Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
863/23.1YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
DEPÓSITO DA CAUÇÃO DO VALOR DAS RENDAS
APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP20240208863/23.1YLPRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em sede de oposição ao despejo por falta do pagamento de rendas, a concessão do apoio judiciário ao arrendatário apenas o isenta do pagamento da taxa de justiça devida e não também do depósito da caução no valor das rendas em atraso, pelo que se o não fizer, a oposição tem-se por não deduzida.
II - Mesmo que o arrendatário beneficie de apoio judiciário, tal circunstância não o liberta de prestar a caução legalmente prevista para ser aceite a oposição ao procedimento especial de despejo, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º F do NRAU.
III - Impõe-se nessa situação, todavia, uma interpretação normativa conforme à Constituição e, ajustando o regime legal à configuração do direito ao contraditório, acautelando o tratamento equitativo das partes e a efetividade da tutela jurisdicional, conceder ao requerido, em caso de incumprimento do dever expresso no art.º 15º-F, nº3 do NRAU, no que concerne ao depósito da caução aí prevista, a possibilidade de sanar essa falta, mediante realização ulterior desse mesmo depósito, acrescido de multa, nos termos previstos no art.º 570º do Código de Processo Civil.
(da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 863/23.1YLPRT. P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 6



Relator: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Paulo Dias da Silva
2º Adjunto: Ana Vieira

I.

 AA veio instaurar junto do BNA o procedimento de despejo contra BB e CC, concluindo pedindo o despejo do prédio urbano sito na Rua ..., habitação ..., fração autónoma designada pela letra " L", que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., Concelho do Porto, descrita na Competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...12, inscrição matricial, artigo n.º ...43, com a licença de utilização n.º ...55 e ...17, emitida pela Câmara Municipal do Porto a 2/09/1980, por falta de pagamento de rendas, nos termos que indica na notificação judicial avulsa que anexa.

           

Tendo sido deduzida oposição pelos requeridos foi proferida sentença nos seguintes termos: “compulsados os autos resulta que os arrendatários, tendo deduzido oposição, não deram cumprimento ao n.º 3 do artigo 15º - F, do NRAU, a saber, não procederam à junção do comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, porquanto é caso previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil.

Esta falta é cominada, nos termos do n.º 4 do normativo, com a desconsideração da oposição deduzida [tem-se por não escrita].

 (…) Portanto, não vindo demonstrado nos autos que os requeridos efectuaram a caução a que alude o n.º 3 do artigo 15º - F, do NRAU, julga-se nos termos do n.º 4 do normativo referido que a oposição é não escrita.”

Desta decisão foi interposto recurso, o qual foi admitido quanto ao apresentado pelo requerido BB, que apresenta as seguintes Conclusões:

A) – A recorrida propôs no BNA, Processo Especial de Despejo contra os recorrentes, resolveu o contrato de arrendamento nos termos do nº 4 do artigo 1083º do Código Civil (CC), invocando rendas em mora.

 B) – Os recorrentes apresentaram oposição no BNA invocando nada dever, juntando para os devidos efeitos documentação, que se dá por reproduzida;

C) – Distribuído o requerimento de Processo Especial de Despejo, decidiu o Tribunal a quo, ao abrigo do disposto no art. 15 - F/4, da Lei 6/2006, de 27-02 (NRAU) ter a oposição como não deduzida, por os recorrentes não terem prestado a caução prevista no art.º 15- F/3, do NRAU,

D) Recaindo assim o presente recurso sobre a decisão constante do douto despacho proferido nos autos em 25-09-2023 em que o Tribunal a quo considerou a oposição apresentada pelos aqui recorrentes, em 24-05-2023, como não deduzida por falta de pagamento de caução a que alude o artigo 15- F nº3 e 10 n.º2 da Portaria 9/2013 de 10/1, ao abrigo do disposto 15-F, n.º4 da NRAU;

E) Não obstante a recorrente CC ter benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, por deferimento tácito, pois o pedido foi efetuado a 23-05-2023, tendo deferimento tácito ocorrido a 23-06-2023;

F) Enquanto o recorrente BB viu o seu apoio judiciário a ser deferido na modalidade de pagamento faseado e apenas esta informação consta nos autos:

F) O Tribunal a quo, ao decidir não deduzida a oposição com fundamento na não prestação da caução prevista no artigo 15º - F/3 do NRAU, apesar da recorrente CC ter apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos no processo, entre outros, violou o disposto nos números 3 e 4 do artigo 15 - F da NRAU;

G) Beneficiando um dos recorrentes de apoio judiciário nos autos, não podem os mesmos concordar com a decisão de não admissão da sua oposição por falta de pagamento da caução, uma vez que, em virtude da total contradição da Portaria n.º 9/2013, de 10-01, face à Lei 6/2006 de 27/02, verifica-se existir um vício de ilegalidade, consubstanciado na violação da hierarquia das leis.

