).
No caso em apreço e segundo a alegação da recorrente, vertida no requerimento executivo, a relação fundamental subjacente à emissão da livrança esteve um contrato de mútuo celebrado com o requerido com o nº …… no montante de €3.242,40, contrato esse, como se evidencia da cópia junta com a contestação à oposição se encontra assinado pelo executado/embargante.
Assim, dispõe o artigo 1143.º da lei civil que “o contrato de mútuo de valor superior a 25.000.000$00 só é válido se for celebrado por escritura pública, e o de valor superior a 2.500$00 se o for por documento assinado pelo mutuário”.
Todavia, de acordo com o preceituado no artigo único do Dec. Lei nº 32765, de 29 de Abril de 1943, os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados (como o é a exequente), podem fazer-se por escrito particular, ainda mesmo que o outro contratante não seja comerciante, sendo que o seu objectivo foi “restabelecer a suficiência de documento particular como meio de prova (…)” (relatório do citado decreto), como se dispunha no artigo 150.º, § 5.º, do Código de Processo Comercial, entretanto revogado, de modo a afastar-se a exigência de escritura pública para o mútuo superior a determinado montante, prevista então no artigo 1534.º do Código Civil de 1867 e agora no artigo 1143.º do Código Civil, facilitando-se assim a prática do mútuo bancário.
Daqui resulta sem margem para qualquer tergiversação que, no caso concreto não existe a referida invalidade formal da relação subjacente e, como tal, a livrança como mero quirógrafo constitui título executivo.
Mas ainda que assim não fosse, o raciocínio supra exposto só é válido para a generalidade dos negócios formais, pelo que haverá que considerar o caso específico do mútuo.
Com efeito, sendo o mútuo nulo, a obrigação de restituir o capital entregue mantém-se, sendo a respectiva causa, não o mútuo, que é nulo, mas sim a obrigação de restituição do prestado prevista no artigo 289.º do CCivil.
Nesta linha de pensamento, decidiu-se no acórdão do STJ de 13/11/2003[8], relativamente a um cheque não prescrito, válido como título de crédito, que, sendo discutida a validade do negócio causal por o mútuo ser nulo, a nulidade do mútuo não inquina a exequibilidade do título, face à obrigação de restituição do prestado.
Também no acórdão do STJ de 19/02/2009[9], foi decidido que um escrito particular de reconhecimento de uma dívida, proveniente de um mútuo nulo, tem força executiva, apesar dessa nulidade, face à obrigação de restituição do prestado prevista no artigo 289.º do CCivil.
O mesmo se passaria no caso em apreço se o mútuo fosse nulo.
Não estamos perante um título de crédito válido como tal (como acontecia no acórdão do STJ de 13/11/2003), nem perante um escrito particular em sentido estrito (como acontecia no acórdão do STJ de 19/02/2009); mas estamos perante um título que, não tendo validade como título de crédito, é equivalente a um escrito particular de reconhecimento de dívida e, sendo esta dívida constituída por um mútuo, se nulo fosse, a obrigação de restituição do capital ainda subsistiria por força do artigo 289.º do CCivil e, por isso, não inquinaria a validade do documento enquanto título executivo.
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Procedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, consequentemente, revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que ordene a tramitação processual subsequente da oposição e da respectiva execução.
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Custas pela recorrente (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 15 de Junho de 2020.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, “A Acção Executiva Anotada e Comentada”, Almedina, 2015, pág. 143; Lebre de Freitas, “A Acção Executiva–À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 7ª ed., págs. 76/77.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. I, p. 98; Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, p. 23 e 29.
[3] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 15/05/2003.
[4] Cfr. Ac. STJ citado e Ac. TRP de 10/02/2015.
[5] In A Acção Executiva Singular, 1998, págs. 68 e 69.
[6] In Manual da Acção Executiva, 3ª ed., Almedina, pág. 44.
[7] No mesmo sentido se pronuncia Remédio Marques, in Curso do Processo Executivo à Face do Cód. Revisto, Almedina, pp. 70-71, Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 61, Anselmo de Castro, in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed., C. Editora, pp. 41-42 e na jurisprudência cfr. entre outros, Acs STJ de 19/01/2004, 15/05/2003, 25/10/2007, 27/11/2007, 4/12/2007, 10/07/2008, 28/04/2009, RC de 27/06/2006, 19/05/2009, RL de 21/04/2005, 9/07/2009, 3/11/2009, RP de 16/05/2005, 13/02/2007, 6/10/2008, 21/10/2008.
[8] In www.dgsi.pt.
[9] In www.dgsi.pt.