Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7306/11.1TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: TESTAMENTO
ANULABILIDADE
INCAPACIDADE ACIDENTAL
PROVA
Nº do Documento: RP201406167306/11.1TBMAI.P1
Data do Acordão: 06/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A anulabilidade do testamento por incapacidade de facto do testador exige a demonstração que essa incapacidade existia no momento da outorga do testamento.
II – No entanto, não é exigível que apenas por atestado médico, atestando a incapacidade no preciso momento da outorga, aquela demonstração seja possível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário (da responsabilidade do relator): 1 – A anulabilidade do testamento por incapacidade de facto do testador exige a demonstração que essa incapacidade existia no momento da outorga do testamento. 2 – No entanto, não é exigível que apenas por atestado médico, atestando a incapacidade no preciso momento da outorga, aquela demonstração seja possível.

Processo 7306/11.1TBMAI.P1

Recorrente – B…
Recorridos – C…, D… E…

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Relatório
1.1 – Os autos na 1.ª instância:
F… (entretanto falecida e no lugar de quem sucederam D… e E…) e C… vieram instaurar a presente ação e, demandando a ré B…, pediram que “seja proferida declaração de anulação ou nulidade do testamento outorgado por G… em benefício de B…”.

Fundamentando o pretendido, alegaram serem filhas da testadora, que faleceu em outubro de 2011 no estado de viúva. Acrescentam que a falecida, por testamento de junho de 2011, instituiu herdeira da sua quota disponível a filha B…, irmã das autoras e aqui ré. Invocam que, no entanto, na data daquela outorga, a testadora já se encontrava manifestamente impossibilitada de expressar e entender o sentido e alcance do que declarou, não tendo capacidade de decisão ou de vontade, além de ouvir mal e não dizer nada com coerência. Entendem que o estado em que se encontra a testadora obrigava a que fosse submetida a uma junta médica e acompanhada na outorga do testamento, o que não sucedeu.

A fls. 64 e ss., a ré contestou. Defende que a testadora nunca se encontrou impossibilitada de entender e compreender o alcance das suas declarações; que não se encontrava acamada, nem padecia de problemas do foro psíquico. Acrescenta que as autoras não eram visitas da casa, nem conheciam plenamente o estado da testadora e que, “apesar da testadora ter instituído a ré herdeira da sua herança, as autoras sempre tiveram conhecimento que a vontade real era apenas doar a sua quota disponível”, pois sempre reconheceu a dedicação e esforço diário da ré, manifestando várias vezes que “a casa era para a B…”. Esclarece que a única medicação que estava prescrita à sua mãe se destinava à artrite e a aliviar as dores e que a capacidade que as autoras invocam “só pode ser atestada por um médico”.

Foi elaborado o despacho saneador (fls. 79 e ss.) quesitando-se os factos controvertidos. Depois de habilitação de herdeiros da (inicial) autora F… (fls. 92/101 e 128/129) foi junta a informação clínica de fls. 147 e teve lugar a audiência de julgamento que os autos documentam a fls. 192/195, 199/202, 218/219 e 222/223. Concluso o processo, foi proferida sentença (incluindo os factos provados e não provados, bem como a respetiva motivação) que decidiu julgar procedente a ação e declarou “anulado o testamento datado de 2 de junho de 2011, lavrado a fls. cinquenta e quatro verso do livro de notas pata testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos do Cartório notarial de H…, número Dois-A”.

1.2 – Do recurso
Inconformada, a ré apela e pretende que se revogue a sentença e que “se determine manter válido o testamento”. Formula as seguintes Conclusões:
1 – Não considera haver suporte fático ou testemunhal para que o Tribunal a quo pudesse dar como provado, com tamanho grau de certeza, que a testadora não tinha capacidade para outorgar o testamento.
2 – Não se encontrando nos autos qualquer documento que sustente a conclusão que a testadora não estava capaz de entender e compreender o alcance das suas declarações, o tribunal não podia determinar essa incapacidade para testar.
3 – Este grau de incapacidade acidental só poderá ser atestada por um médico, e o tribunal exorbitou os seus poderes, gizando o diagnóstico à testadora, violando assim as normas contidas nos artigos 2188, 2189 e 2190 do Código Civil.
4 – A sentença violou ainda o disposto no artigo 2199 do CC, referente à incapacidade acidental da testadora.
5 – Violou ainda o princípio da livre apreciação, nos termos do artigo 607, n.º 5 do CPC, o qual se baseia na prudente convicção sobre a prova produzida.
6 – A sentença, tendo violado os preceitos indicados, não deverá ser mantida.

