Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7879/19.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PATRIMÓNIO INDIVISO
PROMESSA DE VENDA DE COISA ALHEIA
VALIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RP202106217879/19.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estando em causa a promessa de venda de bens pertencentes a patrimónios indivisos, feita apenas por um ou alguns dos consortes (não por todos), embora consubstanciando um contrato promessa de venda de coisa alheia (cfr. artigo 892.º do CCivil) o mesmo é válido atendendo a que o seu objecto não é impossível.
II - O promitente não aliena, apenas se obriga a alienar. A alienação é possível em si, embora não seja para o promitente, há pois, mera impossibilidade subjectiva, que não invalida o contrato promessa. Ou promitente, posteriormente vem a estar em condições de poder cumprir, ou se tal não acontecer, torna-se responsável pelo incumprimento de um compromisso validamente assumido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7879/19.0T8VNG.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia-J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B… e C…, casados entre si, residentes na Rua …, .., 2º andar, ….-… Vila Nova de Gaia, intentaram acção declarativa de condenação sob a forma comum contra:
1. D…, viúvo, cabeça de casal da herança de E…, contribuinte nº ……… residente na Rua …, …, ap.52, ….-… Vila Nova de Gaia; e
2. F…, Lda., detentora da licença AMI ….., com sede na Rua …, …, ….-… Vila Nova de Gaia,
Pedindo que:
a) Seja reconhecida a validade e a eficácia da resolução contratual declarada por si perante os Réus através da carta cuja copia é o documento junto sob o nº 8, reportando-se tal resolução ao contrato-promessa de compra e venda titulado pelo documento junto sob o nº 1;
b) Se condene os Réus a pagar aos Autores, a título de restituição de sinal em dobro, a quantia de 10.000,00 euros, com juros legais, a pagar solidariamente pelos Réus;
c) Se condene os Réus no pagamento da quantia de 796,47 euros a título de despesas bancárias suportadas em virtude do pedido de financiamento realizado pelos Autores para a aquisição do imóvel prometido, a pagar solidariamente pelos Réus;
d) Se condene os Réus, a pagar aos Autores solidariamente, aquantia de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais.
Fundamentam, em síntese, a sua pretensão no facto de terem celebrado com o Réu D… um contrato promessa de compra e venda relativamente ao imóvel identificado no artigo 2º da p. i., com sinal pago de 5.000€ e de terem resolvido tal contrato por incumprimento definitivo do 1º Réu. Fundamentam a responsabilidade da Ré F… no facto de ter sido a angariadora do referido contrato promessa.
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O Réu D… contestou, invocando, por um lado, que a resolução não lhe foi comunicada, mas sim à Ré imobiliária, F…, pelo que é insusceptível de produzir efeitos.
Por outro lado, invoca ainda que subscreveu o contrato promessa na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito da sua falecida esposa, conforme ficou expressamente consignado no contrato promessa e que, revestindo o contrato natureza meramente obrigacional, a promessa de venda de bem alheio não constitui qualquer violação contratual, pois será apenas no momento da celebração do negócio definitivo que será possível aferir do cumprimento ou incumprimento contratual. Invoca finalmente que os Autores, ao resolverem o contrato da forma como fizeram, manifestaram vontade de não o querer cumprir.
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A Ré F… também contestou, invocando, em resumo, que os Autores não interpelaram o Réu D… para a celebração da escritura, pois perderam interesse no negócio.
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Teve lugar a audiência prévia.
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Conclusos os autos foi proferido despacho saneador que absolveu da instância Ré F…, Lda por ser parte ilegítima na acção e, conhecendo de mérito, julgou a acção improcedente por não provada e absolveu o Réu do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os Autores interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são apenas duas as questões a decidir no presente recurso:
a)- saber se a Ré F… devia, ou não, ter sido considerada parte ilegítima na acção;
b)- saber se o Réu D… tinha, ou não, poderes para proceder á venda de bem imóvel que pertence à herança indivisa e ilíquida de E…, sem o consentimento e autorização dos restantes herdeiros.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou, sob este conspecto, que os Autores alegaram os seguintes factos.
1. No dia 18 de Fevereiro de 2019, os Autores e o primeiro Réu, celebraram entre si um contrato promessa de compra e venda, angariado pelo segundo Réu, que envolvia uma moradia destinada a habitação, do Tipo T3, com entrada pelo nº…, 1º, da Rua …, correspondente à fracção autónoma designada pela letra ”B”, inscrito na respectiva matriz urbana sob o nº 5865 e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 1166.
