Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
760/18.2T8ILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: CLÁUSULA NULA
INDETERMINABILIDADE DO OBJECTO
NULIDADE
Nº do Documento: RP20210308760/18.2T8ILH.P1
Data do Acordão: 03/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: “I - Tendo sido celebrado um acordo em que uma das partes declarou numa das cláusulas que renunciava a interpor qualquer processo judicial contra a outra, seja a que titulo for, obrigando-se, caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizá-la por determinada quantia, deve tal cláusula ser declarada nula, seja por constituir uma cláusula de objecto indeterminável, seja por configurar uma cláusula ilegal nos termos do art. 280º do CC.
II - Na verdade, esta renúncia geral a interpor acções judiciais contra a outra parte constitui uma obrigação indeterminável, uma vez que não se mostra delimitada nem restringida, seja quanto à sua fonte (por exemplo apenas aos direitos fundados na relação laboral), seja quanto à sua limitação temporal (decorre do clausulado que a obrigação é assumida sem limitação temporal).
III - Por outro lado, deve-se também entender que é ilegal (ilícita), porque a lei (e a Constituição da República Portuguesa – art. 20º da CRP) impede que as pessoas se possam vincular, sem qualquer restrição, a não recorrer aos tribunais para defender os seus direitos.
IV - Uma coisa é aceitar, como se admite no âmbito laboral, que as partes possam abdicar de determinados créditos ou direitos emergentes do vinculo laboral (remissão abdicativa – art. 863º do CC); outra coisa, bem diferente, é aceitar que as mesmas prescindam, de uma forma genérica, perante outrem, de defender os seus interesses em juízo “seja a que título for”, sem que tal renúncia esteja delimitada por uma determinada fonte das obrigações ou por determinado limite temporal”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 760/18.2T8ILH.P1
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Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):
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Comarca de Aveiro
- Juízo de Competência Genérica de Ílhavo - Juiz 1
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
I. RELATÓRIO.
Recorrente(s):- B…, Lda.;
Recorrido(a)(s):- C…;
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A autora B…, Lda. intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra C… peticionando a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 15.696,00€, a título indemnizatório, correspondente a 24 vezes a quantia de 654,00€.
Depois de descrever a génese de vínculo laboral existente entre ambas, a autora alega que, no dia 12 de Dezembro de 2017, a Ré subscreveu um documento, denominado de Declaração de Recebimento, através do qual declarou ter recebido da autora B…, Lda. a quantia de 1.609,25€, correspondente a um prémio de assinatura do contrato de trabalho com essa sociedade.
E mais refere que, através desse mesmo escrito, a Ré renunciou ao direito de propor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade aqui Autora, obrigando-se, caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B…, Lda. numa indemnização correspondente a 24 vezes 654,00€.
Sucede que a ré, em 18.10.2018, propôs uma acção judicial, sob o n.º 3537/18.1T8AVR, contra D… e contra a autora B…, Lda., violando conscientemente o acordo que subscreveu do documento acima mencionado.
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Devidamente citada, a ré C… apresentou a sua contestação, pugnando pela improcedência dos pedidos contra si formulados pela autora e a sua consequente absolvição.
Depois de requerer a suspensão da presente instância até a decisão final, transitada em julgado, que viesse a ser proferida no âmbito do Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo Central do Trabalho de Aveiro – que, além do mais, tinha como objecto a apreciação da nulidade das declarações em discussão nestes autos, por terem sido uma manobra fraudulenta do empregador para se furtar ao pagamento dos créditos e indemnizações a que a trabalhadora tem direito, aproveitando-se do seu estado de saúde debilitado e de incapacidade para a levar a assinar tais documentos –, a ré descreveu as circunstâncias em que subscreveu as preditas declarações, pugnando, de resto, pela nulidade porque violador dos mais elementares princípios do Direito do Trabalho.
Mais pugna pela falsidade de tal documento, por vício de vontade, nos termos do artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil.
Subsidiariamente, a ré pugna pela consideração de que a autora actua com abuso de direito, entendendo que a presente acção constitui uma manobra abusiva e da qual a Autora agora se aproveita para obter da Ré, a quantia peticionada e que sabe não lhe ser devida.
Por último, peticiona a condenação da autora como litigante de má fé, nos termos do artigo 543.º, do Código de Processo Civil, uma vez que aquela a deduz uma pretensão e afirma factos não ocorridos ou deturpados, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.
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Depois de cumprido o contraditório, foi determinada suspensão da presente instância até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida no âmbito do processo n.º 3537/18.1T8AVR, a correr termos no Juízo do Trabalho de Aveiro – Juiz 1.
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Procedeu-se à realização da audiência prévia, tendo sido, então, proferido despacho saneador e se fixou o valor da acção. Ademais, foram fixados o objecto do litígio e os elementos da prova e, bem assim, admitidos os requerimentos probatórios apresentados pelas partes.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o formalismo legal.
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Na sequência, foi proferida a seguinte sentença:
III Decisão
Pelo exposto, julgo a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, totalmente improcedente e, em consequência, decido absolver a ré C… de todos os pedidos contra ela formulados nesta acção pela autora B…, Lda.
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- Absolver a autora como litigante de má-fé.
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Custas a cargo da Autora.
Notifique e registe.
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É justamente desta decisão que a Autora/Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
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A Ré apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
III – CONCLUSÕES:
A. Entende a Recorrente, em suma, que decidiu mal o tribunal a quo ao considerar nula a cláusula inserta no documento descrito no artigo 4.º do elenco dos factos provados na sentença, respeitante à renúncia da ré à propositura de qualquer processo judicial contra o D…, e ainda ao declarar nula a cláusula penal convencionada para o incumprimento daquela.
B. Ora, conforme se entendeu na douta sentença recorrida, com a qual se concorda na íntegra, “É, pois, indeterminável a obrigação assumida pela ré, cuja sua conformação extravasa os limites legais do princípio da liberdade contratual, equivalendo por dizer que a mesma está ferida de nulidade, nos termos do estatuído no artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos obrigacionais na esfera jurídica da Ré”.
C. A nosso ver, e salvo melhor opinião, decidiu bem o Tribunal a quo na douta sentença recorrida. Senão vejamos.
D. Preceitua o artigo 280.º, n.º 1 CC, que “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja físico ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
E. A este propósito, refira-se que “O art. 280.º/1 do CC considera nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável. Não há dúvidas sobre o alcance desta expressão, totalmente clara: o objecto do negócio pode ser indeterminado; o que não pode ser é indeterminável. E a diferença entre «indeterminado» e «indeterminável» está no seguinte: - a prestação é indeterminada, mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor, mas, não obstante, exista um critério para se proceder à determinação.” (cfr. ABÍLIO NETO, Código Civil Anotado, 19.ª Edição Reelaborada, Janeiro/2016, p. 210).
F. No caso em apreço, ficou provado no ponto 4. dos factos provados na douta sentença recorrida que: “No dia 12.12.2017, a ré C… assinou um documento, datado de 12 de Dezembro de 2017, intitulado “Declaração de Recebimento”, com o seguinte teor: «DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO C…, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ………… válido até 06.03.2019, contribuinte n.º ………, portador do n.º da Segurança Social ……….., residente na Rua…, n.º .., ….-… …, declara que recebeu da sociedade B…, LDA, pessoa colectiva n.º ………, com sede na Rua…, n.º …, …, da freguesia da …, do concelho de Vagos do distrito de Aveiro, com o código de certidão permanente ….-….-…., a quantia de 1609,25€, (mil seiscentos e nove euros e vinte e cinco cêntimos) correspondente a um prémio de assinatura do contrato de trabalho com essa sociedade.
Mais declara que com o recebimento da aludida quantia, renuncia a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes € 654,00.».
G. Ora, analisando tal declaração, não consta, nem se verifica, qualquer critério para proceder à determinação da prestação a que a Ré se obrigou.
H. Nem seria possível, mesmo recorrendo a critérios de equidade, estabelecer esse critério de determinabilidade, conforme se veio a entender (a nosso ver, bem) na douta sentença recorrida.
I. Para além de que, não assiste, qualquer razão à Recorrente, porquanto, resulta claramente dos factos dados como provados na douta sentença recorrida, bem como do próprio conteúdo da declaração a que se refere o ponto 4. dos factos provados, que do teor da declaração em causa nos autos não decorre o que a Recorrente pretende extrair no seu recurso.
J. Em primeiro lugar, importa referir que, em lado algum da declaração se pode retirar que a mesma se refere, única e exclusivamente, a processos de Direito do Trabalho; tanto mais que, a mesma refere expressamente que “a ré renuncia a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que título for”.
K. E mais: refere ainda a mesma que “obrigando-se caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00”.
L. O que invalida, desde já, o argumento utilizado pela Recorrente de que seria, única e exclusivamente, para processos no âmbito de Direito do Trabalho.
M. Importa, também, referir que, em lado algum da declaração, é limitado o seu objecto ao contrato de trabalho que, naquela data, cessou (com o D…, gerente da aqui Recorrente).
N. Ao invés, pretendia a Recorrente que a mesma declaração obrigasse a Ré num acontecimento futuro e incerto, nomeadamente, o desenrolar do novo contrato de trabalho.
O. Mas não é restringido o âmbito a qualquer processo de trabalho, como também não o é relativamente à relação de trabalho existente entre as partes, ao contrário do que agora pretende fazer crer a Recorrente, porém não tendo sido feita qualquer prova nesse sentido.
P. A declaração existente, afectaria, limitaria ou vedaria o exercício de direitos da Ré, bem como a defesa dos seus direitos, o que não é concebível nem admissível, nos termos legais, esse propósito.
Q. O facto de a declaração não explicitar em que termos a Ré se vincula, só por si, determina a nulidade da mesma, por o seu objecto ser indeterminável.
R. Mas mesmo que a mencionada declaração se limitasse ao âmbito de um processo de trabalho, como parece pretender fazer crer a Recorrente, a Ré não poderia abdicar ao direito de interpor uma qualquer acção judicial, por exemplo, se de futuro se verificasse vencimentos em atraso ou assédio no local de trabalho.
S. Desconhecia, por isso, a Ré, no momento da constituição da obrigação, porque não é perceptível, nem referido, qual o âmbito e duração daquela declaração.
T. Nem alguma vez aceitaria que os seus direitos, em pleno Estado de Direito Democrático, pudessem ser restringidos na sua plenitude, e sem limite temporal, através de uma declaração subscrita por si.
U. Acresce que, a acção intentada pela aqui Ré/Recorrida (ali Autora) no Tribunal de Trabalho teve como fundamento o incumprimento do contrato de trabalho celebrado em último lugar (2º contrato celebrado com a ora recorrente), que teve início em data posterior à assinatura da declaração, acção essa que se fundou no atraso no pagamento dos vencimentos à aqui Recorrida, sendo que tal facto era completamente imprevisível à data da assinatura da referida declaração.
V. Por outro lado, a sanção prevista para o incumprimento também não poderia proceder, porquanto “declarada nula a obrigação que lhe subjaz, por invalidade substancial, necessariamente, deverá ser também considerada nula a respectiva cláusula penal”, conforme bem se decidiu na sentença recorrida.
W. Olhando para o teor da declaração em causa nos autos, era absolutamente impossível ao homem médio, determinar o sentido, objecto e alcance da mesma.
X. Pelo que, resulta da sentença recorrida que nem ao Tribunal a quo foi possível encontrar o critério para determinação da prestação.
Y. Ademais, e também a este propósito, a liberdade do trabalhador “(…) não poderá deixar de ser objecto de uma tutela o mais ampla possível e ele é, em princípio, livre para tudo o que não respeite à execução do contrato”; “na empresa, a liberdade civil do trabalhador (…) encontra(-se) protegida contra limitações desnecessárias e (…) qualquer limitação imposta a essa liberdade deverá revestir uma natureza absolutamente excepcional, só podendo encontrar justificação na necessidade de salvaguardar um outro valor (a correcta execução do contrato) que, no caso concreto, se deva considerar superior”.
Z. Os “direitos do trabalhador só podem ser legitimamente limitados se – e na medida em que – o seu exercício impedir ou dificultar a normal actividade da empresa ou a execução da prestação estipulada”. E a limitação “não pode justificar-se senão em obediência aos (…) critérios de proporcionalidade (na dimensão de necessidade, adequação e proibição do excesso) e de respeito pelo conteúdo essencial mínimo do direito atingido” - In Caderno de Direitos Fundamentais e de personalidade do trabalhador-Jurisdição do trabalho e da empresa, 2003, CEJ, Pág. 18.
AA. O que, em todo o caso, torna o recurso da Recorrente surpreendente por nos parecer defender a limitação de direitos não só de uma trabalhadora, sujeitos a Tutela, nos termos do disposto nos artigos 186.º-D a 186.º-F do CPT.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverão as presentes contra-alegações ser recebidas e, em consequência, ser o recurso ordinário de apelação interposto pela Recorrente B…, Lda. julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença proferida (…)”
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca as seguintes questões:
- saber se o tribunal recorrido violou as normas do nº 1 do artigo 280º, do artigo 400º e dos artigos 236º e 237º, todos do Código Civil, ao considerar nula a cláusula aqui em discussão;
- caso assim não se entenda, saber se mantendo-se a nulidade dessa cláusula, deveria ter havido restituição do que foi indevidamente prestado, tendo o tribunal recorrido violado o nº 1 do artigo 289º do CC ao assim não decidir.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
“II – Fundamentação:
1. De facto:
1.1. Dos factos provados:
1. A autora B…, Lda. dedica-se ao comércio de móveis e tem como seu sócio-gerente D….
2. No ano de 1988, a C… passou a exercer a sua actividade profissional por conta, sob autoridade e direcção de D…, mediante celebração de um contrato de trabalho verbal, para exercer funções inerentes à categoria profissional de empregada de balcão extraídos dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
3. No dia 9.11.2017, a ré, através do seu então Advogado, remeteu a D…, que recebeu no dia 10.11.2017, uma carta, datada de 07.11.2017, através do qual resolvia o contrato de trabalho descrito em 2), com justa causa.
4. No dia 12.12.2017, a ré C… assinou um documento, datado de 12 de Dezembro de 2017, intitulado “Declaração de Recebimento”, com o seguinte teor:
«DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO
C…, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ………… válido até 06.03.2019, contribuinte n.º ……….., portador do n.º da Segurança Social …………, residente na Rua…, n.º .., ….-… …, declara que recebeu da sociedade B…, LDA, pessoa colectiva n.º………, com sede na Rua…, n.º …, …, da freguesia da …, do concelho de Vagos do distrito de Aveiro, com o código de certidão permanente ….-….-…., a quantia de 1609,25€, (mil seiscentos e nove euros e vinte e cinco cêntimos) correspondente a um prémio de assinatura do contrato de trabalho com essa sociedade.
Mais declara que com o recebimento da aludida quantia, renuncia a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00.».
5. E nesse mesmo dia 12.12.2017, a ré C… assinou um documento, datado do mesmo dia 12 de Dezembro de 2017, intitulado “Declaração de Recebimento”, com o seguinte teor:
«DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO
C…, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ………… válido até 06.03.2019, contribuinte n.º ………, portador do n.º da Segurança Social …………., residente na Rua…, n.º …, ….-… …, declara que recebeu de D…, portador do Cartão do Cidadão n.º …….... válido até 15.01.2021, contribuinte n.º ………, residente na Rua…, n.º …, …, da freguesia …, do concelho de Vagos do distrito de Aveiro, a quantia de 301,25€, (trezentos e um euros e vinte e cinco cêntimos) correspondente à compensação e bem como todos os créditos vencidos e os exigíveis por efeito da cessação do contrato de trabalho ocorrido entre ambas.
Com o recebimento da aludida quantia, que inclui já todos os créditos resultantes do contrato de trabalho, sua cessação ou violação, a declarante, livremente e de boa-fé, dá plena e integral quitação à declaratária, por todos e quaisquer créditos ou direitos que sobre ela tivesse por nada mais ter a exigir ou a reclamar seja a que título for. Aliás, mesmo que outros créditos ou direitos referentes ao aludido contrato de trabalho ou de outro qualquer motivo a declarante tivesse sobre a declaratária, fossem eles quais fossem, a eles, esclarecida e expressamente, renuncia.».
6. A assinatura da Ré inserta nas declarações descritas em 4) e 5) foram reconhecidas presencialmente no Cartório Notarial da Notária Dr.ª E….
7. Ainda nesse dia, 12.12.2017, a Autora B…, Lda. e a ré C… assinaram um documento intitulado “Contrato de trabalho sem termo”, através do qual, além do mais, esta foi admitida ao serviço daquela, sob a autoridade e direcção desta, exercer funções inerentes à categoria profissional de servente de comércio e armazém, executando tarefas não especificadas, não necessitando de qualquer formação específica; procederá ainda à limpeza dos móveis, do interior e do exterior do estabelecimento, carregar e descarregar móveis, fazer a respectiva montagem e entrega nos clientes, montagem e desmontagem de candeeiros […], mediante a retribuição mensal ilíquida de €654,00, correspondente ao valor de €13,63 por cada hora de trabalho, acrescida do subsídio de refeição por cada dia de trabalho efectivamente prestado no valor de €4,30.
8. Pelo referido em 7) a ré deu início à sua actividade laboral no dia 02.01.2018. - extraído dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
9. Pelo menos a partir de Setembro de 2017, a A. sofreu de depressão, tendo sido acompanhada em consultas de neurologia pelo Dr. F…, pelo menos desde Outubro de 2017 – extraídos dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
10. A A. esteve de baixa médica desde pelo menos 12 de Setembro de 2017, até pelo menos 1 de Janeiro de 2018. extraídos dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
11. A A. foi medicada, nomeadamente, com “Xanax” e “Prozac”. extraídos dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
12. De acordo com a respectiva bula, aprovada pelo Infarmed, o “Xanax” pode provocar, entre outros, os seguintes efeitos secundários (embora não se manifestem em todas as pessoas): Depressão, sedação, sonolência, falta de coordenação dos movimentos, alteração da memória, dificuldade em articular as palavras, tonturas, dor de cabeça, cansaço, irritabilidade, confusão, desorientação, insónia, nervosismo, perturbação do equilíbrio, alteração da coordenação, sono anormalmente prolongado, sono profundo, tremor, visão turva, náuseas e alucinações. extraídos dos factos assentes insertos na sentença, datada de 29.03.2019, transitada em julgado, Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1.
13. No dia 18.10.2018 a Ré propôs junto do Juízo de Trabalho de Aveiro, distribuído ao Juiz 1, e atribuído o n.º de processo 3537/18.1T8AVR, acção contra D… e a Autora B…, Lda., através da qual peticionou:
a) que seja considerado nulo o contrato de trabalho que celebrou com a R. “B…, Ld.ª”, por ser ilegal e contrário à lei, assim como, pelos mesmos fundamentos, os documentos por si outorgados em 12 de Dezembro de 2017 e a cessação do contrato de trabalho que anteriormente vigorava com o R. D….
b) que seja reconhecida a justa causa na resolução do contrato de trabalho que operou, com fundamento na falta culposa dos RR. no pagamento pontual da retribuição.
c) A condenação dos RR., solidariamente, a pagarem-lhe o montante global de €32.243,28, assim discriminado:
c.1) €897.48, relativos a salários não pagos e proporcionais;
c.2) €29.430,00, a título de indemnização pela resolução com justa causa do contrato de trabalho, nos termos do art. 396º n.º 1 do Código de Trabalho;
c.3) €1.915.80, de formação profissional não proporcionada.
d) A condenação dos RR. a pagarem-lhe juros de mora à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
14. No âmbito do Processo n.º 3537/18.1T8AVR, que correu termos no Juízo do Trabalho de Aveiro, Juiz 1, por sentença, datada de 29.03.2019, já transitada em julgado, em que aí era autora a ré C… e réus a aqui autora B…, Lda., e D…, além do mais foi julgado improcedente o pedido de reconhecimento da justa causa na resolução do referido contrato de trabalho.
15. E, bem assim, foi julgado improcedente o pedido de reconhecimento da nulidade, por vício de vontade, do contrato de trabalho que celebrou com a R. “B…, Ld.ª” e, bem assim, das declarações descritas em 4) e 5).
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Como decorre do relatório elaborado, são duas as questões colocadas pela Recorrente, sendo que a segunda está dependente da decisão negativa da primeira.
Na verdade, a recorrente, em primeira linha, insurge-se contra a decisão proferida pelo tribunal recorrido na parte em que considerou nula a cláusula mencionada na declaração referida no ponto 4 dos factos provados, por ter considerado que a mesma tinha um objecto indeterminável (nº 1 do artigo 280º; cfr. artigo 400º do CC).
É o seguinte o teor dessa declaração:
“4. No dia 12.12.2017, a ré C… assinou um documento, datado de 12 de Dezembro de 2017, intitulado “Declaração de Recebimento”, com o seguinte teor:
«DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO
C…, casada, portadora do documento de identificação civil n.º ………… válido até 06.03.2019, contribuinte n.º ………, portador do n.º da Segurança Social …………, residente na Rua…, n.º .., …. - … …, declara que recebeu da sociedade B…, LDA, pessoa colectiva n.º ……., com sede na Rua…, n.º …, …, da freguesia …, do concelho de Vagos do distrito de Aveiro, com o código de certidão permanente …. - …. - …., a quantia de 1609,25€, (mil seiscentos e nove euros e vinte e cinco cêntimos) correspondente a um prémio de assinatura do contrato de trabalho com essa sociedade.
Mais declara que com o recebimento da aludida quantia, renuncia a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se, caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00.».
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A parte desta declaração que foi objecto da declaração de nulidade corresponde à parte final, nomeadamente, à parte em que as partes acordaram que a aqui Ré renunciava a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00.
Entendeu o tribunal recorrido que:
“(…) O conteúdo da cláusula em análise cinge-se à obrigação assumida pela ré em renunciar a propor/ intentar qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo fosse.
O seu concreto objecto é abdicação da ré em propor qualquer processo judicial, seja a que título for, contra D…, gerente da sociedade B…, Lda.
Sem grandes delongas expositivas e chamando à colação as considerações teóricas acima descritas, entendo que a predita obrigação – pela sua configuração literal – encerra em si um objecto ou indeterminado, se não existir, não obstante o seu teor, um critério que permita proceder à respectiva determinação; ou encerra em si um objecto indeterminável, quando não exista qualquer critério tendente à sua determinação.
E foi na busca desse critério de determinação que se fixou o único tema de prova enunciado na audiência prévia realizada nestes autos – Termos e amplitude da obrigação assumida de renúncia à propositura de qualquer processo judicial contra, além do mais, a autora –, cujos factos que lhe estariam subjacentes – admissíveis nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil – não resultaram da instrução da causa.
O que se frustrou em absoluto.
Permanecendo incólume o teor da obrigação em discussão nestes autos, cingindo-se à proibição – por assim ter renunciado – a propor qualquer processo judicial, seja a que título for, contra D…, gerente da sociedade B…, Lda.
É, pois, indeterminável o conteúdo desta obrigação, uma vez que obriga a ré, de forma vitalícia, a não propor qualquer acção contra D…, gerente da sociedade Autora, independentemente da causa de pedir que lhe estivesse subjacente, o que colide em absoluto com a certeza jurídica que deve estar implícita no comércio jurídico.
Para uma melhor compreensão do raciocínio aventado, estaria a ré impedida de propor uma acção contra D… assente em responsabilidade extracontratual, quer por factos ilícitos, quer por factos ilícitos? e assente na protecção de direitos de personalidade? e assente no direito de propriedade?… e outros exemplos sem fim que se poderia apontar.
É, pois, indeterminável a obrigação assumida pela ré, cuja sua conformação extravasa os limites legais do princípio da liberdade contratual, equivalendo por dizer que a mesma está ferida de nulidade, nos termos do estatuído artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos obrigacionais na esfera jurídica da Ré.
Desta feita e chamando à colação o disposto no artigo 810.º, n.º 2 do Código Civil acima enunciado, concluindo pela nulidade da obrigação assumida pelas partes, impor-se-á também a conclusão que a cláusula penal que delimita o quantum indemnizatório pelo seu incumprimento deverá ser também ela considerada nula.
Declarada nula a obrigação que lhe subjaz, por invalidade substancial, necessariamente, deverá ser também considerada nula a respectiva cláusula penal.
Assim sendo, deverá este Tribunal declarar a nulidade da cláusula inserta no documento descrito no artigo 4) da matéria de facto assente na renúncia da autora à propositura de qualquer processo judicial contra D…, que a ré verteu em declaração, datada de 12.12.2017, por si assinada, que fora notarialmente reconhecida, e, bem assim, declarar a nulidade da cláusula penal convencionada para o incumprimento daquela e em que assenta o pedido formulado pela autora nesta acção, nos termos do artigo 286.º do Código Civil.
O que determinará a improcedência da acção, absolvendo, por isso, a Ré do pedido contra si formulado (…)”.
*
A recorrente, com o presente recurso, insurge-se contra esta decisão por considerar que, interpretando a cláusula, em face do contexto em que a declaração foi estabelecida, era claro para as partes e para a destinatária que a obrigação “de renunciar a propor/intentar qualquer processo judicial contra D…” era determinável: obrigação de non facere, relativamente a quaisquer processos judiciais relacionados (apenas) com a relação laboral (cessada ou a iniciar).
Vejamos se assim é, começando por enquadrar a questão dentro dos pressupostos de que partiu o tribunal recorrido
Invocou o tribunal recorrido a nulidade da cláusula aqui em discussão (e não de todo o negócio jurídico, como parece ter entendido a recorrente) por ter considerado que a mesma estabelecia uma obrigação indeterminável.
E, de facto, é indiscutível que, segundo o art. 280º, nº 1 do CC, o negócio jurídico cujo objecto seja indeterminável é nulo.
O sentido desta imposição legal é o de que o objecto do negócio pode, portanto, ser indeterminado, mas não indeterminável, e só nesta hipótese é que o mesmo se considera nulo[1].
Como escreveu o Prof. Menezes Cordeiro[2] "a prestação é indeterminada mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor, mas, não obstante, exista um critério para proceder à determinação"; "a prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à determinação".
O negócio será, pois, nulo, por indeterminabilidade do seu objecto, sempre que, no momento da sua concretização, a prestação debitória não esteja definida e do contrato não resultem quaisquer critérios ou limites que a permitam definir ou delimitar no futuro[3].
A questão da indeterminabilidade da obrigação tem sido discutida sobretudo a propósito da designada fiança geral (“omnibus”), tendo sido uniformizada jurisprudência no sentido de que é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
Segundo Pedro Martinez/ F. da Ponte[4], neste âmbito da fiança, a determinabilidade "consiste na possibilidade do fiador..... prefigurar ex ante o tipo, o montante e a medida do próprio compromisso", impondo-se, por isso, "a necessidade de o fiador conhecer o critério ou critérios indispensáveis para delinear o limite do seu compromisso, sendo que a sua eventual obrigação futura deve ter conteúdo previsível no momento da estipulação da fiança".
E no referido Ac. do STJ, para uniformização de jurisprudência, de 23.1.2001, in DR, I-A, de 8.3.2001, concluiu-se justamente que, para a determinabilidade do objecto da fiança, "têm de ser fixados critérios objectivos que permitam no futuro avaliar o conteúdo da prestação de forma que o fiador possa, ab initio, conhecer os limites da sua obrigação ou, pelo menos, os critérios objectivos que lhe facultem tal conhecimento".
Ao prescrever-se a nulidade do negócio cujo objecto seja indeterminável, pretende-se, pois, evitar que o devedor fique ilimitadamente nas mãos do credor ou de terceiros.
Têm sido indicados diversos critérios de determinabilidade, como a existência de limites temporais, de limites máximos, a indicação da fonte das obrigações (operações a efectuar), o especial conhecimento das operações comerciais a realizar e, bem assim, o controlo ou influência do fiador sobre o devedor.
Estas considerações relativas aos casos de fiança, têm, apesar do seu âmbito restrito, interesse para o que aqui se discute, embora, no caso concreto, na cláusula que aqui está em apreciação, estejamos perante a assunção, por parte da Ré, de uma obrigação de non facere, ou seja, de não reclamar judicialmente os seus direitos ou créditos, sejam de que tipo forem.
Ora, se interpretarmos o teor do clausulado aqui em jogo, não podemos deixar de concordar com o tribunal recorrido, pois que é inequívoco que os termos como a cláusula foi redigida (o seu texto) impõem a conclusão de que a mesma é indeterminável – quanto aos critérios ou limites que permitiriam definir ou delimitar no futuro a obrigação assumida pela Ré.
Com efeito, como resulta do seu próprio teor, não há dúvidas que, por força dela, a ré ficaria obrigada, de uma forma vitalícia, a não propor qualquer acção contra D…, gerente da sociedade Autora, independentemente da causa de pedir que lhe estivesse subjacente – já que, quanto a esta, não se indica, nos termos do texto do acordo celebrado, qualquer critério ou limite que permitisse restringir a sua aplicabilidade no futuro.
Daí que o tribunal recorrido tenha concluído que o âmbito da obrigação assumida pela ré fosse indeterminável, com as consequências previstas no art. 280º, nº 1 do CC
E convém referir que é justamente para evitar estas situações que este preceito legal sanciona com a nulidade as cláusulas contratuais com este teor indeterminável.
Importa voltar aqui há distinção atrás avançada.
Como referimos, a cláusula aqui em discussão será válida se chegarmos à conclusão que o seu conteúdo será determinável - embora no momento da celebração pudesse ser indeterminado.
Ou seja, a prestação é indeterminada, mas determinável, mas isso só sucede quando, embora não se sabendo num momento anterior qual o seu teor, exista, no entanto, um critério que possibilite futuramente determiná-la. Sendo a mesma, ao invés, indeterminável quando inexiste qualquer critério para proceder à sua determinação. Nesta última hipótese, a obrigação indeterminável assumida será, então, nula.
Ora, é justamente esta última situação a que sucede no caso concreto.
Em primeiro lugar, importa referir que esta exigência da determinabilidade da prestação é, naturalmente, aplicável à obrigação assumida pela Ré, pois que, como iremos referir, esta pressuposto legal constitui um limite da autonomia privada.
Ora, como é bom de ver, não pode alguém declarar, de uma forma indeterminável (no sentido atrás explanado), que, na sequência de um acordo estabelecido (pela qual as partes acordaram que a ré receberia como prémio de assinatura de um contrato de trabalho uma determinada quantia), se obrigava “a renunciar a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00.”.
Repare-se que esta cláusula se mostra em sintonia com a estabelecida no outro acordo celebrado nesse mesmo dia, já que este também não restringe o seu cumprimento aos créditos que resultassem do contrato de trabalho.
Com efeito, embora essa menção ao contrato de trabalho conste da cláusula desse outro acordo, o que é certo é que também nesse acordo, as partes estabeleceram que, com o recebimento da quantia nele mencionado (relativa à cessação do contrato de trabalho), a Ré “dá plena e integral quitação à declaratária, por todos e quaisquer créditos ou direitos que sobre ela tivesse por nada mais ter a exigir ou a reclamar seja a que título for. Aliás, mesmo que outros créditos ou direitos referentes ao aludido contrato de trabalho ou de outro qualquer motivo a declarante tivesse sobre a declaratária, fossem eles quais fossem, a eles, esclarecida e expressamente, renuncia
Ora, como se pode ver, em ambos os acordos, o que ficou estabelecido é que a Ré renunciaria a qualquer crédito ou direito que “por qualquer motivo” ou “seja a que título for” detivesse sobre a Autora (como contraprestação do “prémio de assinatura do contrato” ou da “quantia correspondente à compensação e bem como todos os créditos vencidos e os exigíveis por efeito da cessação do contrato de trabalho ocorrido entre ambas”).
Ou seja, é inequívoco que, em ambos os acordos, não foi estabelecido qualquer critério delimitador da renúncia a exercer os seus eventuais direitos ou créditos a que se obrigou a Ré, sendo essa sua obrigação de renúncia estabelecida em termos indetermináveis (renúncia a todos direitos e créditos seja qual for a sua origem e renuncia a interpor qualquer acção judicial seja qual for a causa de pedir em que se funde).
O que significa que esta renúncia a interpor acções judiciais - tal como a que diz respeito a quaisquer direitos e créditos seja a que título for, nos termos mencionados nos acordos - não se mostra delimitada nem restringida, seja quanto à sua fonte (por exemplo apenas aos direitos fundados na relação laboral), seja quanto à sua limitação temporal (decorre do clausulado que a obrigação é assumida sem limitação temporal).
É por isso que o tribunal recorrido concluiu – e bem – que a cláusula aqui em discussão é nula por ser indeterminável (art. 280º, nº 1 do CC).
Trata-se de uma previsão contratual que, além de ser indeterminável - porque se aplica a todos os direitos e acções de que a Ré seria detentora ou que venha a ser detentora - é, mais do que isso, inclusivamente, ilegal (ilícita).
Com efeito, como se refere no ac. da RL de 11.10.2007 (relator: Jorge Leal), in dgsi.pt: “É certo que a lei, a fundamental e a ordinária, dão, a todos, o direito de acesso aos Tribunais e a dirimir neles os conflitos em que se vejam envolvidos, mas isso não significa que, a par de tal direito, se lhes proíba também que relativamente a questões concretas, devidamente individualizadas, as pessoas não possam comprometer-se a prescindir de vir a introduzir em juízo acção referente a um concreto caso e se o fizerem, tal comportamento processual viola o contrato, mas não viola lei imperativa.
O que a lei impede é que as pessoas se vinculem «tout court» a não recorrer aos tribunais, que elas prescindam, face a outrem, de defender os seus interesses em juízo. O compromisso concreto referente e dirigido a uma dada relação jurídica não viola tal direito fundamental”.
Ora, como decorre do exposto, as cláusulas atrás transcritas, preenchem justamente esta última asserção (que destacamos a “bold”).
Com efeito, não podiam as partes ter estabelecido, no acordo que subscreveram, que a renúncia à interposição de acções se estabelecesse para todos os direitos da Ré, não se restringindo o seu âmbito de aplicação (por exemplo, apenas aos direitos fundados na relação laboral cessada).
Insiste, no entanto, a recorrente que esta interpretação, a que aqui também chegamos, atende apenas ao texto da cláusula, não atendendo ao contexto em que o mesmo foi celebrado (refira-se que a interpretação que já fomos efectuando do segundo acordo estabelecido já indicia que assim não será – mas à frente voltaremos a esta matéria interpretativa).
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, e uma vez que, como bem referiu o Tribunal Recorrido, a prova produzida não trouxe qualquer contributo para a interpretação das transacções, não podem existir dúvidas que a interpretação do respectivo clausulado efectuado na decisão recorrida é aquela (a única) que merece aqui acolhimento.
Com efeito, como bem refere o tribunal recorrido, a verdade é que, tendo sido enunciado como tema da prova, a busca desse critério de determinação (– Termos e amplitude da obrigação assumida de renúncia à propositura de qualquer processo judicial) a verdade é que tais termos não resultaram da instrução e julgamento da causa.
Assim, em face dessa frustração, permaneceu incólume o teor da obrigação em discussão nestes autos, cingindo-se à proibição – por assim ter renunciado – a propor qualquer processo judicial, seja a que título for, contra D…, gerente da sociedade B…, Lda.
Nessa medida, não se produzindo qualquer outra prova, e constatando-se que a prova produzida não pode assumir qualquer relevância na interpretação da “vontade (intenção) das partes”, resta ao presente Tribunal – tal como sucedeu ao Tribunal Recorrido - socorrer-se da interpretação do clausulado dos acordos estabelecidos entre as partes e que se mostram mencionadas na matéria de facto.
A tarefa, pois, que incumbe aqui realizar é a de interpretação do contrato (acordo), tendo em conta as cláusulas contratuais já atrás mencionadas, e todas as circunstâncias que o legislador manda atender nesta sede interpretativa.
Antes de entrarmos nessa tarefa interpretativa, importa aqui, no entanto, enquadrar juridicamente a cláusula aqui em jogo, pois que a mesma poderia reflectir uma situação típica do direito do trabalho.
Com efeito, os acordos como aqueles que aqui foram celebrados poderiam enquadrar-se na chamada remissão abdicativa prevista no art. 863º, nº 1 do CC, onde se estabelece justamente que “[o] credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor”.
É sabido que a remissão constitui uma das causas de extinção das obrigações, assumindo natureza contratual.
Diferentemente do que se verifica com o “cumprimento”, em que a obrigação se extingue pela realização da prestação, ou com a “consignação” e a “prestação”, em que o interesse do credor é satisfeito por forma distinta da realização da prestação, na “remissão”, tal como na “confusão” ou na “prescrição”, a obrigação não chega a ser cumprida: ela extingue-se por mera renúncia do credor.
Para que se forme o contrato é necessária a verificação de duas declarações negociais: uma proferida pelo credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia.
A causa da remissão pode ser variada. Se tiver carácter de liberalidade, aplica-se o regime da doação (nº 2 do art. 863º do CC). Se o contrato tiver por causa visar prevenir ou terminar um litigio mediante concessões recíprocas das partes (por exemplo, remitem as obrigações contrapostas emergentes de uma relação sinalagmática), tratar-se-á de contrato de transacção (art. 1248º do CC) [5].
“A remissão abdicativa tem grande aplicação no plano juslaboral, por força da orientação jurisprudencial firme que admite que diante das circunstâncias do caso possa valer como tal a chamada “quitação total e plena” (ou “ampla”) dada pelo trabalhador ao empregador no acordo de cessação do contrato de trabalho ou terminada, por qualquer outra causa, a relação laboral.
Para que tal suceda exigem os nossos tribunais superiores que a declaração do trabalhador – na qual este afirma que recebeu do empregador certa/s quantia/s a certo/s titulo/s e, bem assim, que se considera integralmente pago de todos os créditos emergentes do vinculo laboral que finda, dos quais dá quitação, afirmando ainda nada mais ter a haver – traduza uma remissiva esclarecida e livre, emitida no contexto de um acerto final de contas e mediante a atribuição àquele de uma quantia, expressão de uma adequada composição dos interesses contrastantes das partes “[6].
Como refere o ac. do STJ de 22.2.2017 (relator: Gonçalves Rocha), in dgsi.pt: “O direito laboral prevê esta forma de extinção das obrigações resultantes dum contrato de trabalho ou da sua cessação, nomeadamente no artigo 349º do CT (2009) a que correspondia o disposto nos artigos 393º e 394º do CT (2003).
Assim, por expressa previsão da norma, trabalhador e empregador poderão fazer cessar o contrato de trabalho através dum acordo, que deverá revestir a forma escrita (349º/2), devendo constar do documento a data da produção dos seus efeitos (nº 3), e podendo para além disso as partes acordar numa compensação pecuniária de natureza global para o trabalhador, presumindo-se então que nesta compensação foram incluídos e liquidados todos os créditos devidos ao trabalhador à data da cessação do contrato ou exigíveis por força desta cessação (nº 5).
O acordo celebrado neste caso poderá integrar uma remissão abdicativa do trabalhador (…); tudo se resume em apurar se a declaração do trabalhador, nos termos em que se mostra elaborada, assume carácter remissivo, ou seja, se podemos concluir da mesma que ele quis renunciar a impugnar judicialmente a validade do termo aposto ao contrato e a reclamar os direitos daí emergentes.
Por isso, temos de apurar se a parte credora declarou que renuncia aos direitos que veio reclamar nestes autos, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse que a lei lhe conferia, conforme acentua Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, pág. 243, 2º volume, 7ª edição.
Na verdade, tratando-se dum contrato de remissão, este constitui um negócio jurídico bilateral que pressupõe um conteúdo intelectual (o credor tem que saber que o crédito se mostra insatisfeito) e um conteúdo volitivo (o credor pretende renunciar ao crédito), pelo que a vontade de remitir deverá, de forma concludente, resultar da interpretação da declaração negocial aferida em função do concreto circunstancialismo de cada caso (…)”[7].
Ora, pergunta-se: poderá a cláusula aqui em discussão ser entendida como uma remissão abdicativa válida com o seu âmbito restringido ao direito laboral (com natureza equivalente a estas a que se alude na jurisprudência citada)?
A resposta, adiantando já a conclusão, terá que ser forçosamente negativa.
Expliquemos porquê.
A razão é simples.
A cláusula aqui em discussão ultrapassa, de uma forma inequívoca, a figura que acabamos de retractar.
Com efeito, ainda que se possa admitir que a recorrente possa ter pretendido estabelecer uma remissão abdicativa típica de uma relação laboral, a verdade é que, ao fazê-lo, não cuidou de restringir o seu âmbito de aplicação aos eventuais direitos e/ou créditos emergentes do vinculo laboral estabelecido - ou a estabelecer - entre a Autora e/ou o seu legal representante e a aqui Ré.
Na verdade, neste âmbito, não podiam as partes ter acordado que a Ré abdicaria, de uma forma indeterminável (para voltar à argumentação do tribunal recorrido), de todos os créditos e direitos que deteria sobre aquele(s), renunciando a instaurar contra o(s) mesmo(s) qualquer tipo de acção judicial seja a que título for.
Como já referimos, uma cláusula com este teor é não só nula, por ser indeterminável, como além disso é ilegal (ilícita), porque a lei (e a Constituição da República Portuguesa) impede que as pessoas se possam vincular, sem qualquer restrição, a não recorrer aos tribunais (art. 280º, nº 1 do CC; cfr. também art. 20º da CRP: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos… “; e art. 2º do CPC).
Trata-se de um direito fundamental constitucionalmente consagrado que não se encontra na disponibilidade das partes e por isso não pode ser objecto de transacção.
Nessa medida, a admissão da renúncia genérica a interpor acções judiciais constante da cláusula em causa acarretaria necessariamente uma renúncia antecipada a direitos, ilegal e inconstitucional.
Uma coisa é aceitar, como se admite no âmbito laboral, que as partes possam abdicar de determinados créditos ou direitos emergentes do vinculo laboral; outra coisa, bem diferente, é aceitar que as mesmas prescindam de uma forma genérica, perante outrem, de defender os seus interesses em juízo “seja a que título for”, sem que tal renúncia esteja delimitada por uma determinada fonte das obrigações ou por determinado limite temporal.
Este tipo de cláusula não é admitida pela ordem jurídica, não podendo as partes, mesmo no âmbito da liberdade contratual (art. 405º do CC), estabelecer um acordo com este objecto ou efeito jurídico.
Na verdade, “será contrário à lei (ilícito) o objecto de um negócio, quando viola uma disposição da lei, isto é quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato…”[8].
Como decorre do disposto no art. 405º do CC, o exercício da autonomia privada não é reconhecido de modo absoluto, pois que, na primeira parte deste preceito legal, logo se enuncia que a liberdade contratual se exerce “dentro dos limites da lei”.
Nessa medida, o clausulado de qualquer contrato tem de ser apreciado “à luz dos três parâmetros relevantes, a saber: o respeito pela lei, pela ordem pública e pelos bons costumes”[9].
No direito vigente, como decorre do exposto, “inexiste uma proibição geral explicita de renunciar ao exercício de direitos. Pelo contrário, autorizam-se mecanismos que produzem, precisamente aquele efeito”[10].
Um desses mecanismos é justamente o previsto no art. 863º do CC (remissão abdicativa).
O juízo em torno da sua admissibilidade (da renúncia de direitos) exige uma ponderação casuística e “tem de passar pela alegação e prova, em geral, do preenchimento dos pressupostos e requisitos de validade dos negócios jurídicos relativos aos sujeitos, objecto, vontade, declaração e causa negociais”.
Ora, um desses pressupostos é o de que “não deve ser reconhecida eficácia a um acto de renúncia genérica e abstracta ao universo de situações de que se é titular”[11] (…).
“Em segundo lugar, o acto de renúncia em sentido técnico-jurídico exige um objecto que preencha os requisitos legais de idoneidade negocial, nos termos gerais do art. 280º do CC. Em concreto, reclama-se um objecto existente, no momento em que se abdica do exercício de uma situação jurídica ou de um determinado meio de tutela”[12].
Assim, embora se possa aceitar, como princípio geral, a admissibilidade da renúncia antecipada de direitos, a verdade é que tal admissibilidade deve ser submetida a um juízo casuístico sobre a validade de um acto de renúncia com a convocação de “outras coordenadas gerais do sistema, entre os quais, o art. 280º do CC”[13].
Ora, no caso concreto, atendendo ao teor da cláusula aqui em discussão, julga-se que efectivamente a mesma não resiste a este juízo casuístico, uma vez que da mesma resulta que a ré se obriga “a um acto de renúncia genérica e abstracta ao universo de situações de que se é titular” (a não propor qualquer tipo de acção judicial), não podendo ser reconhecida validade à mesma, face à sua indeterminabilidade e à sua ilicitude (art. 280º do CC) – conforme decorre do exposto.
A recorrente defende, no entanto, que a cláusula não deve ser interpretada nesse sentido amplo, defendendo que a restrição do seu âmbito ao domínio laboral resultará “do contexto” em que foi estabelecida a cláusula.
Apela, assim, a recorrente a que se proceda à interpretação da cláusula, convocando outros critérios interpretativos que não se atenham só ao texto da cláusula.
Vejamos, em síntese, quais são essas circunstâncias e que constituem, em termos gerais, os critérios que o legislador indica no art. 236º do CC.
É conhecida a regra legal essencial na interpretação dos contratos: a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº 1, do CC).
É generalizadamente aceite que o legislador consagrou a doutrina da impressão do destinatário, de cariz objectivista, valendo a declaração com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Assim, do citado preceito legal resulta que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia.
“Há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, ….e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” [14], sendo que o declaratário normal corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias, de instrução, inteligência e diligência normais.
Por outro lado, no domínio da interpretação de um contrato podem surgir como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos"[15]; ou, dito de outra maneira, “… os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc…”[16].
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).
Nos negócios formais acresce que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1, do CC)[17].
Estas considerações podem aqui ser resumidas nos seguintes pontos[18]:
1. Em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (art. 236º, nº 2 do CC);
2. Se tal vontade real não for conhecida, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
3. no domínio da interpretação de um contrato surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos;
4. nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso - não se aplicando, no entanto, tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (art. 238º, nº 2 do CC);
Uma vez que esclarecidas estas regras interpretativas, importa, então, proceder à interpretação do clausulado do acordo, tendo em conta a argumentação desenvolvida pelo Tribunal Recorrido e a argumentação da Recorrente, já atrás mencionada.
Tendo em conta as aludidas regras interpretativas, no caso concreto, importa começar a interpretação pelo clausulado do acordo, partindo do seu elemento literal.
Ora, como decorre amplamente do já exposto, ponderando o texto da cláusula, e na ausência de produção de qualquer elemento probatório de onde pudesse decorrer o apuramento da intenção das partes, surge como evidente que daquele elemento literal resulta que a interpretação, que a recorrente continua, no presente Recurso, a defender, não encontra qualquer acolhimento no texto do clausulado, antes mostra-se contrariado por aquele.
Nessa medida, julga-se que o elemento literal da cláusula aqui em aplicação é decisivo para a interpretação que aqui se tem de efectuar, e não deixa margem para qualquer outra interpretação, nomeadamente se tivermos em conta que, quanto ao apuramento da intenção/vontade das partes, não foi apurado qualquer indicio no sentido indicado pela recorrente, durante a instrução e julgamento da causa - apesar de tal apuramento ter sido mencionado como tema da prova.
Como se pode ver, no caso concreto, não consta da matéria de facto provada qualquer indicação sobre a vontade real dos declarantes, para além daquilo que se infere do clausulado do contrato.
Tratando-se de um documento escrito, a interpretação deve, pois, começar com a interpretação do texto dos acordos que foram subscritos pelas partes.
Ora, dessa análise interpretativa é fácil constatar que a interpretação que a recorrente/autora pretende dar ao acordo não tem o “mínimo de correspondência com o texto” do clausulado do acordo celebrado.
Na verdade, procurando no texto do acordo, não se logra encontrar nele qualquer elemento interpretativo textual que permita acolher, no seu âmbito, a interpretação defendida pela recorrente.
Com efeito, como se demonstrou, do texto das cláusulas o que decorre é justamente que as partes declararam que a ré se obrigava “a renunciar a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se, caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00”.
De resto, como já referimos, esta redacção mostra-se em consonância com o teor do outro acordo celebrado na mesma data, onde também se prevê que a Ré se obrigava a renunciar a outros créditos ou direitos que detivesse sobre a Autora “por outro qualquer motivo (que não fossem referentes ao contrato de trabalho) … fossem eles quais fossem… “.
Independentemente destas considerações relativas à “letra” do(s) acordo(s) estabelecido(s) pelas partes, sempre se terá que dizer que, mesmo atendendo ao entendimento de um “homem médio”, tal interpretação é a única que merece acolhimento.
Como se referiu, desconhecendo-se a vontade real dos declarantes, devem os termos de um contrato ser interpretados no sentido de apurar o sentido da declaração que um declaratário normal, medianamente instruído, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante.
Ora, tendo em conta estas considerações, afigura-se-nos que, face ao que já ficou dito quanto ao clausulado do contrato, aquele homem médio interpretaria o âmbito do(s) acordo(s) no aludido sentido.
Aqui chegados, e tendo em conta as regras interpretativas atrás enunciadas, julga-se que outra conclusão não se pode atingir, em face do teor do clausulado do acordo estabelecido entre as partes.
Repare-se que, contrariamente ao defendido pela Recorrente, nenhum outro elemento interpretativo consegue pôr em causa o que decorre do clausulado dos dois acordos (e o facto de serem duas cláusulas não pode deixar de ser muito relevante, porque reforça claramente que é esse o único sentido interpretativo que aqui pode ser acolhido), e daquela interpretação realizada em função do declaratário normal medianamente instruído colocado na posição real daquele.
Na verdade, nenhum dos invocados argumentos da recorrente constitui um elemento interpretativo que possa pôr em causa a interpretação que aqui se confirma.
Nesta conformidade, esta interpretação efectuada pelo Tribunal Recorrido – e que aqui corroboramos - não pode ser afastada pela argumentação da recorrente que, sem pôr em causa as regras interpretativas aplicáveis ao caso concreto, pretendia, no fundo, que fossem valorados outros elementos interpretativos que, na sua opinião, conduziriam a uma outra conclusão, conclusão que, no entanto, aqui não acolhemos pelas razões expostas.
Improcede a argumentação da recorrente e, nessa medida, o fundamento invocado para revogar a decisão recorrida.
*
Aqui chegados, importa entrar no segundo fundamento invocado pela recorrente.
Defende esta que, mantendo-se a nulidade da cláusula – como aqui concluímos -, deveria ter havido restituição do que foi indevidamente prestado, tendo o tribunal recorrido violado o nº 1 do artigo 289º do CC, ao assim não decidir.
Julga-se, no entanto, que a recorrente também aqui não tem razão.
É que a recorrente confunde a nulidade de uma cláusula com a nulidade de um negócio jurídico.
Se o negócio jurídico fosse nulo, a consequência seria, de facto, a restituição de tudo o que tiver sido prestado…” (art. 289º do CC).
Mas “a existência de uma ou mais cláusulas nulas ou anuláveis não determina desde logo a invalidade total do negócio. É ainda possível salvar parte do conteúdo e efeitos do acto”[19].
Ora, no caso concreto, o que o tribunal recorrido decidiu – e o que aqui foi confirmado – foi apenas que uma das cláusulas do acordo celebrado entre as partes era nula, afastando-se, nessa sequência, a sua aplicabilidade.
Com efeito, apenas se declarou nula a parte do acordo em que as partes estabeleceram que “a ré se obrigava “a renunciar a interpor qualquer processo judicial contra D…, gerente da sociedade B…, Lda., seja a que titulo for, obrigando-se, caso faça uso desse seu direito a interpor qualquer processo judicial, a indemnizar a sociedade B… numa indemnização correspondente a 24 vezes €654,00”.
A restante estipulação das partes onde a ré declarava que recebeu da sociedade B…, Lda., a quantia de 1609,25 €, (mil seiscentos e nove euros e vinte e cinco cêntimos) correspondente a um prémio de assinatura do contrato de trabalho com essa sociedade não é afectada por essa nulidade.
Ora, achando-se afastada a cláusula declarada nula (a segunda parte do acordo), por ser indeterminável ou ilícita (art. 280º do CC), a restante parte do acordo celebrado deve manter-se válida (cfr. art. 292º do CC), uma vez que, atento o seu teor, não se pode concluir que o mesmo não tivesse sido concluído sem a parte viciada (princípio do favor negotii, isto é, da preferência legal pela manutenção do negócio jurídico, mesmo inválido parcialmente, sempre que tal seja possível).
Com efeito, não se pode concluir que a cláusula declarada nula (que poderá, como defendeu o tribunal recorrido, configurar uma cláusula penal – art. 810º do CC) fosse um elemento essencial à identidade da remanescente parte do acordo celebrado (atribuição de um prémio de assinatura do contrato), não se podendo afirmar, em face dos factos considerados provados, que a restante parte do negócio jurídico não teria sido celebrada sem a referida parte considerada inválida.
Repare-se que o âmbito de aplicação da cláusula declarada nula não se exercia em função do incumprimento daquela primeira obrigação que se manteve válida; mas sim da obrigação da ré “a renunciar a interpor qualquer processo judicial” contra o legal representante da Autora.
De resto, a prova impeditiva dessa redução, e de que o elemento viciado não era secundário, mas sim essencial para a identidade, configuração do negócio jurídico, incumbia à recorrente, não tendo esta logrado cumprir tal ónus de prova (art. 342º, nº 2 do CC).
Com efeito, incumbe ao contraente que pretende a invalidade total do negócio (a recorrente) a demonstração de que a vontade conjectural das partes seria num sentido oposto à redução – o que esta não logrou provar.
Aliás, em situações em que permaneçam dúvidas quanto à vontade conjectural dos contraentes, deve o negócio ser reduzido, em concordância com aludida regra da redutibilidade parcialmente inválido estabelecida no art. 292º do CC.
Uma última referência para o facto de o tribunal poder operar de uma forma oficiosa esta redução, o que decorre do facto de a nulidade ser ela também de conhecimento oficioso (art. 286º do CC)[20].