Os recorridos responderam e, em síntese conclusiva, referem que “Ficou provado que a testadora não tinha condições para realizar o testamento por falta de capacidade de decisão, impossibilidade de se expressar e de entender o sentido e o alcance do que está expresso no documento”.

O recurso foi recebido nos termos legais (fls. 266) e – ponderando a natureza da questão suscitada – dispensaram-se os Vistos. Cumpre apreciar o mérito da apelação.

1.3 – objeto do recurso
Definido pelas conclusões da apelante, o recurso traduz-se em saber se o tribunal podia fixar os factos que fixou (ou se era exigível prova de outra natureza), para concluir pela anulação do testamento.

2 – Fundamentação
2.1 – Fundamentação de facto
A 1.ª instância, como resulta da sentença recorrida, fixou os seguintes factos provados e não provados, tendo fundamentado essa decisão nos termos que igualmente se transcrevem (por considerarmos uns e outros, bem como esta, relevantes à cabal apreciação do recurso):
“A – Factos provados
1 - As Autoras são filhas de G….
2 - G… faleceu em 9 de Outubro de 2011, no estado de viúva, na freguesia …, concelho da Maia, tendo como última residência habitual na Rua …, n.º .., …, Maia.
3. Por testamento datado de 2 de Junho de 2011, realizado na residência da testadora, sita na Rua …, nº.., …, Maia, perante a Senhora Notária Dra. H…, do Cartório Notarial sito na Rua …, no …, ..º andar, sala ., Maia, G… instituiu herdeira da sua quota disponível a sua outra filha B…, casada com I….
4 – G… padecia de “carcinoma epidermóide do colo do útero” (cancro no colo do útero) e de “osteoporose com limitação da deambulação”.
5 - A Ré, há sensivelmente seis anos, mudou-se para casa de seus pais para lhes prestar auxílio, bem como, a um irmão que é intelectualmente diminuído.
6 - Este auxílio prestado pela Ré aos seus pais e irmão, obrigou a que esta tivesse que abandonar o seu emprego para se dedicar a tempo inteiro à prestação dos cuidados que estes necessitavam.
7 - Na data em que foi outorgado o testamento mencionado em 3 a testadora G… já se encontrava impossibilitada de se expressar e de entender o sentido e alcance que se encontra exposto no referido documento.
8 - No momento da celebração do testamento e já antes mesmo desse ato, a testadora G… estava incapacitada de entender e atingir o sentido e a vontade da sua declaração e de compreender o que a rodeava.
9 – G… já não tinha capacidade de conhecimento, de decisão, de vontade, estava cega do olho esquerdo, ouvia muito mal e não tinha coerência no que dizia.
10 - A testadora não tinha consciência do que declarou, nem do significado do ato.
11 - Em face do seu estado de grande fragilidade, G… encontrava-se acamada.
12 - As Autoras eram visitas assíduas da sua mãe até ao dia da sua morte, acompanhando o seu estado físico e psíquico em todos os momentos.
13 - O estado de fragilidade física e incapacidade psíquica da testadora foi observado e constatado por aqueles que a visitavam e conheciam o seu estado.
14 - O ato de outorga do testamento não foi acompanhado por nenhuma junta médica para o efeito, nem foi elaborado relatório médico que certificasse as capacidades de conhecimento, o estado físico e psíquico da testadora.
15 - A testadora até ao seu óbito foi acompanhada não só pelos médicos da especialidade oncológica, como pela sua médica de família.
B – Factos não provados
1 - Na data da outorga do testamento, a incapacidade da testadora G… era apenas física.
2 - Na data em causa a testadora não se encontrava acamada.
3 - A primeira autora, F…, apenas visitava a sua mãe uma única vez por semana, e a segunda autora, C…, uma vez por mês.
4 - Sempre que a Ré solicitava ajuda para dar o banho à testadora, as Autoras recusavam-se alegando “que para isso o melhor seria colocar a mãe num lar”.
5 - ... Ao contrário da Ré que sempre tratou com diligência, cuidado e carinho a testadora, bem como o seu irmão, insurgindo-se sempre contra essa medida de colocar a mãe num lar.
6 - Apesar de a testadora ter instituído a Ré herdeira da sua herança, as Autoras sempre tiveram conhecimento que a vontade real não era apenas doar a sua quota disponível.
7. A testadora G… manifestava, por diversas vezes, e na presença não só das Autoras, como das pessoas com quem privava diariamente, “que a casa era para a B…”.
8 - Apesar de a Ré ter conhecimento da vontade da testadora, ainda assim propôs às irmãs, Autoras na presente ação, a compra da casa pelo valor patrimonial da mesma, sendo tal proposta rejeitada.
9 - A Ré não interferiu na liberdade de determinação da testadora, nem esta foi coagida, tendo outorgado o testamento de espontânea vontade e consciente do ato que estava a praticar.
10 - Nunca à testadora foi prescrita qualquer medicação do foro psíquico.
C - Motivação