2. Nos termos consagrados na cláusula segunda do contrato promessa, o Réu prometeu vender aos Autores, livre de ónus, hipotecas, encargos ou direitos de terceiros, o imóvel indicado em 2º desta peça, à qual foi fixado para venda, o valor de 110.000,00€.
3. Na cláusula terceira do referido contrato-promessa ficou convencionado que essa quantia de 110.000,00€ seria paga pelos aqui Autores em duas parcelas:
a) a primeira, no valor de 5.000,00€, a título de sinal e principio de pagamento, que foi entregue ao 1º Réu na data da outorga do contrato-promessa, logo sendo dada a respectiva quitação;
b) a segunda, no valor de 105.000,00€, a entregar na data da escritura notarial de compra e venda, através de cheque visado ou cheque bancário.
4. Na cláusula sexta do contrato promessa ficou estipulado, que o imóvel seria entregue ao Autores na data da escritura definitiva de compra e venda.
5. Os Autores encetaram um processo de financiamento junto do G… para a aquisição do imóvel supra descrito.
6. Após fornecerem a documentação, exigida pela instituição bancária, com vista a instruir todo o processo com vista ao solicitado financiamento, foram alertados pela referida instituição, já após ter sido realizada a avaliação e feito o respectivo seguro, que não seria possível realizar a escritura de compra e venda, pois o imóvel tinha ónus e encargos, ao contrário referido pelo 1º Réu e pela imobiliária.
7. Assim, após diligências junto da imobiliária, esta de facto admitiu que o imóvel não pertencia no seu todo ao Réu, pois este era apenas comproprietário.
8. Desde logo, os Autores exigiram resolver o contrato-promessa celebrado, exigindo o pagamento do sinal em dobro, valor este acrescido de todas as despesas bancarias.
9. A imobiliária e o 1º Réu não aceitaram, e elaboraram uma revogação do contrato promessa nos termos constantes do documento n. 7, anexo à p.i., cujo teor se dá por reproduzido.
10. Uma vez que os Autores não aceitaram a devolução do sinal em singelo, estes enviaram uma carta datada de 24 de Abril de 2019, dirigida á Imobiliária, aqui 2ª Ré, na qualidade de mediadora e angariadora do negócio, no sentido de reaver os seus direitos e resolver o contrato promessa outorgado nos termos constantes do documento n. 8, anexo à p.i., cujo teor se dá por reproduzido.
11. Os Autores não estão dispostos a permanecer indefinidamente numa situação de impasse.
12. Este quadro permite concluir que o incumprimento culposo da promessa por parte das Réus, após todas as diligências extrajudiciais encetadas que se mantém, justifica a resolução contratual dos Autores.
13. Os Autores suportaram despesas bancárias que só existiram por via da promessa de compra e venda.
14. Nos termos sobre ditos, ao operarem à resolução contratual pela carta junta como documento nº 8, os Autores fixaram ao Réu o prazo de 10 dias, a contar da recepção dessa missiva, para lhes restituir em dobro o sinal prestado e ainda as despesas bancárias do pedido de financiamento no valor de 796,47€.
15. Assiste ainda, aos Autores o direito de exigirem o pagamento da quantia de 1.500,00€ a título de danos não patrimoniais, por todos os incómodos causados e pelas frustradas expectativas na aquisição do referido imóvel.
Mais considerou assentes os seguintes factos:
16. O Réu D… outorgou o contrato promessa na expressa qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito de E….
17. Nos termos da cláusula 4ª, n. 1 do contrato promessa de compra e venda celebrado, a escritura pública de compra e venda deveria realizar-se no prazo máximo de sessenta dias a contar da sua assinatura e deveria ser marcada pelos promitentes compradores, os aqui Autores, para o que, com uma antecedência mínima de dez dias úteis deveriam informar o Réu D… do dia, hora e local onde ela se realizaria.
18. O imóvel prometido vender não tinha quaisquer ónus ou encargos e fazia parte da herança aberta por óbito da esposa do Autor, E….
19. A carta de 24 de Abril de 2019, referida em 10), foi subscrita pela Ilustre Mandatária dos Autores e refere, designadamente que os seus constituintes tinham sido alertados que “…havia incongruências na documentação entregue e que, desta forma, não seria possível fazer a escritura e ser concedido o empréstimo pretendido”…”Em resumo, foi assinado um contrato promessa em que o promitente vendedor declara vender o imóvel livre de ónus e encargos, o que não corresponde à verdade, uma vez que existe um testamento em que um sexto pertence a uma neta da falecida esposa do promitente vendedor, também ela proprietária, para já não falar no teor da procuração irrevogável, em que o promitente vendedor seria proprietário de metade indivisa do imóvel referido e não da sua totalidade, e dos restantes herdeiros, filhos do casal.”…”Foi proposta uma revogação do contrato promessa, que não será, de todo exequível, nos termos exarados, uma vez que a par das despesas bancárias suportadas pelos meus constituintes e realizadas em virtude da prometida compra, o sinal terá de ser necessariamente, devolvido em dobro, nos termos do art, 801º, do Código Civil a par de todas as despesas bancárias”.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
a)- saber se a Ré F… devia, ou não, ter sido considerada parte ilegítima na acção.
Salvo o devido respeito por entendimento diverso, nada temos a censurar à decisão recorrida quando conclui pela ilegitimidade da referida Ré.
Dispõe o art. 30º do Código Processo Civil:
1. O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Respigando a petição inicial dela se retira que os Autores, invocam o incumprimento do contrato promessa celebrado com o Réu D…, pretendendo a restituição do sinal em dobro, as despesas que tiveram pelo pedido de financiamento e uma indemnização de 1.500€ pelos incómodos provocados pelo incumprimento definitivo do contrato.
Como assim, é por demais evidente que tal como vem configurada na p. i. a relação material controvertida, a Ré F…, que não subscreveu o contrato promessa, não tem qualquer interesse em contradizer, pois o incumprimento do referido contrato apenas é imputado ao Réu D…, que foi a pessoa que outorgou o contrato como promitente vendedor e na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito da sua falecida esposa.
E contra tal entendimento é irrelevante que a referida Ré tenha intermediado o negócio em causa, pois que, ainda que no âmbito dessa relação negocial (de mediação) não tenha cumprido os deveres a que eventualmente estava adstrita, esse eventual incumprimento não surge como causa de pedir nesta acção e, como tal, nenhum prejuízo advém para a citada Ré da possível procedência da acção.
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A segunda questão que no recurso vem colocada consiste em:
b)- saber se o Réu D… tinha, ou não, poderes para proceder á venda de bem imóvel que pertence à herança indivisa e ilíquida de E…, sem o consentimento e autorização dos restantes herdeiros.
Sob este conspecto cremos, salvo o devido, respeito que existe um certo equívoco por parte dos Recorrentes.
Efectivamente o referido Réu não procedeu à venda de qualquer imóvel pertencente à herança indivisa e ilíquida de E…, apenas outorgou, na qualidade de cabeça-de-casal, um contrato promessa de compra e venda relativamente ao imóvel identificado no artigo 2º da p. i.
Referem os apelantes que não obstante o recorrido D… quando outorga o contrato, como primeiro outorgante, apareça identificado como cabeça de casal, logo na primeira cláusula do contrato aparece como sendo dono e legitimo proprietário da fracção, o que não corresponde à verdade.
Dúvidas não existem, de que enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados; nem um direito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer uma quota-parte em cada um deles.
Até à partilha, os herdeiros são titulares, tão-só, do direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar.
Dito de outro modo, antes da partilha, aos herdeiros cabe apenas um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito hereditário se concretizará, bem podendo tais bens ficar a pertencer só a alguns ou a um, sendo os demais compensados com tornas.
Só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança.
Com efeito, a partilha “extingue o património autónomo de herança indivisa”, retroagindo os seus efeitos ao momento da abertura da sucessão (artigo 2119.º do C. Civil).
O que significa que, com a partilha, cada um dos herdeiros passa a ser considerado sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, como resulta expressamente do apontado dispositivo.