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.
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Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, porque se concorda com a fundamentação de direito aduzida pelo Tribunal de Primeira Instância, decide-se manter a decisão proferida.
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III - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
- julgar totalmente improcedente a presente apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente (artigo 527º, nº 1 do CPC).
Notifique.
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Porto, 6 de Março de 2021
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
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[1] P. de Lima /A. Varela, in “CC anotado”, Vol. I, pág. 240; Ac. do STJ, de 21.1.93, in CJ, t. I, pág. 71.
[2] In “Impugnação Pauliana, Fiança de Conteúdo Indeterminável”, CJ, 1992, T. III, pg. 61.
[3] Na jurisprudência, v. por ex. o ac. do STJ de 21.6.2016 (relator: Hélder Roque) onde se refere o seguinte: ”O objecto do negócio pode ser indeterminado, mas não indeterminável, sendo que a prestação é indeterminada, mas determinável, quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor, mas, não obstante, exista um critério para se proceder à determinação, sendo a prestação indeterminada e indeterminável e, consequentemente, nula quando não exista qualquer critério para proceder à determinação. Assim, não será válida a obrigação sempre que o objecto da prestação se não encontre, desde o momento da celebração do negócio, completamente, individualizado, e nem possa vir a ser concretizado, em momento posterior, por falta, ou, eventual inoperância de um critério, para esse efeito, estabelecido pelas partes, no respectivo negócio jurídico, ou pela lei, em normas supletivas, ou com recurso ao critério supletivo dos juízos de equidade. Deste modo, nos casos de mera indeterminação de prestação de objecto determinável, o negócio é válido, e não já nulo, como nas situações de indeterminabilidade, realizando-se a determinação, em conformidade com os parâmetros definidos pelo artigo 400º, do Código Civil. Ora, achando-se já afastada da «cláusula primeira» o segmento que a tornava indeterminável, a restante parte da cláusula deve manter-se válida, como foi decidido pelo acórdão impugnado”.
[4] In “Garantias de Cumprimento”, pág. 36.
[5] Tiago Azevedo Ramos, in “CC anotado” (Coord, Ana Prata), Vol. I, pág. 1079.
[6] Joana Vasconcelos, in “Comentário ao CC” (Direito das obrigações – Obrigações em Geral), Vol. II, pág. 1299.
[7] V. por exemplo, o ac. da RP de 4.12.2017 (relator: Domingos Morais), in dgsi.pt, onde se concluiu que: “I - A remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, assumindo natureza contratual – art. 863.º, n.º 1, do CC. II - A declaração feita pelo trabalhador, em documento por si assinado, na qualidade de gerente da empresa e, simultaneamente, de trabalhador, dizendo “que todos os créditos resultantes do referido contrato de trabalho e da respectiva cessação já se encontram pagos, nada mais lhe sendo devido pela ré, seja a que titulo for”, tem sentido liberatório e deve ser interpretada, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 236.º do CC, como uma declaração negocial de remissão dos créditos emergentes da relação laboral e não como mera declaração de quitação”. No mesmo sentido, v. o ac. da RC de 21.2.2018 (relator: Jorge Loureiro),in dgsi.pt, onde se concluiu que: “Extinguem-se por remissão abdicativa todos os direitos que poderiam emergir para o trabalhador de um contrato de trabalho, da sua cessação e da declaração de ilicitude da forma como essa cessação foi decidida pelo empregador, incluindo o direito à reintegração, no caso de o trabalhador assinar e entregar ao empregador uma ‘declaração/recibo’ emitida pelo empregador em que consta que ‘… o empregador efectuou o pagamento ao declarante do montante de €1.678,00 a título de compensação’, sendo que ‘a compensação referida no artigo antecedente constitui uma compensação pecuniária global que engloba todos os créditos vencidos à data da cessação do contrato de trabalho ou exigíveis em virtude dessa cessação, já recebida pelo declarante’ e que ‘o declarante dá plena quitação do montante referido no nº 3, que esse montante integra todos os créditos vencidos ou exigíveis em virtude da cessação do contrato de trabalho, não tendo o declarante qualquer outro valor a receber ou a reclamar da entidade empregadora”’. V., no entanto, o ac. do STJ de 20.1.2010 (relator: Bravo Serra) – sumário – in dgsi.pt, onde se conclui o seguinte: “I - A quitação é um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor. II - A remissão é a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com aquiescência da contraparte, e provoca a extinção das obrigações visadas, resultando, assim, do acordo entre os dois titulares da relação creditória. II - Não traduz um acordo de remissão abdicativa, mas antes uma mera quitação, a declaração exarada num documento, elaborado pela Ré, em que o Autor declara “haver recebido determinada a importância de € 1.996,54, por recibos e folhas de pagamento que ficam nos respectivos arquivos como liquidação de contas, correspondentes a todas as importâncias a que tinha (mos) direito e das quais dou (damos) plena e geral quitação, nada mais tendo, por consequência a reclamar, seja a que título for”, uma vez que dela não decorre qualquer vontade de remitir por parte do trabalhador. III - E esse documento também não mostra, mesmo em termos da sua literalidade, qualquer indício da vontade de que o Autor, com a sua subscrição, se aprestou a não impugnar a validade dos contratos de trabalho que celebrara com a Ré e, caso essa impugnação viesse a ser frutuosa, que renunciava a uma reintegração e aos salários ditos de «tramitação»”.
[8] Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição (Pinto Monteiro/ Paulo Mota Pinto), pág. 557; no mesmo sentido, Elsa Vaz Sequeira, in “Comentário ao CC- Parte Geral”, pág. 691.
[9] Ana Filipa Morais Antunes, in “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos” (estudos em homenagem a Germano Marques da Silva), Vol. I, pág. 87.
[10] Ana Filipa Morais Antunes, in “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos” (estudos em homenagem a Germano Marques da Silva), Vol. I, pág. 87. Mais à frente (pág. 109) conclui que: “o princípio da irrenunciabilidade antecipada obsta ao reconhecimento, em geral, de uma renúncia abstracta, ex ante e genérica dos direitos e situações jurídicas que assistam ao sujeito abdicante”.
[11] Ana Filipa Morais Antunes, in “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos” (estudos em homenagem a Germano Marques da Silva), Vol. I, pág. 95.
[12] Ana Filipa Morais Antunes, in “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos” (estudos em homenagem a Germano Marques da Silva), Vol. I, pág. 95.
[13] Ana Filipa Morais Antunes, in “Da irrenunciabilidade antecipada a direitos” (estudos em homenagem a Germano Marques da Silva), Vol. I, pág. 107. Mais à frente (pág. 110) conclui que: “o juízo definitivo quanto aos limites de admissibilidade de um acto de renúncia a direitos tem de ponderar o caso e as circunstâncias concretas, em particular, a natureza do direito a que se renuncia e da norma que o titula, assim como o efeito previsível dessa abdicação”.
[14] Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico”, pág. 208.
[15] Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, pág. 416/417.
[16] Cfr., a este propósito, Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 213.
[17] V. A. Varela/ P. Lima, in CC anotado, vol. I, pág. 225 que defendem, como aqui também se defende, que o art. 238º do CC visa resolver um problema de interpretação; existem, no entanto, outras interpretações doutrinárias que assim não o entendem e que se mostram elencadas por Evaristo Mendes/Fernando Sá, no “Comentário ao CC anotado- parte geral”, págs. 546 e 547;
[18] Para uma síntese destas regras, v. Rui Pinto Duarte, in “A interpretação dos contratos”, págs. 54 a 58; com interesse, ver, também as anotações de Evaristo Mendes/Fernando Sá, no “Comentário ao CC anotado- parte geral”, págs. 532 e ss..
[19] Pedro Eiró/Teresa Silva Pereira, in “Comentário ao CC- Parte Geral”, pág. 727.
[20] Pedro Eiró/Teresa Silva Pereira, in “Comentário ao CC- Parte Geral”, pág. 728.