(...) a convicção do Tribunal assentou na ponderação conjunta da prova a seguir indicada, apreciada em conjugação com as presunções judiciais ou naturais inerentes ao princípio da normalidade e com as regras da experiência e da normalidade dos comportamentos humanos, sem prejuízo das regras legais sobre o ónus da prova (...) concretizando, teve desde logo em conta o teor: - Do atestado médico de fls. 17, datado de 28/03/2011, da autoria da Dra. J…, do Centro de Saúde …, no qual refere que G… se encontra doente e acamada; - Do relatório para o médico de família, de fls. 18, datado de 17/11/2010, da responsabilidade da Dra. K…, do Hospital …, do qual resulta, além do mais, que G… sofre de carcinoma epidermoide do colo do útero, de osteoporose com limitação de deambulação, tem antecedentes de alcoolismo, e tem disartria e hipoacusia; e - Da informação clínica de fls. 147, datada de 08/08/2013, da autoria da referenciada Dra. J…, na qual refere que a D. G… no período de maio e junho de 2011 apresentava, desde há longa data, um grave défice auditivo que dificultava muito a sua comunicação com terceiros, e bem assim que se encontrava bastante debilitada, com doença oncológica em fase terminal, o que tornava ainda mais difícil essa mesma comunicação.
Noutra vertente probatória, tivemos em conta o depoimento da testemunha J…, médica e autora da informação clínica que consta de fls. 147. Que de relevante disse ter acompanhado a falecida G…, deslocando-se várias vezes a casa dela. Sublinhou que a mesma estava muito fragilizada do ponto de vista físico, que praticamente não saía de casa, que via mal e ouvia muito mal, tendo muitas dificuldades de comunicação, sendo que muitas vezes tinha de se socorrer da filha para ajudá-la a tentar perceber o que a D. G… dizia e o que a testemunha dizia, embora em seu entender não tivesse demência. Porém, não pode afirmar se naquele dia a D. G… estava ou não consciente dos atos dela. Também expendeu a sua opinião no que tange ao relatório médico de fls. 18, reiterando o que anteriormente referiu no que tange à circunstância de a D. G… ouvir e ver mal, e sublinhando que anos de alcoolismo degradaram-na, mesmo da parte neurológica. O depoimento da testemunha L…. Que proprietária de um minimercado situado próximo da residência da falecida G…, que aliás era sua cliente. Que de relevante afirmou ter tido conhecimento deste testamento, pois foram lá a casa (da D. G…) umas “pessoas distintas”, o que lhe chamou a atenção. Que chegou a visitar a D. G… no período que antecedeu a outorga do testamento, sublinhando que já muito antes do seu falecimento a D. G… revelava problemas de conhecimento, que falava com ela e ela encolhia os ombros, que não dizia nada em concreto, que sempre que estava com ela não conhecia as pessoas, e que já não se queixava de nada. Também referiu nunca ter ouvido a D. G… a transmitir vontade em fazer um testamento, sendo certo que tinha dificuldades de raciocínio. Finalmente, referiu que a autora C… ia visitar a mãe todos os fins-de-semana, e que a autora F… também estava lá todos os dias, antes de a ré ir para lá viver. O depoimento da testemunha M…. Que conhece esta família há cerca de 40 anos, pois reside ali desde essa altura. De relevante afirmou que a D. G… nunca foi capaz de decidir nada, e que era a D. L… que lhes guardava o dinheiro. E que era o marido da D. G… que fazia a comida, sendo que ela era “um bocadito alcoólica”. Também esclareceu que a D. G… via e ouvia mal, e que por vezes não conhecia as pessoas. Finalmente, referiu que o marido da D. G… dizia que a casa era para o O…, irmão de autoras e ré, que era deficiente. O depoimento da testemunha N…. Que é tia das Autoras e da ré, por parte do seu falecido marido. Que de relevante afirmou que de abril a agosto do ano em que a D. G… faleceu ia lá visitá-la bastantes vezes, quase e todos os fins-de-semana. E que nos últimos meses de vida estava sempre na cama, com os olhos fechados, que não se percebia o que ela falava, sendo que naquele período de tempo a D. G… já não a conhecia. E que considera que a D. G… já não tinha condições para fazer um testamento, face ao seu estado físico e psíquico. O depoimento da testemunha P…. Que é mãe da testemunha L…. De relevante afirmou conhecer bem estas pessoas, há mais de 50 anos, incluindo a falecida G…, que era cliente no seu mini-mercado. Que ultimamente ia a casa da D. G… para ela assinar os cheques da reforma, e que constatava que eles não tinham condições nenhumas na casa, razão pela qual ela própria providenciou pelo arranjo da casa, a expensas suas (da depoente) e do seu marido. Mais adiantou que era a sua filha quem guardava o ouro da falecida, e que desconhece qualquer testamento que a D. G… tenha outorgado. Sublinhou, ainda, ter visitado a D. G… quase até ao fim da vida, e que a mesma não ouvia e não tinha