H) Disposição que, se corretamente interpretada e aplicada à luz do supra expendido, deveria ter conduzido à admissão da oposição dos recorrentes, prosseguindo os autos o seu normal e ulterior desenvolvimento, nos termos definidos na citada Lei 6/2006;

I) A não ser assim está inderrogavelmente e de forma irreversível afetado o acesso à via jurisdicional, por parte dos recorrentes no caso sub judice, colocando em perigo os direitos fundamentais, liberdades e garantias com assento constitucional, em termos de que careça uma justificação orientada à defesa e salvaguarda de outros interesses e direitos constitucionais, basilados pelo principio da proporcionalidade, na sua tríplice dimensão da necessidade, adequação e proporcionalidade, com inscrição no art. 18 n° 2 da CRP, no estrito respeito pelo alcance e extensão do conteúdo do estatuído e consagrado no disposto no n° 3 deste mesmo artigo;

J) Se assim não for, coloca-se em causa um direito fundamental com assento constitucional integrante dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, o direito do acesso aos tribunais e à tutela efetiva previsto e estatuído no art. 20 n° 1 da CRP, para defesa de interesses e direitos legalmente protegidos, não podendo nem se concedendo, nunca, o não acesso e a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos;

L) Além do mais, os recorrentes na sua oposição pediram um adiamento a desocupação, nos termos do artigo 15N da NRAU, por motivos sociais, considerando que no locado residem dois menores, um deles com seis meses de viva;

Sem prejuízo,

L) ainda que assim não se entenda - hipótese que não se concede e aqui somente se admite para efeitos meramente demonstrativos e dever de patrocínio – o Tribunal a quo, na hipótese de entender que a prestação de caução a que alude o art. 10 n.º2 da citada Portaria prevalecia sobre a isenção prevista no art. 15F n.º2 da NRAU, deveria e atenta a confusão, mais do que justificável em virtude da ostensiva contradição da letra da lei nesta matéria, em que o intérprete normal das referidas disposições poderia ter incorrido, ter convidado os requeridos a, no prazo de 5 dias, juntarem aos autos o comprovativo da caução em apreço, no cumprimento, de resto, do disposto no art. 15 -H n.º 2 da NRAU;

M) Ao assim não proceder, dado que a tal não convidou os Recorrentes, violou o disposto no mencionado art. 15- H n. º2 da NRAU, norma que, se corretamente interpretada e aplicada, deveria ter conduzido à prolação de despacho que convidasse os recorrentes à junção de comprovativo da prestação da caução em apreço.

N) Deve assim a decisão recorrida, ser substituída por outra que considere a oposição apresentada pelos Recorrentes, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

O) Ou que a decisão recorrida seja substituída por outra que ordene a notificação dos Recorrentes para, querendo, juntarem aos autos comprovativo da prestação da caução a que alude o art. 15 -F n.º3 da Lei 6/2006 de 27/02, em cumprimento do estipulado no art. 15 -H n.º2 do mesmo diploma.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única questão a tratar, existindo uma outra, suscitada, dependente da resposta negativa à primeira: a concessão ao oponente/requerido e recorrente, BB, do benefício do apoio judiciário isenta-o do pagamento da caução de rendas que é condição de admissibilidade da oposição à pretensão de despejo e, em caso negativo, devia ou não ter sido notificado para proceder ao pagamento/depósito da caução…

Com interesse para a decisão importa atender aos factos provados que resultam dos autos:

A) A recorrida propôs no BNA, Processo Especial de Despejo contra os recorrentes, com fundamento na resolução do contrato de arrendamento, nos termos do nº 4 do artigo 1083º do Código Civil (CC), invocando rendas em mora.

 B)  O recorrente e co-requerida apresentaram oposição no BNA, cumulada com a pretensão de deferimento da desocupação, juntando documento comprovativo de terem solicitado o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e custas.

C) O pedido de apoio judiciário deduzido pela co-requerida foi indeferido, por falta de resposta a notificação de audiência prévia, datada de 28/06/2023, conforme informação constante dos autos sob a referência 37338485, de 21.11.2023.

D) O pedido de apoio judiciário deduzido pelo requerido e recorrente foi deferido na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos do processo, conforme decisão junta por ele em 25.09.2023, sob a referência 36747162.


