Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
321/19.9IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
PERDA DE VANTAGENS
PEDIDO CIVIL
Nº do Documento: RP20211028321/19.9IDPRT.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artigo 111º do CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime.
II – Tem sido jurisprudência constante do TRP que, atenta a natureza autónoma e de natureza penal do instituto de perda de vantagens do crime, tais institutos não se confundem nem com a pena, nem com a indemnização civil, não podendo deixar de ser aplicado, como pedido na acusação, sem que daí resulte uma dupla ou tripla execução, pois dependerá da relação subjacente estar ou não cumprida ou satisfeita, sendo certo que, em qualquer caso, e seja qual for o beneficiário, há apenas direito a receber essa quantia uma vez.
III – Isto sem prejuízo de se considerar que decretar o confisco poderá não ter utilidade, pois nestes casos poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente, como sucederá quando aquilo que vier a ser declarado perdido a favor do Estado reverterá para a vítima do crime através do pedido de indemnização reclamado por esta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 321/19.9IDPRT.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. S. 321/19.9IDPRTdo Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 7 em que são arguidos
“B…, Lda.”, com o NIPC ………, e com sede na Rua …, nº …, Porto; e
C…,

O Mº Pº requereu a declaração de perda de vantagens (artº 110º, nº 1, al. b), 3 e 6 do CP) do montante global de € 12.346,57

Por sentença de 27/1/2021 foi decidido:
“a) Condenar o arguido C… como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 5/6, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete euros), ou seja, na multa de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros);
b) Condenar a sociedade arguida “B…, Lda.” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1 e 105º, nº 1 da Lei nº 15/2001, de 5/6, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 10 (dez euros), o que perfaz a multa de € 2.000,00 (dois mil euros);
c) Julgar improcedente o pedido de declaração de perda a favor do Estado do valor € 12.346,57, nos termos do disposto no artigo 110º, nº 1, al. b) e nº 4 do Código Penal.
***
Custas
Vão os arguidos, nos termos dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal condenadas no pagamento das custas do processo, fixando-se, individualmente, em duas unidades de conta a taxa de justiça, nos termos do artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa”

Recorre o Mº Pº o qual no final da respectiva motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1. A douta sentença proferida considerou improcedente a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público, no valor de € 4.196,22, nos termos do artº 110º, nº 1, al. b) e 4 do Código Penal.
2. O Ministério Público requereu a perda de vantagem do crime na perspectiva óbvia de que tudo o que é obtido através de prática de crime deverá ser restituído, de que o crime não compensa.
3. Fê-lo porquanto é insustentável a economia criminal, devendo considerar-se que todas as vantagens obtidas com a prática do crime deverão ser restituídas ao
Estado — regulador - ofendido.
4. O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime.
5. A douta sentença violou o disposto nos artigos 110.°, n.°s 1 a 4 do Código
Penal devendo ser substituída por outra que decrete a perda da vantagem patrimonial obtida pelo arguido com a prática do crime, conforme requerido pelo Ministério Público.

Os arguidos não responderam
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):
Da audiência de discussão e julgamento resultou provada a seguinte factualidade:
1. A sociedade “B…, Lda.” é uma sociedade por quotas, cujo objeto social é o “Comércio de automóveis; importação e exportação de veículos automóveis; reparação e manutenção automóvel”, e tem sede na Rua …, n.º …, no Porto;
2. A sociedade arguida encontra-se coletada pelo exercício da atividade principal de “Comércio de veículos automóveis ligeiros” (CAE …..);
3. E encontra-se enquadrada em Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral e no regime geral de tributação de IRC;
4. O arguido C… foi, pelo menos desde 11-02-2016 até ao presente, o único gerente da sociedade arguida, sendo aquele quem, desde tal data até ao presente, geriu de facto e de direito a sociedade arguida B…, Lda., decidindo nomeadamente da afetação dos respetivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, do pagamento dos salários aos trabalhadores, da aquisição de matéria prima, bem como da tomada de opções e controlo do cumprimento das obrigações fiscais e pagamento dos respetivos impostos;
5. Com o início da referida atividade, declarada à Autoridade Tributária e Aduaneira, a sociedade arguida B…, Lda. vinculou-se às inerentes obrigações fiscais, mormente a de enviar as declarações periódicas de IVA até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre a que respeitavam as operações, bem como a de entregar àquela as quantias recebidas dos clientes a título de tal imposto;
6. Relativamente ao terceiro trimestre de 2018 (2018/09T), a sociedade arguida, através do arguido C…, seu legal representante e gerente, enviou a declaração periódica de IVA aos Serviços de Administração Tributária, no dia 15-11-2018 e, novamente, em 25-05-2019, uma declaração de substituição, sem as fazer acompanhar do respetivo meio de pagamento;
7. Concretamente, no período correspondente ao terceiro trimestre de 2018 (2018- 07 a 2018-09), a sociedade arguida B…, Lda., através do arguido C…, prestou serviços e recebeu pagamentos, que apresentaram os apuros que infra se descriminam:
8. Não obstante, nos meses de julho a setembro de 2018 (3.º trimestre), o arguido C…, em representação da sociedade arguida B…, Lda., à revelia de todos os imperativos legais, decidiu abster-se de entregar à Administração Tributária os montantes devidos e efetivamente recebidos a título de IVA, apurados no ambito da sua atividade, que se cifraram, no aludido período, no montante de € 12.346,57 (doze mil trezentos e quarenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos);
9. Assim, a arguida B…, Lda., através do arguido C…, não obstante ter enviado a respetiva declaração de IVA, não procedeu ao pagamento do montante de imposto apurado, em qualquer dos locais ou através dos meios legalmente autorizados, nos prazos previstos no art.º 41.º do C.I.V.A., nem nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo, e notificados nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, no dia 12-08-2019, os arguidos também não procederam ao respetivo pagamento do imposto, juros e coima aplicável;
10. Apropriando-se de tais quantias, em detrimento da Administração Tributária/Estado, e fazendo-as ingressar no acervo patrimonial da sociedade arguida;
11. O arguido C… atuou por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, atuando em nome e no interesse daquela, de acordo com a resolução que tomou de não cumprir as suas obrigações fiscais;
12. O arguido C… bem sabia que as quantias deduzidas acima mencionadas, não lhe pertenciam nem à sociedade arguida, e que estava obrigado a entregá-las, nos competentes serviços da Administração Tributária;
13. Agiu o arguido C… com o propósito concretizado de obter, para si e para a sociedade arguida, um aumento das suas disponibilidades financeiras e uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, usando-as nomeadamente para suportar o “giro comercial” da sociedade arguida;
14. O arguido C… agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida penalmente.
Mais se provou que:
15. Do certificado do registo criminal do arguido resulta que:
a. Por acórdão de 23/02/2000, transitado em julgado em 09/04/2000, no âmbito do Proc. n.º 3519/95.0 JAPRT, da extinta 2ª Vara Criminal do Porto, foi o arguido condenado pela prática, em 12/07/1994, de um crime de falsificação de documento, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, pena já extinta;
b. Por sentença de 03/10/2001, no âmbito do Proc. n.º 844/94, do extinto 1º juízo, 2ª secção, dos Juízos criminais do Porto, foi o arguido condenado pela prática de um crime de cheque sem provisão, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de 300$00;
c. Por sentença datada de 20/02/2002, transitada em julgado em 15/04/2002, no âmbito do Proc. n.º 197/98.8TBSTS, do extinto 1º juízo criminal do Tribunal de Santo Tirso, foi o arguido condenado pela prática, em 18/01/1995, de um crime de cheque sem provisão, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, pena já extinta;
d. Por sentença datada de 12/12/2002, transitada em julgado em 21/01/2003, no âmbito do Proc. n.º 628/94.6TAPRT, do 3º juízo, 3ª secção dos Juízos Criminais do Porto, foi o arguido condenado pela prática, em 07/08/1993, de um crime de cheque sem provisão, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, o montante total de € 240,00, pena que foi integralmente declarada perdoada;
e. Por sentença datada de 04/12/2003, transitada em julgado em 19/01/2004, no âmbito do Proc. n.º 390/97.0TBEPS, do extinto 1º juízo do Tribunal de Esposende, foi o arguido condenado pela prática, em 12/01/1995, de um crime de cheque sem provisão, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, o montante total de € 270,00, pena que foi integralmente declarada perdoada;
f. Por sentença datada de 03/04/2002, transitada em julgado em 03/07/2003, no âmbito do Proc. n.º 229/97.7TAMAI, do extinto 1º juízo criminal ddo tribunal da Maia, foi o arguido condenado pela prática, em 31/03/1993, de um crime de cheque sem provisão, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 2,00, o montante total de € 200,00, pena que foi integralmente perdoada;
g. Por sentença datada de 26/05/2010, transitada em julgado em 20/09/2010, no âmbito do Proc. n.º 1330/06.3TAGDM, do extinto 1º juízo criminal do Tribunal de Gondomar, foi o arguido condenado pela prática, em janeiro de 2001, de doze crimes de abuso de confiança contra a segurança social, na pena única de 420 dias de multa, à taxa diária de € 15,00, o montante total de € 6.300,00, já declarada extinta;
h. Por sentença datada de 12/05/2011, transitada em julgado em 01/06/2011, no âmbito do Proc. n.º 9/05.8IDPRT, do extinto 3º juízo, 2ª secção dos Juízos Criminais do Porto, foi o arguido condenado pela prática, em 2001, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o montante total de € 1.260,00, já declarada extinta;
i. Por sentença datada de 10/07/2012, transitada em julgado em 12/04/2013, no âmbito do Proc. n.º 1979/09.2TAMAI, do extinto 1º juízo criminal do Tribunal da Maia, foi o arguido condenado pela prática, em 01/08/2007, de um crime de falsificação de documento, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por igual período, já declarada extinta;
j. Por sentença datada de 07/06/2013, transitada em julgado em 05/03/2014, no âmbito do Proc. n.º 2754/08.7TAGDM, do extinto 1º juízo criminal do Tribunal de Gondomar, foi o arguido condenado pela prática, em 11/2006, de um crime de burla qualificada, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa por igual período, já declarada extinta;
k. Por sentença datada de 18/02/2019, transitada em julgado em 20/03/2019, no âmbito do Proc. n.º 335/17.3IDPRT, do Juiz 8 deste Tribunal, foi o arguido condenado pela prática, em 15/11/2016, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, sob a condição de o arguido proceder ao pagamento à Administração Tributária da quantia em falta.
16. Do certificado do registo criminal da sociedade arguida resulta que foi condenada em pena de multa no âmbito do processo Proc. n.º 335/17.3IDPRT, do Juiz 8 deste Tribunal (al. k) do ponto 15 dos factos provados)
17. O arguido é sócio-gerente de uma empresa de transporte de veículos. A sua ex-mulher é florista e continuam a viver juntos na mesma casa, que pertence à ex-mulher, contribuindo o arguido com a quantia mensal de € 250,00 para a ajuda das despesas domésticas. O arguido frequentou o curso superior de engenharia civil, que não concluiu.
2. Factos não provados
Não há factos não provados com relevância para a decisão da causa.
3. Convicção do tribunal
A convicção do tribunal resultou do conjunto da prova produzida a qual se encontra integralmente documentada e valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
O arguido confessou os factos dados como provados de modo coerente e credível. Explicou que a sociedade arguida, da qual era gerente atravessava diversas dificuldades financeiras, o que levou a que integrasse no giro bancário da sociedade as quantias cobradas a título de IVA e que deviam ser entregues à Administração Tributária, do que estava perfeitamente ciente, optando por privilegiar o pagamento dos salários dos trabalhadores, em detrimento do cumprimento das obrigações fiscais. Depôs ainda sobre a sua situação pessoal.
Versão dos factos que foi confirmada pelos contabilistas E… e F…, considerando, contudo, esta última testemunha que o arguido não tinha capacidade de gerir, uma vez que utilizava o dinheiro de umas empresas nas outras, pois abria muitas empresas e nas suas palavras “sonhava muito alto”.
D…, inspetor tributário, explicou que o trimestre em causa foi objeto da apresentação de uma declaração de substituição em 25 de maio de 2019, uma vez que a declaração inicialmente remetida apresentava incorreções. Com nenhuma das declarações apresentadas foi efetuado o pagamento do imposto devido, mantendo-se em dívida até à data a quantia de € 12.346,57.
Finalmente, o Tribunal valorou ainda a prova documental reunida nos autos, bem como os certificados do registo criminal dos arguidos juntos aos autos.”
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É a seguinte a questão a apreciar:
Se devem ser declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens do crime
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Destes o recorrente nenhum invoca e vista a decisão recorrida também não os vislumbramos.
Está em causa apenas saber se deve ser decretada a perda de ventagens a favor do Estado com a prática do crime, como pretendeu o Mº Pº que o requereu, ou não como decidiu o tribunal recorrido, o qual se expressou do seguinte modo:
“A arguida não entregou aos cofres do Estado a quantia global de € 12.346,57 que recebeu a título de IVA, tendo-se apropriado da mesma. Faz parte do tipo de ilícito em causa a apropriação da quantia em causa e o consequente enriquecimento do património do arguido (independentemente da afectação que conferiu a tal quantia) e o empobrecimento do património do Estado/Administração Fiscal.
“A vantagem adquirida (por apropriação) é susceptível de ser declarada perdida a favor do Estado. Porém, teremos que compreender a locução conjuntiva subordinativa condicional utilizada pelo legislador- sem prejuízo dos direitos do ofendido.
Ofendido, nos termos do artigo 68º, nº1, alínea a) do Código de Processo Penal, é o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, posição que lhe confere legitimidade para se constituir como assistente.
Lesado, nos termos do artigo 74º, nº1, do Código de Processo Penal, é a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime.
Entendemos, em abstracto, que o MºPº apenas deverá accionar o mecanismo de perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam à prestação da obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto quando o ofendido (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteressa pela mesma (em sentido aproximado, Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág.633).
Só nestes casos poderá tal perda corresponder às suas finalidades supra referidas, de prevenção da criminalidade em globo, que não podem ou devem conflituar com o direito do ofendido de obter a reintegração no seu património daquilo que lhe foi subtraído (até porque a obrigação resultante para o agente da perda em espécie ou por pagamento do seu valor não deve piorar a situação do ofendido – cfr. CP Anotado, M.Simas Santos e M. Leal-Henriques, 4ª edição, págs.534 e 535).
E se dúvidas permanecessem quanto a tal solução, as mesmas encontram conforto no artigo 130º, nº 2, do Código Penal onde se prevê, em nome do referido direito de indemnização do lesado de um crime, a atribuição ao mesmo, até ao limite dos danos sofridos, dos objectos declarados perdidos (ou produto da sua venda) ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109º e 110º.
As vantagens apropriadas em espécie ou substituídas pelo pagamento ao Estado do respectivo valor no âmbito do artigo 111º do Código Penal não são susceptíveis de atribuição ao lesado” (ac. cit).
No caso concreto o ofendido e lesado manifestou perante quem o representa judicialmente que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil uma vez que optara pela execução fiscal da obrigação tributária (cfr. declaração da Administração Tributária de fls. 127).
Tal comportamento não configura qualquer desinteresse do ofendido na reparação patrimonial do direito lesado e, pelo contrário, representa uma opção consciente da melhor forma de a obter.
Concluindo, a perda de vantagens (quantia correspondente ao IVA apropriado pela arguida) a favor do Estado prejudica o direito da Autoridade Tributária e Aduaneira de obter a mesma quantia (acrescida dos juros legais) em sede de execução fiscal, procedimento que expressamente comunicou ao Mº Pº e, nessa medida não se decreta a perda de vantagens requerida”, ou seja, o tribunal resolveu não decretar a perda das vantagens por a AT haver instaurado execução fiscal para obter a quantia em divida correspondente a essa vantagem, e não pretender deduzir pedido civil nestes autos.
Vejamos se deve ser assim.
Como temos expressado, mormente no Rec nº 561/15.0T9PFR.P1, pela Lei nº 30/2018, “foi alterado o artº 110º CP que passou a prever o regime jurídico da perda a favor do Estado dos produtos do crime – facto ilícito típico (por não estar dependente da punibilidade da conduta ou da culpa jurídico penal do seu autor “ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz” (nº 5 do artº 110º CP) - (que define: “considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática” - artº 110º 1 a) CP)) - e das vantagens do crime (facto ilícito típico), que define “considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”, incluindo “a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem” – artº 110º 1 b) e 2 CP – seguindo assim o produto do crime e as vantagens do crime o mesmo regime jurídico, de acordo com o qual e grosso modo, os produtos e as vantagens são sempre declaradas perdidos a favor do Estado, não estando dependentes de nenhum critério material, e mormente o da sua perigosidade, e cuja amplitude foi alargada e esclarecida no seu nº 3 ao prever que “A perda dos produtos e das vantagens … tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.”
Regime que afinal era já o aplicável à perda de vantagens (mas não aos produtos do crime), pois que, como naquele se disse: “o artº 111º CP (actual artº110º CP), que se refere às vantagens obtidas com o crime e que abrange para além da recompensa dada ou prometida “as coisas, direitos ou vantagens que, através, do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos … pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie” e são definidos no artº 110º actual: “b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem” para além da recompensa. Tal perda pode ser caracterizada já como medida sancionatória (ac RP 22/2/2017 www.dgsi.pt) embora também com intuitos preventivos como todas as sanções, visando perder tudo o que obteve com a actividade criminosa e daí a mensagem de que o crime não compensa - cf Figueiredo Dias "As consequências jurídicas do crime" Coimbra, pág. 632.
Diz-se no ac. TRP de 31/05/2017 www.dgsi.pt “II - Os pressupostos legais da perda de vantagens são apenas o facto antijurídico e a existência de proveitos (…)” e no ac. TRP de 12/07/2017 www.dgsi.pt “1 - A perda de vantagens do crime (artigo 111º do Código Penal) constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.”
No caso dos autos existem claramente as vantagens do crime, traduzidas na retenção e apropriação dos valores que deviam ser entregues à AT (Estado) e não foram “afetando esses valores ao pagamento de outras dívidas integrando essas quantias no património da sociedade”
E sendo assim deve ou não ocorrer o decretamento de perda dessas vantagens, visto que tal foi pedido pelo Mº Pº na acusação, inexistindo, por isso, obstáculo formal?
Por força do AFJ nº 1/2013 – DR 7/1/2013, o STJ estabeleceu que: “Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.” resulta que a administração publica apesar do direito de execução prévia administrativa pode em caso de crime, deduzir pedido de indemnização, apenas não podendo, sob pena de enriquecimento sem causa, obter a quantia devida, duplamente, mas podendo usar o titulo que entender, como ali se escreve: “A dedução do pedido de indemnização civil em processo penal, não depende do ‘aval’ de outros ordenamentos jurídicos; estes não determinam, quer a legitimidade, quer a viabilidade daquele. Por isso, não há que fazer cotejo, ou comparação de ordenamentos jurídicos, nomeadamente do processo penal com outros ramos do direito, nomeadamente com processo tributário, de execução fiscal, para aquilatar da legalidade do pedido de indemnização civil em processo penal.
O facto de existir a possibilidade legal de a administração fiscal ou a Segurança Social dispor de duas vias de cobrança, uma com base no título executivo por si emitido e outra com base no título executivo civil, não significa que possa haver um duplo recebimento, que constituiria então enriquecimento sem causa, uma vez que o decidido numa poderá constituir oposição à execução na outra, requerendo-se a extinção da dívida pelo pagamento, não beliscando a harmonia com a unidade do sistema jurídico.[81]”
Tal qualmente não é pelo facto de deduzir ou não pedido de indemnização civil que impede o tribunal de aplicar a lei e nomeadamente fazer funcionar o confisco das vantagens obtidas com o crime, sanção esta de natureza penal. Cf. ac. RP de 26/10/2017 www.dgsi.pt “ Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime”
Obviamente que o valor devido ao Estado será sempre e apenas o mesmo.
Esta tem sido a jurisprudência constante.
Assim:
- ac. RP de 31/05/2017 www.dgsi.pt “I - O instituto da perda de vantagem patrimonial é uma providência sancionatória de natureza jurídica análoga das medidas de segurança, não tendo a natureza de pena acessória nem de efeito da condenação, estando ligada prevenção da prática de futuros crimes. II - Os pressupostos legais da perda de vantagens são apenas o facto antijurídico e a existência de proveitos. III - As medidas de caracter sancionatório como a perda de vantagem, ainda que devam constar da acusação, têm caracter irrenunciável, sem prejuízo do disposto no artº 112º CP. IV - O facto de a A.T. ter ao seu dispor meios legais para ser ressarcida das quantias devidas, não é obstáculo à declaração de perda da vantagem patrimonial, porque:- existe autonomia entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade civil originária na prática do crime.- o decretamento da perda de vantagem não fica dependente do êxito ou não da cobrança tributária nem da dedução do pedido civil.- a A.T apenas poderá ser ressarcida uma vez das quantias em divida cuja génese é o incumprimento da prestação tributaria.”
- ac. RP de 12.07.2017 www.dgsi.pt “1 - A perda de vantagens do crime (artigo 111º do Código Penal) constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito. 2 - Mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa, isso não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa, uma vez que a lei não prevê tal distinção”
- ac. RP de 24.10.2018 www.dgsi.pt “A existência de uma execução fiscal no domínio da responsabilidade tributária subjacente à prática de um crime de abuso de confiança fiscal não constitui impedimento à declaração de perda de vantagem patrimonial, no âmbito penal”
tendo-se todavia manifestado em sentido contrario o ac RP de 22/03/2017 www.dgsi.pt “Não há lugar ao decretamento da perda de vantagens (artºs 111º CP) se o Estado (A.T.) optou pela recuperação do seu crédito de imposto através da execução fiscal, arredando o MºPº de intervenção na recuperação daquela quantia por considerar ter meios suficientes para cobrança coerciva desse imposto”
Todavia atenta a natureza autónoma e de natureza penal do instituto de perda de vantagens do crime, tais institutos não se confundem nem com a pena nem com a indemnização civil, não podendo deixar de ser aplicado, como pedido na acusação, sem que daí resulte uma dupla ou tripla execução, pois dependerá da relação subjacente estar ou não cumprida (satisfeita), sem prejuízo de se considerar como Jorge de Figueiredo Dias que … decretar o confisco poderá não ter utilidade, pois nestes casos “poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente” - Direito Penal Português…, p. 633).
Nestes casos convirá também ter apresente o estabelecido no artº 130ºCP em face do que o “ tribunal pode atribuir ao lesado, … até ao limite do dano causado, … vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente…”, donde a declaração de perda não terá eficácia prática porquanto aquilo que vier a ser declarado perdido a favor do Estado reverterá para a vítima do crime através do pedido de indemnização reclamado por esta, embora no caso o lesado seja o mesmo (Estado). (…)”.
Desta doutrina e jurisprudência, resulta que mesmo que a Administração não pretenda deduzir pedido de indemnização civil (e não o faça) e tenha optado por outro meio - execução fiscal - para salvaguarda do seu direito, inexiste obstáculo legal ao decretamento da perda de vantagens com a pratica do crime, inexistindo qualquer prejuízo para o Estado (Administração) ou para o arguido, pois há apenas direito a receber essa quantia uma vez.
Assim, sendo a vantagem obtida no valor de € 12.346,57, no seu pagamento deverão ser os arguidos condenados.
Procede assim o recurso do Mº Pº
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e em consequência
- Declara perdida a favor do Estado (Administração Tributária) a vantagem patrimonial de € 12.346,57 (doze mil trezentos e quarenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos) e condena os arguidos no seu pagamento.
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 28/10/2021
José Carreto
Paula Guerreiro