capacidade, designadamente para fazer um telefonema, e tampouco para contratar um advogado. Adiantou que a última vez que visitou a D. G… talvez tenha ocorrido cerca de três ou quatro meses antes dela morrer, e que nessa altura a D. G… estava na cama, já não ouvia, apenas via de uma vista, e não reconheceu a depoente, o que, aliás, já em datas muito anteriores, tinha sucedido. Adiantou, também, que da maneira que se encontrava, a D. G… não estava com capacidade de decisão, e que pelo que observava a mesma era como um bebé. E que nunca a ouviu dizer que tinha vontade em deixar os bens à ré, sendo certo que apenas falava no “meu O…” (reportando-se ao filho deficiente). O depoimento da testemunha Q…, nora da falecida autora. Que de relevante afirmou frequentar a casa desta família há mais de 35 anos, e que conheceu bem a D. G…. Adiantou que ia lá com a nora, várias vezes por semana, ajudando até a filha a fazer a higiene da mãe. Sublinhou que a D. G… não ouvia, não andava, e “estava ceguinha” de um olho. E que nos últimos meses de vida já não a conhecia (à depoente), não falava, já não saía da cama, e não tinha consciência dos seus atos. Finalmente, referiu nunca ter ouvido comentários “acerca de a casa ficar para esta ou para aquela...”. Tais depoimentos foram prestados, aparentemente, de forma isenta, sincera e credível, razão pela qual merecem acolhimento por banda do Tribunal.
O mesmo não sucedendo relativamente aos depoimentos das demais testemunhas. Quer pela forma como depuseram, quer pelas inconsistências, incongruências e fragilidades que revelaram em aspectos decisivos, nos quais foram totalmente desmentidos e infirmados pela restante prova produzida, testemunhal e documental. Desde logo a testemunha S…, que referiu, além do mais, frequentar aquela casa há cerca de 15 anos, dar-se bem com a ré e ter conhecido a D. G…. E que a D. G… apenas ouvia “um bocadinho mal”, mas que se falasse com ela a mesma entendia tudo, não estando confusa nem acamada, e que via bem, sendo que muitas vezes estava à volta das revistas. Depois a testemunha T…, secretaria forense, à data da outorga do testamento, ao serviço do Dr. U… (advogado nesta Comarca, e que também estava arrolado como testemunha nos autos, mas que não foi possível ouvir, dado que, estranhamente, não se logrou notificar...). Que, além do mais, referiu conhecer estas pessoas por serem da mesma freguesia, e que o Dr. U… foi contratado pelo marido da ré no sentido de ser levada a cabo a realização deste testamento, no qual, aliás, ela própria e o Dr. U… intervieram como testemunhas (não deixando de ser eticamente questionável, em nosso entender, o facto de as duas testemunhas intervenientes no testamento serem o próprio advogado contratado pelo marido da ré, e a secretária do mesmo). E adiantou que quando chegaram a casa da D. G… esta estava sentada numa cadeira de rodas, notando que ela ouvia mal, mas que falava, tendo a Notária conversado muito com ela, sendo que a D. G… foi respondendo a tudo o que aquela lhe foi perguntando, como situações relacionadas com os filhos e com o marido, sublinhando que foi sempre coerente no discurso, tendo dado respostas de forma clara. Ora, este segmento do depoimento da testemunha foi totalmente infirmado pela restante prova, com especial ênfase pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores, nomeadamente pelo depoimento da Dra. J…, e bem assim pelo relatório médico que consta de fls. 18, no qual expressamente se refere que a D. G…, além do carcinoma de que padecia, sofria de disartria e hipoacusia. Ademais, existem contradições flagrantes entre o que disse esta testemunha e a testemunha H…, Notária que elaborou o testamento. Tendo a testemunha T… referido que a D. G… não explicou à testadora o que é a quota disponível (apenas se tendo falado na casa), e bem assim que o texto inicial do testamento já estava previamente elaborado, tendo sido impresso e assinado no local. Efetivamente, também o depoimento da testemunha H…, notária que elaborou o testamento em causa, se revelou pouco credível, tendo sido infirmado pela demais prova produzida. Designadamente quando referiu ter explicado à testadora que apenas podia dispor da quota disponível, e que a mesma percebeu isso. E quando referiu que a testadora percebia bem o que lhe era dito, embora ouvisse mal. E ainda quando disse que a testadora, fisicamente, tinha um aspecto normal. Havendo divergências flagrantes, como se disse, com o depoimento da testemunha T…. Finalmente, também o depoimento da testemunha V… não mereceu credibilidade, pois foi infirmado pela restante prova, designadamente quando referiu que a D. G… em 2011 tinha alguma dificuldade, mas que andava perfeitamente dentro de casa, que respondia perfeitamente às perguntas que lhe faziam, e que estava bem constituída”.