*

O processo especial de despejo é o meio processual destinado a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na Lei ou na data fixada por convenção das partes.

Mas, uma vez instaurado o competente procedimento especial de despejo, é legítimo ao arrendatário a apresentação de oposição à pretensão manifestada pelo senhorio, dispondo o mesmo de um prazo de 15 dias para o efeito.

Determina o n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (doravante designado NRAU) que, quando o fundamento para o despejo seja a mora no pagamento das rendas contratualmente fixadas, o arrendatário/opoente deverá juntar com a sua oposição o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida, bem como de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, mas limitada ao valor correspondente a seis rendas.

Determina, ainda, o normativo em análise que tal obrigatoriedade se mostra afastada nos casos em que ao arrendatário/opoente tenha sido concedido o benefício do apoio judiciário, regime regulado pela Portaria n.º 9/2013, de 10 de janeiro.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 10.º da referida Portaria veio consignar que o comprovativo do pagamento da caução devida, nos casos em que haja lugar a esta, deverá ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido, ou não, concedido o benefício do apoio judiciário ao arrendatário/opoente.

Os efeitos da concessão do benefício do apoio judiciário no processo especial de despejo têm sido amplamente debatidos na nossa Doutrina e Jurisprudência dos Tribunais Superiores, estando longe de se alcançar uma solução consensual.

Existe uma corrente que defende que, beneficiando o arrendatário/opoente de apoio judiciário na modalidade de dispensa da taxa de justiça e demais encargos com o processo, o mesmo estará isento de demonstrar o pagamento da caução a que alude o referido art.º 15.º-F do NRAU.

Argumenta-se desde logo com o elemento literal da norma contida no n.º 3 do artigo 15.º-F do NRAU, o qual não permitiria outra interpretação que não a da isenção do arrendatário/opoente que beneficie de apoio judiciário do pagamento daquela caução, tanto mais que a inexigibilidade do pagamento da taxa de justiça resulta já da Lei do apoio judiciário. Assim, o legislador não teria necessidade de se referir ao regime de apoio judiciário se estivesse em causa apenas regular o pagamento da taxa de justiça, porque o regime do apoio judiciário prevê o regime da dispensa, independentemente do procedimento que esteja em causa. Donde a utilidade do preceito visa alargar o âmbito do benefício à prestação de caução, por estar em causa o mesmo raciocínio de carência económica para fazer face às despesas de uma ação, sobretudo porque a caução está prevista como condição de admissibilidade da oposição.

Neste sentido, cfr. Acórdãos da Relação de Lisboa, de 10.02.2015 ( processo nº 1958/14.8YLPRT.L1), 19.02.2015 (processo nº 4118/14.4TCLRS.L1) de 28.04.2015 ( processo nº 1945/14.6YLPRT-A.L1), de 09.12.2015 ( processo nº 451/15.6YLPRT.L1) e de 26.04.2016 ( processo nº 4042/15.5YLPRT-L1); da Relação do Porto de 03.03.2016 (processo nº 3055/15.0YLPRT.P1) e de 26.10.2017 ( processo nº 342/16.3YLPRT-A.P1 – ainda que com um voto de vencimento); do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.09.2017 ( processo nº 686/16.4T8CBR.C1). No sentido da prevalência de uma lei sobre um ato regulamentar, cfr., entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 779/2013, de 19.03.2013, in www.tribunalconstitucional.pt.

Desta forma, e atenta a redação díspar das duas normas em análise, tem-se entendido estarmos perante um claro conflito de normas de hierarquia diversa: uma lei ordinária da Assembleia da República e outra ínsita em portaria que é regulamento de fonte governamental. Pelo que, sendo as mesmas emanadas de fontes diversas e sendo a Lei contrariada por ato regulamentar, preferirá a norma de fonte hierarquicamente superior, ou seja, a norma contida no NRAU.

Uma outra corrente, como se anota na decisão recorrida, defende que a concessão do apoio judiciário ao arrendatário/opoente apenas o isenta do pagamento da taxa de justiça devida e já não do depósito da caução no valor das rendas em atraso, entendimento que parece o mais adequado e o que melhor se harmoniza com o sistema jurídico no seu conjunto.

Com efeito, e nos termos gerais, o apoio judiciário visa garantir que a ninguém seja negado o acesso aos Tribunais em razão da sua incapacidade económica, sendo que aquele benefício apenas abrange o pagamento de custas e encargos referentes ao processo, não abarcando a eventual dívida em discussão nos autos.