A partilha, por conseguinte, “converte os vários direitos a uma simples quota (indeterminada) de um todo (determinado) em direito exclusivo a uma parcela determinada do todo”.[1]
Quer isto dizer que a expressão “o Primeiro Outorgante é dono e legítimo proprietário da fracção autónoma (…)” constante da cláusula primeira do ajuizado contrato promessa não pode deixar de ser interpretada à luz da qualidade que expressamente ali invocou o apelado D…, de cabeça de casal na herança aberta por óbito de sua esposa, isto é, como cabeça de casal de herança de cujo acervo patrimonial fazia parte o direito de propriedade sobre o imóvel prometido vender.
Mas ainda que o contrato promessa-ignorando totalmente a invocada qualidade cabeça de casal-pudesse ser interpretado como se dele e dos documentos entregues não resultasse a situação de comunhão hereditária, isso em nada afectaria a validade da promessa.
Atentemos.
Não obstante artigo 410.º, n.º 1 do CCivil mande aplicar ao contrato promessa as disposições legais relativas ao contrato prometido-princípio da equiparação-abrem-se, contudo, duas excepções: uma respeitante à forma e a outra aos preceitos que, pela sua razão de ser, se mostrem inaplicáveis ao contrato promessa.
Deixando de lado a primeira das referidas excepções que no caso concreto não releva, para se apurar, portanto, se uma determinada norma disciplinadora do contrato prometido é ou não aplicável ao respectivo contrato promessa, haverá que atender ao seu fundamento.
Mediante este critério consideram-se inaplicáveis, por exemplo, os preceitos que, nos contratos de alienação, concernem à transferência da propriedade ou os que contemplam o problema do risco.
Mercê da referida excepção, igualmente se deve admitir a validade da promessa de coisa alheia (cfr. artigo 892.º do CCivil)[2] uma vez que nesta situação o que está em causa é a legitimidade do vendedor.
E compreende-se que assim seja, na medida em que pelo contrato-promessa, dotado de eficácia meramente obrigacional, não ocorre transferência da propriedade da coisa, antes e tão só as partes se vinculam a celebrar o identificado contrato de compra e venda definitivo.
De facto, ao contrário do que acontece no caso de celebração dos chamados contratos com eficácia real [como a compra e venda-alínea a) do art. 879.º do CCivil] em que a propriedade ou outro direito real se transferem por mero efeito do contrato -não no sentido de que se transmitem imediatamente, mas de que dependem tão somente da sua celebração-nada obsta a que o promitente se vincule a alienar uma coisa que não tem legitimidade ou capacidade para alienar, uma vez que sempre pode adquirir, entretanto, essa capacidade ou legitimidade; todavia, e se o não fizer, posto que se comprometeu a fazê-lo, incorrerá na violação de um compromisso que assumira.
Em consequência, pode dizer-se que a promessa (de compra e venda) será válida, visto que “O promitente não aliena, apenas se obriga a alienar. A alienação é possível em si, embora não seja para o promitente. Há pois, mera impossibilidade subjectiva, que não invalida o contrato promessa”. Ou o promitente, posteriormente vem a estar em condições de poder cumprir, ou se tal não acontecer, “torna-se responsável pelo incumprimento de um compromisso validamente assumido.”[3]
Esta impossibilidade é meramente subjectiva, pelo que nos termos do artigo 280.º, n.º 1 do CCivil ela não afecta a validade do contrato, já que só a impossibilidade objectiva afecta a validade do negócio jurídico.
O vício que parece afectar a compra e venda de coisa alheia não é comunicável ao contrato-promessa. É certo que o promitente vendedor não tem legitimidade para dispor do bem no momento em que celebra o contrato-promessa. Contudo, a translatividade não é um efeito necessário deste tipo contratual, já que o promitente não transfere a propriedade do bem, apenas se obriga a vendê-lo.
Ou seja, a ratio da nulidade cominada no artigo 892.º “reside justamente no efeito real da compra e venda, que a promessa não partilha” sendo o contrato promessa caracterizado por uma eficácia (em principio) meramente obrigacional “não pode, pois, operar-se a extensão daquela norma ao respectivo regime”.[4]
No caso em apreço, o contrato promessa que os Autores e o primeiro Réu, celebraram entre si tem eficácia meramente obrigacional já que não lhe foi conferida eficácia real na previsão do artigo 413.º do CCivil, donde não se pode aplicar o disposto no artigo 892.º, relativo à venda de bens alheios, apesar da equiparação prevista no artigo 410.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Como salienta Abel Delgado[5], estando em causa a promessa de venda de bens pertencentes a patrimónios indivisos, feita apenas por um ou alguns dos consortes (não por todos), embora consubstanciando um contrato promessa de venda de coisa alheia o mesmo é válido atendendo a que o seu objecto não é impossível.