2.2 – Aplicação do direito
Com base nos factos acabados de transcrever, a sentença veio a determinar a anulação do testamento outorgado pela mãe das (duas iniciais) autoras e da ré, ora recorrente. Para chegar a tal conclusão, a decisão fundamentou-se no que ora, muito sucintamente, se repete: “(...) é pelos autores posto em crise o testamento certificado a fls. 26/28 (...) pelo qual G… instituiu herdeira da sua quota disponível a sua outra filha B…. Defendendo os demandantes que o mesmo é inválido, dado que, no momento da sua outorga, e já antes dessa data, a testadora estava incapacitada de entender e atingir o sentido e a vontade da sua declaração. Como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume VI, pág. 323, a incapacidade de que fala o citado artigo 2199 refere-se à falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada. Explicando que o vício contemplado na norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a declaração é lavrada. E que se trata de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida pela alínea b) do artigo 2189 (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica), pois que a nulidade do testamento feito pelo interdito, nos termos do artigo 2189, al. b), baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade iuris et de iure criada pela sentença, ao passo que a anulação decretada nos termos do 2199 assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no momento em que lavrou o testamento, para entender o sentido e alcance da sua declaração, ou para dispor com a necessária liberdade dos seus bens. Ora, voltando ao caso, ficou provado que na data em que foi outorgado o testamento, a testadora já se encontrava impossibilitada de se expressar e de entender o sentido e alcance que se encontra exposto no referido documento. Mais se provou que, no momento da celebração do testamento, e já antes mesmo desse ato, estava incapacitada de entender e atingir o sentido e a vontade da sua declaração e de compreender o que a rodeava. Que a testadora G… já não tinha capacidade de conhecimento, de decisão, de vontade, estava cega do olho esquerdo, ouvia muito mal e não tinha coerência no que dizia. E, finalmente, que não tinha consciência do que declarou, nem do significado do ato. Consequentemente, torna-se manifesto e evidente que a situação é subsumível à previsão do aludido preceito, devendo declarar-se anulado o testamento, face à comprovada incapacidade da testadora para entender o sentido da declaração ínsita naquele, no momento em que foi proferida”.