Por sua vez, o pagamento da caução destina-se a garantir o direito do senhorio às rendas devidas e não pagas. Ora, e do mesmo modo que a atribuição daquele benefício não isenta o arrendatário da obrigação de pagamento das referidas rendas, não pode o mesmo isentá-lo do pagamento da caução destinada a garantir o seu valor.

Por outro lado, e entendendo-se que a concessão daquele benefício isentaria o arrendatário/opoente de promover o pagamento da caução devida, a limitação imposta ao valor a caucionar não prosseguiria qualquer finalidade, uma vez que esta visa, precisamente, garantir que o arrendatário/opoente em precária situação económica não veja inviabilizado o seu direito de defesa por ter que suportar um valor excessivamente alto para o efeito.

Por fim, também o teor do disposto no n.º 5 do artigo 15.º-F do NRAU valida esta solução jurídica, ao consagrar que, no caso de indeferimento da concessão do pretendido benefício, está o arrendatário/opoente obrigado ao pagamento da respetiva taxa de justiça no prazo de 5 dias a contar da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento, sob pena de a mesma ser considerada como não deduzida, nenhuma referência sendo feita à obrigatoriedade de pagamento da caução devida em idêntico prazo.

Crê-se ser esta a melhor interpretação, sendo que só neste caso faz sentido o consignado no n.º 2 do artigo 10.º da Portaria n.º 9/2013, de 10 de janeiro.

O apoio judiciário destina-se a assegurar o acesso à Justiça e aos Tribunais dos cidadãos em virtude da sua debilidade económica, assim cumprindo os direitos fundamentais previstos nos artºs 13º, nº1 e 2 e 20º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa de 1976, nas modalidades previstas no artº 16.º, nº 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, nomeadamente “a) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.”

O cumprimento de uma obrigação pode ser assegurado por diversas formas, a que o Código Civil designa de garantias especiais das obrigações. Além da fiança, consignação em rendimentos, penhor, hipoteca, privilégios hipotecários e o direito de retenção, prevê o referido Código a possibilidade de prestação de caução. In casu, a caução é uma garantia especial da obrigação do arrendatário de pagamento das rendas pedidas na acção (procedimento especial de despejo) – podendo ser prestada em qualquer das formas legalmente admissíveis de acordo com o artº 624º do Código Civil de 1966 - tendo o legislador sido sensível em fixar um tecto máximo de depósito de seis meses de renda (mesmo que sejam exigidos mais rendas mensais em dívida).

São institutos diferentes e destinam-se a acautelar direitos diferentes, o primeiro um direito fundamental de acesso à justiça em termos de igualdade dos cidadãos e o outro a acautelar um interesse patrimonial dos senhorios por falta de pagamento de rendas dos arrendatários que deduzem oposição ao procedimento especial de despejo.

Como se sustentou, assim, no acórdão do TRE de 25.09.2014 (relator Canelas Brás), citado na decisão recorrida,  “Conferir, sem mais e por mero arrastamento, a desoneração de pagamento de caução ao inquilino incumpridor, que apresenta oposição ao pedido de despejo com o benefício do apoio judiciário, da obrigação contratual principal de pagamento das rendas seria uma violação ao princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei- artº 13º CRP de 1976- dado que os demais, que pagam custas e encargos processuais, disso não beneficiam e fomentaria oposições ao despejo infundadas, desse modo frustrando a intenção legislativa de celeridade do PED, claramente assumida pela Lei n.° 5/2006, de 27 de Fevereiro”.

É que mais sufragamos inteiramente a argumentação constante do voto de vencido ao Acórdão desta Relação de 26.10.2017, no sentido da inexistência de um tal conflito de normas.

Não concordamos, pois, com a interpretação contida no mesmo acórdão e no acórdão do TRL, de 28.04.2015, seguido ademais pelo acórdão deste TRP, de 03-03-2016, no sentido de que “o texto da lei aponta no sentido de que a concessão de apoio judiciário liberta o arrendatário/oponente tanto do ónus de pagamento da taxa de justiça como da prestação de caução”.

Com efeito, ao invés, temos para nós que a interpretação literal e teleológica apontam que o legislador ordinário deixou a definição concreta dos termos da isenção do pagamento da caução no valor das rendas em atraso para um diploma legal regulamentador que é uma portaria. Tudo perfeitamente legal e constitucional.

Não vislumbramos um conflito de normas de hierarquia diversa, uma de lei ordinária da assembleia da República - cfr. art.º 112º, n.º 2, 161º, alínea c), 165º, n.º 1, alínea h), 166º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa - e outra ínsita em Portaria que é regulamento de fonte governamental e, uma vez que são emanadas por fontes diversas, “prefere a norma de fonte hierárquica superior (critério da superioridade: lex superior derogat ligi inferiori.”)

A nosso ver, não existe contradição alguma entre esta norma da referida Portaria e o previsto no n.º 3 do art.º 15.º-F do NRAU …

Se bem analisarmos o disposto no art.º 15.ºF n.º3 do NRAU, a ressalva que se faz em relação ao benefício do apoio judiciário só poderá referir-se à obrigação do pagamento da taxa de justiça e não à obrigação de prestar caução no valor das rendas em atraso. Com efeito, o apoio judiciário só abrange o pagamento de custas e encargos referentes ao processo, não abrange, por conseguinte, outras dívidas que não as relativas aos processos. Ora, o pagamento da caução de valor equivalente ao das rendas em atraso, destina-se a garantir um direito do respectivo titular às rendas que não foram pagas.

O apoio judiciário não isenta o arrendatário da obrigação de pagar as rendas pelo que não faria sentido que o mesmo estivesse isento do pagamento da caução correspondente ao valor das rendas em dívida, no caso de beneficiar do apoio judiciário. Assim, se esta interpretação, cremos, já decorre da leitura do preceito legal supra mencionado, embora reconhecendo que a respectiva redacção não é a mais feliz, então o n.º2 do art.º 10.º da Portaria 9/2013 de 10 de janeiro veio esclarecer e não contrariar tal sentido ao dispor que “o documento comprovativo do pagamento referido no número anterior deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário”.

Em abono desta tese invoca-se ainda o facto de o n.º3 do art.º 15.ºF do RAU limitar o valor da caução “ até ao valor máximo correspondente a seis rendas”. Entende-se que a preocupação do legislador foi precisamente prevenir a hipótese desta obrigação ser demasiado onerosa para os inquilinos de menores recursos de modo a que a mesma não inviabilizasse o seu direito de defesa. Caso o apoio judiciário abrangesse a obrigação da prestação de caução, qual seria a necessidade de o legislador tomar o cuidado de a limitar ao valor máximo de seis rendas?

Também o teor do disposto no n.º5 do mesmo artigo 15.º F, se constitui, como já referido, como abonatório desta interpretação. Ali se estipula que “A oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efectue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contar da data da notificação de decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário (…).” A redacção do n.º5 que, efectivamente, no n.º3 não se dispensa o beneficiário do apoio judiciário do pagamento da caução. Na verdade, se assim fosse, no n.º5, pressupondo essa dispensa, após a decisão definitiva do indeferimento do pedido de apoio judiciário, referir-se-ia que, no prazo de cinco dias, o requerido deveria efectuar o pagamento de taxa de justiça e ainda da caução. Ora, o legislador não o diz. E se o não diz é porque pressupõe que o requerido já pagou a caução.

São estas as razões que nos levam a concluir como concluiu o já citado acórdão proferido no Tribunal da Relação de Évora que “em incidente de oposição ao despejo por falta do pagamento de rendas, a concessão do apoio judiciário ao arrendatário apenas o isenta do pagamento da taxa de justiça devida e não também do depósito da caução no valor das rendas em atraso, pelo que se o não fizer, a oposição tem-se por não deduzida.”

Entendemos, pois, que mesmo que o arrendatário beneficie de apoio judiciário, tal circunstância não o liberta de prestar a caução legalmente prevista para ser aceite a oposição ao procedimento especial de despejo.

Não se tem ademais esta interpretação como violadora da CRP, mormente na convocada dimensão de acesso ao direito.

O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de acção ou defesa, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94 daquele tribunal.

Como resulta também da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o direito de ação ou direito de agir em juízo, efetivado através de um processo equitativo, entendido num sentido amplo, significa não apenas que o processo deverá ser justo na sua conformação legislativa, mas também que deverá ser um processo informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais, de modo a que seja adequado a uma tutela judicial efetiva.

Neste mesmo sentido, a doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios: (1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; (2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas; (3) direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de ação ou de recurso; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em tempo razoável; (6) direito ao conhecimento dos dados processuais; (7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo; (8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas. (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416).

Por outro lado, conforme tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, se é certo que a exigência de um processo equitativo não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo, impõe, contudo, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

A questão em causa nos autos enquadra-se num conjunto vasto de casos, que o Tribunal já foi chamado a apreciar, em que é imposto um ónus processual às partes (neste caso, a junção, em determinado prazo, do documento comprovativo do pagamento de uma caução) e em que a lei prevê uma determinada cominação ou consequência processual para o incumprimento de tal ónus.

Ora, a respeito das exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, quando estejam em causa normas que impõem ónus processuais, o Tribunal tem afirmado que tal garantia não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não sendo incompatível com a imposição de ónus processuais às partes (cfr., neste sentido, entre outros, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 122/2002 e 46/2005).

Sempre, como também tem sido salientado pelo Tribunal, a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/2000, 122/2002, 403/2002, 556/2008, 350/2012, 620/2013, 760/2013 e 639/2014 do Tribunal Constitucional).

O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:

- a justificação da exigência processual em causa;

- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;

- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/2007, 277/2007 e 332/2007).

Regressando ao caso dos autos, não restam dúvidas que a exigência processual em causa, de junção aos autos do comprovativo da autoliquidação da caução, encontra justificação, como se viu, no interesse de evitar oposições infundadas com o intuito de atrasar a decisão de despejo e de garantir a posição do senhorio, no caso de incumprimento da obrigação de pagamento das rendas.

Já no que respeita à onerosidade, para as partes, da exigência processual em questão, esta também não se revela excessiva, mesmo perante os limites legalmente estabelecidos na lei, nem de difícil cumprimento.

Não sendo excessivo o ónus imposto, não o é também a consequência resultante do seu não cumprimento, com a ressalva que se fará de seguida,  quando se considere já que não está em causa o impedimento de acesso à justiça com base em situações de insuficiência económica, posto que nessa parte salvaguardado o regime do apoio judiciário… A obrigação de pagamento da renda que a caução se destina a garantir não é afectada pelas condições económicas do arrendatário, por frágeis que sejam, com o que, em conclusão, não se antolhe qualquer inconstitucionalidade na interpretação sufragada.

Não se colhe da convocada disposição do art. 15º-H do NRAU a imposição ao Tribunal do dever de ordenar a notificação para o depósito da caução.

Da leitura do n.º 3 do artº 15º-F da Lei n.º 6/2006 resulta que o legislador utilizou o termo deve e não o termo pode, o que implica que o (a) demandado (a) tem no momento da apresentação da oposição efectuar o pagamento da caução.

De todo o modo temos para nós como inteiramente procedente a argumentação constante do recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.11.2023, na base de dados da dgsi, quanto à aplicação do art.º 570º do Código de Processo Civil à obrigação de pagamento da caução prevista no nº 3 do art.º 15º-F do NRAU. Aqui o seguiremos, data venia, de muito perto.

A formulação de um convite ao suprimento da condição de admissibilidade da oposição apresenta-se já como uma exigência constitucional, dado que se o artigo 15.º-F, n.º 4 do NRAU for interpretado no sentido de uma preclusão sem mais estaremos perante a violação do direito a um processo equitativo, do qual resulta o direito ao contraditório, assim como do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigo 20.º, n.º 4 da CRP).

Desrespeitada que foi a obrigação emergente do nº 3 do art.º 15º-F do NRAU, no que à caução tange, não se impõe ao juiz aplicar de imediato, ainda quando cumprido o contraditório, a cominação prevista no nº 4 do mesmo preceito, mas antes conceder prazo suplementar para o pagamento da caução em falta, acompanhado da multa prevista no art.º 570º do Código de Processo Civil[1]/[2].

Em sentido negativo, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 12/9/2017 (António Pires Robalo), disponível em www.dgsi.pt, com a seguinte fundamentação: Ou seja, o termo “deve” utilizado no art.15º-F, n.º 3, da Lei n.º6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU) só pode significar que o demando (a), no prazo dos 15 dias aludidos no n.º 1 do preceito, tem de apresentar a oposição, pagar a taxa de justiça ou comprovar que já solicitou o pedido de apoio judiciário, e no caso dos n.ºs 3 e 4 do art.º 1083 do C. Civil depositar a caução, aqui consoante a posição defendida a respeito da concessão de apoio judiciário. Assim, o n.º 3 e 4 do art.º 15-F do NRAU é incompatível com o art.º 570 do C.P.C., tanto mais que o PED não é uma acção de despejo, mas sim um procedimento especial de despejo como o próprio nome indica.

No mesmo sentido de que o art.º 570 do C.P.C. é incompatível com o art.º 15-F do NRAU - cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 1 de Abril de 2014 – 2095/13.8YLPRT.L1.1, relatado por Teresa Jesus Ribeiro de Sousa Henriques onde se escreve “(…) Ora o PED não é uma acção de despejo. É, como o nome indica, um procedimento especial que seguia, na ocasião, a forma de processo sumaríssimo (cfr. art.º 222º do CPC revogado, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 31/2012, de 14-08). O NRAU distingue entre acção de despejo e procedimento especial de despejo. (cfr. art.ºs 14º e 15º). A notificação efectuada ao abrigo do art.570º, n.ºs 3 e 4, do CPC colide com o disposto no n.º 4 do art.15º-F do NRAU. Verificada a falta de pagamento da taxa de justiça impunha-se considerar a oposição como “não deduzida”.

E o mesmo se diz quanto à falta de pagamento da caução.

Temos para nós, a exemplo daquela pioneira decisão da Relação de Lisboa, que a resposta há-de ser encontrada na jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, na apreciação das cominações e preclusões, associadas ao incumprimento de determinado ónus processual.

Aqui se convoca o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 760/2013, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130760.html, no qual se decidiu declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 20.º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, quando interpretado no sentido de que o “não pagamento da taxa de justiça devida pelo réu, na sequência da notificação da distribuição do procedimento de injunção em tribunal judicial para continuar a ser tramitado como ação declarativa especial, constitui causa de desentranhamento liminar da oposição à injunção sem se conceder ao réu as opções previstas no artigo 486.º-A do Código de Processo Civil”, por violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.

Já acima se dissertou sobre o modo como o TC tem confrontado a dimensão normativa com o direito a um processo equitativo, enquanto corolário do direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição, entendendo, entre outros no Acórdão n.º 434/2011, acessível no mesmo lugar, que um tal direito fundamental se concretiza na consagração da possibilidade de defesa jurisdicional de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos, conferindo-lhes assim condições de efetividade prática.

Em causa já a garantia dum processo equitativo, afectada pela interpretação normativa que não permitisse a oportunidade do suprimento da falta verificada, impondo uma cominação tão gravosa como a da evicção da defesa mesma, sem aquela concessão.

Já se disse ser aquela garantia concretizada por vários subprincípios, entre os quais se conta o direito de defesa e direito ao contraditório, traduzido na possibilidade de cada uma das partes apresentar a sua versão e os seus argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da prolação da decisão sobre o litígio. Corresponde, pois, tal direito a uma garantia de equilíbrio e de igualdade de armas entre os litigantes, que veem constitucionalmente assegurada a possibilidade de exercerem influência efetiva no desenvolvimento do processo, que se pretende que conduza a uma decisão materialmente justa do litígio.

Repete-se, não obstante a ampla liberdade reconhecida ao legislador, no âmbito da definição da tramitação processual, é inegável que a garantia do contraditório, de que decorre a proibição da indefesa, constitui um limite vinculativo incontornável.

Decisivamente, no segmento que aqui nos interessa, as cominações e preclusões, associadas ao incumprimento de determinado ónus processual, não podem revelar-se funcionalmente desajustadas.

O princípio do contraditório, como componente do direito a um processo equitativo, terá de manter a sua função operante num conteúdo mínimo, seja qual for a estrutura processual em que se desenhe o acesso à tutela judiciária.

Apesar de se reconhecer a importância de uma estrutura processual deliberadamente simplificada e célere, vocacionada para os objetivos de política legislativa que presidiram ao regime instituído, é imperioso garantir que o bem jurídico celeridade não comprometa, de forma desproporcional, o princípio do contraditório, sob pena de violação incomportável do acesso à tutela jurisdicional efetiva.

Continuando a seguir o Acórdão da Relação de Lisboa de 23.11.2023, a propósito do equilíbrio necessário entre a celeridade processual e a justiça da decisão, em termos transponíveis para a presente situação, refere C. Lopes do Rego: “As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adoção de “mecanismos que desencorajem as partes de adotar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo”, sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere – mas também justa, adequada e ponderada” (in Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil, Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 855).

Do exposto resulta que uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflita considerável grau de negligência – não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitetura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efetividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.

Transpondo as considerações expendidas para a interpretação normativa em apreciação, teremos de concluir que associar ao incumprimento de um ónus processual, relativo ao pagamento da caução, a consequência, imediata e irreversível, de desconsideração da oposição afigura-se desproporcional, por acarretar o gravoso e inevitável resultado de impossibilitar a parte incumpridora de fazer valer a sua posição no litígio, em termos determinantes para o desfecho ou dirimição definitiva dos direitos ou interesses controvertidos. Existe, de forma ostensiva, uma restrição inconstitucionalmente intolerável do direito de contraditório, não se assegurando o tratamento equitativo das partes, nem a efetividade da tutela jurisdicional.

Os argumentos aduzidos também pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 625/03 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt) sobre a diferenciação de consequências, para autor e réu, do não pagamento da taxa de justiça inicial, no âmbito da ação em que se converteu o procedimento de injunção, no tocante à posição do réu, corroboram o juízo já formulado, quanto à gravidade das consequências da interpretação normativa que apreciamos.

Tal interpretação, que cabe recusar, corresponde de facto, a um desproporcionado comprometimento do núcleo essencial do princípio do contraditório, como dimensão constitutiva crucial de um due process of law.

O entendimento seguido no Acórdão n.º 434/2011, de que o artigo 20.º do Regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, quando interpretado no sentido de que “a falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça devida pelo réu, nos dez dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como ação, acarreta o imediato desentranhamento da peça processual de defesa, que valeria como contestação no âmbito de tal ação”, é inconstitucional por violação do “princípio do contraditório, integrante do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da CRP”, foi reiterado, ainda que por referência ao “não pagamento da taxa de justiça devida pelo réu”, pelos Acórdãos n.ºs 587/2011 e 527/2012, bem como a Decisão Sumária n.º 605/2012.

Aplicando estas considerações à questão ora em apreciação,  recorrendo agora à reprodução mesma do Acórdão que vimos seguindo de perto: “será de concluir que associar ao incumprimento do ónus de depósito de caução a consequência imediata e irreversível de consideração da oposição como não deduzida, mostra-se manifestamente desproporcional, por acarretar o resultado de impossibilitar a parte incumpridora de fazer valer a sua posição no litígio, em termos determinantes para o desfecho ou resolução definitiva dos direitos ou interesses controvertidos.

Consistiria, essa imediatez e automaticidade numa restrição inconstitucionalmente intolerável do direito de contraditório, não se assegurando o tratamento equitativo das partes, nem a efetividade da tutela jurisdicional.

Desse modo, será de recorrer à figura da interpretação conforme à Constituição e, adequando o regime legal à configuração do direito de contraditório, de forma a assegurar o tratamento equitativo das partes e a efetividade da tutela jurisdicional, facultar ao requerido, em caso de incumprimento do dever expresso no art.º 15º-F, nº3 do NRAU, no que concerne ao depósito da caução aí prevista, a possibilidade de sanar essa falta, mediante realização ulterior desse mesmo depósito, acrescido de multa, nos termos previstos no art.º 570º do Código de Processo Civil.

Como refere Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pg. 1294, O princípio da interpretação conforme a constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei.

Desta forma, o princípio da interpretação conforme a Constituição é mais um princípio de prevalência normativo-vertical ou de integração hierárquico-normativa de que um simples princípio de conservação de normas.”

Interpretando-se as normas em causa neste sentido, resulta a procedência da apelação.

Sempre se imporia (e tal sucederá no caso da falta de pagamento cuja oportunidade se determina) ao tribunal recorrido, quando assim não fosse, o prosseguimento do incidente de deferimento do despejo também deduzido, subsidiariamente, na oposição, por não estar dependente se não do pagamento da taxa de justiça respectiva, cujo pagamento em prestações foi deferido ao recorrente.

III.

Tudo visto, concede-se parcial provimento ao recurso e, assim, revogando-se a decisão recorrida, determina-se a substituição por outra, no sentido de conceder aos requeridos, mormente ao recorrente, o prazo de 10 dias para que procedam ao pagamento da caução devida pela apresentação da oposição e da multa de 5 UC’s, de forma a obviar à cominação prevista no nº 4 do art.º 15º-F do NRAU.

Custas pelo recorrente, segundo o critério supletivo do proveito (art. 527.º, n.º 1, segunda parte, do CPC), sendo certo que não tendo a parte contrária motivado a decisão ou respondido ao recurso, as custas cingem-se à taxa de justiça já paga.

Notifique.


Porto, 08 de Fevereiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Paulo Dias da Silva
Ana Vieira
__________
[1] Na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou de comprovação desse pagamento, no prazo de 10 dias a contar da apresentação da contestação, a secretaria notifica o interessado para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido com acréscimo de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC. 4 - Após a verificação, por qualquer meio, do decurso do prazo referido no n.º 2, sem que o réu tenha comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça, a secretaria notifica-o para os efeitos previstos no número anterior. 5 - Findos os articulados e sem prejuízo do prazo concedido no n.º 3, se não tiver sido junto o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa por parte do réu, ou não tiver sido efetuada a comprovação desse pagamento, o juiz profere despacho nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 590.º, convidando o réu a proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC.
[2] Tendo o recorrente convocado um outro fundamento legal para esta notificação é de ter por convocada qualquer outra disposição concedente, nos termos da liberdade de qualificação jurídica da pretensão pelo tribunal.