Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
286/12.8PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO
Nº do Documento: RP201406118PBMTS.P1
Data do Acordão: 06/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na revisão do Código Penal operada pela Lei n.° 59/2007, de 4 de setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de Violência doméstica mas também alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
II - A reiteração de atos de agressão física e psíquica que desprezam a vontade da ofendida querendo forçá-la a reatar uma relação através do uso de ameaças graves que violam a sua liberdade de determinação, tranquilidade e segurança atinge, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pelo crime de Violência doméstica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 286/12.8 PBMTS.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 286/12.8 PBMTS, corre termos pelo 4.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Matosinhos, B…, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo art.º 152.º, n.os 1 e 2, do Código Penal.
Realizada a audiência com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença, datada de 31.05.2013 (fls. 110 e segs.) e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e com estes fundamentos, julgo a acusação pública TOTALMENTE PROCEDENTE e, em consequência, CONDENO o arguido B… pela prática de um crime de Violência Doméstica, p. e p. pelo art. 152.°/1 e 2 do Código Penal, na pena de TRÊS ANOS DE PRISÃO, que SUSPENDO por IGUAL PERÍODO”.
Inconformado, veio o arguido interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (transcrição):
1. “O arguido foi condenado, pela prática em autoria material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.° 152° n.°s 1 e 2 do Código Penal.
2. No nosso modesto entendimento, o arguido deveria ter sido efectivamente condenado, face aos factos dados como provados, mas por crimes diversos.
3. Este tipo de crime visa proteger uma relação que se quer paritária, com igualdade de direitos e deveres. Estamos perante este ilícito criminal quando o agente, com a sua actuação, pretende desequilibrar essa relação - que se exige igual - e quer criar um ascendente sobre a outra parte, subjugando-a aos seus interesses, às suas necessidades, aos seus gostos e às suas vontades, ora humilhando a vítima, ora controlando a sua vida, atemorizando-a, ora impondo-lhe condutas ou castigando-a, ou então agredindo-a fisicamente, entre outras actuações.
4. O arguido, com a sua conduta, não desequilibrou intencionalmente o relacionamento conjugal, nem quis manter ascendente sobre a ofendida.
5. De facto, arguido e ofendida tiveram uma relação de namoro compreendida entre os anos de 2004 e 2009 e terá sido precisamente em 2009, que tiveram início as situações de conflito entre o casal.
6. Só que a motivação-base para esse conflito decorreu de instabilidade psicológica e psíquica do arguido (facto provado).
7. A instabilidade psíquica é um factor externo à relação do casal e que provoca um consequente desequilíbrio funcional na vivência do dia-a-dia.
8. A relação que se quer paritária, terá deixado de o ser, mas por desequilíbrio mental do arguido, não porque este quisesse ter a iniciativa de assumir uma posição de supremacia e controlo da relação.
9. Entre 2009 e 2011 - até à separação - o casal discutia e o arguido, por vezes, apelidava a ofendida de prostituta.
10. Os comportamentos mais graves tiveram lugar, após a saída de casa da ofendida, até que, em poucos meses (com a primeira ida a Tribunal), cessaram completamente.
11. O arguido nunca conseguiu ter qualquer tipo de ascendente sobre a ofendida, que soube sempre reagir aos seus comportamentos desadequados, por ter noção do seu desequilíbrio psíquico e psicológico, conforme o que relatou ao Tribunal.
12. Pelo que, no nosso modesto entendimento, não andou bem o Tribunal, quando subsumiu estes factos ao crime de violência doméstica, violando-se o disposto no art.º 152º nº 1 b) do Código Penal, por incorrecta aplicação do direito.
13. Por outro lado, considerou o Tribunal que o n.º 2 do art.º 152º do Código Penal constitui uma circunstância agravante do ilícito penal, tendo por base um mais intenso juízo de censura e um maior dimensionamento do circuito de perigo para a personalidade.
14. Na realidade, a prática do crime no domicílio conjugal ou no domicílio da vítima projecta uma perversidade do agente, que desencadeia a conduta delitual e se direcciona a atingir a personalidade de terceiro no espaço de reserva e recato.
15. Ora, consideramos não se verificar esta perversidade.
16. Se entre 2009 e 2011, havia discussões entre o casal e alguns insultos, no domicílio conjugal, certo é que tais discussões nunca atingiram um grau de gravidade tal, para que se possa estar no domínio da perversidade de que fala a douta sentença em crise.
17. O que o legislador pretendeu com esta agravação foi censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas.
18. Ora, ainda que houvesse insultos, decorrentes de discussões entre o casal, certo é que o arguido não se aproveitou do domicílio conjugal, para esses insultos, dado que as referidas discussões surgiram, de acordo com os factos provados, como consequência directa da instabilidade psicológica e psíquica do arguido.
19. Já os três episódios, relatados também na douta sentença (factos 6 a 8, dos factos provados), esses sim com maior gravidade, tiveram lugar sempre fora do domicílio conjugal e do domicílio da vítima: o primeiro na Rua …, sem se saber exactamente onde (na rua? numa casa?); o segundo, numa habitação, sem se saber exactamente qual e, por fim, o último episódio numa casa onde a vítima prestava serviço.
20. Pelo que se afigura evidente, a inexistência da referida agravante, com a consequente violação do disposto no n.º 2 do art.º 152° do Código Penal”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 189) e notificado o Ministério Público, veio este apresentar resposta que sintetizou assim:
1. “O bem jurídico complexo protegido pela incriminação da violência doméstica (artigo 152.°, do Código Penal) abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra da vítima;
2. Trata-se de um crime especifico impróprio, de perigo abstrato e de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos ou psíquicos consistir nas mais variadas ações ou omissões.
3. O elemento objetivo do tipo de violência doméstica preenche-se com a prática de qualquer ato violência que afete a saúde (física, psíquica ou emocional) da vítima, diminuindo ou afetando a sua dignidade enquanto Ser Humano. O elemento subjetivo, com qualquer modalidade de dolo.
4. Estando provado que o arguido adotou um comportamento progressivamente agressivo e violento, mostrando-se ciumento e controlador, originando frequentes discussões entre o casal, no decurso das quais apelidava a ofendida de prostituta e a ameaçava de morte caso esta não reatasse a vida em comum, diminuindo e afetando a sua dignidade, dúvidas não restam de que o arguido preencheu todos os elementos objetivos do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
5. A agravação prevista no n.º 2, do mesmo artigo, justifica-se pelo reconhecimento de uma maior ilicitude quando os factos são praticados num espaço confinado, vedado a olhares alheios e por vezes aos ouvidos dos outros membros da sociedade;
6. Trata-se de uma agravação ditada por uma maior ilicitude da conduta do agente e não por um mais intenso juízo de culpa.
7. Tendo ficado demonstrado que o arguido praticou actos integradores da noção de “maus-tratos” no domicílio comum e no domicílio da vítima, encontra-se preenchida a agravação ditada pelo n.º 2 do artigo 152.º, do Código Penal.
8. Assim, na improcedência total do recurso, deve a douta sentença recorrida ser integralmente mantida”.
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Já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, secundando o entendimento da magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo o arguido/recorrente apresentado a resposta de fls. 212/213.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos a conferência, cumprindo então apreciar e decidir.

IIFundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (v.g. as nulidades insupríveis e os vícios da sentença previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal).
O recorrente aceita os factos que o tribunal considerou provados. A sua discordância cinge-se à matéria de direito e di-lo, expressamente, logo no início da motivação do recurso[2]: “O presente recurso assenta em apenas uma razão, a saber: A- MATÉRIA DE DIREITO (art.º 152º do Código Penal)”.
A dissensão do arguido/recorrente foca-se em dois aspectos:
- a valoração jurídico-penal dos factos provados, considerando que eles não permitem concluir pela verificação dos elementos do tipo objectivo do ilícito do artigo 152.º do Código Penal, podendo, isso sim, subsumir-se às previsões incriminadoras dos artigos 143.º (ofensa à integridade física simples), 212.º (dano simples) e 203.º (furto simples) do Código Penal;
- a ter-se como verificado o crime de violência doméstica, não ocorre a agravante do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
São estas as (únicas) questões a apreciar e decidir, se bem que, a ser-lhe reconhecida, total ou parcialmente, razão, a determinação da pena terá de ser reponderada.
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Identificadas e delimitadas as questões a apreciar e decidir, importa conhecer a factualidade provada e não provada:
Factos provados:
1. B… e C…, mantiveram um relacionamento amoroso desde 2004 e viveram juntos em comunhão de cama, mesa e leito no período compreendido entre finais de 2009 e Dezembro de 2011, habitando ambos, nessas condições, em Rua …, em Matosinhos;
2. Desde o final de 2009, a relação entre ambos passou a ser pautada por conflitualidade, decorrente de instabilidade psicológica e psíquica do arguido, que passou a apresentar comportamentos agressivos quando ingeria álcool;
3. B… mostrou-se, desde final de 2009, ciumento e controlador, o que originou frequentes discussões entre o casal, no decurso das quais o arguido apelidava NC… de prostituta;
4. Em finais de 2012 e por consequência do descrito, C… decidiu separar-se definitivamente, uma vez que o arguido se mantinha agressivo e violento e foi viver sozinha para outro local.
5. B… não aceitou a separação e passou a procurar a ofendida na residência desta, insultando-a de puta, e dizendo-lhe que a mataria se esta não retomasse a vida em comunhão de casa, mesa e leito com o arguido;
6. No dia 19.02.2012, cerca das 2.00 horas, na Rua …, por C… se recusar a reatar a relação com o arguido, B… empurrou-a contra uma viatura automóvel parqueada e desferiu-lhe uma bofetada na face esquerda;
7. Cerca de um mês depois do referido em 6.), B… introduziu-se em habitação onde confrontou C…, desferiu-lhe murros na cabeça, chamou-lhe "puta", retirou-lhe o telemóvel e partiu-o e acusou-a de se envolver com outros homens;
8. Cerca de um mês depois do referido em 7.), SB… procurou a ofendida numa casa onde esta trabalhava em serviço de limpeza, em Rua …, …, …, surpreendeu-a e retirou-lhe o telemóvel;
9. C… sentiu-se profundamente humilhada e magoada, com as acusações e nomes que o arguido lhe dirigiu e de que a apelidou, da forma descrita e em consequência da conduta descrita C… sofreu lesões no corpo hematomas, equimoses, traumatismos, dores, sofrimento e angústia;
10. O arguido agiu sempre livre, determinada e conscientemente, de forma reiterada, querendo e conseguindo tratar mal C…, em termos físicos provocando-lhe lesões sobre o corpo e, em termos psíquicos, ofendendo-a, humilhando-a, perseguindo-a e intimidando-a, fazendo-o por egoísmo e malvadez, com intenção de exercer controlo sobre a pessoa de C…, com desrespeito pela sua personalidade e auto-estima e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11. Desde meados de 2012 que B… não contacta com a arguida;
12. B… é camionista de longo curso de profissão, quando vivia com C… auferia valor não inferior a € 1.500,00, não tem filhos e tem, pelo menos, os encargos necessários à sua subsistência;
13. Não há registo que B… tenha sido antes condenado por prática criminal;
Factos não provados:
A. O descrito em 7.) sucedeu na casa de uma amiga de C…, sita em Rua …, n.º … —casa ., em …, onde o B… previamente se introduziu e a destruição do telemóvel sucedeu por a arguida ter tentado utilizá-lo para pedir socorro;
B. Na sequência do referido em 8.), B… realizou chamadas para diversas pessoas cujos n.°s se encontravam registados no telemóvel, o que deixou C… envergonhada e embaraçada;
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O recorrente discorda do enquadramento jurídico-penal dos factos feito na sentença recorrida, alinhando as seguintes razões de discordância:
- não “desequilibrou intencionalmente o relacionamento conjugal, nem quis manter ascendente sobre a ofendida”, pois o conflito com esta decorreu da sua (do arguido) “instabilidade psicológica e psíquica”;
- nunca conseguiu ter qualquer tipo de ascendente sobre a ofendida, que soube sempre reagir aos seus comportamentos desadequados, por ter noção do seu desequilíbrio psíquico e psicológico;
Intenta assim obter uma decisão absolutória quanto ao crime de violência doméstica, mas admite uma condenação pelos crimes de ofensa à integridade física, dano e furto.
A questão (do correcto enquadramento jurídico-penal dos factos) mereceu adequado tratamento na sentença recorrida e por isso é desnecessário acrescentar muito mais ao que já foi dito.
Na revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como este estava configurado no art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Significa isto que o facto concreto era punível pela lei anterior e continua a sê-lo pela lei nova, podendo, então, falar-se aqui em “continuidade normativo-típica das leis”, já que, tendo-se modificado os elementos do tipo legal, manteve-se a incriminação do mesmo facto, ainda que as consequências possam ser diversas.
O crime de violência doméstica (anteriormente, com o nomen juris de maus tratos, tipificado no art.º 153.º do Cód. Penal de 1982 e depois, com a revisão de 1995, no art.º 152.º), não só tem suscitado alguns problemas de interpretação como tem sido posta em causa a sua manutenção como crime especial relativamente às ofensas corporais, pelo menos no que respeita aos maus tratos conjugais[3].
A questão que maior controvérsia suscitava, na doutrina como na jurisprudência, era, precisamente, saber se para a verificação do crime bastava uma acção isolada ou exigia-se habitualidade.
Prevalecia o entendimento de que “maus tratos” tinha de ser uma realidade diversa das ofensas corporais (simples ou qualificadas). Se assim não fosse, estaríamos perante uma incompreensível duplicação de tipificações criminais.
Na verdade, a verificação do crime, não exigindo habitualidade da conduta, reclamava mais que uma acção isolada, pressupunha uma multiplicidade de factos, uma certa reiteração dos comportamentos agressivos do agente (cfr., entre outros, Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334; na jurisprudência, por todos, o acórdão do STJ, de 30-10-2003, CJ/Acs.STJ, 2003, tomo 3, 208).
Tratava-se de um crime de conduta plúrima, frequente ou repetida num período de tempo limitado, pois como, então, ensinava Tereza Beleza (“Maus Tratos Conjugais: O art.º 153.º, n.º 3 do Código Penal”, edição A.A.F.D.L., 19), “a(s) situação(ões) social(is) típica(s) a que o art.º 153.º se refere é (são) de continuação, de reiteramento, activo ou omissivo”.
No entanto, logo após a reforma do Código Penal operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, surgiu uma corrente jurisprudencial propugnando que, em certos casos, um único acto de agressão seria bastante para se preencher o tipo objectivo do crime de maus tratos (acórdão do STJ, de 14.11.1997, CJ/Acs. STJ, 1997, T. 3, 235).
Continuava a exigir-se que, por regra, o crime se consumava com a prática reiterada de vários actos de agressão (física ou psíquica), desde que entre eles houvesse uma certa proximidade temporal, mas admitia-se que, em casos de especial violência, reveladora de qualidades particularmente desvaliosas (crueldade, malvadez, insensibilidade, vingança, etc.) do agente, uma só actuação agressiva, desde que suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima e evidenciasse grave desrespeito da dignidade da pessoa da vítima (humilhando-a, privando-a da liberdade, forçando-a à prática de actos sexuais, etc.), tratada como objecto do exercício de um certo domínio, seria bastante para se ter como verificados os maus tratos (assim, o acórdão do STJ, de 04.02.2004, acessível em www.dgsi.pt).
Agora, com a referida reforma, a descrição típica tem uma amplitude muito maior e prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
É defensável afirmar que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
Nesse sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466) e concretiza: «os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.
No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
Segundo Augusto Silva Dias (“Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2.ª edição, 2007, pág. 110), com o crime tipificado no art.º 152.º do Código Penal protege-se a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral.
Na expressiva síntese de Taipa de Carvalho (“Comentário….”, Loc. Cit. 332), “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, estando “na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana” a ratio do artigo 152.º do Código Penal.
Em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência, como é sublinhado no acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em www.dgsi.pt (relator: Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar»[4].
Ora, se a fórmula legal (“de modo reiterado ou não”) não permite qualquer dúvida quanto ao propósito do legislador de ultrapassar a querela doutrinal e jurisprudencial e consagrar o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, também é certo que um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Como, lapidarmente, afirma Plácido Conde Fernandes (“Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305), não havendo razão para «alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral”, também se mantém válida a asserção de que “a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa”.
É a exigência de especial gravidade da conduta maltratante que se acentua no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que se transcreve o respectivo sumário:
“I - O tipo de crime de «violência doméstica» do art. 152º do C. Penal antes da reforma operada pela Lei nº 59/2007 designado como crime de «maus tratos» visa punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga. Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
II – Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano”.
Na busca do exacto sentido da norma incriminadora em causa, no acórdão desta Relação, de 19.09.2012 (www.dgsi.pt) é posto em relevo o elemento histórico:
“I - Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.° 98/X, que esteve na origem da Lei n.° 59/2007, de 4/9, escreve-se: «na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa».
II - Para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”.
Na mesma linha de exigência de que o acto ofensivo singular se revista de uma certa gravidade, situa-se o acórdão do STJ, de 06.04.2006 (C J/Acs. STJ, 2006, T. 2, 166), no qual se salienta não bastarem “as meras ofensas à integridade física” e que é indispensável “que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”.
Ora, se é certo que nenhuma das acções levadas a cabo pelo arguido, singularmente consideradas, é exactamente o estalão do tipo de violência doméstica, não é menos certo que a reiteração de actos de agressão (física e psíquica), concretamente os descritos sob os n.os 5 a 8 do elenco de factos provados, inegavelmente, consubstancia a prática desse ilícito penal.
Com tal comportamento, desprezando a vontade da ofendida, querendo forçá-la a reatar uma relação de que ela teve de fugir devido à violência que sobre ela vinha exercendo, ameaçando-a gravemente e assim violando a liberdade de determinação, a tranquilidade e a segurança a que a C… tinha direito, o arguido/recorrente atingiu, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação.
As razões para assim ter agido (a “instabilidade psicológica e psíquica” que o afectou a partir de final de 2009 e a agressividade motivada pelo abuso de bebidas alcoólicas) podem relevar para a medida da culpa, mas não para a tipicidade.
Soçobra, pois, a tese do recorrente, que cometeu, efectivamente, um crime de violência doméstica.
A questão[5] que importa, então, abordar é a de saber se está verificada a circunstância modificativa agravante prevista no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
Na primeira instância respondeu-se afirmativamente a essa questão e o Sr. Juiz justificou assim a sua resposta:
“Já relativamente à circunstância agravante prevista no tipo, tratando-se de um crime de trato sucessivo por se arrastar ao longo do tempo e pressupor um encadeamento de actos dificilmente se esgotando num único momento a conduta típica, temos por adquirido que parte do comportamento delitual verificou-se no interior da residência de arguido e vítima num primeiro momento e, numa segunda, na casa desta última (cfr. Factos Provados 1.) a 5.)) encontrando-se uma situação factícia que se identifica com os requisitos típicos que operam a agravação”.
Contrapõe o recorrente que, se entre 2009 e 2011, havia discussões entre o casal e alguns insultos, no domicílio conjugal, nunca atingiram um grau de gravidade tal que se possa estar no “domínio da perversidade de que fala a douta sentença em crise” e o que o legislador pretendeu com esta agravação foi censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas.
Afigura-se-nos que, neste ponto, a razão está com o arguido/recorrente.
Se a conduta descrita no n.o 5 do elenco de factos provados fosse, por si só, suficiente para o preenchimento do tipo legal de violência doméstica (as “frequentes discussões entre o casal, no decurso das quais o arguido apelidava C… de prostituta”, a que se alude no n.º 3, além de não ser uma afirmação de facto suficientemente concreta[6], não estão referidas como tendo ocorrido no espaço do domicílio do casal), ainda poderia equacionar-se, fundadamente, a possibilidade de verificação daquela circunstância agravante. Mas não, está longe de poder considerar-se um mau trato para o efeito que aqui nos interessa. Como vimos, para que aqui se possa falar em conduta efectivamente maltratante exigida na descrição típica do artigo 152.º do Código Penal, terá de se fazer uma valoração conjunta dos factos, sobretudo os descritos nos n.ºs 6, 7 e 8. Só com a consideração da globalidade desses factos poderemos dizer que o crime de violência se mostra perfectibilizado. Todos esses factos ocorreram já depois da separação do casal, mas nenhum deles se concretizou no domicílio da ofendida. Apenas os descritos no n.º 7 teriam ocorrido numa “habitação”, mas também não se diz que era o domicílio da ofendida.
Impõe-se, pois, concluir que não se verifica a circunstância agravante prevista do no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
*
Das várias operações que o procedimento de determinação da pena envolve, a primeira a realizar é a determinação da moldura penal cabida ao crime praticado.
Se ao legislador compete estatuir as molduras penais para cada crime, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um dos tipos pode assumir, e oferecer ao juiz uma directriz, tanto quanto possível precisa, sobre os critérios de que este deve socorrer-se na escolha e na determinação concreta da pena, ao juiz cabe a tarefa de, por um lado, determinar a moldura penal cabida aos factos provados e, por outro, dentro desta moldura penal, encontrar o quantum concreto de pena a cominar ao arguido.
Na determinação da pena a que procedeu, o Sr. Juiz do tribunal recorrido partiu de uma moldura penal de 2 a 5 anos de prisão porque, como vimos, entendeu estar verificada a circunstância modificativa agravante prevista no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
Porém, foi outra a nossa apreciação e concluímos que a conduta do arguido é subsumível ao tipo legal de violência doméstica sim, mas sem aquela agravante e o n.º 1 do artigo 152.º estatui uma pena cujo limite superior é igual (5 anos), mas o seu limite inferior é de um ano.
A proficiente fundamentação da pena contida na sentença evidencia que foram inteiramente respeitados os critérios legais, ou seja, como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Ora, se numa moldura de 2 a 5 anos de prisão, a pena que se considerou adequada à culpa e capaz de satisfazer as exigências preventivas foi de 3 anos de prisão, tendo agora presente uma moldura (1 a 5 anos) em que o limite inferior é metade, terá de ser proporcionalmente reduzida a pena a cominar ao arguido.
Entendemos, pois, que, ajustada para o crime cometido pelo arguido, é a pena de 18 meses de prisão.
IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao presente recurso e, em consequência,
A) revogar a condenação do arguido/recorrente, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pena de três anos de prisão;
B) condenar o arguido/recorrente C…, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.o 1, al. b), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão;
C) Suspender a execução da pena de prisão cominada por igual período de 18 meses.
Sem tributação.
(Texto processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 11-06-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Por isso só por lapso se compreende que o Ex.mo PGA afirme no seu douto parecer que o recorrente impugna a decisão em matéria de facto, designadamente pela invocação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
[3] No seio da Comissão de Revisão do Código Penal (referimo-nos à revisão de 1995), o Professor Figueiredo Dias manifestou algumas reservas quanto à extensão da tutela penal (no quadro do preceito incriminador em análise, entenda-se) ao cônjuge, por ser duvidoso que ela tenha, ainda, algum suporte sociológico, chegando mesmo a ser proposta a sua eliminação.
Em sentido contrário apontava um Projecto de Lei (a que foi atribuído o n.º 58/VIII) apresentado por deputados do PCP na Assembleia da República, em que, além do mais, era proposto “o alargamento da tipificação do crime de maus tratos, por forma a contemplar situações, como a de ex-cônjuges ou de pessoas que tivessem vivido em união de facto, e ainda de pessoas que tenham em comum filhos, porque a vida demonstra que também nessas situações a motivação do crime de que são normalmente vítimas as mulheres é o menosprezo pelo sexo feminino”.
O alargamento da tipificação do crime de maus tratos veio a concretizar-se.
[4] Enfatizando a natureza complexa do bem jurídico tutelado, o acórdão da Relação de Coimbra, de 24.04.2012 (acessível em www.dgsi.pt), em que se considerou que “o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação”.
[5] Que releva, sobretudo, para determinar a medida legal da pena.
[6] Importa fazer notar que a imprecisão, a descrição em termos vagos e genéricos da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, e por isso o STJ tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal (cfr. citado acórdão de 02.07.2008 e a abundante jurisprudência aí citada).