Apreciando.

O testamento é o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe de todos ou de parte dos seus bens, para depois da morte (artigo 2179, n.º 1 do Código Civil – CC). É um negócio mortis causa, atenta a data de produção do seus efeitos; um negocio jurídico unilateral e não receptício; um ato individual e pessoal; formal (artigo 2204 do CC) e livremente revogável. Nos termos do artigo 2188 do CC, podem testar todos os indivíduos “que a lei não declare incapazes de o fazer”, sendo incapazes os “menores não emancipados e os interditos por anomalia psíquica” (artigo 2189 do CC). A capacidade do testador – que se determina pela data do testamento (artigo 2191 do CC) – “é a regra e a incapacidade a exceção” e o “testamento feito por incapaz é nulo” (Cristina Araújo Dias, Lições de Direito das Sucessões, 3.ª edição, Almedina, 2014, págs.212/216).

No testamento, o consentimento deve ser perfeito, quer no sentido de ser completamente declarada a vontade de testar, quer igualmente no sentido de a vontade declarada estar em conformidade com a vontade real. Aplicam-se-lhe, além das regras específicas previstas nos artigos 2200 e 2201 do CC, as regras gerais relativas à falta de vontade (artigos 244 a 249 do CC), ou seja, “o consentimento no testamento deve outorgar-se sem vícios na formulação da vontade” (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I Volume, 4.ª edição renovada/reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 175/176).

Os interditos por anomalia psíquica são incapazes de testar (artigo 2189, alínea b) do CC) e o testamento feito por incapaz é nulo (artigo 2190 do CC), mas, além disso, nos termos do artigo 2199 do CC, é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.

No primeiro caso, o do interdito, a nulidade funda-se “na presunção de estado ou situação de incapacidade” que a sentença de interdição criou e que persiste “até ao momento em que a interdição é levantada”; o segundo caso, de anulabilidade, já se refere a qualquer causa de incapacidade (falta de aptidão para entender ou falta do livre exercício do poder de dispor) “verificada no momento em que a disposição é lavrada”, um tipo de deficiência “que o artigo 257.º considera em relação aos atos entre vivos em geral” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, pág. 323).

O artigo 257 do CC, acabado de citar, prevê a anulabilidade da declaração feita por quem se encontre em incapacidade acidental (quem, devido a qualquer causa, se encontre acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tenha o livre exercício da sua vontade), mas quanto falamos de testamento não se exige que o facto seja notório ou conhecido do beneficiário, “porque agora não há que proteger substancialmente as expectativas de um declaratário, mas prioritariamente preservar a liberdade e a vontade real do testador” (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões... cit., pág. 185). De todo o modo, cabem nas hipóteses previstas por este preceito, além dos casos em que a incapacidade é acidental pois deriva de estado naturalmente transitório (embriaguez, intoxicação, delírio, ira, etc.) aqueles em que “um indivíduo, não interdito nem inabilitado, com uma anomalia psíquica, realiza um negócio jurídico, salva a hipótese de o fazer num intervalo lúcido” (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição atualizada, Coimbra Editora, 1996, pág. 244, nota 2).

Feitas as anteriores considerações, cumpre prosseguir.

Como resulta da oportuna caracterização do objeto do recurso (1.3), nesta apelação não está em causa uma segunda apreciação da prova produzida, mas o problema de saber se os elementos probatórios trazidos aos autos são idóneos à demonstração da incapacidade relevante – e necessária – à anulação da declaração da testadora. No fundo, a recorrente defende que a “incapacidade acidental” só podia ser atestada por um médico, que só um médico podia atestar que, no preciso momento da declaração, a testadora estava incapacitada.