Decorre do exposto ser válido o contrato promessa celebrado entre os Autores e o primeiro Réu.
A questão que agora se coloca é se os Autores estavam, ou não, legitimados a proceder à resolução do mencionado contrato promessa.
Como resulta do pedido formulado, os Autores vêm pedir a restituição do sinal em dobro dizendo que existe fundamento para a resolução do contrato promessa.
Dispõe o artigo 406.º do C. Civil que o contrato só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
A resolução do contrato é, precisamente um dos casos admitidos na lei para a modificação ou extinção do contrato.
Na verdade, a resolução dos contratos é permitida desde que fundada em lei ou em convenção-art. 432.º, nº 1 do C.Civil. A mesma pode fazer-se:
a) por acordo;
b) por declaração à outra parte e
c) judicialmente, sendo certo que esta última modalidade terá de ser usada todas as vezes que a declaração de resolução não seja aceite pela outra parte.
"O direito de resolução é um direito potestativo extintivo e depende de um fundamento-tem de verificar-se um facto que crie esse direito, ou melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo. Tal facto ou fundamento é o facto do incumprimento ou situação de inadimplência".[6]
Portanto, o direito de resolução fundado na lei está sempre condicionado a uma situação de inadimplência.
O direito à resolução do contrato tanto pode ter por fonte a lei como a convenção das partes (art. 432.º, nº 1 do C.C.).
Na generalidade dos casos, a resolução assentará num poder vinculado, obrigando-se a parte que dela se pretende fazer valer a alegar e provar o fundamento, previsto na convenção da partes ou na lei, que justifica a destruição unilateral do contrato.[7]
Alegam os recorrentes que o promitente vendedor, cabeça de casal, não criou as condições legais para a outorga do contrato definitivo, verificando-se da sua parte um comportamento omissivo (culposo) que redondou no incumprimento definitivo da obrigação assumida.
Acontece que esse incumprimento definitivo por banda do Réu D…, à data da comunicação resolutiva, não se verificava.
Com efeito, antes disso teriam os Autores que ter interpelado o referido o Réu para a celebração da escritura, nos termos estipulados no contrato promessa e, só no momento da realização da escritura, seria possível aferir se o mesmo tinha ou não criado as condições legais para a outorga da escritura prometida, designadamente, adquirindo a parte aos demais herdeiros ou convencendo estes a outorgarem o contrato prometido.
Todavia, tal não ocorreu, razão pela qual não é possível imputar ao Réu D… qualquer comportamento omissivo e culposo que tivesse impossibilitado a celebração do contrato prometido.
Significa, portanto, que os Autores, à referida data, não estavam legitimados a proceder à resolução do contrato promessa.
Ora, não podendo operar a referida resolução do contrato promessa a acção tinha que forçosamente naufragar, já que não se verificava a facti species do artigo 442.º, nº 2 do CCivil que suportava o pedido principal, sendo que os pedidos formulados sob as alíneas c) e d) sempre careceriam de fundamento legal face ao estatuído no nº 4 do citado preceito e ausência de clausulado em sentido contrário.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelos Autores apelantes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 21 de Junho de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", volume III, 2ª edição, páginas 347/348, e volume VI, páginas 195/196 e 203; Pereira Coelho, "Direito das Sucessões", 4ª edição, 1970, páginas 71/72; Capelo de Sousa, "Lições de Direito das Sucessões", volume II, 2ª edição, páginas 90/92, 99 e 126
[2] Cfr. Abel Pereira Delgado, "Do Contrato-Promessa", Lisboa, 1978, pag. 95; Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 316; João Calvão da Silva, "Sinal e Contrato-Promessa", 8ª edição, Coimbra, 2001, pag. 28.
[3] Cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª Ed. pag. 109.
[4] Cfr. Abel Pereira Delgado in Do Contrato Promessa, 1978, 95; Ana Prata in O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, 2001, 447-448.
[5] Ob. citada pag. 95.
[6] Cfr J. Baptista Machado in Pressupostos da Resolução por incumprimento, in Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro-II Jurídica, págs.348/349.
[7] Cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª edição, p. 265.