Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
325/19.1PAESP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: PERÍCIA DE MENOR
CONSENTIMENTO DOS PROGENITORES
NULIDADE
IN DUBIO PRO REO
VOTO DE VENCIDO
PENA ACESSÓRIA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20220126325/19.1PAESP.P1
Data do Acordão: 01/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ausência de prestação de consentimento por ambos os progenitores à realização de uma perícia sobre a personalidade de uma menor de idade, apenas ordenada por despacho da autoridade judiciária competente (Ministério Público em fase de inquérito) não é susceptível de integrar uma nulidade insanável (artigo 119º do Código de Processo Penal).
II - Trata-se de uma questão susceptível de integrar uma nulidade dependente de arguição (artigo 120º, nº 1, do mesmo texto legal) pela pessoa interessada – a menor que foi sujeita à perícia à personalidade, devidamente representada em juízo -, até ao termo da realização da perícia (artigo 120º, nº 3, alínea a), do mesmo Código) ou – no caso de se entender que ambos os progenitores, enquanto representantes legais da menor, deveriam ter estado presentes na perícia à personalidade da sua filha e tendo estado presente, apenas, um dos progenitores – até ao encerramento do debate instrutório (havendo instrução, como foi o caso nos presentes autos), ex vi da alínea c) do nº 3 do mesmo artigo.
III - O arguido carece de legitimidade para arguir tal nulidade sanável.
IV - Não basta existir um voto de vencido de um dos membros do tribunal coletivo para consubstanciar a “dúvida razoável” sobre a veracidade dos factos que constituem o objeto do processo penal, de modo a fazer operar o princípio “in dubio pro reo”.
V - A aplicação de uma pena acessória prevista no artigo 69º-C, do Código Penal não infringe a garantia estatuída no artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, quando atende às circunstâncias da prática do crime, à sua gravidade objetiva e às consequências para a ofendida, menor e descendente da sua cônjuge e não aplica a pena acessória, meramente, como consequência automática da condenação por crime de abuso sexual de criança.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 325/19.1PAESP.P1
Data do acórdão: 26 de Janeiro de 2022

Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto,
em conferência e por unanimidade,

nos presentes autos em que figura como recorrente o arguido AA…;

I – RELATÓRIO

1. Em 14 de Julho de 2021 foi proferido nos presentes autos o acórdão proferido na primeira instância que terminou com o dispositivo a seguir reproduzido:
«Pelo exposto, por maioria, os juízes que constituem o Tribunal Colectivo:
- Condenam o arguido AA… da prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171.º n.º1 e 177.º n.º 1 alínea b) do Código Penal, na na redacção Lei nº103/2015 de 24/8, numa pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sujeita a regime de prova, com acompanhamento técnico pela DGRS, que promova a efectiva interiorização do desvalor da conduta e a atribuição interna de responsabilidade comportamental e de respeito pelas normas jurídicas, que implicará a avaliação clínica/terapêutica especializada para diagnosticar eventuais necessidades de intervenção no âmbito da desviância sexual - art. 53º, nº4, 54º, nº4 do Código Penal – absolvendo-o da agravante prevista no art. 177º, nº1 c) do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 06 de Setembro.
- Condenam o arguido nas penas acessórias de proibição do exercício de funções, proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais, previstas nos arts. 69º-B, nº 2 e 69º-C, nºs 2, 3 e 4, todos do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 103/2015, de 24/8, por um período de 5 (cinco) anos.
- Julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB…, representada pelo seu pai CC… e em consequência condenam o arguido / demandado AA… a pagar a quantia de €1000,00 (mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros desde a presente decisão.
- Condenam o arguido no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, sem prejuízo do apoio judiciário que possa beneficiar - arts. 3º, nº1, 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III anexa a este Regulamento.
- Sem custas cíveis em face da isenção prevista no art. 4º, nº 1 n) do RCP.
(…)»

2. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso do acórdão, terminando a motivação de recurso com a formulação das conclusões seguidamente reproduzidas:
"1ª Na decisão recorrida mostra-se violado o princípio da livre apreciação e, consequentemente, o princípio do in dubio pro reo;
2.ª O voto vencido é a forma mais evidente de caracterização da dúvida judicial, sendo que, no caso, quanto à factualidade pela qual o Recorrente foi condenado;
3.ª Se essa dúvida é favorável ao arguido, pela regra de decisão fundada em preceitos constitucionais, em especial o «in dubio pro reo», é este que deve prevalecer, devendo sucumbir a regra “matemática” da maioria que faz vencimento e a que aludem os n.os 1 e 2 do art.º 372.º do CPP.
4.ª Existe contradição insanável na decisão recorrida nos factos provados sob os n.os 8 e 17;
5.ª Com exceção do facto provado em 8., para o qual terá, de acordo com a decisão recorrida, contribuido o “acordo de promoção e protecção de fls. 138” e o “teor do auto de denúncia de fls. 7 e ss e 101 e ss”, não resulta claro da motivação, pela forma ampla e genérica como se apresenta, omitindo de que forma a “restante prova produzida” permitiu a demonstração da matéria provada em 17;
6.ª O que redunda na nulidade da sentença, por falta de exame crítico das provas, ao abrigo dos arts. 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1 al. a), ambos do CPP;
7.ª Deverão considerar-se como incorrectamente julgados os pontos 11 a 16, 17 (na parte onde se refere «perante isso»), 19 a 21 e 58 a 62 dados como provados pelo Acórdão recorrido, devendo ser julgados em sentido diametralmente oposto, ou seja, como não provados, proferindo-se decisão jurídica em conformidade;
8.ª A matriz utilizada pelo Tribunal recorrido foram das declarações da ofendida e tudo o que se encaixou nas mesmas mereceu credibilidade e tudo o que não se encaixou não mereceu credibilidade, não tendo assim existido uma verdadeiro “exame crítico” das provas;
9.ª O Tribunal recorrido fez uma valoração da prova pouco fundamentada, pouco coerente, absolutamente discricionária e nada vinculada aos princípios jurídicos que a deverão nortear, seguindo a lógica de que tudo o que é dito pela ofendida corresponde à verdade e tudo o mais não merece credibilidade;
10.ª A aplicação automática das penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B e 69.ºC e aplicadas ao recorrente é inconstitucional por violação do disposto no artigo 30.º n.º 4 da CRP, nomeadamente no entendimento de que a pena acessória prevista no n.º 3 do art.º 69.º-C do CP afeta a relação de parentalidade do Recorrente com a sua filha HH… que nada tem a ver com os factos em discussão nos autos;
11.ª Sempre com o devido e merecido respeito, acentuamos a discordância com a condenação do Recorrente enquanto autor material da prática de um crime de abuso sexual agravado p. e p. pelos arts. 171.°, n° 1 e 177.°, n.° 1 al. b), do CP;
12.ª O Recorrente sempre afirmou que tudo o que consta da Acusação é falso e sobre o crime que vem condenado, sempre negou e afirmou veementemente e sem qualquer hesitação que eram falsos os factos ali alegados;
13.ª Inexistem quaisquer provas físicas e/ou corporais da prática dos factos;
14.ª São contraditórias as declarações prestadas pela ofendida em declarações para memória futura - depoimento prestado no dia 09.09.2019 - ata de declarações para memória futura de - identificação do ficheiro áudio: 20190909145935_3878865_2870289 – 36mns:42sgs e na audiência de discussão e julgamento - depoimento prestado no dia 29.06.2021 - ata de declarações para memória futura - identificação do ficheiro áudio: 20210629145010_4037454_2870450 – 01h:07mns:30sgs;
15.ª A decisão recorrida não faz qualquer exame crítico do relatório pericial, redundando assim numa nulidade da sentença;
16.ª A própria Perita admitiu em audiência de julgamento que não ouviu a progenitora quanto á matéria e caso o tivesse feito, os resultados poderiam ser diferentes - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210602111559_4037454_2870450 – 32mns:53sgs - minutos 1:40-3:40; 005:30-06:30; 07:00-09:40; 28:35-30:05;
17.ª Admite o Relatório a hipótese de a suposta vítima ter relatado à Ex.ª Perita exatamente o que esta «queria ouvir»;
18.ª Da perícia realizada não resulta que os factos efetivamente ocorreram na forma como vem descrita na decisão recorrida, nem muito menos permite que se conclua que foi o Recorrente quem supostamente os praticou;
19.ª O relatório bastou-se somente com a versão da vítima, que não é corroborada por qualquer elemento de prova que vá no mesmo sentido;
20.ª Quanto ao depoimento da testemunha DD…, convém ter presente também o Doc. de fls. 139 porquanto é neste que é supostamente relatado o teor de uma suposta conversa havida entre a ofendida com a referida testemunha, o que a testemunha, de forma absolutamente sincera e espontânea, designadamente quando confrontada na audiência de julgamento no dia 22/06/2021 com o aludido documento, negou que alguma vez tivesse ocorrido da forma descrita - depoimento prestado no dia 22.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 22/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210622160110_4037454_2870450 – 42mns:38sgs - minutos 0:160:31; 02:55-06:50; 07:30-11:56;
21.ª Confunde o Tribunal recorrido o que é «convicção» com «exaltação»;
22.ª Revelou o Tribunal Recorrido, uma flagrante apreciação viciosa com respeito ás declarações prestadas por esta testemunha;
23.ª A credibilidade do depoimento da ofendida é, ainda, abalada pelo facto de esta mentir quanto ao conteúdo do Doc. de fls. 147 ao admitir que um dos parágrafos é da sua autoria, a assinatura ser sua, reconhecer a letra;
24.ª Não sendo nem versosímel ou sequer verdadeira a versão apresentada pela ofendida quanto ao documento em causa;
25.ª É evidente que todo o Doc. de fls. 147 foi escrito pelo seu punho, mas, dado que o conteúdo do mesmo é suscetível de minar a sua credibilidade, a ofendida, atenta as suas características de personalidade - desejabilidade social - preferiu mentir e dizer que não se lembrava;
26.ª Da mesma forma, não nos merece razão o fundamento invocado na decisão recorrida para não dar relevância ao documento em si, designadamente para efeitos da credibilidade da suposta vítima porquanto a expressão constante do documento de fls. 147 com o teor “eu vou tomar uma decisão este ano” é em tudo semelhante com a mensagem “EE…, é hoje que decido se vou para o meu pai ou não” recebida pela testemunha EE… e que a ofendida lhe terá enviado no dia em que o seu pai a retirou de casa da mãe conforme depoimento prestado por esta no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062122351_4037454_2870450 - minuto – 04:45 a 06:10;
27.ª Optando o tribunal por desconsiderar a importância desta prova e do seu conteúdo, o que fez sempre em desfavor do arguido;
28.ª Destaca-se o facto de os depoimentos das testemunhas EE… - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062122351_4037454_2870450 -37mn:15sgs, de CC… - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062114949_4037454_2870450 – 32mn:56sgs e FF… - depoimento prestado no dia 22.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 22/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210622143444_4037454_2870450 -07mns:15sgs e ficheiro de áudio: 20210622144301_4037454_2870450 – 54mns:40sgs – que não têm conhecimento direto dos factos, são testemunho de «ouvir dizer», pois não assistiram a nada, tendo-se limitado a reproduzir o que lhes terá sido relatado pela ofendida, sendo mesmo contraditórios entre si;
29.ª Estamos, na Douta Sentença recorrida, perante um raciocínio incompatível com o disposto no art.º 32.º, n.º 2 da CRP;
30.ª O Recorrente deve ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado, extraindo-se as necessárias consequências, inclusive relativamente ao pedido cível em que foi igualmente condenado.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões, como é de direito e justiça! (…)»

3. No decurso da audiência foi proferida uma deliberação do tribunal coletivo, indeferindo a nulidade invocada pelo arguido em sede de contestação quanto à realização da perícia médico-legal produzida no decurso do inquérito.
4. Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso da mesma, com subida diferida, a final, cuja motivação concluiu nos seguintes termos:
1. É facto assente que, no momento da prolação do despacho do M.º P.º de 12/09/2019, que determinou a realização da perícia médica, não havia consentimento prestado;
2. A partir de 12/11/2019, o exercício das responsabilidades parentais passou a caber a ambos os progenitores, sendo que até àquele momento o mesmo cabia à progenitora;
3. Não se acompanha a consideração segundo a qual de que «por não haver o não consentimento prestado», a questão mostra-se resolvida pelo eventual consentimento prestado pelo progenitor com que a menor se encontrava na altura na 1.ª entrevista ocorrida com a Ex.ª Sr.ª Perita, ocorrida no dia 14/11/2019;
4. O progenitor, atenta a inexistência de consentimento prestado, desacompanhado da mãe e sem prévia decisão judicial do JIC não podia prestar sozinho o consentimento;
5. O consentimento que possa ter sido prestado pelo progenitor que no dia 14/11/2019, quando acompanhou a menor à 1.ª entrevista com a Sr.ª Perita, não tem a virtualidade de validar a inexistência de despacho prévio a proferir pelo JIC, legalmente obrigatório;
6. No caso, o consentimento prestado pelo progenitor é desprovido de qualquer valor jurídico;
7. A existência (ou não) de consentimento é, de acordo com a norma legal em apreço, anterior ou, pelo menos, contemporâneo do despacho que ordena a sua realização, não podendo ser posterior;
8. O direito processual penal é o complexo de normas legais a que cabe a função de valoração dos comportamentos processuais que podem ser tidos como admissíveis ou inadmissíveis e se essa função se cumpre através da concessão de direitos e da atribuição de deveres, a criação de uma “solução jurídica” cujo conteúdo se preencha com o sentimento de que “onde cabe o mais cabe o menos” ou “tudo cabe e é possível” para a justificar, não tem em conta essa dimensão da concessão e fixação de direitos;
9. Uma tal proposição não pode servir de suporte à criação de um entendimento que redunde num enfraquecimento da posição do Arguido, ora Recorrente, mercê da criação de uma «solução jurídica» que, sem o devido respaldo e enquadramento legal, implique a diminuição dos seus direitos processuais e redundar outrossim numa afronta ao conteúdo de sentido do princípio da legalidade consagrado, desde logo, no art. 32.º, n.º 1, da CRP, nomeadamente se o elemento de prova em causa (perícia) vier a ser considerado relevante para a sua (eventual) condenação;
10. O despacho recorrido violou os artigos 154.º n.º 3 e 126.º n.º 3, ambos do CPP, bem como o art.º 32.º n.os 1 e 8 da CRP;
11. A prova pericial consubstanciada no relatório médico-legal de psicologia, de fls. 250 e seguintes é, desta forma, nula, não podendo ser utilizada em qualquer circunstância;
12. Deve o Douto despacho de 25/05/2021, ora recorrido, ser revogado.
13. Assim fazendo JUSTIÇA!»

5. O Ministério Púbico apresentou resposta em relação aos dois recursos, com base na seguinte argumentação:
a. quanto ao recurso do acórdão:
«(…) II– Da violação do artigo 127º, do C.P.P.
Alega o recorrente que o disposto neste artigo foi violado, desde logo, porquanto, tratando-se de Tribunal Colectivo, em que o acórdão é formado pela manifestação complexa de sentidos dos magistrados, sempre que ocorre uma divergência, estabelece-se, à vista de todos, uma dúvida – ou proveniente dos factos, ou da aplicação do direito no caso concreto, tendo ocorrido um voto de vencido, por existirem dúvidas acerca da prática dos factos, deverá ser esta dúvida a prevalecer, em homenagem ao princípio in dubio pro reo.
E continua, referindo que a solução alcançada não é fruto de uma livre apreciação, mas sim da imposição de uma apreciação sujeita a sufrágio.
Com todo o devido respeito por opinião divergente, discordamos de tal entendimento.
Vejamos sinteticamente porquê.
“A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade": "O juiz lança-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o "agarrar". E, por isso, é que, "nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (…) e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (…), não há lugar à intervenção da "contraface (de que a "face" é a "livre convicção") da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva" que é o in dubio pro reo (cuja pertinência "partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador)".
O processo probatório, a prova, consiste em verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa, estando o Tribunal munido, para essa tarefa de uma racionalidade própria, uma racionalidade razoável. Daí que não é “qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido”, mas apenas a chamada dúvida razoável. “Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais”. Enfim, “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal” (ibidem).
Ora, e não obstante o voto de vencido de um dos membros do Tribunal Colectivo, a verdade é que o Tribunal a quo, neste caso, os demais membros do Tribunal, não ficou em qualquer estado de dúvida. E, como é sabido, a lei não exige unanimidade nas decisões colegiais; apenas maioria.
Ademais, convém referir que a redacção do artigo 372º, n.º2, do CPP permite que o juiz vencido declare com precisão os motivos do seu voto também quanto à matéria de facto, já que a lei deixou de restringir, desde 2007, o voto de vencido a matéria de Direito.
Acresce que, já quanto à matéria de facto propriamente dita, pese embora o arguido tenha negado a prática do crime de abuso sexual de crianças e de, efectivamente, ninguém ter presenciado os factos ocorridos, a verdade é que o Tribunal não acreditou na versão daquele. E não acreditou, pois que, para além de tal resultar das próprias declarações da menor ofendida o modo como os factos ocorreram, as testemunhas arroladas na acusação pública (e até mencionadas pelo recorrente), pese embora a nada tenham assistido, relataram de modo congruente e condizente o modo como tiveram conhecimento do sucedido por intermédio daquela.
Deste modo, e em suma, é nosso entendimento que o Tribunal a quo fez uma correcta e adequada apreciação da prova produzida, conjugando todos os elementos constantes dos autos, designadamente, os elementos documentais relevantes (queixa, prova pericial), as declarações prestadas em audiência e o modo como o foram, tudo devidamente cotejado com as regras da experiência comum, que facilmente permitem concluir que o arguido cometeu os factos que lhe vinham imputados.
Refere o recorrente que não ocorreu um verdadeiro exame crítico das provas, porquanto a análise da prova teve sempre por base as declarações da ofendida; o que se encaixou nas declarações por si prestadas mereceu credibilidade, o que não se encaixou, não mereceu.
Ora, se é inegável que foi dada credibilidade à versão dos factos trazida a juízo pela menor, a verdade é que tal resultou do facto de esta ter sempre prestado, quer nesta sede, quer em sede de declarações para memória futura, um depoimento escorreito, coincidente (apenas com ligeiras diferenças de pormenor – perfeitamente normais, com o decurso do tempo – mas que, no essencial, se mantêm) e, por isso, as suas declarações foram merecedoras de credibilidade – como, aliás, resulta da douta decisão ora colocada em crise.
A circunstância de a menor não se recordar de determinados pormenores (que não contendem com a prática do crime), não retira tal credibilidade, na nossa modesta opinião.
Ou seja, a decisão recorrida elucida sobre as razões que moveram o Tribunal ao dar credibilidade a uma versão dos factos em detrimento da outra. E fá-lo de forma congruente e lógica, sublinhando-se que as declarações da ofendida foram corroboradas pelas declarações das duas testemunhas supra referidas (que, pese embora a nada tenham assistido, relataram de modo congruente como tomaram conhecimento do sucedido e o que lhes foi relatado) - o que afasta o espectro da arbitrariedade que poderia fundar uma impugnação e a que o recorrente se reporta nas suas alegações de recurso.
É oportuno lembrar, a este propósito, o seguinte aresto do Supremo Tribunal de Justiça: «10 - A garantia de legalidade da "livre convicção" a que alude o artigo 127.º do CPP, terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção, possibilitando a partir daí o necessário controlo da sua legalidade, como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efectuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meio de prova.
Esta forma de interpretar e aplicar o princípio da livre convicção, porque arredando a possibilidade de arbítrio, permite um mínimo de controlo - porventura o possível - sobre o processo de formação da convicção do tribunal, pelo que não fere o texto constitucional, mormente o princípio de presunção de inocência com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
O princípio da livre apreciação - que contém sempre uma certa margem de intervenção pessoal do juiz - essa garantia de legalidade terá de bastar-se com a necessária explicitação objectiva e motivada do processo de formação da convicção, de forma a ficar claro não só o acervo probatório em que assentou essa convicção (possibilitando a partir daí o necessário controle da sua legalidade), como também o processo lógico que a partir dele o tribunal E quando se trata de usar as regras da experiência e da vida, obviamente que tal uso se tem de haver como pressuposto de todo e qualquer julgamento de um homem por outro ou outros, pelo que seria, no mínimo, excessivo, exigir a torto e a direito, menção expressa feita de tal uso, a explicar que o tribunal tenha dado por provados factos a que porventura ninguém tenha assistido (AcSTJ de 11/11/2004, proc. n.º 3182/04-5).»
Assim, e sendo notório e evidente que a prova produzida em audiência de discussão e julgada foi bem apreciada e conjugada à luz das regras da experiência comum, devidamente cotejada com os relatos ali produzidos, entendemos que nenhum reparo se nos merece a factualidade considerada demonstrada no douto acórdão recorrido.
Não há, na verdade, pelo menos no nosso modesto entendimento, qualquer dúvida relativamente ao perpetrar, ou não, dos factos dados por provados.
Como também não houve para o Tribunal a quo - razão pela qual vieram a ser dados os factos como provados supra referidos.
Continua o recorrente, alegando que deveria, pelo menos, ter-se aplicado o supra referido princípio da presunção de inocência, tal como mencionado no voto de vencido.
Ora, a verdade é que o Tribunal, consoante se referiu supra, não ficou em qualquer estado de dúvida.
Com efeito, o mencionado princípio in dubio pro reo pressupõe uma dúvida, dúvida essa insanável e que se não consegue, de todo, transpor. Ou seja, não é “qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido”, mas apenas a chamada dúvida razoável. Dito de outro modo, “a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal”.
O facto é que não subsistiu qualquer dúvida ao Tribunal a quo, pois que este percebeu perfeitamente o que sucedeu in casu, e o modo como sucedeu. E explicou conveniente e proficuamente o modo como formou a sua convicção.
Continuando, e no que à prova pericial respeita (já que o recorrente entende que o Tribunal se baseou na perícia psicológica e que esta apenas refere que a ofendida não possui uma personalidade imaginativa que a levasse a incriminar o arguido), se é verdade que a sra. Perita não ouviu a mãe da menor, o facto é que ouviu o legal representante que a acompanhou; e, como a sra. Perita bem explicitou, em sede de audiência de discussão e julgamento, o que avalia é, e sempre, o que os “entrevistados visados” lhe contam; as demais pessoas servem para contextualizar a sua vivência.
À sra. Perita incumbia, como é sabido, avaliar a menor nos moldes em que lhe foi solicitado – e já não fazer um qualquer juízo sobre as versões apresentadas.
Quanto a esta questão, mantemos aqui o que já dissemos no recurso interlocutório interposto pelo recorrente.
Já no que concerne às declarações da testemunha DD…, para além de tudo quanto ficou dito na douta decisão recorrida, a verdade é que a mesma demonstrou, como foi notório para todos quantos se encontravam na sala de audiências, uma atitude pouco compatível para alguém que nada tem contra a menor – tanto mais que a apelidou de maquiavélica.
Depois, a própria testemunha confirma que a ofendida lhe disse que precisava de contar algo que a estava a incomodar (embora dizendo que era o pai que a não deixava contar).
Pelo que, e em suma, bem andou o Tribunal ao condenar o arguido pela prática do crime de abuso sexual de crianças pois que a prova produzida, devidamente ponderada e analisada criticamente, a outra conclusão não poderia levar.
III – Da contradição insanável da decisão
Alega o recorrente que o Tribunal a quo entrou em manifesta contradição, visível na leitura conjugada dos pontos 8 e 17 da matéria de facto dada como provada.
Vejamos ambos os pontos dados como demonstrados:
“8 – Desde o nascimento da menor HH… e até 30 de Abril de 2019, o arguido, a ofendida BB…, a mãe da ofendida e a menor HH… viveram na mesma habitação sita na Rua .., …., 2º esquerdo, Espinho. (…)
17 – Perante isso, no dia 28 de Abril de 2019, cerca das 22h00m, o pai da ofendida BB… deslocou-se à habitação onde a mesma residia com a mãe sita em Espinho e, desde essa data, a ofendida BB… passou a viver com o pai na habitação deste sita em …, Vila Nova de Gaia”.
Todavia, com todo o devido respeito por opinião divergente, entendemos que nenhuma contradição existe; com efeito, a data de 30 de Abril de 2019 corresponde à altura em que foi efectuado o acordo de promoção e protecção a favor da menor ofendida – sendo que o dia 28 de Abril reporta-se à data em que, efectivamente, saiu de casa da mãe e do arguido.
E tal resulta clara e expressamente da simples leitura da decisão recorrida, não sendo sequer necessário qualquer esforço de maior para tal concluir.
Depois, ainda que ocorresse tal contradição (que, de todo, se não verifica), nunca a mesma seria insanável e muito menos ditaria a nulidade da sentença, pois que seria facilmente corrigida.
Em suma, e sem necessidade de mais considerandos, também por aqui entendemos que nenhuma razão assiste ao recorrente, pelo que deve ser indeferido o recurso apresentado.
Da medida da pena
Continua o recorrente, alegando que, caso assim não se entenda, sempre se deverá considerar que as concretas penas fixadas são infundadas, designadamente no que às penas acessórias concerne, mais concretamente no que à sua filha HH… respeita. Também por aqui se discorda da argumentação expendida.
Nos termos do artº69º-B, n.º2, do Código Penal, quem for punido por crime previsto nos artigos 163º a 176º-A do mesmo diploma, quando a vítima for menor, é condenado na proibição de exercer funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva um contacto regular com menores – por período a fixar entre 5 e 20 anos.
E, nos termos dos nºs 2, 3 e 4, do artigo 69º-C, do mesmo Código, é condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, a tutela, a curatutela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, assim como na inibição do exercício das responsabilidades parentais, por períodos a fixar entre 5 a 20 anos, por quem for condenado por crime previsto nos artigos 163º a 176º-A, do mesmo diploma legal.
As penas acessórias de proibição/inibição aqui previstas devem, dentro dos parâmetros estabelecidos, ser proporcionais à pena principal.
Nenhuma pena deve envolver, em princípio, e como efeito automático ou necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos – cfr. art. 65º, n.º1, do Código Penal, assim como o art. 30º, n.º4, da CRP, citado pelo recorrente.
Contudo, não pode confundir-se efeitos das penas com penas acessórias. Como ensina o ilustre mestre, Prof. Figueiredo Dias, “ as penas acessórias distinguem-se, ao menos de um ponto de vista teorético – dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências, necessárias ou dependentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; efeitos que, deste modo, podendo embora possuir carácter penal, não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas”.
As penas acessórias dependem, na realidade, da aplicação, ao arguido, de uma pena principal; mas distinguem-se claramente destas, quer quanto à sua espécie, quer quanto às finalidades que visam atingir.
De facto, as penas acessórias, apesar de dependerem da aplicação de uma pena principal, são independentes desta, com ela se não confundindo. Melhor dizendo, e seguindo de perto o douto aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/11/1996, In CJ 1996, Tomo V, pág. 48, as penas acessórias, pese embora sejam dependentes da aplicação de uma pena principal (uma vez que esta é condição necessária de aplicabilidade daquelas), não decorrem directamente da cominação da pena principal, não constituindo, por isso, um seu efeito automático.
Elas não constituem um efeito necessário de uma qualquer pena, mas antes uma outra pena, aplicada ao arguido, tendo em conta determinado tipo legal de crime praticado, assim como a necessidade de atingir as finalidades de prevenção especial e geral que, no caso se impõem. Trata-se, assim, de uma “censura adicional pelo facto cometido pelo agente, censura essa que visa prevenir a perigosidade deste” – cfr. o douto Acórdão referido acima, pág. 49.
No caso em apreço, e tendo em consideração que o tipo legal de crime em causa pretende tutelar a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente acautelando que ninguém seja vilipendiado na sua vida íntima e, sobretudo, crianças e adolescentes, designadamente, dependentes dos agentes do crime de alguma forma, torna-se por demais evidente que imperioso se torna prevenir que circunstâncias deste género se não repitam, além do mais, por parte do agente.
Ora, pese embora o arguido não tenha antecedentes criminais, a verdade é que a ofendida é sua enteada e estava à sua guarda e cuidados; depois, repete-se, do que se trata aqui é de uma pena (acessória) e não de efeitos (automáticos) das penas; defender que não pode ter efeito automático é o mesmo que defender que alguém, relativamente a quem se fez prova de ter cometido um crime, não deve sofrer, por causa disso, e automaticamente, uma pena.
Ou seja, as penas acessórias em causa não podem deixar de ser aplicadas a quem for condenado por tais crimes, nenhuma inconstitucionalidade aqui ocorrendo por não se tratarem de efeitos das penas, como pretende fazer valer o recorrente.
Acresce que não podemos olvidar que as penas foram fixadas no seu mínimo legal, pelo que não poderão, de todo, ser reduzidas.
Nesta conformidade, e em suma, por tudo quanto fica exposto, deve o recurso interposto pelo arguido ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o douto Acórdão proferido.

b. quanto ao recurso da deliberação:
Recorre o arguido do douto despacho proferido nos autos que considerou válido o despacho da Magistrada do Ministério Público que, em sede de inquérito, determinou a realização de perícia à personalidade da menor BB…, por parte do Ministério Público e que indeferiu a nulidade por si levantada em sede de contestação, no sentido de que tal despacho, não tendo existido consentimento do legal representante da menor para o efeito, caberia ao Mmo. JIC.
E entende que o despacho em causa violou o disposto nos artigos 154º, n.º3 e 126º, n.º3, ambos do C.P.P., assim como o artigo 32º, nºs 1 e 8, da Constituição da República Portuguesa.
Do despacho que determinou a realização da perícia psicológica à menor BB…
Sobre este assunto já nos pronunciámos antes.
É de facto inegável que o despacho que determinou a realização de tal perícia não foi determinado por Juiz de Instrução Criminal.
Todavia, e contrariamente ao entendimento veiculado pelo arguido, entendemos que não o foi, porque não tinha que o ser, pois que houve consentimento, ainda que tácito, do seu legal representante.
Na verdade, nos termos do artigo 154º, n.º3, do CPP, sempre que se trate de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho que ordena tal perícia é da competência do Juiz de Instrução.
Contudo, o facto é que, aquando da prolação do despacho do Ministério Público datado de 12/09/2019, este foi notificado ao pai daquela, seu representante legal (juntamente com a mãe), que a levou e acompanhou aquando da realização da avaliação psicológica forense, em todas as consultas/avaliações agendadas.
Se CC… não pretendesse que a sua filha fosse submetida a tal perícia, tê-lo-ia dito e não teria feito comparecer a menor; e não teria, também ele, sido “entrevistado” a esse propósito. E, aí sim, se ainda assim se entendesse que seria necessária tal perícia, deveria o M.P. fazer intervir o sr. Juiz de Instrução Criminal.
Estamos, assim, ante o comportamento do legal representante da BB…, que a fez comparecer em todas as sessões agendadas, que a acompanhou e que foi inclusive entrevistado, perante um consentimento (tácito).
O pai da BB…, enquanto seu legal representante, a par de sua mãe, prestou o devido consentimento para a sua realização, nenhuma invalidade tendo ocorrido.
Na verdade, na nossa modesta opinião, o “incidente” a que alude o n.º3, do artigo 154º, do CPP só será de desencadear perante uma efectiva recusa de consentimento; inexistindo tal recusa, será competente para o determinar a autoridade judiciária competente consoante a fase processual em que os autos se encontrem.
Ora, estando os autos, à data, na fase de inquérito, a perícia em causa foi determinada por quem tinha legitimidade para o efeito (o Ministério Público, enquanto titular do inquérito), não sendo, por isso, inválida e/ou proibida.
Em suma, nenhuma nulidade ou mesmo irregularidade ocorreu.
Acresce que, na sequência do fica exposto, também nenhuma violação dos citados artigos 154º, n.º3 e 126º, n.º3, ambos do C.P.P., ou do artigo 32º, nºs 1 e 8, da Constituição da República Portuguesa ocorreu.
Pelo que a referida prova pericial foi considerada, e bem, pelo Tribunal a quo como prova válida e, por isso, a ser apreciada pelo Tribunal nessa qualidade.
Nesta conformidade, e em suma, deve ser julgado improcedente o recurso interposto, nenhuma alteração ou revogação da douta decisão proferida devendo ser efectuada, pelo que, negando-se provimento ao recurso do arguido e confirmando-se, nesta parte, a sapiente decisão posta em crise, farão V. Exas Justiça.»

5. Os recursos foram liminarmente admitidos no tribunal a quo, subindo nos próprios autos nos termos legais.
6. Nesta instância, o Ministério Público[1] emitiu parecer, pugnando igualmente pela improcedência dos recursos nos termos defendidos na resposta junta na primeira instância, acrescentando ainda o seguinte:
«(…)
3.1. Quanto ao recurso interlocutório
Neste recurso, o recorrente questiona a validade e possibilidade de valoração pelo tribunal do julgamento da perícia sobre a personalidade da menor ofendida realizada na fase do inquérito, por decisão da procuradora da República titular, sem qualquer intervenção do juiz de instrução, a quem, em seu entender, perante a não obtenção prévia de consentimento da menor, que não tinha ainda capacidade de exercício bastante para nela consentir validamente, atenta a sua idade, nem dos respetivos representantes legais, cabia essa competência.
Vício que, na sua perspetiva, seria usurpador e violador da reserva de juiz consagrada no artigo 154º, n.º 3, do CPP, com as inerentes consequências previstas no artigo 126º, n.º 3, do mesmo código, sob pena de violação das suas garantias de defesa e da reserva da vida privada da própria ofendida, consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Sem razão, no entanto.
A doutrina tem, na verdade, enquadrado a questão suscitada no âmbito das proibições de prova, nas suas diferentes dimensões, é dizer dos métodos de obtenção de prova à valoração dos meios de prova obtidos, como afirma Maria do Carmo da Silva Dias, no § 37º dos comentários ao artigo 154º do CPP, inseridos no “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, 3ª Edição, Almedina, Coimbra 2021, que se transcreve: «A realização de perícia sobre características físicas ou psíquicas da pessoa sem o seu consentimento e sem que a perícia tenha sido ordenada por juiz constitui proibição de prova, nos termos artigo 126º/2/a do CPP», sugerindo, a propósito, a consulta do comentário ao artigo 126º do mesmo Código e na mesma obra, de Pedro Soares de Albergaria, o qual, na verdade, desenvolve, nesse e nos preceitos anteriores e seguintes relacionados, instrutivas e esclarecedoras considerações sobre a matéria das proibições de prova, com abundantes e pertinentes citações doutrinais e jurisprudenciais.
De tudo, no entanto e para o que aqui releva, podem extrair-se as seguintes conclusões: i) as proibições distribuem-se por diferentes graus de gravidade e consequências, podendo ser absolutas ou relativas e incidir sobre os próprios métodos de obtenção da prova ou apenas sobre os meios de prova obtidos e a respetiva valoração; ii) quando a validade e possibilidades de valoração de um determinado meio/método de obtenção de prova ou valoração da prova dele resultante está dependente do consentimento dos visados, o mesmo não está sujeito a forma especial, podendo ser expresso ou tácito e prévio ou contemporâneo da sujeição ao método de obtenção da prova em discussão, conforme as regras dos artigos 217º e ss. do Código Civil (CC); iii) no caso dos incapazes, o consentimento destes é substituído pelo dos seus representantes legais.
No caso dos autos, em que a pessoa sujeita à questionada perícia era menor de 12 anos, não podendo por isso prestar consentimento válido, sem embargo do seu direito à informação e pronúncia, mesmo que se equipare a dita perícia a um ato médico-terapêutico, o consentimento podia ser dado pelos seus representantes legais, ou seja, por qualquer dos seus progenitores, independentemente daquele a quem a respetiva guarda estivesse confiada por decisão judicial reguladora das responsabilidades parentais, conforme decorre do artigo 1881º do CC e do lugar paralelo do exercício e da desistência do direito de queixa, como tem sido jurisprudencialmente interpretado, ou seja, de que qualquer dos progenitores tem legitimidade para o exercer sozinho ou mesmo contra a vontade do outro.
Assim decidiram o acórdão do TRP, de 16.10.2013, proferido no processo n.º 555/12.7GAMAI.P1, relatado pelo Desembargador Cravo Roxo, disponível no sítio http://dgsi.pt/jtrp.nsf/, e o acórdão do TRC, de 17.9.2014, proferido no processo n.º 92/13.2TAVZL.C1, disponível no sítio http://dgsi.pt/jtrc.nsf/.
O caso sob apreciação, inscreve-se, sem dúvida no leque daqueles em que, não sendo proibido o método de obtenção de prova em si mesmo, a prova dele resultante, é dizer, o resultado da perícia espelhado no respetivo relatório, seria insuscetível de utilização e valoração nas fases judiciais do processo se o consentimento para a respetiva utilização não tivesse sido validamente prestado, porque, nesse eventualidade, lhe falecia um pressuposto necessário a essa possibilidade, qual seja o da sua determinação pelo juiz.
Sucede, porém, que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, e na linha da posição assumida na resposta do MP na 1ª instância e das anteriores considerações, o consentimento foi tempestivamente prestado e por quem tinha para tanto legitimidade, não sendo, por conseguinte, necessária qualquer prévia apreciação e decisão do juiz determinante da sua realização.
Com efeito, a presença do pai e da menor ofendida no dia, hora e local designados para realização da perícia e a respetiva submissão às entrevistas da perita só podem ser interpretadas como consentimento tácito prévio e contemporâneo da sua realização, pois, como afirma Pedro Soares de Albergaria na ob. e loc. citados, o consentimento exigido pelo artigo 154º, nº 3, significa acordo ou anuência à sua realização e não exige qualquer prévia declaração formal nesse sentido.
Por outro lado, esse acordo ou anuência de sujeição à perícia, portanto sem oposição, manifestou-se tacitamente através da comparência no local e horários comunicados e disponibilidade para participarem nas correspondentes entrevistas, sendo que a legitimidade e capacidade de representação do pai também não sofre contestação, em face do que acima se observou´, mais ainda quando era evidente a oposição da mãe da menor ao início e desenvolvimento do processo e das diligências de que pudesse resultar algo em prejuízo da posição processual do seu então marido e suspeito da pratica dos factos sob investigação. Bem andou, pois, o tribunal recorrido ao indeferir a declaração de nulidade da perícia e a não utilização/valoração do respetivo resultado pretendidas pelo recorrente, por não padecer a mesma de qualquer vicio invalidante, uma vez que a intervenção do juiz não era exigível e a sua realização foi, por isso, determinada pela autoridade judiciária competente, no caso a procuradora da República titular do inquérito.
3.2. Quanto ao recurso do acórdão condenatório
Neste recurso, o recorrente insiste na tese da invalidade da perícia e inadmissibilidade da sua utilização em julgamento, além de entender não poder a mesma ir além do que constitui o seu objeto e finalidades tal como legalmente definidas.
Contesta ainda o facto de não ter sido notificado da sua realização, outrossim o excesso de relevância probatória que lhe foi conferida pelo tribunal relativamente aos factos sob julgamento.
Por outro lado, impugna a matéria de facto, que considera mal julgada, para tanto se estribando essencialmente no voto de vencido do juiz que presidiu ao coletivo e no que considera terem sido declarações contraditórias da ofendida, ainda na linha daquele voto, nomeadamente quanto ao teor e autoria dos documentos juntos a fls. 139 e 147, outrossim nas declarações do arguido e no depoimento da explicadora da ofendida, DD…, que considera terem indevidamente desconsideradas, além de lhe assacar os vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, e o da contradição insanável na fundamentação, mormente entre os pontos 8 e 17 da matéria de facto provada, por causa das datas num e noutro consideradas como sendo aquela a partir da qual a ofendida passou a viver com o pai, deixando o lar maternal, ou seja, entre os dias 28.4 e 30.4 de 2019, com as consequências decorrentes da aplicação conjugada dos artigos 410º, n.º 2, 426º e 426º-A, 374º, n.º 2, e 379, n.º 1, al. a), todos do CPP.
Questiona, por fim, a aplicação das penas acessórias, que considera consequência automática da sua condenação e, por conseguinte, inconstitucional a sua previsão e aplicação, por violação do artigo 30º, n.º 4, da CRP.
De novo sem razão, crê-se.
Sobre a impugnação ampla da matéria de facto, como se sublinhou na resposta do MP na 1ª instância, mais do que tentar demonstrar o erro de julgamento com indicação das provas que impunham decisão diversa da matéria de facto relativamente àquela considerada assente pelo tribunal recorrido, pretende antes substituir a convicção dos juízes que formaram a maioria decisória, pela sua, apenas suportada na suposta contradição das declarações da ofendida e à luz da convicção do juiz presidente e vencido conforme curta declaração em que assume ter ficado com dúvidas em face dessas declarações e da sua conjugação com os aludidos documentos.
Ou seja, desta assunção de dúvida por parte de um dos juízes do tribunal coletivo, que, por força do princípio do in dúbio pro reo o obrigariam a julgar a matéria de facto em sentido favorável ao arguido, conforme decorre do artigo 127º do CPP, pretende o recorrente extrair a ilação de que também os outros dois juízes que formaram o tribunal coletivo teriam ficar nessa dúvida intransponível e concluído como aquele, assim transformando em singular, como que num “passe de mágica”, uma decisão que, por força da lei, é colegial a na qual prevalece a convicção da maioria dos juízes do colégio, cada um deles mantendo a necessária e obrigatória liberdade de apreciação da prova e de formação da respetiva convicção, embora vinculada aos princípios da objetividade, de transparência e fundamentação do iter racional que os conduziu a essa convicção, de modo a permitir o seu escrutínio externo e evitar o risco de ela se ter fundado em juízos ilógicos e contrários ao normal acontecer, conforme as regras da experiência, exercício que, indubitavelmente, se mostra patente na fundamentação do acórdão sob recurso, o qual não merece qualquer censura sob esse prisma.
Até porque, nem o juiz vencido, nem o recorrente, afinal, demonstram porque é que as declarações da ofendida são contraditórias e onde é que a apreciação delas pela maioria dos juízes que fez vencimento está inquinada por juízos ilógicos e contrários às regras da experiência.
Acresce que também não é verdade que os juízes da maioria que fez vencimento tenham como que substituído a sua função pela da perita. Bem ao contrário, limitaram-se a interpretar o resultado da perícia e dos esclarecimentos complementares prestados pela perita em julgamento como elemento acrescido da credibilidade e fiabilidade que atribuíram às declarações da ofendida, em detrimento das prestadas pelo arguido e pela dita testemunha DD…, tudo por razões que expuseram e desenvolveram de modo suficientemente claro e percetível para todos quanto quiserem e tiverem que ler a fundamentação do acórdão, concorde-se ou não com essa apreciação, sendo certo que, sob pena de completa subversão do sistema jurídico-constitucional, é aos juízes e não aos demais sujeitos processuais, meros intervenientes ou mesmo estranhos ao processo que compete essa função de julgar e dizer o direito do caso concreto, a que, quando admissível, como é o caso, pode reagir-se mediante recurso para instâncias superiores, para remediar erros clamorosos do julgamento e não para realizar novo julgamento da matéria de facto.
Da mesma forma que, como se assinalou na resposta do MP na 1ª instância, se não deteta qualquer erro notório, contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ou insuficiência da matéria de facto provada para a decisão que resulte do próprio texto da sentença ou dele conjugado com as regras da experiência comum.
E mesmo a assinalada contradição invocada pelo recorrente entre as datas constantes dos pontos 8 e 17 da matéria de facto provada, para além de não consubstanciar uma verdadeira e muito menos insanável contradição, com as consequências por aquele pretendidas, cuja explicação resulta clara, como se evidencia na resposta do MP na 1ª instância, seria quando muito e ao que temos por certo, um erro ou lapso de escrita que não importa qualquer modificação essencial do acórdão e, portanto, suscetível de correção oficiosa e a todo o tempo, nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP do CPP
Por fim, quanto à invocada inconstitucionalidade das penas acessórias previstas nos artigos 69º-B e 69º-C do CP, por suposta automaticidade da sua aplicação, como também já rebatido na resposta do MP na 1ª instância, importa apenas reforçar a ideia de que tais penas não são meros efeitos necessários e automáticos da pena principal, mas antes, isso mesmo, penas acessórias, com autonomia relativamente àquela, embora a pressuponham, e relativamente às quais a lei reservou ao juiz uma margem de conformação e adequação ao caso concreto, nomeadamente na definição da respetiva dosimetria em função da culpa do agente do crime cometido e pelo qual seja condenado, espaço de conformação e adequação que o Tribunal Constitucional (TC) e os tribunais comuns têm considerado suficiente para afastar o seu caráter automático e, bem assim, para definir a respetiva natureza como verdadeiras penas e não como mero efeito da pena principal, ainda que versando essencialmente as penas previstas nos artigos 69º e 152º, nºs. 4 a 6, do CP, mas com plena aplicação às demais penas acessórias, nomeadamente as dos seus artigos 69º-B e 69º-C, aqui em causa, como, de resto, pode ver-se no e-book organizado e publicado pelo Centro de Estudos Judiciários sob o título “Regime das penas acessórias e sua aplicação nas diferentes formas do processo penal.
Enquadramento jurídico, prática e gestão processual”, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2020, consultado em 3.12.2021 e disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_PenasAcessoriasMP.pdf .

7. O recorrente apresentou resposta ao parecer, reiterando, no essencial, a motivação do recurso “quanto à questão essencial” (sic).
8. Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto dos recursos, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Das questões a decidir:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso - que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o thema decidendum:

a) Nulidade da perícia, tendo a deliberação proferida pelo tribunal coletivo no decurso da audiência violado o disposto nos artigos 154.º n.º 3 e 126.º n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, por falta de consentimento da realização da perícia pelos representantes legais da menor, bem como o artigo 32º, números 1 e 8 da Constituição da República Portuguesa, por diminuição dos direitos processuais do arguido;
b) Nulidade da sentença:
a. por falta de exame crítico da prova (quanto ao facto provado 17);
b. por contradição insanável da fundamentação (factos provados 8 e 17) ;
c) Violação da presunção de inocência do arguido;
d) Impugnação da decisão da matéria de facto (factos provados 11 a 16, 17 (na parte onde se refere «perante isso»), 19 a 21 e 58 a 62;
e) Do erro em matéria de direito:
a. A aplicação automática das penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B e 69.ºC e aplicadas ao recorrente é inconstitucional por violação do disposto no artigo 30.º n.º 4 da CRP, nomeadamente no entendimento de que a pena acessória prevista no n.º 3 do art.º 69.º-C do CP afeta a relação de parentalidade do Recorrente com a sua filha HH… que nada tem a ver com os factos em discussão nos autos;

Para decidir tais questões controvertidas, importará, primeiramente, concretizar os factos jurídico-processuais relevantes, designadamente, os termos em que foi realizada a perícia à personalidade da menor ofendida em sede de inquérito e a fundamentação das decisões recorridas -.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A – Termos processuais em que foi realizada a perícia médico-legal à ofendida em sede de inquérito:
1. Por despacho judicial datado de 9 de Maio de 2019, foi validado pela juíza de instrução criminal a decisão do Ministério Público de sujeição do inquérito a segredo de justiça.
2. O Ministério Público requereu o seguinte em sede de inquérito (8 de Julho de 2019):
«Encontra-se indiciada nos presentes autos a prática por AA… de um crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo artigo 171º n.º1 do Código Penal, relativamente à menor BB…, nascida em 19-07-2007.
Nos termos do disposto no artigo 271º n.º2 do Código de Processo Penal, é obrigatória, na fazer de inquérito, a tomada de declarações para memória futura aos menores vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Conforme resulta do citado normativo, o menor que não tenha ainda 18 anos à data da diligência deve ser ouvido em declarações para memória futura. A lei processual só refere os crimes contra menores (isto é, a pessoa com idade entre os 14 e os 18 anos à data do crime), contudo, a extensão deste regime justifica-se, até por maioria de razão, aos crimes contra crianças (pessoa até aos 14 anos).
Dado que o depoimento da menor BB…, vítima e principal testemunha, contam, actualmente, com 12 anos de idade, impõe-se, pois, atenuar a sua exposição em termos processuais e judiciais e acautelar, desde já, a possibilidade de o respectivo depoimento ser valorado em sede de julgamento.
Com efeito, apresente os autos ao Mm Juiz de Instrução, a que se requer se digne, no mais breve prazo possível, designar data para tomada de declarações para memória futura à menor BB…, nos termos do disposto no artigo 271º n.º2 do Código de Processo Penal.
Promovo, ainda, a nomeação de um técnico habilitado para o acompanhamento das menores na referida inquirição, a indicar pela DGRS, nos termos do artigo 271.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.»

3. Esse requerimento mereceu o despacho judicial de deferimento da tomada de declarações para memória futura, datado de 10 de Julho de 2019, tendo sido designado o dia 9 de Setembro de 2019 para a sua realização, com acompanhamento de técnico da DGRS.
4. Por despacho do Ministério Público datado de 12 de Setembro de 2019, proferido em sede de inquérito, foi solicitada a realização de uma perícia à personalidade da ofendida menor de idade:
«Solicite ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. – Delegação do Norte a realização de perícia sobre a personalidade de BB…, nascida a ..-..-2007, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 1, e 154, ambos do Código de Processo Penal.
A referida perícia será subordinada aos seguintes quesitos (para além de outros eventualmente a indicar pelos Senhores Peritos, que se revelem pertinentes):
- Determinação das características psicológicas e comportamentais da vítima, designadamente em termos de capacidades sociais;
- Determinação do perfil de personalidade da vítima;
- Aferição de traumas psicológicos que afetem a personalidade da vítima; - Avaliação da origem e causa de tais traumas, designadamente na sua eventual Relação causal com os factos participados;
- Avaliação da maturidade da personalidade da vítima, com especial enfoque na sexualidade, designadamente a capacidade de autodeterminação sexual;
- Avaliação do relacionamento e grau de envolvimento emocional com as figuras familiares e outras, designadamente com o arguido;
- Aferição do grau de desenvolvimento e credibilidade do seu discurso, designadamente considerando as diferentes versões dos factos apresentadas.»

5. Por ofício datado de 7 de Outubro de 2019, CC…, na qualidade de legal representante da menor BB…, foi notificado para fazer comparecer esta última no dia 14 de Novembro de 2019 no Gabinete Médico-Legal do Hospital …, para aí ser submetida a exame de psicologia forense.
6. A examinada compareceu nas datas e horas marcadas (14/11/2019 e 12/12/2019) e veio acompanhada pelo pai. A examinada bem como o seu pai foram então informados sobre a identidade da entidade requisitante da perícia, qual o objeto e os quesitos formulados, bem como a metodologia a ser utilizada. Evidenciaram entender as explicações dadas, nomeadamente a obrigatoriedade de fazer constar no relatório pericial os resultados das observações e da avaliação instrumental. Foram também informados dos limites da confidencialidade, tendo a menor e o seu pai dado o seu consentimento informado para a realização do mesmo (conforme se encontra documentado no relatório de medicina médico-legal).

B – Fundamentação das decisões recorridas:
Deliberação do tribunal coletivo datada de 25 de Maio de 2021:
«Foram invocadas determinadas nulidades na contestação apresentada no que concerne à falta de notificação do despacho a que alude o artigo 154.º, n.º 4 do CPP; que inexiste o prévio consentimento do legal representante da menor BB… de modo a autorizar a sua submissão à perícia sobre a personalidade, bem como pelo facto da Sr.ª Perita não ter prestado o compromisso a que alude o artigo 156.º, n.º 1 do CPP.
Comprido o contraditório, o Ministério Público tomou posição no requerimento datado de 24/05/2021.
Cumpre apreciar e decidir:
(…)
Da nulidade respeitante à falta de consentimento a que alude o artigo 154.º, n.º 3 do CPP:
Desde logo, é de realçar que, não consta nos autos o não consentimento para a efectivação da perícia.
Aliás, sendo a visada/ofendida menor, verificamos que o legal representante da mesma acompanhou-a à efectivação do exame conforme se constata, desde logo, nomeadamente da leitura do relatório pericial a fls. 251 verso.
Assim, atento o constante nos autos, verificamos que existe um consentimento do legal representante, não se tratando, pois, da necessidade de intervenção do JIC para o efeito.
Indefere-se, assim, a arguida nulidade, pelo que nada impede que se possa valorar o relatório de perícia médico-legal de psicologia junto aos autos, não se constatando a ocorrência de qualquer prova inválida ou proibida, nos termos dos artigos 32.º, n.º 8 da CRP e 126.º, n.º 3, do CPP (…)»

Acórdão recorrido:
«(…)
1.1. Factos provados:
Da acusação
2.1 - FACTOS PROVADOS:
1.A ofendida BB… nasceu em ..-..-2007 e é filha de GG… e de CC….
2.Em 17 de Novembro de 2011 foi proferida sentença de regulação das responsabilidades parentais da ofendida BB…, ficando a mesma confiada à mãe e cabendo o exercício das responsabilidades parentais a ambos os progenitores.
3.Em data não apurada, mas pelo menos no ano de 2013, o arguido AA… iniciou uma relação de namoro com a mãe da ofendida, GG….
4.Algum tempo depois, passaram a viver como marido e mulher, em comunhão de leito, mesa e habitação, tendo fixado residência habitual numa habitação sita na Rua .., …., 2.º esquerdo, Espinho.
5.Desde esse momento, a ofendida BB… passou a viver igualmente na mesma habitação com o arguido.
6.Em ..-..-2014 nasceu HH…, filha do arguido e de GG….
7.Em 30 de Junho de 2018, o arguido e a mãe da ofendida casaram.
8.Desde o nascimento da menor HH… e até ao dia 30 de Abril de 2019, o arguido, a ofendida BB…, a mãe da ofendida e a menor HH… viveram na mesma habitação sita na Rua .., …., 2.º esquerdo, Espinho.
9.Desde data não apurada, a ofendida BB… e a irmã partilharam o mesmo quarto e a mesma cama.
10.No dia 17 de Abril de 2019, à noite, depois do jantar, a ofendida BB… e a irmã HH… encontravam-se deitadas na cama do quarto, estando a ofendida vestida de pijama e cuecas a assistir a um programa de televisão, enquanto a irmã HH… estava a dormir.
11.Nesse momento, o arguido entrou no quarto das menores e, uma vez aí, entrou na cama, mantendo-se debaixo dos lençóis e, aí permaneceu deitado por período de tempo não apurado no meio das duas menores.
12.A dada altura, o arguido, aproveitando-se da confiança e proximidade tida com a ofendida BB… dado ser seu padrasto e viverem na mesma habitação há vários anos, bem como da sua superioridade física e da ausência da mãe da ofendida naquele quarto, introduziu uma das mãos por baixo das cuecas da mesma e com os dedos tocou na vagina da ofendida, apalpando-a e massajando-a, por diversas vezes, com movimentos de um lado ao outro da vagina.
13.Logo depois, a ofendida BB… levantou-se, tendo pouco tempo depois o arguido abandonado o quarto.
14.No dia seguinte, a hora não apurada, a ofendida BB… contou à mãe sobre a conduta do arguido e, nessa sequência a mãe falou com o arguido.
15.Algum tempo depois, o arguido e a mãe da ofendida BB… falaram separadamente com a mesma e disseram-lhe para não contar tais factos a outra pessoa, dado que o arguido poderia ter problemas.
16.Em data não apurada, mas situada em data próxima ao dia 28 de Abril de 2019, a ofendida relatou tais factos a EE…, a qual depois os relatou ao pai da ofendida BB….
17.Perante isso, no dia 28 de Abril de 2019, cerca das 22h00m, o pai da ofendida BB… deslocou-se à habitação onde a mesma residia com a mãe sita em Espinho e, desde essa data a ofendida BB… passou a viver com o pai na habitação deste sita em …, concelho de Vila Nova de Gaia.
18.Em 12 de Novembro de 2019 foi proferida sentença de alteração das responsabilidades parentais da ofendida BB…, ficando a mesma a residir com o pai e cabendo o exercício das responsabilidades parentais a ambos os progenitores.
19.O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
20.Sabia que a ofendida era filha da sua mulher, sendo seu padrasto, que tinha onze anos de idade e que, por isso era especialmente vulnerável e indefesa, com quem vivia na mesma habitação, que ainda se encontrava ainda em formação a sua vontade, capacidade e liberdade sexuais, que a acariciava, a apalpava e massajava em zona íntima e com expressão sexual e, ainda assim, quis actuar do modo descrito e forçar a ofendida a sofrer aquele tipo de contactos, bem sabendo que perigava o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade e sexualidade.
21. Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
Da condição socioeconómica/contestação do arguido e antecedentes criminais do arguido:
22. AA… é natural da freguesia de …/VNG, pertencente a fratria de 7 irmãos, proveniente de agregado familiar de regular condição socioeconómica.
23. O seu percurso de socialização decorreu junto dos progenitores e irmãos, predominantemente em freguesias do concelho de Espinho.
24. A dinâmica familiar foi pautada por normatividade social, com respetivo investimento e consistência laboral e familiar.
25. A progenitora trabalhou temporariamente como operária, tendo na generalidade permanecido a prestar cuidados aos filhos e na gestão doméstica.
26. O progenitor trabalhou como serralheiro, onde detinha empresa própria de serralharia, em Espinho.
27. Desde a adolescência que o arguido manifestou interesse nesta área de atividade, colaborando desde os 16 anos de idade na empresa do pai, ainda enquanto aprendiz.
28. AA… estudou até a conclusão do 9º ano de escolaridade, sendo descrita regular adaptação e percurso escolares.
29. Prosseguiu e consolidou a sua experiência profissional no setor da serralharia, não obstante a existência de outras experiências profissionais, ainda que com menor duração e consolidação.
30. Veio a colaborar de forma efetiva na empresa do pai durante cerca de 22 anos, sendo que em 2012, aos 49 anos de idade criou a própria empresa, II… - Unipessoal, na …/Espinho, onde se constituiu como diretor e gerente da mesma, trabalhando na categoria de serralheiro civil de 1ª, no comércio a retalho neste setor – condição profissional que mantém.
31. AA… casou pela primeira vez aos 19 anos de idade, em 1982, casamento que manteve durante 28 anos, até 2010, e do qual tem um descendente, atualmente com 36 anos de idade, autonomizado e a residir na Suíça, onde trabalha como designer em empresa multinacional.
32. Após o divórcio, e desde há cerca de 9 anos, em 2012, aos 47 anos de idade, AA… voltou a estabelecer novo relacionamento afetivo com a mãe da ofendida, com quem veio a manter inicial período de coabitação, na morada que consta nos autos, habitação própria, adquirida pelo casal, mediante empréstimo bancário.
33. O agregado passou a ser constituído pelo arguido, companheira e respetiva filha/ofendida, de então 5 anos de idade, fruto de anterior relacionamento.
34. Resultado da sentença de regulação das responsabilidades parentais da menor, em 17 de Novembro de 2011, a mesma ficou aos cuidados da progenitora, com exercício partilhado das responsabilidades parentais.
35. Pernoitava com o agregado reconstituído do pai, ao fim de semana, em …/VNG, com periodicidade quinzenal.
36. Fruto do atual relacionamento conjugal, nasceu uma descendente, em .. de Outubro de 2014, irmã uterina da ofendida. Em 30 de Junho de 2018, o casal veio a formalizar matrimónio.
37. Para fazer face às despesas gerais e familiares, o agregado contava com cerca de €1500 mensais.
38. AA… é conhecido no meio social de inserção, em Espinho, com tradução de imagem social neutra/positiva.
39. É conhecida a sua participação cívica em coletividade desportiva local, no JJ…, onde o mesmo se insere desde a adolescência, e para onde foi direcionando investimento pessoal e social.
40. Jogou futebol desde os 14 anos de idade, e mais tarde colaborou com a direção do clube, no âmbito da formação das camadas jovens, durante 15 anos, situação que cessou por iniciativa própria, e relacionada com a mudança de direção, em finais de 2014.
41. Joga futebol no mesmo clube, atualmente inserido nos veteranos, situação suspensa no âmbito da presente pandemia COVID-19.
42. Laboralmente inserido, como diretor e gerente da empresa II… - Unipessoal, AA… aufere o vencimento ilíquido de €750, acrescido de subsídio de alimentação, perfazendo o total de €692.90 líquidos mensais. 43. O cônjuge trabalha como operadora de caixa em supermercado local.
44. Como medida cautelar, AA… ficou inibido de permanecer ou coabitar com a filha menor, situação que veio promover a separação do casal em termos habitacionais, pese embora seja mantida a união/apoio familiar.
45. O casal vendeu a habitação com correspondência à morada dos autos, sendo que o cônjuge e a filha do arguido passaram a residir em habitação arrendada, em Espinho.
46. AA… passou a integrar a residência da irmã mais nova, em Rua .., n.º …, 2º Esq., ….-… Espinho, em apartamento tipologia 2, situação que mantém, e onde contribui com as despesas habitacionais.
47. Não obstante a alteração habitacional, o arguido mantém contacto e/ou convivialidade diária com a filha menor e cônjuge.
48. Os contactos presenciais com a filha são acompanhados da presença de terceira pessoa de suporte, na generalidade do cônjuge ou sogra.
49. AA… denota postura crítica e refletida sobre as suas responsabilidades parentais, sendo descrito como figura de suporte logístico e afetivo ao respetivo núcleo familiar, cumprindo com as obrigações familiares e educativas.
50. Conhecido no meio social em que se insere, AA… é conotado como pessoa trabalhadora, responsável, com atitude sociável e de solidariedade social, sem indicadores de antissocialidade ou desviância na área da sexualidade.
51. A inserção socio desportiva no JJ… confere ao arguido reconhecimento social positivo, nas freguesias do concelho, tido como pessoa solidária, empenhada e responsável perante o compromisso assumido face às solicitações em apreço.
52. A participação e interesse desportivos na modalidade do futebol, mantém-se como área de gratificação e de manutenção de saúde e de condição física, desde a infância/adolescência.
53. Tendo em conta a natureza criminal subjacente ao presente processo, AA… tem consciência crítica face à sua ilicitude, à gravidade deste tipo de conduta e à existência de vítimas e danos.
54. AA… dispõe de referenciais sociofamiliares normativos, com valores morais e sociais promotores de comportamentos socialmente ajustados.
55. Em termos pessoais, o arguido apresenta trajetória pautada por investimento e conciliação familiar e profissional.
56. O arguido não tem antecedentes criminais.
Do pedido de indemnização civil
1. Em consequência da atuação do arguido, a ofendida ficou muito aflita e chocada.
2. Sentiu vergonha do que lhe tinha acontecido.
3. Teve pesadelos nas noites seguintes.
4. A ofendida tornou-se numa pessoa mais desconfiada;
5. Nunca o arguido lhe pediu desculpa, mostrou qualquer arrependimento pelo mal que lhe fez, o que a entristece ainda mais;
2.2. - FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da pronúnica ou da contestação, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, sendo a demais matéria alegada irrelevante, conclusiva ou de direito, designadamente:
1. A ofendida BB… disse ao arguido para parar com aquele comportamento, tendo o mesmo abandonado o quarto naquele momento.
2. Deixou de confiar nas pessoas mesmo nas mais próximas.
3. Sempre que se recorda da situação revive um pesadelo o que a deixa muito abatida e angustiada.
4. Sofreu ainda mais por o arguido lhe ter ordenado que nada dissesse a outra pessoa, nomeadamente ao pai, o que a deixou ainda mais transtornada, perdida e desamparada.
5. Chorou muito nos dias seguintes com o medo, aflição, angústia, choque, desilusão pesada e revolta.
6. Teve insónias nas noites seguintes e fica sempre muito aflita quando se recorda do sucedido, o que sucede com frequência.
7. Ainda hoje tem pesadelos uma vez por outra.
8. A ofendida tinha grande alegria de viver, constante boa disposição, era sociável, positiva, o que perdeu;
9. Foi um choque emocional tremendo para ela, pois confiava no padrasto, choque de que ainda não se recompôs minimamente;
10. A partir de então, passou a desconfiar sempre de qualquer pessoa que se aproxime dela;
11. O que limitará fortemente o seu convívio social e qualquer relação amorosa que tenha no futuro.
MOTIVAÇÃO:
A apreciação da prova produzida em audiência, suscetível de contribuir para a formação da convicção do tribunal, rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, acolhido expressamente no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Este princípio significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e, de forma positiva, que o tribunal aprecia a prova produzida e examinada em audiência com base exclusivamente na livre valoração e na sua convicção pessoal.
O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração; é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
Tal princípio não é porém absoluto, e entre as excepções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial.
Nos crimes sexuais coloca-se sempre com particular ênfase o relevo a atribuir às declarações prestadas pela vítima, sendo certo que normalmente os factos que consubstanciam os crimes deste tipo, não são praticados de molde a serem presenciados por outras pessoas, sendo da experiência comum que os agentes se inibem da prática de condutas suscetíveis de o integrar quando há risco de serem observados por terceiros, não havendo, em regra, testemunhas presenciais dos factos, pelo que as declarações da vítima terão de ser complementadas por elementos circunstanciais que permitirão aferir ou não da credibilidade do declarado.
Quanto aos factos vertidos em 1., 2., 6. e 7. da análise do assento de nascimento da ofendida de fls. 284 a 285, do assento de nascimento do arguido de fls. 30 e ss. e do assento de nascimento de HH… de fls. 286 e 287.
Para o referido em 8. atendeu-se ao teor do acordo de promoção e protecção de fls. 138.
Ao teor do auto de denúncia de fls. 7 e ss. e 101 e ss.;
Quanto à restante factualidade ponderou este Tribunal, de forma conjugada, os seguintes elementos de prova, analisados de acordo com regras de razoabilidade e experiência comum:
- as declarações absolutamente sinceras da ofendida menor BB… prestadas em audiência de julgamento e declarações para memória futura da mesma, corroboradas pelo relatório de perícia médico-legal – psicologia - clínica forense de fls. 268 a 276.
Nas declarações para memória futura prestadas pela menor esta explicou que num dia à noite estava a ver televisão na cama e a irmã a dormir a seu lado. Depois desligou a televisão para dormir e logo a seguir o meu padrasto veio e deitou-se no nosso meio”. Quando questionada, a menor refere que o padrasto nunca tinha tido tal comportamento nem antes nem depois deste episódio. “A minha irmã costuma adormecer no quarto deles e depois ele vem trazê-la para a minha cama, foi a primeira vez que ele se deitou no nosso meio depois da minha irmã ter adormecido. Refere que na altura em que o padrasto se deitou na minha cama “a minha mãe estava a dormir…e ele então meteu a mão meteu a mão dele por baixo do meu pijama e das minhas cuecas e mexeu lá com os dedos para trás e para a frente,”. Referiu também que não houve introdução dos dedos na sua vagina. ”Eu nem consegui dizer nada porque nunca esperei que ele fizesse uma coisa daquelas…depois eu tinha um urso de peluche e deixei o urso cair ao chão, levantei-me, fui busca-lo e disse para ele ir dormir porque eu tinha sono e ao outro dia tinha escola…e ele foi”.
Contou à sua mãe o sucedido logo no dia seguinte mas aquela respondeu que ela devia ter sonhado, “ou ela ou o arguido estavam a sonhar”.
Mais referiu que contou à sua explicadora DD… o sucedido e ela disse que estava a mentir porque não chorou, que a vida dela ia andar aos trambolhões, que estava “….uma asneira” O AA1... tinha mais dinheiro e que se safava. Disse que ia ser ligada às máquinas para saber se falava a verdade. Contou ao seu pai o sucedido mal saiu da explicadora e ele disse para escrever num papel para não se esquecer, o que fez logo a seguir.
Também referiu que por vez a sua mãe dizia que parecia deficiente porque estava ao telemóvel.
Acabou por perder o contacto com a mãe e família daquela porque ela não acreditou nela, o que a deixa triste (chorosa).
Do relatório de perícia médico-legal – psicologia - de fls. 250 a 258v.º, realizada em 14.11.2019, resulta com relevo à boa decisão da causa:
(…) Questionada sobre o ambiente familiar, diz que os pais separaram-se quando ela tinha 4 anos e BB… não tem recordações de viver com os pais nem faz ideia dos motivos que levaram à separação. Manteve sempre contato com ambas as famílias, sempre se sentiu bem quer na casa da mãe quer na casa do pai (…) Sobre o padrasto a menor diz que o relacionamento era normal, não falava muito com ele, ele às vezes perguntava-me sobre as minhas notas ou coisa assim, mais nada (…) Conta que em casa da minha mãe, eu gostava de ficar sentada numa carpete fofinha a mexer no telemóvel e ela dizia-me que eu parecia uma deficiente ali sentada…o meu pai e a minha madrasta não me fazem isso (…) tenho medo de me obrigarem a voltar para casa da minha mãe com ele (padrasto) lá…eu gostava de ir morar com a minha mãe e com a minha irmã…mas com ele (padrasto) nem pensar. Questionada sobre situações que lhe provoquem nojo “tenho nojo de centopeias e fiquei com nojo do que aconteceu” – referindo-se aos factos descritos no processo” (…)
Relativamente ao processo: …numa data que não sabe precisar “sei que foi este ano, não sei o mês, mas foi na primavera…num dia à noite eu estava a ver televisão na minha cama e a minha irmã estava a dormir ao meu lado; depois deliguei a televisão para dormir e logo a seguir o meu padrasto veio e deitou-se no nosso meio”. Quando questionada, a menor refere que o padrasto nunca tinha tido tal comportamento nem antes nem depois deste episódio. “A minha irmã costuma adormecer no quarto deles e depois ele vêm trazê-la para a minha cama, foi a primeira vez que ele se deitou no nosso meio depois da minha irmã ter adormecido. Refere que na altura em que o padrasto se deitou na minha cama “a minha mãe estava a dormir…e ele então meteu a mão meteu a mão dele por baixo do meu pijama e das minhas cuecas e mexeu lá com os dedos”. ”Eu nem consegui dizer nada porque nunca esperei que ele fizesse uma coisa daquelas…depois eu tinha um urso de peluche e deixei o urso cair ao chão, levantei-me, fui busca-lo e disse para ele ir dormir porque eu tinha sono e ao outro dia tinha escola…e ele foi”. A BB… refere que nessa altura sentiu-se “assustada, enojada e fiquei com medo que ele voltasse, achei aquilo muito nojento”. No dia seguinte, a menor foi coma mãe a uma consulta no hospital … e aproveitou para contar-lhe o que se tinha passado “e ela disse que, ou eu ou ele estávamos a sonhar e não acreditou em mim”. Só que depois a minha mãe falou com ele e quando ela estava a tomar banho ele (o padrasto) veio ter comigo ao meu quarto e disse para não pensar coisas erradas, que ele não tinha feito aquilo por mal e que ele não sabia que estava a tocar-me naquele sítio”…que são os genitais. ”Eu disse-lhe que estava bem, que não ia contar a ninguém, mas fiz figas e contei à EE…”. “Depois ele saiu com a minha irmã e eu falei outra vez com a minha mãe e ela disse para não contar a ninguém porque as pessoas podiam pensar outras coisas e eu ser retirada dela…e pediu muito para jurar que não ia contar nada a ninguém“. “Depois fui para casa do meu pai e contei tudo à EE…, ela disse que era muito grave e que eu tinha que falar como meu pai, ela disse que se não falasse eu, ela falava”. Entretanto o pai levou-a de volta para casa da mãe e “a EE… contou ao meu pai”…
“Nega alterações do sono, apetite ou humor”…Relativamente ao padrasto diz que não tem saudades dele nem quer vê-lo mais.
CONCLUSÃO
(…) Consciente, lúcida, com capacidade de orientação no tempo e no espaço. Mostrou capacidade de narrar acontecimentos de forma espontânea, lógica, clara, coerente e detalhada, mostrou distinguir verdade da mentira, certo de errado e realidade de fantasia, e também mostrou resistência à sugestionabilidade.
(…)
O seu perfil temperamental é caracterizado pela desejabilidade social, não sendo honesta nas suas respostas como intuito de transmitir uma imagem positiva de si mesma (Neste ponto, a a Ex.mª Srª Perita Dr.ª KK…, ouvida em sede de audiência de julgamento, explicitou tal perfil, indicando que a mencionada desejabilidade social é comum no contato social entre as pessoas. Quanto à questão fundamental, de a menor ser sugestionável referiu que a menor não é permeável à sugestionabilidade.
Em suma, retiramos nós do declarado que a questão da desejabilidade social é comum e não afecta a credibilidade do depoimento da menor).
Por fim, em relação à aferição do grau de desenvolvimento e credibilidade do seu discurso, designadamente considerando as diferentes versões dos factos apresentadas, o relatório conclui que “a menor apresenta um nível de desenvolvimento e características de discurso sugestivos de credibilidade”.
Ouvida novamente em sede de audiência de julgamento, referiu que uma noite o arguido veio adormecer a sua irmã HH… para o seu quarto e, passado um bocado, ela apagou a televisão. A HH… adormeceu e ele pôs-se debaixo dos cobertores/entrou na cama e pôs-se no meio das duas. Inclinou-se um pouco para o seu lado e ele pôs-lhe a mão por baixo da roupa (pijama e cueca), na pele, na vagina, causando-lhe desconforto. Empurrou então o urso de peluche para o chão e levantou-se e disse que queria dormir, que no dia seguinte era dia de escola e ele depois foi-se embora.
No dia seguinte contou o sucedido à mãe quando foram a uma consulta médica no Hospital. Ela perguntou se não estaria a sonhar e disse que depois falaria com ele. Ficou com a ideia que ela não acreditou no que lhe contou.
Quando ela confrontou o “AA1...” (arguido), na sua presença, sobre o que se tinha passado ele respondeu que pensava que lhe estava a tocar na barriga. Depois ele veio falar consigo e pediu-lhe para não contar a ninguém porque as pessoas podiam pensar outra coisa. Respondeu que o faria mas fez figas porque não sabia se conseguia guardar segredo. Também a sua mãe lhe disse para não contar nada, especialmente ao pai, porque podia-lhe ser retirada.
Acabou por contar à EE… o que se tinha passado porque é pessoa da sua confiança. Ela disse que devia contar ao seu pai pois era uma situação muito séria. Contudo não teve coragem de lhe contar logo e voltou para casa de sua mãe. Num dia da semana o pai pediu para descer porque estava à porta de casa da mãe juntamente com a sua madrasta e a EE…, desceu e ele perguntou-lhe se era verdade indo depois apresentar queixa na GNR de …. Foi a EE… quem contou primeiro ao seu pai e à sua madrasta.
Relativamente à sua explicadora DD… referiu que lhe contou o que se tinha passado porque tinha confiança com ela já que a conhecia há muito tempo. Ela respondeu-lhe que estava a mentir porque não deitou sequer uma lágrima enquanto lhe contou e que ela ia ser sujeita à máquina da verdade. Mandou mensagem ao pai a contar o que se tinha passado e o que ela lhe tinha dito.
Confirmou um episódio ocorrido no supermercado onde trabalha a sua mãe em que “tiraram” material escolar e levaram para casa mas depois a mãe soube e a mãe dela também e foram devolver ao supermercado. Confirma também que enviou uma mensagem à sua vizinha a dizer para ela ter calma que iam resolver o problema e devolver o material.
Foi confrontada com o documento de fls. 139 e confirmou a sua autoria. Nesta parte diga-se que a mesma já o tinha relatado da mesma exata forma quando foi ouvida pela Sra. Perita que elaborou o relatório pericial de psicologia e que a testemunha/explicadora DD… prestou um depoimento absolutamente parcial querendo passar desde o seu início a ideia que a menor BB… é mentirosa, que inventou toda esta história e que é até “maquiavélica” referindo-o em tom alto e exaltado. Na verdade, como resulta daquele documento e do depoimento constante da ofendida, DD… nunca acreditou no que a menor lhe contou desde logo tendo dito que era mentirosa porque não chorou quando lhe contou o sucedido e que tinha que ser submetida a um detetor de mentiras. Por esta razão não demos credibilidade ao relatado pela indicada testemunha.
Já confrontada com o documento de fls. 147 referiu que só o primeiro parágrafo foi da sua autoria na parte onde é referido “Hoje a minha mãe disse que eu era parecida com os defecientes”, referindo que a letra, nesse ponto, efetivamente é sua não se recordando a razão de ter elaborado tal escrito pois nem sequer tem um diário não tendo pois escrito a expressão “Querido Diário”. Também a assinatura parece a sua. Porém, tudo o mais não foi ela quem escreveu não conseguindo perceber como surgiu tal documento.
Repare-se que este documento foi supostamente elaborado a 28.4.2019, após os factos ocorridos em 17.4.2019 e foi entregue pela mãe da menor na mesma data em que foi ouvida na Polícia Judiciária a 07.06.2019 (vide fls. 145, penúltimo parágrafo). A mesma mãe que se recusou a depor em audiência de julgamento e que não acredita no que a menor lhe narrou quanto ao sucedido no dia 17.4.2019 com o aqui arguido. Seja como for, atenta a forma coerente como a menor prestou as suas declarações ao longo do processo, não temos razão para duvidar da mesma, isto é, que realmente o documento não é da sua autoria e, nessa sequência, nenhuma consequência relevante podemos retirar do mesmo.
Questionada indicou ainda que nunca o arguido lhe pediu desculpa ou mostrou arrependimento pelo que lhe fez.
Decorrente das declarações para memória futura bem como das efetuadas na audiência de julgamento a menor confrontada com a circunstância de, em data anterior aos factos ilícitos, existir por sua parte uma vontade de sair de casa, e ir viver com o pai e com a EE…, foi referido que não sentia tal vontade e que pretenderia continuar a viver com a mãe (e necessariamente com o arguido). Que “estava bem com a mãe”. Se, como foi aventado pelo arguido, o objetivo da menor fosse viver com o seu pai não precisava a menor de ter inventado uma história tão rebuscada para conseguir tal objetivo sendo certo que resulta da perícia realizada que a menor mostrou capacidade de narrar acontecimentos de forma espontânea, lógica, clara, coerente e detalhada, mostrou distinguir verdade da mentira, certo de errado e realidade de fantasia, e também mostrou resistência à sugestionabilidade;
- CC…, pai da menor BB…, soube do sucedido através da EE…, sua enteada, que lhe contou o abuso praticado pelo padrasto de que a BB… lhe transmitiu. Que no mesmo dia em que soube do sucedido foi buscar a BB… à casa da sua mãe.
Mais indicou ter falado com a BB… sobre o sucedido e ela disse que o arguido se tinha deitado na cama, no meio das duas menores, e que tinha tocado na sua zona genital. Dali foi apresentar queixa no posto policial da GNR de ….
Salientou ainda que a BB… referiu que nunca tinha acontecido qualquer situação como a referenciada;
- EE…, referiu, em suma, que a BB… lhe contou que o arguido se tinha colocado na cama no meio das menores e que lhe colocou a mão por dentro da roupa, por cima da pele, e que fez movimentos com os dedos junto da zona genital e massajou. Para terminar aquilo ela atirou um peluche que tinha na mão para o chão.
Advertiu a ofendida de que tinha de contar ao pai, pois o sucedido era muito grave.
Confirmou ter recebido uma mensagem da BB… a dizer “é hoje que eu decido se vou para casa do meu pai”.
A testemunha acabou por contar o relatado ao pai e ele foi buscar a BB… e foram fazer queixa à GNR.
Quando lhe disse que tinha que contar ao pai ela começou a chorar. Nos dias seguintes e ainda agora a BB… sofre bastante porque a mãe não acreditou nela. Ela passou a fechar-se muito nos dias seguintes ao sucedido.
Durante uns dias ela teve pesadelos e tinha medo que a mãe a fosse buscar pois lhe tinha dito que não ia contar nada sobre o sucedido ao pai; - FF… – mãe da EE… – confirmou que a filha lhes comunicou (a si e ao companheiro CC…) que a ofendida explanou que o arguido lhe tinha tocado na vagina.
Mais indicou que juntamente com CC… foram buscar a ofendida a casa e que após foram apresentar queixa crime.
A BB… passou a viver em sua casa (e do pai) angustiada pois tinha muito medo que a fossem buscar.
Por seu turno, o arguido negou os factos ilícitos de que vinha pronunciado. Referiu que não se deitou no meio das duas menores. E que, de vez em quando, ia ao quarto onde as menores se encontram com o intuito de adormecer a filha HH… pelas 21h30/22h00 mas que ficava sentado ao lado da mesma a ler uma história.
Narra que entre a ofendida e a sua progenitora existiam inúmeras discussões e inexistia diálogo entre as mesmas. Mais salientou o arguido que chegou a chamar a atenção da menor ao que esta retorquiu referindo que não tinha nada a falar, que não mandava nela pois não era o seu pai. Destacou que não consegue explicar a atitude da ofendida ao imputar os factos ilícitos constantes da pronúncia mas salientou que a mãe da ofendida encontrou um documento assinado pela ofendida em que a mesma refere que quer viver com o pai.
Face ao que afirmamos quanto ao depoimento constante da menor/vítima prestado em 3 momentos distintos dos autos – declarações para memória futura prestadas em 09.09.2019, declarações prestadas aquando da realização da perícia médico-legal em 27.04.2020 e declarações em audiência de julgamento prestadas em 29.06.2021, depoimentos estes corroborados pelo exame médico-legal no sentido em que conclui que a menor apresenta um nível de desenvolvimento e características de discurso sugestivos de credibilidade (sendo que este saiu ainda mais reforçado após audição da Sra. Perita KK…) e ainda pelos depoimentos das testemunhas EE…, CC… e FF…, ficamos convencidos que os factos ocorreram como narrados na pronúncia.
Sobre a situação sócio económica do arguido o Tribunal tomou em consideração o relatório social elaborado pela DGRSP.
No que concerne à inexistência de antecedentes criminais, o CRC junto aos autos.
LL… – avó da ofendida -, referiu que há dois anos que não fala com a neta em virtude do sucedido, sendo que nada de relevante conseguiu transmitir ao Tribunal.
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Enquadramento Jurídico-Penal:
Do crime de abuso sexual de criança:
Prescreve o art.º 171.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal:
“1- Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2. Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”.
O acto sexual de relevo é a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima. O acto sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objectos ou partes do corpo nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca.
Conforme é referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, "o acto sexual de relevo é ( .. .) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas, (in www.dgsi.pt procº n.º 889/09.8.TAPBL.C1).
O bem jurídico protegido pelas incriminações é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de 14 anos de idade. Em qualquer dos casos, trata-se de um crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção) – No sentido exposto, vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal, 2ª ed., Universidade Católica Editora, em anotação aos art.ºs163.º e 171.º).
Parafraseando FIGUEIREDO DIAS, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 541-542, a lei presume – pode também afirmase com razoável correcção – que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (presume este prejuízo, não que “a pessoa não é livre para se decidir em termo de relacionamento sexual”: assim todavia TERESA BELEZA, RMP, 15-59 1994 56); e considera este interesse (no fundo, um interesse de protecção de juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal.
Conforme salienta FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 449, ao exigir que o acto sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido (função positiva); é dizer, que determine – ainda aqui de um ponto de vista objectivo – se o acto representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima (assim também S / S 7 Lenckner § 184c 14 na esteira da própria definição contida naquele preceito do CP alemão: são actos sexuais “só aqueles que, em função do respectivo bem jurídico protegido, assumam um certo relevo”). Com o que ficam excluídos do tipo actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.
Vertendo ao caso sub judice, analisando o acervo factual assente verificamos que no dia 17 de Abril de 2019, à noite, depois do jantar, a ofendida BB…, nascida a 19-7-2007, e a irmã HH… encontravam-se deitadas na cama do quarto, estando a ofendida vestida de pijama e cuecas a assistir a um programa de televisão, enquanto a irmã HH… estava a dormir. Nesse momento, o arguido entrou no quarto das menores e, uma vez aí, entrou na cama, mantendose debaixo dos lençóis e, aí permaneceu deitado por período de tempo não apurado no meio das duas menores. A dada altura, o arguido, aproveitando-se da confiança e proximidade tida com a ofendida BB… dado ser seu padrasto e viverem na mesma habitação há vários anos, bem como da sua superioridade física e da ausência da mãe da ofendida naquele quarto, introduziu uma das mãos por baixo das cuecas da mesma e com os dedos tocou na vagina da ofendida, apalpando-a e massajando-a, por diversas vezes, com movimentos de um lado ao outro da vagina. Logo depois, a ofendida BB… levantou-se, tendo pouco tempo depois o arguido abandonado o quarto.
Estes actos constituem, de forma inequívoca, actos sexuais de relevo. Na verdade, o acto de tocar, apalpar e massajar a vagina de uma menor, por baixo das cuecas daquela, fazendo movimentos de um lado para o outro, configuram actos que atentam contra a autodeterminação sexual da menor, que não consentiu, nem tinha capacidade intelectual, por força da sua idade, para o fazer. O contexto em que o acto foi cometido traduz inequivocamente um acto sexual de relevo, nos termos acima desenvolvidos.
Por outro lado, a menor, nascida em ..-.-2007, tinha à data dos factos 11 anos de idade, pelo que preenche o requisito da idade previsto no nº 1 do art.º 171º do Código Penal.
No que respeita ao elemento subjectivo entendemos que os actos foram cometidos com dolo directo, nos termos definidos no art. 14º, nº 1, do Código Penal. Efectivamente, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente. Sabia que a ofendida era filha da sua mulher, sendo seu padrasto, que tinha onze anos de idade e que, por isso era especialmente vulnerável e indefesa, com quem vivia na mesma habitação, que ainda se encontrava ainda em formação a sua vontade, capacidade e liberdade sexuais, que a acariciava, a apalpava e massajava em zona íntima e com expressão sexual e, ainda assim, quis actuar do modo descrito e forçar a ofendida a sofrer aquele tipo de contactos, bem sabendo que perigava o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade e sexualidade, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
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De acordo com o disposto no art.º 177º, nº 1, do Código Penal, na redacção em vigor à data dos factos, dada pela Lei nº103/2015 de 24/8 [que passou a contemplar a relação de coabitação, segmento que se mantém na actual redacção decorrente da entrada em vigor da Lei 40/2020, de 18/8]:
1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.

Com efeito, a Lei 103/2015, de 24/8, veio transpor a Directiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, dando cumprimento às obrigações assumidas com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais (Lanzarote, 25.10.2007), «criminalizando a prática de actos sexuais com crianças, recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança, alargando a tutela penal às situações em que as pessoas envolvidas abusam de uma relação de confiança estabelecida com a criança em resultado de uma autoridade natural, social ou religiosa, que permite controlar, punir ou compensar a criança nos planos emocional, económico ou mesmo físico, como normalmente sucede nas relações entre a criança, seus progenitores ou adoptantes, mas que também podem existir nas relações desta com outras pessoas, como as que prestam cuidados ou contribuem para a sua educação, incluindo as situações frequentes em que as crianças vivem em “família alargada” »- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13-02-2019, proferido no Proc. n.º 3922/17.6JAPRT.S1, in www.dgsi.pt.
Esta circunstância agravativa verifica-se, no caso em concreto, porque a ofendida era filha da esposa do arguido que, por conseguinte, era seu padrasto, coabitava com este, pelo menos, desde Outubro de 2014, data do nascimento da irmã da ofendida e filha do arguido, com quem aquela partilhava o quarto e cama, tendo o arguido se aproveitado da confiança e proximidade mantida com a ofendida, e da ausência da mãe naquele quarto para perpetrar os factos objecto dos autos.
Sendo assim, estão demonstrados todos os pressupostos objectivos e subjectivos do tipo legal de abuso sexual de crianças, na sua forma agravada, com dolo directo, previsto e punido pelos art.ºs 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal, na redacção Lei nº103/2015 de 24/8, pelo que se decide condenar o arguido pela sua prática, absolvendo-o da agravante prevista na alínea c) do nº 1 do art 177º, porquanto à data dos factos não se mostrava legalmente descrita tal previsão normativa - art. 1º, nº 1 do Código Penal.
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ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Delineado que está o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora proceder à determinação da natureza e medida da pena a aplicar, sabendo-se que a escolha e determinação da medida da pena obedece às disposições dos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal.
O artigo 40º do Código Penal estabelece como finalidades da aplicação de uma pena a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. De acordo com o quadro estabelecido no mencionado preceito, a finalidade primordial vertida na moldura penal abstracta é a defesa da ordem jurídico-penal, quedando-se o limite mínimo no imprescindível para satisfazer as expectativas comunitárias na realização contra-fáctica da norma, e o limite máximo na culpa do agente. Entre estes limites, busca-se a concreta medida que permita a reintegração social do agente. O crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art.º 171º, nº 1, do Código Penal, agravado pelo art.º 177º, nº 1, al. b), do mesmo diploma, é cominado, com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses. Estabelece o art. 71º, nº 1 e 2 do Código Penal que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Assim, a medida da pena, será dada primordialmente pelo grau de necessidade de protecção dos bens jurídicos no caso concreto, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da vigência da norma infringida.
Este princípio da prevenção geral positiva ou de integração, que decorre do princípio básico da necessidade da pena, consagrado no art.18º, nº 2 da CRP, fornece, pois, uma “moldura de prevenção”, dentro da qual actuam considerações de prevenção especial de socialização.
No caso vertente, as necessidades de prevenção geral, no que concerne aos crimes de abuso sexual de criança são muito exigentes, em face da elevada reprovação e repulsa comunitária e bem assim por parte do legislador, do que dão conta as sucessivas alterações legislativas. Neste sentido, pode ler-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 17-2-2013, in www.dgsi.pt: «Considerando a prática, com alguma frequência, de tais delitos entre nós – mas não só –, o interesse público de protecção de personalidades em desenvolvimento, no aspecto da sua sexualidade, sendo desejável que esta se afirme de forma harmónica e consciente que é afrontado, o alarme e a repugnância social que causam, evidente se torna que, para tranquilidade no tecido social e dissuasão de potenciais delinquentes, visto o quadro de extensos malefícios antecedente, que ultrapassam o interesse meramente individual, se impõe uma intervenção punitiva que pondere as sentidas considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico por esta se limitando sempre o valor da socialização em liberdade.»
Já as necessidades de prevenção especial são mais diminutas, já que o arguido não conta com antecedentes criminais. A culpa constitui o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações de ordem preventiva, nos termos do art. 40º do Código Penal.
Assim, contra o arguido há a considerar:
- A intensidade do dolo com que o arguido actuou, que revestiu a sua modalidade mais grave, dolo directo;
- A elevada ilicitude revelada nos factos, considerando a idade da menor dentro do intervalo tipificado;
- O modo de execução dos factos, perpetrados no mesmo quarto e na mesma cama, enquanto a sua filha de 4 anos de idade dormia;
- A gravidade das consequências para a vítima, particularmente nefastas na dimensão dos danos psicológicos.
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A favor do arguido temos a considerar:
- A conduta anterior aos factos, atenta a falta de antecedentes criminais por parte do arguido;
- As condições pessoais do arguido, mormente a integração profissional e social que sempre gozou.
Afigura-se, por conseguinte, justa e adequada a pena de 2 (dois) anos prisão.
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Da suspensão da execução da pena de prisão
Dispõe o artigo 50º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 94/2017, de 23/8, de que a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos pode ser suspensa, sendo que o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Ademais, o regime de suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples ou com imposição de deveres e regras de conduta (cfr. artigos 51º e 52º do Código Penal).
Pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena da prisão é, portanto, que “o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” – Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 342 e 343.
Tem-se entendido que se deve equacionar a aplicação deste regime, como um poder-dever, isto é, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos - Vide Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 12ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998, pág. 203.
No caso concreto, cumpre considerar, por um lado, que o arguido não conta com antecedentes criminais, mostra-se laboral e socialmente inserido, pelo que se afigura que a suspensão da pena de prisão ainda será suficiente para levar o arguido a interiorizar o desvalor das suas condutas e a coadunar o seu comportamento à vida em sociedade com respeito pelas normas do Direito.
Na desinência do exposto, decide-se suspender a pena de prisão a aplicar ao arguido, por igual período, sujeita a regime de prova, com acompanhamento técnico pela DGRS, que promova a efectiva interiorização do desvalor da conduta e a atribuição interna de responsabilidade comportamental e de respeito pelas normas jurídicas, que implicará a avaliação clínica /terapêutica especializada para diagnosticar eventuais necessidades de intervenção no âmbito da desviância sexual - art. 53º, nº4, 54º, nº4 do Código Penal.
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Das penas acessórias
Estabelecia o art. 179º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, sob a epígrafe Inibição do poder paternal e proibição de exercício de funções:
«Quem for condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser:
a) Inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela; ou
b) Proibido do exercício de profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância; por um período de dois a quinze anos.»
Posteriormente, a Lei 103/2015, de 24/8, que entrou em vigor a 30/9/2015, revogando o sobredito preceito, aditou os artigos 69º-B e 69º-C ao Código Penal, que, no que ora nos ocupa, preveem:
Art. 69º- B, nº 2 - «É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.»
Art. 69º- C, «2 - É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.
3 - É condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.
4 - Aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente às relações já constituídas.»
Estas interdições decorrem, por um lado, da transposição da Diretiva nº 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças, mormente do seu art. 10º, e por outro lado, do cumprimento das obrigações internacionalmente assumidas pela assinatura da Convenção de Lanzarote (art. 5º da aludida Convenção).
Assim, atendendo à gravidade dos factos praticados pelo arguido e às consequências para a ofendida, menor, descendente da sua cônjuge, condena-se o arguido nas penas acessórias de proibição do exercício de funções, proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais, previstas nos art. 69º-B, nº 2 e 69º-C, nºs 2, 3 e 4, todos do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 103/2015, de 24/8, por um período de 5 (cinco) anos. (…)»

C – APRECIAÇÃO E DECISÃO
1ª questão:
- Nulidade da perícia sobre a personalidade da menor;
§ 1 - No entender do arguido recorrente, a deliberação proferida pelo tribunal coletivo no decurso da audiência, relativamente à nulidade por si invocada em sede de contestação, violou o disposto nos artigos 154.º n.º 3 e 126.º n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, por falta de consentimento da realização da perícia sobre a personalidade da menor de idade ofendida pelos seus representantes legais.
Para tanto, expressa a tese jurídica de que não é suficiente o consentimento do pai para a realização da perícia à filha, desacompanhado da mãe, embora nas conclusões não tenha invocado qualquer base legal para o efeito[4].
Não tendo havido consentimento da pessoa sujeita a perícia, o despacho a ordenar a perícia deveria ter sido produzido pelo juiz de instrução de instrução criminal (artigo 154º, nº 3, do Código de Processo Penal). Não o tendo sido, a perícia é nula e não poderá ser atendida como meio concreto de prova a valorar em julgamento.
§ 2 – O Ministério Público, nas duas instâncias, pronunciou-se de forma desfavorável à tese do recorrente, destacando-se, pela sua fundamentação jurídica, o douto parecer do Ministério Público produzido a este respeito: «(…) No caso dos autos, em que a pessoa sujeita à questionada perícia era menor de 12 anos, não podendo por isso prestar consentimento válido, sem embargo do seu direito à informação e pronúncia, mesmo que se equipare a dita perícia a um ato médico-terapêutico, o consentimento podia ser dado pelos seus representantes legais, ou seja, por qualquer dos seus progenitores, independentemente daquele a quem a respetiva guarda estivesse confiada por decisão judicial reguladora das responsabilidades parentais , conforme decorre do artigo 1881º do CC e do lugar paralelo do exercício e da desistência do direito de queixa, como tem sido jurisprudencialmente interpretado, ou seja, de que qualquer dos progenitores tem legitimidade para o exercer sozinho ou mesmo contra a vontade do outro. Assim decidiram o acórdão do TRP, de 16.10.2013, proferido no processo n.º 555/12.7GAMAI.P1, relatado pelo Desembargador Cravo Roxo, disponível no sítio http://dgsi.pt/jtrp.nsf/ (…). O caso sob apreciação, inscreve-se, sem dúvida no leque daqueles em que, não sendo proibido o método de obtenção de prova em si mesmo, a prova dele resultante, é dizer, o resultado da perícia espelhado no respetivo relatório, seria insuscetível de utilização e valoração nas fases judiciais do processo se o consentimento para a respetiva utilização não tivesse sido validamente prestado, porque, nesse eventualidade, lhe falecia um pressuposto necessário a essa possibilidade, qual seja o da sua determinação pelo juiz. Sucede, porém, que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, e na linha da posição assumida na resposta do MP na 1ª instância e das anteriores considerações, o consentimento foi tempestivamente prestado e por quem tinha para tanto legitimidade, não sendo, por conseguinte, necessária qualquer prévia apreciação e decisão do juiz determinante da sua realização. Com efeito, a presença do pai e da menor ofendida no dia, hora e local designados para realização da perícia e a respetiva submissão às entrevistas da perita só podem ser interpretadas como consentimento tácito prévio e contemporâneo da sua realização, pois, como afirma Pedro Soares de Albergaria na ob. e loc. citados, o consentimento exigido pelo artigo 154º, nº 3, significa acordo ou anuência à sua realização e não exige qualquer prévia declaração formal nesse sentido
Cumpre apreciar e decidir.
Como resulta do teor do presente acórdão, a perícia médico-legal em causa no recurso foi determinada na fase de inquérito pela autoridade judiciária competente – o Ministério Público[5] -.
O número 3 do artigo 131º do Código de Processo Penal estatui que “Tratando-se de depoimento de menor de 18 anos em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, pode ter lugar a perícia sobre a personalidade.”
A perícia sobre a personalidade da menor teve lugar, com a sua audição em duas datas distintas, tendo a sua finalidade e metodologia sido previamente explicadas à menor e ao seu pai (o qual possuía os necessários poderes de representação legal da menor nessas datas), que consentiram na sua realização.
O recorrente entende que tal consentimento - apenas formulado pelo pai, desacompanhado da mãe da menor examinada, a quem também competia a representação legal da menor de idade - não é válido e, uma vez que não houve despacho de juiz de instrução criminal a determinar a realização da perícia à personalidade (artigo 154º, nº 3, do Código de Processo Penal), a perícia é nula e não podia ter sido valorada em julgamento, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal.
Porém, como bem salientado por Paulo Pinto de Albuquerque[6], o número 3 do artigo 126º do Código de Processo Penal “prevê nulidades relativas da prova”, pois a “nulidade da prova proibida que atinge os direitos de privacidade previstos nessa norma é sanável pelo consentimento do titular do direito.” Continua, explicitando, que “Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente em relação à arguição da nulidade ou aceitar os efeitos do acto, tudo com a sanação da nulidade da prova proibida.”
Pelo exposto, como também resulta da base legal invocada no recurso, o vício invocado pelo recorrente não integra a classe das nulidades insanáveis (artigo 119º do Código de Processo Penal), mas uma nulidade dependente de arguição (artigo 120º, nº 1, do mesmo texto legal) pela pessoa interessada – a menor que foi sujeita à perícia à personalidade, devidamente representada em juízo -, até ao termo da realização da perícia (artigo 120º, nº 3, alínea a), do mesmo Código) ou – no caso de se entender que ambos os progenitores, enquanto representantes legais da menor, deveriam ter estado presentes na perícia à personalidade da sua filha e tendo estado presente, apenas, um dos progenitores – até ao encerramento do debate instrutório (pois este processo teve a fase da instrução), ex vi da alínea c) do nº 3 do mesmo artigo.
Ora:
a) O arguido não tem legitimidade para arguir a aludida nulidade, uma vez que não é titular do direito em causa[7] na realização do exame à personalidade da menor; e
b) Ninguém arguiu a nulidade da perícia à personalidade até ao encerramento do debate instrutório.
Assim sendo, encontrando-se o vício – a existir – sanado, improcede a primeira questão suscitada pelo recorrente.

2ª questão:
- Nulidade do acórdão:
a) por falta de exame crítico da prova (quanto ao facto provado 17);
b) por contradição insanável da fundamentação (factos provados 8 e 17)

- Do exame crítico da prova
§ 1 - O recorrente motiva o seu recurso numa alegada falta de fundamentação da decisão quanto ao facto provado 17, pois “não resulta claro da motivação, pela forma ampla e genérica como se apresenta, omitindo de que forma a “restante prova produzida” permitiu a demonstração da matéria provada em 17”:
“17. Perante isso, no dia 28 de Abril de 2019, cerca das 22h00m, o pai da ofendida BB… deslocou-se à habitação onde a mesma residia com a mãe sita em Espinho e, desde essa data a ofendida BB… passou a viver com o pai na habitação deste sita em …, concelho de Vila Nova de Gaia”.
§ 2 – O Ministério Público, no exercício do contraditório e no parecer junto não se pronunciaram, expressamente, quanto a esta questão (na resposta apenas foi aludida a fundamentação da decisão quanto aos factos integrantes do crime e não relativamente ao facto provado 17, posterior ao ilícito).
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Nos termos do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A sentença cumpre o dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários, o tribunal superior (função endoprocessual do princípio da fundamentação das decisões judiciais) e a comunidade (função extraprocessual do mesmo princípio) são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica da decisão.
Numa atividade de reconstituição histórica de factos, como é o caso do julgamento em matéria de facto, a certeza judicial não pode ser confundida com a certeza absoluta, constituindo, antes, uma certeza empírica e histórica. A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só, a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno. A "livre convicção" e a "dúvida razoável" limitam e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova e da sua apreciação, em obediência ao critério estatuído no artigo 127º do Código de Processo Penal, exigindo, ainda, uma apreciação da prova motivada, crítica, objetiva, racional e razoável.
Na qualidade de princípio estruturante do direito processual europeu e, particularmente do direito processual penal português, o princípio da livre apreciação da prova assume, na dinâmica do processo de fundamentação da sentença penal, uma dupla função de ordenação e de limite [8].
“Este princípio da livre convicção libertou o juiz das regras da prova legal mas não o desvinculou das regras da razão” [9], na medida em que a discricionariedade na apreciação de cada uma das provas assenta num modelo racionalizado, guiado pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação, sempre vinculada ao princípio da descoberta da verdade material. É precisamente a fundamentação de facto que cumpre a “função de controlo daquela discricionariedade, obrigando o juiz a justificar as suas próprias escolhas, evitando assim qualquer possibilidade de arbítrio no domínio da valoração da prova decorrente de uma atuação dominada apenas pelas impressões” [10].
A lei processual penal não abdica de um enunciado, ainda que sucinto mas suficiente, do processo de formação da convicção do julgador, “para persuadir os destinatários e, sendo caso disso, o tribunal superior – além da própria comunidade -, de que a decisão da matéria de facto foi correta, garantindo, assim, a própria transparência da decisão” [11].
Deste modo, o tribunal recorrido permitirá ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que lhe serviu de suporte.
Nestes termos se compreende que o dever de fundamentar a sentença exige também a indicação dos motivos de credibilidade dos meios concretos de prova, designadamente testemunhal e a indicação dos motivos pelos quais não foram atendidas as provas em sentido contrário[12] .
Analisando o caso concreto à luz dos aludidos princípios:
Basta ler a fundamentação da convicção do tribunal coletivo, anteriormente reproduzida, para se perceber, instantaneamente, o modo como facto provado 17 foi apurado:
«(…) CC…, pai da menor BB…, soube do sucedido através da EE…, sua enteada, que lhe contou o abuso praticado pelo padrasto de que a BB… lhe transmitiu. Que no mesmo dia em que soube do sucedido foi buscar a BB... à casa da sua mãe.
Mais indicou ter falado com a BB… sobre o sucedido e ela disse que o arguido se tinha deitado na cama, no meio das duas menores, e que tinha tocado na sua zona genital. Dali foi apresentar queixa no posto policial da GNR de ….
Salientou ainda que a BB… referiu que nunca tinha acontecido qualquer situação como a referenciada;
- EE…, referiu, em suma, que a BB… lhe contou que o arguido se tinha colocado na cama no meio das menores e que lhe colocou a mão por dentro da roupa, por cima da pele, e que fez movimentos com os dedos junto da zona genital e massajou. Para terminar aquilo ela atirou um peluche que tinha na mão para o chão.
Advertiu a ofendida de que tinha de contar ao pai, pois o sucedido era muito grave.
Confirmou ter recebido uma mensagem da BB… a dizer “é hoje que eu decido se vou para casa do meu pai”.
A testemunha acabou por contar o relatado ao pai e ele foi buscar a BB… e foram fazer queixa à GNR.
Quando lhe disse que tinha que contar ao pai ela começou a chorar. Nos dias seguintes e ainda agora a BB… sofre bastante porque a mãe não acreditou nela. Ela passou a fechar-se muito nos dias seguintes ao sucedido.
Durante uns dias ela teve pesadelos e tinha medo que a mãe a fosse buscar pois lhe tinha dito que não ia contar nada sobre o sucedido ao pai;
- FF… – mãe da EE… – confirmou que a filha lhes comunicou (a si e ao companheiro CC…) que a ofendida explanou que o arguido lhe tinha tocado na vagina.
Mais indicou que juntamente com CC… foram buscar a ofendida a casa e que após foram apresentar queixa crime.
A BB… passou a viver em sua casa (e do pai) angustiada pois tinha muito medo que a fossem buscar.»
Embora fundamentar uma decisão não corresponda à produção de uma súmula do teor dos depoimentos, quando se trata de referir a prova testemunhal e a prova é unívoca relativamente a certo facto que, por isso, é pacífico – como é o caso do facto provado 17 -, torna-se um exercício algo ocioso um maior desenvolvimento da análise da prova, uma vez que não é necessário à boa compreensão da decisão.
Improcede, assim, a alegada falta de fundamentação do facto provado 17.
Quanto ao demais, embora a fundamentação da convicção do tribunal coletivo tenha sido sintética na análise crítica, concretizando, de forma conclusiva, as razões que determinaram o grau de credibilidade da prova produzida e optando por desenvolver mais a reprodução de sínteses da prova produzida, não deixou de ficar claro o modo como o tribunal formou a sua convicção, permitindo, designadamente ao recorrente, impugnar a decisão da matéria de facto, alavancando os seus argumentos nas razões que presidiram à decisão recorrida.

- Da contradição insanável da fundamentação
§ 1 - O recorrente motiva o seu recurso, ainda, numa alegada contradição entre dois factos considerados provados (8. e 17.):
“8. Desde o nascimento da menor HH… e até ao dia 30 de Abril de 2019, o arguido, a ofendida BB…, a mãe da ofendida e a menor HH… viveram na mesma habitação sita na Rua .., …., 2.º esquerdo, Espinho”.
“17. Perante isso, no dia 28 de Abril de 2019, cerca das 22h00m, o pai da ofendida BB… deslocou-se à habitação onde a mesma residia com a mãe sita em Espinho e, desde essa data a ofendida BB… passou a viver com o pai na habitação deste sita em …, concelho de Vila Nova de Gaia”.
§ 2 – No exercício do contraditório, o Ministério Público respondeu na primeira instância o seguinte: «(…) entendemos que nenhuma contradição existe; com efeito, a data de 30 de Abril de 2019 corresponde à altura em que foi efectuado o acordo de promoção e protecção a favor da menor ofendida – sendo que o dia 28 de Abril reporta-se à data em que, efectivamente, saiu de casa da mãe e do arguido.
E tal resulta clara e expressamente da simples leitura da decisão recorrida, não sendo sequer necessário qualquer esforço de maior para tal concluir.
Depois, ainda que ocorresse tal contradição (que, de todo, se não verifica), nunca a mesma seria insanável e muito menos ditaria a nulidade da sentença, pois que seria facilmente corrigida.
No mesmo sentido, o douto parecer pugnou pela mesma solução: mesmo a assinalada contradição invocada pelo recorrente entre as datas constantes dos pontos 8 e 17 da matéria de facto provada, para além de não consubstanciar uma verdadeira e muito menos insanável contradição, com as consequências por aquele pretendidas, cuja explicação resulta clara, como se evidencia na resposta do MP na 1ª instância, seria quando muito e ao que temos por certo, um erro ou lapso de escrita que não importa qualquer modificação essencial do acórdão e, portanto, suscetível de correção oficiosa e a todo o tempo, nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP do CPP.»
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
A contradição insanável na fundamentação da decisão constitui um vício desta, previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Tal contradição ocorre quando, analisando-se o texto da decisão, nomeadamente, a matéria de facto dada como provada e a não provada, ou entre a decisão da matéria de facto e a fundamentação da decisão em matéria de direito, se chega a conclusões contraditórias, insanáveis e irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e/ou, ainda, com recurso às regras da experiência comum.
No caso concreto em apreço é preciso reconhecer, imediatamente, que existe uma aparente contradição entre os dois factos provados: ou a BB… viveu até ao dia 30 de Abril de 2019, integrando o agregado familiar da sua mãe, ou passou a viver com o pai a partir da noite do dia 28 de Abril de 2019.
Porém, como bem referido pelo Ministério Público nas duas instâncias, esta aparente contradição é perfeitamente sanável, considerando a fundamentação da convicção do tribunal: o facto provado 8 resulta do teor do acordo de promoção e proteção constante a folhas 138 dos autos, o mesmo é dizer que se trata de um “facto jurídico”: no plano jurídico, a BB… esteve à guarda da sua mãe até 30 de Abril de 2019, altura em que a regulação das responsabilidades parentais foi alterada. Factualmente, apenas viveu com a sua mãe até ao dia 28 de Abril (o que resulta da prova oral que suporta o facto provado 17), tendo-se mudado na noite desse dia para a casa do seu pai, com quem passou a viver.
Nestes termos, altera-se a redação do facto provado 8, que passa a ser a seguinte:~
“8. Desde o nascimento da menor HH… até ao dia 28 de Abril de 2019, o arguido, a ofendida BB…, a mãe da ofendida e a menor HH… viveram na mesma habitação sita na Rua .., …., 2.º esquerdo, em Espinho.”

3ª questão:
- Da alegada violação da presunção de inocência do arguido;
§ 1 – O arguido recorrente motiva o seu recurso numa alegada violação da sua presunção de inocência.
Para tanto, limita-se a concluir que «O voto vencido é a forma mais evidente de caracterização da dúvida judicial, sendo que, no caso, quanto à factualidade pela qual o Recorrente foi condenado; Se essa dúvida é favorável ao arguido, pela regra de decisão fundada em preceitos constitucionais, em especial o «in dubio pro reo», é este que deve prevalecer, devendo sucumbir a regra “matemática” da maioria que faz vencimento e a que aludem os n.os 1 e 2 do art.º 372.º do CPP.».
§ 2 – Em resposta, o Ministério Público pugnou nas duas instâncias pela improcedência da tese do recorrente, uma vez que o tribunal coletivo não ficou com dúvida, não sendo exigível a sua unanimidade, mas apenas o voto da maioria dos seus membros para decidir a matéria de facto. O artigo 372º, n.º 2, do Código de Processo Penal permite que o juiz vencido declare com precisão os motivos do seu voto também quanto à matéria de facto, já que a lei deixou de restringir, desde 2007, o voto de vencido à matéria de direito.
A fundamentação da convicção do tribunal coletivo não evidencia a menor dúvida relativamente à certeza judicial quanto à prática, pelo arguido, dos factos integradores da sua responsabilidade penal. O voto de vencido não especifica qualquer contradição concreta na prova produzida, maxime, nas declarações da vítima do crime.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Para aferir o mérito do recurso, quanto à alegada violação da presunção de inocência, interessa recordar, primeiramente, os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.
A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio "in dubio pro reo" -.
Esta regra concede aos julgadores uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverão ser capazes de fundamentar de modo lógico e racional: toda a decisão penal em matéria de facto constitui, não só, a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da pronúncia e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno.
É neste contexto, precisamente, que se situa o âmbito de aplicação do princípio "in dubio pro reo", que constitui uma das vertentes da garantia constitucional da presunção de inocência previsto no artigo 32º, nº 2, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa.
A presunção de inocência do arguido opera, assim, nos casos em que se verifica existir um estado de dúvida nos julgadores, emergente do próprio texto da decisão recorrida, do qual se conclui que o tribunal, na dúvida sobre os factos que integram o objeto do processo, optou por decidir a favor do arguido.
A violação deste princípio traduz-se no oposto, ou seja, estando os julgadores em dúvida sobre os factos que integram a responsabilidade penal do arguido, decidiram em seu desfavor. Porém, contrariamente ao sugerido pelo recorrente, não basta existir um voto de vencido de um dos membros do tribunal coletivo para consubstanciar a “dúvida razoável” sobre a veracidade dos factos que constituem o objeto do processo penal.
O tribunal coletivo delibera a decisão da matéria de facto nos termos previstos no artigo 368º, nº 2, do Código de Processo Penal, vencendo o voto da maioria.
No acórdão em apreço, o presidente do tribunal coletivo assinou vencido nos termos do disposto no artigo 372º, nº 2, do Código de Processo Penal.
No entanto, o tribunal coletivo apurou a factualidade provada com base numa fundamentação consistente, alicerçada, também, na perícia à personalidade da menor de idade vítima do crime e no relatado desta, em julgamento, dos factos praticados pelo arguido[13].
O depoimento da menor foi analisado de forma crítica e suficientemente desenvolvida, para se apreender a sua solidez: de resto, resulta do seu teor que o arguido admitiu, em casa, também junto da mãe da menor, que tinha entrado no quarto da menor e passado a mão pelo seu corpo, embora não tenha admitido que a tenha tocado na área genital. Em julgamento, o arguido optou por negar os factos de forma diferente: como resulta da fundamentação da convicção do tribunal, «(…) o arguido negou os factos ilícitos de que vinha pronunciado. Referiu que não se deitou no meio das duas menores. E que, de vez em quando, ia ao quarto onde as menores se encontram com o intuito de adormecer a filha HH… pelas 21h30/22h00 mas que ficava sentado ao lado da mesma a ler uma história. (…)
Nestes termos, a certeza judicial relativamente aos factos provados referentes à conduta criminosa do arguido mostra-se devidamente consubstanciada na fundamentação da decisão, “maxime” no segmento reproduzido na nota 13 do presente acórdão.
O voto de vencido elaborado ao abrigo do nº 2 do artigo 372º não indicou com precisão[14] os motivos do seu voto, limitando-se a concretizar a sua divergência de forma superficial, sem identificar o teor das alegadas divergências probatórias em que baseou a sua convicção, embora tenha mencionado, em termos conclusivos, os motivos da sua dissensão.
Nestes termos, não existe base para concluir que o tribunal coletivo, na dúvida sobre os factos integrantes da responsabilidade penal do arguido, decidiu contra este.
Improcede, assim, a alegada violação da presunção de inocência do arguido.

4ª questão:
- Impugnação da decisão da matéria de facto (factos provados 11 a 16, 17 (na parte onde se refere «perante isso»), 19 a 21 e 58 a 62;
§ 1 - O recorrente impugna a decisão da matéria de facto relativamente, identificando os factos impugnados e motivando o recurso, nesta parte, nos seguintes termos:
a) O tribunal baseou-se nas declarações da ofendida e tudo o que se encaixou nas mesmas mereceu credibilidade e tudo o que não se encaixou não mereceu credibilidade;
b) Inexistem quaisquer provas físicas e/ou corporais da prática dos factos;
c) São contraditórias as declarações prestadas pela ofendida em declarações para memória futura - depoimento prestado no dia 09.09.2019 - ata de declarações para memória futura de - identificação do ficheiro áudio: 20190909145935_3878865_2870289 – 36mns:42sgs e na audiência de discussão e julgamento - depoimento prestado no dia 29.06.2021 - ata de declarações para memória futura - identificação do ficheiro áudio: 20210629145010_4037454_2870450 – 01h:07mns:30sgs;
d) A própria perita admitiu em audiência de julgamento que não ouviu a progenitora quanto à matéria e caso o tivesse feito, os resultados poderiam ser diferentes - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210602111559_4037454_2870450 – 32mns:53sgs - minutos 1:40-3:40; 005:30-06:30; 07:00-09:40; 28:35-30:05;
e) Da perícia realizada não resulta que os factos efetivamente ocorreram na forma como vem descrita na decisão recorrida, nem muito menos permite que se conclua que foi o Recorrente quem supostamente os praticou;
f) O relatório bastou-se somente com a versão da vítima, que não é corroborada por qualquer elemento de prova que vá no mesmo sentido;
g) Quanto ao depoimento da testemunha DD…, convém ter presente também o doc. de fls. 139 porquanto é neste que é supostamente relatado o teor de uma suposta conversa havida entre a ofendida com a referida testemunha, o que a testemunha, de forma absolutamente sincera e espontânea, designadamente quando confrontada na audiência de julgamento no dia 22/06/2021 com o aludido documento, negou que alguma vez tivesse ocorrido da forma descrita - depoimento prestado no dia 22.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 22/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210622160110_4037454_2870450 – 42mns:38sgs - minutos 0:16-0:31; 02:55-06:50; 07:30-11:56;
h) A credibilidade do depoimento da ofendida é, ainda, abalada pelo facto de esta mentir quanto ao conteúdo do Doc. de fls. 147 ao admitir que um dos parágrafos é da sua autoria, a assinatura ser sua, reconhecer a letra;
i) Não sendo nem verosímil ou sequer verdadeira a versão apresentada pela ofendida quanto ao documento em causa;
j) É evidente que todo o doc. de fls. 147 foi escrito pelo seu punho, mas, dado que o conteúdo do mesmo é suscetível de minar a sua credibilidade, a ofendida, atenta as suas características de personalidade - desejabilidade social - preferiu mentir e dizer que não se lembrava;
k) Da mesma forma, não nos merece razão o fundamento invocado na decisão recorrida para não dar relevância ao documento em si, designadamente para efeitos da credibilidade da suposta vítima porquanto a expressão constante do documento de fls. 147 com o teor “eu vou tomar uma decisão este ano” é em tudo semelhante com a mensagem “EE…, é hoje que decido se vou para o meu pai ou não” recebida pela testemunha EE… e que a ofendida lhe terá enviado no dia em que o seu pai a retirou de casa da mãe conforme depoimento prestado por esta no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062122351_4037454_2870450 - minuto – 04:45 a 06:10;
l) Destaca-se o facto de os depoimentos das testemunhas EE… - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062122351_4037454_2870450 -37mn:15sgs, de CC… - depoimento prestado no dia 02.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 02/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 2021062114949_4037454_2870450 – 32mn:56sgs e FF… - depoimento prestado no dia 22.06.2021 — cfr. ata da audiência de julgamento do dia 22/06/2021 — identificação do ficheiro áudio: 20210622143444_4037454_2870450 -07mns:15sgs e ficheiro de áudio: 20210622144301_4037454_2870450 – 54mns:40sgs – que não têm conhecimento direto dos factos, são testemunho de «ouvir dizer», pois não assistiram a nada, tendo-se limitado a reproduzir o que lhes terá sido relatado pela ofendida, sendo mesmo contraditórios entre si;
§ 2 – O Ministério Público, nas duas instâncias, pugna pela improcedência da impugnação, referindo que o recorrente - mais do que tentar demonstrar o erro de julgamento com indicação das provas que impunham decisão diversa da matéria de facto relativamente àquela considerada assente pelo tribunal recorrido - pretende antes substituir a convicção dos juízes que formaram a maioria decisória, pela sua, apenas suportada na suposta contradição das declarações da ofendida e à luz da convicção do juiz presidente e vencido conforme curta declaração em que assume ter ficado com dúvidas em face dessas declarações e da sua conjugação com os aludidos documentos.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Para aferir o mérito da impugnação da decisão da matéria de facto, nos pontos identificados na motivação de recurso, interessa recordar, primeiramente, os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.
A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no art. 127º do Código de Processo Penal, já anteriormente explicitada.
Contrariamente ao sugerido pelo recorrente, o Tribunal a quo analisou e articulou criticamente os dados objetivos emergentes dos meios concretos de prova produzidos de forma regular, tendo valorado os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, que permitem estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção, com o apoio de presunções naturais (juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido).
Da leitura da fundamentação da convicção do tribunal percebe-se que o tribunal coletivo não teve qualquer dúvida relativamente à veracidade dos factos integrantes do ilícito penal imputado ao arguido e que viriam a ser impugnados na motivação de recurso. Daí já se ter decidido não ter ocorrido qualquer violação da presunção de inocência do arguido.
Discordando o recorrente do juízo formulado pelo tribunal recorrido, a sua impugnação da decisão da matéria de facto apenas será procedente, caso:
A) indique meios concretos de prova que imponham decisão diversa; ou
b) demonstre que a fundamentação da decisão incorreu nalgum erro notório de avaliação da prova, não podendo a decisão ser devidamente sustentada nos meios concretos de prova que a suportam.
Tendo o tribunal a quo procedido a uma análise crítica dos meios concretos de prova produzidos em julgamento – designadamente os meios concretos de prova agora invocados na motivação do recurso para sustentar a impugnação da decisão - , tal permitiu ao recorrente impugnar o processo de formação da convicção do tribunal coletivo e este tribunal só poderá revogar a decisão da matéria de facto recorrida, quando tal convicção não tiver sido formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, o que poderá ser aferido com base na análise da fundamentação da decisão e verificação da sua conformação, ou não, com a prova produzida em julgamento.
Embora a decisão da matéria de facto possa ser sindicada por iniciativa de recorrente interessado, mediante prévio cumprimento dos requisitos previstos no artigo 412.º, 3 e 4, do Código de Processo Penal, através de impugnação com base em alegados erros de julgamento, a reapreciação da prova é balizada pelos pontos questionados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de impugnação especificada imposto por tal preceito legal, cuja "ratio legis" assenta precisamente no modo como o recurso da matéria de facto foi consagrado no nosso sistema processual penal, incumbindo ao interessado especificar, conforme já salientado:
- os pontos sob censura na decisão recorrida; e
- as provas concretas que, em seu entender, impunham desfecho diverso nessa matéria, por contraposição ao juízo formulado pelos julgadores - por referência ao consignado na ata, nos termos do estatuído no artigo 364º, 2, do Código de Processo Penal e com indicação/transcrição das concretas passagens da gravação em que apoia a sua pretensão - e as provas que devem ser renovadas.
O sistema jurídico-processual penal não comporta um regime de recurso com a finalidade de busca e sobreposição/substituição de divergentes sensibilidades sobre a questão em litígio, incumbindo por isso ao interessado a específica e precisa inventariação dos defeitos cuja reparação impetre, bem como das bases que sustentam e determinam a adoção da solução por si propugnada em detrimento daquela objeto da sua crítica: a modificação da matéria de facto por via da reapreciação da prova depende da invocação e demonstração da existência de provas que imponham solução diversa da acolhida pelos julgadores.
Como é consabido, admitir e impor não são sinónimos e, no caso sub judice, o cotejo e compreensão das regras e princípios que regem em sede probatória nem sequer se conjugam, congruentemente, com a tese sufragada pelo recorrente, que se limita a impugnar, em bloco, os factos provados 11 a 16, 17 (na parte onde se refere «perante isso»), 19 a 21 e 58 a 62, baseando-se em valorações probatórias segmentadas deturpadas e discricionárias, por carecerem do necessário respaldo no acervo probatório disponível.
Concretizando, relativamente a cada meio concreto de prova invocado pelo recorrente:
a) O recorrente não identifica qualquer contradição nas declarações prestadas pela ofendida em declarações para memória futura, pois limita-se a citar TODA A GRAVAÇÃO (com a extensão de 36m42s), não extraindo da mesma qualquer contradição, o mesmo sucedendo relativamente ao depoimento prestado em julgamento (gravação com mais de uma hora de duração) – mesmo assim, procedeu-se à audição integral de tais gravações, não se tendo detectado qualquer contradição substancial;
b) O recorrente deturpou, ostensivamente, o sentido das declarações prestadas pela senhora perita em sede de esclarecimentos sobre a perícia à personalidade da menor, pois o que a mesma efetivamente declarou, respondendo, precisamente a uma pergunta do defensor, que os resultados da perícia à personalidade da menor, quanto à credibilidade do seu relato relativo ao objeto deste processo, não seriam afetados, caso tivesse também ouvido a mãe da menor. A mais-valia de tais declarações apenas se circunscreveriam à melhor caracterização do temperamento anterior e do entorno social e escolar da menor em causa (vide, com especial interesse, a partir de 29m14s da gravação dos seus esclarecimentos)
c) Contrariamente ao que se poderia concluir da motivação do recurso, o tribunal não se baseou isoladamente na perícia à personalidade da menor para apurar a factualidade impugnada;
d) Invocar a prova documental citada na motivação do recurso, sem mais, para sustentar a impugnação da decisão da matéria de facto, sem explicitar as razões pelas quais os mesmos merecem credibilidade e em que medida podem contribuir para impor decisão diversa, em nada beneficia a pretensão processual do recorrente;
e) A credibilidade do depoimento da ofendida não é afetado pelo conteúdo do documento de folhas 147 pois, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, nada aponta no sentido da menor ter faltado à verdade quando se pronunciou a respeito do mesmo, como se alcança, facilmente, pela leitura da análise crítica da prova realizada pelo tribunal coletivo: “Foi confrontada com o documento de fls. 139 e confirmou a sua autoria. Nesta parte diga-se que a mesma já o tinha relatado da mesma exata forma quando foi ouvida pela Sra. Perita que elaborou o relatório pericial de psicologia e que a testemunha/explicadora DD… prestou um depoimento absolutamente parcial querendo passar desde o seu início a ideia que a menor BB… é mentirosa, que inventou toda esta história e que é até “maquiavélica” referindo-o em tom alto e exaltado. Na verdade, como resulta daquele documento e do depoimento constante da ofendida, DD… nunca acreditou no que a menor lhe contou desde logo tendo dito que era mentirosa porque não chorou quando lhe contou o sucedido e que tinha que ser submetida a um detetor de mentiras. Por esta razão não demos credibilidade ao relatado pela indicada testemunha. Já confrontada com o documento de fls. 147 referiu que só o primeiro parágrafo foi da sua autoria na parte onde é referido “Hoje a minha mãe disse que eu era parecida com os deficientes”, referindo que a letra, nesse ponto, efetivamente é sua não se recordando a razão de ter elaborado tal escrito pois nem sequer tem um diário não tendo pois escrito a expressão “Querido Diário”. Também a assinatura parece a sua. Porém, tudo o mais não foi ela quem escreveu não conseguindo perceber como surgiu tal documento. Repare-se que este documento foi supostamente elaborado a 28.4.2019, após os factos ocorridos em 17.4.2019 e foi entregue pela mãe da menor na mesma data em que foi ouvida na Polícia Judiciária a 07.06.2019 (vide fls. 145, penúltimo parágrafo). A mesma mãe que se recusou a depor em audiência de julgamento e que não acredita no que a menor lhe narrou quanto ao sucedido no dia 17.4.2019 com o aqui arguido. Seja como for, atenta a forma coerente como a menor prestou as suas declarações ao longo do processo, não temos razão para duvidar da mesma, isto é, que realmente o documento não é da sua autoria e, nessa sequência, nenhuma consequência relevante podemos retirar do mesmo.
f) Da mesma forma, a circunstância documentada nos autos da menor pretender ficar a viver com o pai também não afeta a credibilidade da sua narração do sucedido com o arguido, pelas razões abundantemente explicitadas pelo tribunal coletivo – e que o recorrente não questionou -;
g) A circunstância dos depoimentos das testemunhas EE…, CC… e FF… serem indiretos, não afeta a decisão da matéria de facto e a invocação das gravações integrais dos depoimentos em bloco, em toda a sua extensão, não permite identificar qualquer contradição (que também não foi concretizada pelo recorrente). Não é assim que se dá cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 4, do Código de Processo Penal: a lei processual exige que o recorrente indique as passagens concretas em que funda a sua impugnação – o que também não fez, quanto a estes depoimentos -. Menos ainda se percebe a falta de rigor da peça processual do recorrente, quando este imputa à decisão recorrida – que está regularmente fundamentada - uma omissão de análise crítica da prova.
Em suma, o recorrente não indicou qualquer meio concreto de prova que imponha decisão diversa, improcedendo de forma flagrante a sua impugnação.

5ª questão:
- A aplicação automática das penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B e 69.ºC e aplicadas ao recorrente é inconstitucional por violação do disposto no artigo 30.º n.º 4 da CRP;
§ 1 – O recorrente motiva o seu recurso, finalmente, com base num alegado erro jurídico traduzido numa inconstitucionalidade no entendimento de que a pena acessória prevista no n.º 3 do art.º 69.º-C do Código Penal afeta a relação de parentalidade do Recorrente com a sua filha HH… que nada tem a ver com os factos em discussão nos autos, violando o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
§ 2 – O Ministério Público, em resposta, sobretudo no douto parecer junto nesta instância, reforçou a ideia de que a pena acessória não é mero efeito necessário e automático da pena principal, mas antes, isso mesmo, pena acessória, com autonomia relativamente àquela, embora a pressuponham, e relativamente às quais a lei reservou ao juiz uma margem de conformação e adequação ao caso concreto, nomeadamente na definição da respetiva dosimetria em função da culpa do agente do crime cometido e pelo qual seja condenado, espaço de conformação e adequação que o Tribunal Constitucional (TC) e os tribunais comuns têm considerado suficiente para afastar o seu caráter automático e, bem assim, para definir a respetiva natureza como verdadeiras penas e não como mero efeito da pena principal, ainda que versando essencialmente as penas previstas nos artigos 69º e 152º, nºs. 4 a 6, do CP, mas com plena aplicação às demais penas acessórias, nomeadamente as dos seus artigos 69º-B e 69º-C, aqui em causa.
O tribunal coletivo fundamentou juridicamente a imposição das penas acessórias nos seguintes termos:
«Estabelecia o art. 179º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, sob a epígrafe Inibição do poder paternal e proibição de exercício de funções:
«Quem for condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser:
Inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela; ou
Proibido do exercício de profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância; por um período de dois a quinze anos.»

Posteriormente, a Lei 103/2015, de 24/8, que entrou em vigor a 30/9/2015, revogando o sobredito preceito, aditou os artigos 69º-B e 69º-C ao Código Penal, que, no que ora nos ocupa, preveem:
Art. 69º- B,
«2 - «É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.»
Art. 69º- C,
«2 - É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. »
«3 - É condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.»
«4 - Aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente às relações já constituídas.»

Estas interdições decorrem, por um lado, da transposição da Diretiva nº 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças, mormente do seu art. 10º, e por outro lado, do cumprimento das obrigações internacionalmente assumidas pela assinatura da Convenção de Lanzarote (art. 5º da aludida Convenção).
Assim, atendendo à gravidade dos factos praticados pelo arguido e às consequências para a ofendida, menor, descendente da sua cônjuge, condena-se o arguido nas penas acessórias de proibição do exercício de funções, proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais, previstas nos art. 69º-B, nº 2 e 69º-C, nºs 2, 3 e 4, todos do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei 103/2015, de 24/8, por um período de 5 (cinco) anos. (…)»
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
A doutrina penal[15] defende que as penas acessórias aproximam-se da natureza das penas principais, não apenas pela sua acessoriedade face a estas, mas também por aquilo que José de Faria Costa denomina de «relação biunívoca entre crime e pena», pois se é certo que a um crime corresponde a aplicação de uma pena, mais certo é que a toda a pena tem, necessariamente, de corresponder um crime, sem o qual aquela não poderá – nunca – ser aplicada [16].
A condenação do arguido numa pena principal consubstancia uma condição necessária para a aplicação das penas acessórias, mas já não uma condição suficiente da sua aplicabilidade. As penas acessórias, apesar de terem de ser aplicadas cumulativamente com uma pena principal, são autónomas relativamente a esta. A sua aplicação depende do preenchimento de pressupostos distintos relacionados com o cometimento do ilícito, está subordinada à consideração dos critérios gerais de determinação das penas, nos quais se inclui a culpa, e são graduadas dentro de uma moldura própria fixada na lei.
O assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 1992, publicado no Diário da República n.º 157/1992, Série I-A, estabeleceu a seguinte jurisprudência, com evidente interesse para a apreciação do mérito da questão em apreço: “(...) ainda no que concerne às penas acessórias, distinguem-se assim dos chamados efeitos das penas, onde se trata de consequências (...) determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas. E parece que o Código Penal de 1982 terminou com o carácter necessário da produção de efeitos das penas (artigos 65.º do Código Penal e 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), chamando aos efeitos não necessários «penas acessórias», dando a estas um sentido e um conteúdo não apenas de intimidação, mas de defesa contra a perigosidade individual”.
Ora, a fundamentação jurídica da decisão recorrida respeitou tais ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, não infringindo a garantia estatuída no artigo 30º, nº 4, da nossa lei fundamental, ao aplicar a pena acessória prevista no n.º 3 do art.º 69.º-C do Código Penal, pois atendeu às circunstâncias da prática do crime, à sua gravidade objetiva e às consequências para a ofendida, menor, descendente da sua cônjuge, não aplicando a pena acessória, meramente, como consequência automática da condenação pelo crime de abuso sexual de criança.
De resto, qualquer pena (principal ou acessória) envolve sempre, em maior ou menor grau, a compressão de direitos pessoais dos condenados, também merecedores de garantia constitucional. O que não pode acontecer é que a pena acessória constitua consequência automática da condenação, exigindo a doutrina e a jurisprudência que se faça uma ponderação da sua necessidade, tal como foi concretizado pelo tribunal “a quo”, que teve presente a “gravidade dos factos praticados pelo arguido e às consequências para a ofendida, menor, descendente da sua cônjuge”.
A interpretação jurídica vertida no acórdão satisfaz, assim, as exigências constitucionais plasmadas no artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa
Improcede, assim, a última questão suscitada pelo recorrente.
*
Das custas:
Não sendo o recurso do arguido julgado inteiramente não provido, não há lugar a condenação em custas (artigos 513°, 1, a contrario sensu e 522º, 1, ambos do Código de Processo Penal).
Tendo decaído no recurso da decisão interlocutória, condena-se o arguido recorrente no pagamento das custas respetivas, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em conferência e por unanimidade, em:
a) Negar provimento ao recurso da decisão interlocutória.
b) Julgar parcialmente provido o recurso da decisão final interposto pelo arguido AA… e, em consequência:
a. alterar a redação do facto provado 8, que passa a ser a seguinte:
“8. Desde o nascimento da menor HH… até ao dia 28 de Abril de 2019, o arguido, a ofendida BB…, a mãe da ofendida e a menor HH… viveram na mesma habitação sita na Rua .., …., 2.º esquerdo, em Espinho.”; e
b. no demais, confirmar inteiramente a decisão recorrida;
c) Custas pelo decaimento no recurso da decisão interlocutória a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
d) Sem custas pelo recurso da decisão final.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 26 de Janeiro de 2022.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
______________
[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral adjunto Dr. João Rato.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] No corpo da motivação de recurso indica o artigo 1906.º do Código Civil, que não transpôs para as conclusões, contrariando o disposto no artigo 412º, 2, al. a), do Código de Processo Penal.
[5] A autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso foi necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo – artigo 131º, nº 2, do Código de Processo Penal -.
[6] Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, U.C.E., pág. 335 e seguintes.
[7] Trata-se do direito à integridade pessoal (física ou moral) protegido pelo artigo 25º da Constituição da República Portuguesa.
[8] Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, O Caso Julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Natureza Acusatória, Universidade Católica, Porto, 2002, pág. 566.
[9] Neste sentido, Michelle Taruffo, "Conocimiento cientifico y estândares de prueba judicial", Jueces para la Democracia, Información y Debate, n.º 52, Marzo, 2005, pág. 67.
[10] Taruffo, "Consideraciones sobre prueba y motivación", Jueces para la Democracia, Información y Debate, n.º 59, Júlio, 2007.
[11] Vide, a este respeito, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Janeiro de.2007 (processo nº 3193/06, 3ª Secção, de 11 de Outubro de 2000 (processo nº 2253/00 - 3.ª) e acórdãos do Tribunal Constitucional números 102/99 (Diário da República, II-Série, 1 de Abril de1999) e 59/2006 (Diário da República, II-Série, de 13 de Abril de 2006.
[12] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 546/98, disponível no endereço da rede digital global http://www.tribunalconstitucional.pt.
[13] “Face ao que afirmamos quanto ao depoimento constante da menor/vítima prestado em 3 momentos distintos dos autos – declarações para memória futura prestadas em 09.09.2019, declarações prestadas aquando da realização da perícia médico-legal em 27.04.2020 e declarações em audiência de julgamento prestadas em 29.06.2021, depoimentos estes corroborados pelo exame médico-legal no sentido em que conclui que a menor apresenta um nível de desenvolvimento e características de discurso sugestivos de credibilidade (sendo que este saiu ainda mais reforçado após audição da Sra. Perita KK…) e ainda pelos depoimentos das testemunhas EE…, CC… e FF…, ficamos convencidos que os factos ocorreram como narrados na pronúncia”.
[14] A lei processual penal também não concretiza os termos, detalhe e extensão em que tal voto deve ser formulado, contrariamente ao que sucede relativamente à fundamentação da decisão em matéria de facto do acórdão, produzida pelo relator enquanto expressão da deliberação do tribunal coletivo.
[15] Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Parte Geral, Tomo II, 2.ª ed. reimpressão, 2005, Coimbra Editora, a págs.158.
[16] “Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, Ano 136, Julho-Agosto de 2007, Coimbra Editora, pág 323, nota 4.