A questão envolve essencialmente a compreensão dos normativos invocados pelas partes e também pela sentença (e a que já nos referimos), e a resposta à questão de saber se a incapacidade acidental só pode extrair-se de uma declaração médica específica do momento (ao atinente ao momento) em que a declaração anulável é prestada. Efetivamente, embora o conjunto da prova seja concludente (e a recorrente não o contradiga) em relação à incapacidade da testadora, nenhuma avaliação médica acompanhou o momento da declaração. Aliás – e noutra perspectiva, mas atinente ao mesmo problema – as autoras dizem logo na sua petição que a testadora devia ter sido acompanhada por “uma junta médica”, aquando da “outorga do testamento”.

Como primeira nota, sempre cumprirá dizer que o entendimento defendido pela recorrente, isto é, a imposição de uma verificação médica no momento do ato como única prova capaz de demonstrar a incapacidade da testadora (não declarada incapaz por decisão judicial anterior, ou seja, não interditada) redundará inelutavelmente na impossibilidade de prova, sempre que a testadora, de facto, não se fez acompanhar por médico capaz de demonstrar o hipotético estado de (in)capacidade nesse momento. Com efeito, em relação a um qualquer testador, ainda que se demonstre que nos dias ou meses anteriores e seguintes à declaração, a sua incapacidade era manifesta, se nenhum perito (um médico) o acompanhou aquando da declaração, nunca se poderá concluir – seguindo o entendimento da recorrente – que a declaração foi feita em estado de incapacidade acidental.

Ora se é certo que a incapacidade acidental se distingue daquela outra incapacidade que se mostra já sentenciada, a que conduziu à interdição (e os artigos 2189, alínea b) e 2199 do CC são disso exemplo), e se um interdito sempre será um incapaz que transporta consigo uma qualidade (interdição) que inquina com a sanção da nulidade qualquer testamento que outorgue, daí não resulta, salvo melhor saber, que todo o que não está interditado, mas se revele incapaz, possa testar, desde que, afinal, no momento do ato, não tenha sido acompanhado por médico que pudesse documentar a sua incapacidade nesse momento. É que, como se disse, se na avaliação da incapacidade acidental apenas contarmos com a demonstração médica desse estado, aferida necessariamente ao momento da declaração, nunca a concluiremos, quando o ato é praticado fora do alcance de observação e análise de um médico.

No fundo, afastada a “admissibilidade dos intervalos lúcidos” com o CC/1966, o interdito nunca pode testar, mas o “demente notório não interdito, que no momento de testar não tem capacidade de entender e querer o sentido da declaração está ferido de incapacidade acidental” salvo no caso de se encontrar “num intervalo lúcido e tenha esta capacidade” (Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões... cit., pág. 184/185, nota 413).

Volvendo ao caso presente, o tribunal recorrido entendeu que a prova foi bastante para se darem como provados os factos enumerados em 7, 8, 9 e 10 (“Na data em que foi outorgado o testamento mencionado em 3 a testadora G… já se encontrava impossibilitada de se expressar e de entender o sentido e alcance que se encontra exposto no referido documento. No momento da celebração do testamento e já antes mesmo desse ato, a testadora G… estava incapacitada de entender e atingir o sentido e a vontade da sua declaração e de compreender o que a rodeava. G… já não tinha capacidade de conhecimento, de decisão, de vontade, estava cega do olho esquerdo, ouvia muito mal e não tinha coerência no que dizia. A testadora não tinha consciência do que declarou, nem do significado do ato”), dos quais derivou a incapacidade acidental da testadora, que conduziu à procedência da causa. Esses factos resultaram da livre apreciação do tribunal que, nesta sede e em rigor, não está em causa. Não era exigível – nem a lei o impõe – que a incapacidade da testadora fosse medicamente verificada no momento de testar. Sê-lo-ia, isso sim, se perante eles, ainda assim viesse a demonstrar-se que, no exato momento de testar, afinal, a testadora estava num intervalo lúcido e tinha capacidade.

Do que se deixa – e repete-se que não está em causa a reapreciação da prova, mas a validade desta enquanto prova admissível à demonstração de determinada situação legal típica – resulta que o fundamento do recurso não se mostra subsistente, ou seja, a apelação é improcedente.

As custas são a cargo da recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

3 – DECISÃO:
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão proferida em 1.ª instância.

Custas pela apelante.

Porto, 16.06.2014
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido.