Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15475/21.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: LOCAÇÃO
OBRAS DE CONSERVAÇÃO E/OU MANUTENÇÃO
CADUCIDADE DO CONTRATO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2023091215475/21.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui jurisprudência uniforme no sentido de se considerar ilegítimo o exercício do direito do arrendatário de exigir do senhorio a execução de obras de conservação e/ou de manutenção do locado no caso de se verificar uma desproporção significativa entre o valor da renda mensal e o custo das obras.
II - A perda do locado, à luz de um critério funcional e não meramente naturalístico, determina op legis a caducidade do contrato de arrendamento, extinguindo-o.
III - O eventual direito de indemnização do arrendatário decorrente da caducidade do contrato de arrendamento por omissão culposa na realização de obras de conservação e de manutenção do locado depende da alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 15475/21.6T8PRT.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: Rui Moreira
Adjunto: Fernando Vilares Ferreira
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ..., ... Porto, intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra BB e mulher, CC, residentes na Rua ..., ... Porto, formulando os seguintes pedidos:
a) serem os RR. condenados a realizar todas as obras necessárias a repor o locado em condições de normal segurança e salubridade, designadamente reparando as causas e danos das infiltrações, reparando os tectos, paredes e caixilharia; e cumulativamente,
b) serem os RR. condenados a pagar ao A. uma indemnização, por danos não patrimoniais, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida dos legais juros de mora, contados desde a data da interpelação dos RR. para realizar as obras, 29.10.2019, até efectivo e integral pagamento;
e,
c) Serem os RR. condenados no pagamento ao A. de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil, de valor não inferior € 100,00 (cem euros), por cada dia de atraso no cumprimento da condenação supra peticionada em a);
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Os Réus deduziram pedido reconvencional, pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento em vigor, e consequentemente a extinção do contrato de arrendamento, com a consequência de aquele ser condenado a entregá-lo imediatamente aos RR. livre de pessoas e bens.
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Foi requerida e admitida a intervenção principal de DD, a fim de assegurar a legitimidade activa.
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Proferiu-se sentença que julgou a presente acção improcedente por não provada e absolveu os Réus do pedido. Mais julgou o pedido reconvencional procedente, por provado, declarando a caducidade do contrato de arrendamento em vigor entre A. e RR., e consequentemente a sua extinção, condenando os reconvindos a entregá-lo imediatamente aos RR. livre de pessoas e bens.

Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1.ª–Por via da ação no âmbito da qual veio o douto aresto recorrido prolatado peticionaram os Recorrentes a condenação dos Recorridos senhorios (e proprietários da casa sita no piso superior ao locado) na reparação do ruinoso e insalubre imóvel objeto do arrendamento e no pagamento de uma indemnização pela sua inércia e danos dela decorrentes;
2.ª–Muito surpreendentemente, vem o Insigne Tribunal Recorrido julgar improcedente a ação, por um – inexistente – abuso de direito dos Recorrentes, e julgar procedente a reconvenção, declarando a caducidade do contrato de arrendamento por perda do bem locado;
3.ª–Há, salvo o muito respeito que é devido, um erro clamoroso de julgamento, na apreciação da situação de facto e legal subsunção dela, estribada em pressupostos curtos e insidiosos;
4.ª–O Insigne Tribunal Recorrido deixa-se levar pelo irrisório valor da renda e pelo facto de a filha dos autores lhes ter dado teto – como é natural um filho fazer–e permite que os AA. sejam escorraçados de sua casa pela situação criada pela inércia dos RR.;
5.ª–A Justiça não pode premiar quem adquire um valiosíssimo prédio – bem sabendo que o mesmo está parcialmente onerado com um contrato de arrendamento–e se abstém de promover pela sua normal manutenção, ficando a aguardar pela ruína para assim se livrar do ónus do arrendamento;
6.ª–Conforme resulta claro do ponto 4 do acervo de factos julgados provados, quando os RR. adquiriram o prédio fizeram-no bem sabendo que o rés-do-chão se encontrava onerado com um contrato de arrendamento, que o contrato de arrendamento era antigo–com as naturais contingências normativas em termos de resolução -, que os inquilinos eram idosos e que a renda era de um valor manifestamente desadequado.
7.ª–Ao adquirirem a propriedade sobre o prédio, os RR. sucederam aos anteproprietários na posição contratual de senhorios no contrato, com a inerente vinculação aos pontuais termos do mesmo;
8.ª–O imóvel estar, ou não, onerado com um contrato de arrendamento como o que é objeto destes autos é um fator determinante na valorização do prédio, tanto no momento em que os RR. o adquiriram, como no momento em que o pretenderem vender ou locar;
9.ª–Ao optar por não fazer quaisquer obras de manutenção e conservação, no locado, no piso superior ao locado e no telhado, os Recorridos violaram o disposto no n.º 1 do artigo 1.074.º do Código Civil;
10.ª–A responsabilidade dos RR. advém-lhes não só da qualidade de senhorios, mas também, por efeito do disposto no n.º 1 do artigo 492.º do Código Civil, de proprietários da parte do prédio que fica por cima do rés-do-chão arrendada aos AA., e, obviamente do telhado por cima do primeiro piso;
11.ª –O douto decisório recorrido vem a enquadrar a pretensão dos AA., ora Recorrentes, num exercício abusivo do direito, o que configura um verdadeiro paradoxo, conquanto foram os RR, Recorridos, quem atuou abusivamente, valendo-se da sua inércia, da vetustez do prédio e do rigor das condições climatéricas para, praticamente, enxotar os inquilinos e assim desonerar o seu prédio;
12.ª – Note-se, aqui, a evidente falácia que é um dos seminais argumentos invocados pelos Recorridos, e asseverado pelo Insigne Tribunal a quo, e que são os putativos “1092 anos” que os Recorridos demorariam a recuperar o valor pago pelas urgentes obras que o locado exige;
13.ª–Os Recorrentes são pessoas já muito idosas (cfr. pontos 6 e 18 da matéria de facto provada), são os únicos residentes no imóvel, e o contrato de arrendamento foi celebrado antes da entrada em vigor do antigo Regime do Arrendamento Urbano, o que significa que, nos termos do disposto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o arrendamento caducará à morte dos AA.;
14.ª–Com a caducidade do contrato de arrendamento, serão os Recorridos investidos na plena posse do rés-do-chão do prédio, podendo usá-lo, vendê-lo, ou locá-lo ao preço corrente do mercado na altura que o infortúnio (infortúnio para os Recorrentes) ocorrer;
15.ª–Sempre salvo o muito respeito que é devido, é um flagrante erro, e um fator gerador de uma clara injustiça, postergar da apreciação da justa comparação entre o valor da renda e o valor das obras a variável da duração expectável do arrendamento, e, bem assim, postergar desta equação o reflexo da existência do ónus decorrente da existência do contrato de arrendamento no valor de aquisição do imóvel pelos Recorridos;
16.ª–No que concerne à indemnização impetrada pelos AA., entendeu o douto aresto recorrido não existirem danos “que justifiquem a intervenção judicial no sentido de ver compensados tais estados de alma.”;
17.ª–O objeto da ação, mais do que um “prédio urbano”, um “imóvel” ou um “locado”, é uma casa de família com cinquenta anos de vivência e de histórias, a casa dos pais, a casa dos avós AA e DD onde cresceram e se fizeram quem são os membros da família ...;
18.ª–É neste enquadramento, e por apelo às regras da experiência comum e ao teor dos factos 6 a 20, que se deverá medir a pertinência e adequação da intervenção judicial na reparação dos danos;
19.ª–Para os Recorrentes, octogenários, humildes e leigos na matéria, os “danos que [para o douto aresto recorrido] não justificam a intervenção judicial” são ver a degradar-se até à ruína aquele que é o seu lar, a casa onde sempre residiram, desde o seu casamento, há mais de cinquenta anos e da qual são agora escorraçados;
20.ª –A condenação na reconvenção, é afastada, em primeira linha, pela procedência das questões já acima suscitadas, e, concomitantemente, por manifestamente ilegal e infundada;
21.ª – É um claro abuso de direito permitir aos proprietários de um imóvel centenário, onerado com um contrato de arrendamento conhecido em momento anterior à aquisição, utilizar a “técnica” de abstenção de quaisquer obras de manutenção e conservação, incluindo no telhado do piso situado por cima da casa dos Recorrentes, aguardando que as condições climatéricas vão, paulatinamente, tornando o imóvel inabitável;
22.ª–Permitir que um senhorio obtenha a declaração da caducidade de um contrato de arrendamento nos termos do disposto da alínea e) do artigo 1.051.º do Código Civil, quando a ruína é a si estritamente imputável é–ao contrário do sustentado na jurisprudência referida no douto aresto recorrido – um flagrante abuso de direito.
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Os Réus apresentaram resposta concluindo que “A douta Sentença recorrenda aplicou correctamente a Lei à matéria de facto validamente carreada para os autos, não tendo violado qualquer dos comandos do Código Civil constantes do nº 23º das doutas Conclusões dos Apelantes, pelo que deve ser mantida.”
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se os locadores estão obrigados, no caso concreto, a executar obras de conservação no locado, se os inquilinos, ao exigirem essas obras, actuam com abuso do direito atendendo a que pagam uma renda de valor muito reduzido e se o contrato de arrendamento se extinguiu por caducidade.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
1. Os RR. são proprietários do imóvel com entrada pelos n.ºs ... e ... da Rua ..., sito na união de freguesia ..., ... e ..., neste concelho e comarca do Porto.
2. Por acordo entre o A. e os anteriores proprietários do imóvel, em Fevereiro de 1969, estes deram de arrendamento àquele, que o tomou de arrendamento, o rés-do-chão do referido prédio, com entrada pelo n.º ... do arruamento indicado acima.
3. Mediante o pagamento de uma renda mensal no valor, em escudos, correspondente a €4,00.
4. Os RR. adquiriram o prédio em causa no ano de 2009, sendo os seus actuais proprietários e tendo sucedido ao anterior proprietário na posição de senhorios no contrato de arrendamento em que o A. é inquilino.
5. Desde Janeiro de 2010 que o A. procede ao pagamento da renda mensal aos RR., que a recebem e dela dão a respectiva quitação.
6. O A. reside no identificado imóvel, o n.º 43, que é a sua casa de morada de família, desde a data da celebração do contrato de arrendamento, em Fevereiro de 1969.
7. Pelo menos desde os inícios de 2019, que o piso da habitação sita por cima da habitação do A., que se encontra devoluta, abateu e ficou assente sobre os tectos da casa do A.
8. Os tectos interiores ruíram parcialmente, encontrando-se todos em risco de ruína completa e de queda de mais elementos do revestimento.
9. O que oferece risco para a segurança do A. e da sua família, bem como de visitas que receba.
10. Quando chove, chove dentro de casa, entrando a água pluvial através dos tectos acima identificados, em grande quantidade.
11. O que provoca focos de humidade e degrada os materiais, criando uma atmosfera de insalubridade.
12. As paredes interiores estão severamente degradadas e em permanente risco de ruína e queda de elementos que as integram.
13. As caixilharias interiores e exteriores encontram-se degradadas, não estando aptas ao fim a que se destinam.
14. Por carta registada enviada pelo A. ao R. marido a 29.10.2019, denunciando a situação e interpelando o senhorio para a realização das obras de reparação do imóvel e danos decorrentes da ruína e das infiltrações.
15. Os RR., em resposta, por carta enviada por Ilustre Mandatário a 13.11.2019, declararam expressamente a sua recusa à realização das obras.
16. Invocando que o A., por pagar um valor de renda reduzido, agia em abuso de direito ao reclamar a reparação das graves incidências verificadas no locado, cuja reparação da “…cobertura do imóvel…” orçava em €36.854,00 acrescido de IVA à taxa legal.
17. Em Outubro de 2019, perante o estado de perigo e insalubridade do locado, o A. viu-se obrigado a alojar-se em casa da sua filha, conforme aliás ordens da Protecção Civil, que havia sido chamada ao local conjuntamente com os bombeiros aquando da chuvada.
18. O facto de ter sido obrigado a deixar o seu lar, a casa que habita há mais de 50 anos,
19. Onde criou ou filhos e as netas.
20. Causa ao A. desgosto.
21. A casa da filha é uma casa de ilha, com quatro divisões e um anexo, e onde reside esta, o marido e duas filhas.
22. Os RR contactaram um Construtor Civil para proceder às obras no prédio em causa nos autos, incluindo a necessária substituição do telhado.
23. As mesmas foram orçadas em € 105.000,00 acrescido de IVA.
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Factos Não Provados:
Não se provaram mais factos alegados com relevo para a boa decisão da causa, nomeadamente que:
A. A situação do imóvel obrigou o A. a acomodar e empacotar para evitar a sua destruição, bem como a desfazer-se de diversos pertences por não ter onde os guardar.
B. O que sucedeu, por exemplo, com livros, retratos, peças de decoração, recordações e mesmo roupas.
C. A acomodação provisória do A. em casa da filha obriga a grandes constrangimentos na organização do agregado familiar, que se viu obrigado a encaixotar diversos pertences para permitir acomodar os pais e avós.
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IV-DIREITO
O Autor, na qualidade de arrendatário, pretende, em primeira linha, que os senhorios sejam condenados a executar “todas as obras necessárias a repor o locado em condições de normal segurança e salubridade, designadamente reparando as causas e danos das infiltrações, reparando os tectos, paredes e caixilharia”.
Confrontados com a pretensão apresentada pelo arrendatário, os Réus, senhorios, explicaram que, face ao valor irrisório da renda paga por aquele-€4,00-não têm capacidade económica para suportar os custos elevados advenientes da execução dessas obras.
A noção de locação consta expressamente do art.º 1022.º do C.Civil como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.
Nesta conformidade, uma das principais obrigações que incumbem ao senhorio, com a celebração de um contrato de arrendamento, prevista no art.º 1031.º, al. b) do C.Civil, consiste em assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina.
Como explica Edgar Martins Valente[1] “a amplitude de sentidos que tal obrigação envolve é vasta (…) razão pela qual o legislador sentiu a necessidade de densificar, nos preceitos compreendidos entre o artigo 1032.º e o artigo 1037.º, algumas das várias manifestações daquilo que deverá ser entendido pela obrigação do senhorio de “assegurar o gozo da coisa”.”
A celebração do contrato de arrendamento com os anteriores proprietários do imóvel ocorreu em Fevereiro de 1969, comprometendo-se o Autor a pagar uma renda mensal no valor, em escudos, correspondente a €4,00.
Os Réus adquiriram o prédio em causa no ano de 2009, e decorridos dez anos de relação contratual, o piso da habitação, situado por cima da habitação arrendada, que se encontra devoluta, abateu e ficou assente sobre os tectos da casa habitada pelos Autores.
Consequentemente, os tectos interiores ruíram parcialmente, encontrando-se todos em risco de ruína completa e de queda de mais elementos do revestimento, o que oferece risco para a segurança do Autor e da sua família, bem como de visitas que receba. Chove dentro de casa, entrando a água pluvial através dos tectos acima identificados, em grande quantidade, o que provoca focos de humidade e degrada os materiais, criando uma atmosfera de insalubridade. As paredes interiores estão severamente degradadas e em permanente risco de ruína e de queda de elementos que as integram. As caixilharias interiores e exteriores encontram-se degradadas, não estando aptas ao fim a que se destinam.
O Autor comunicou ao Réu a situação acima descrita interpelando-o para a realização das obras de reparação do imóvel bem como dos danos decorrentes do estado de ruína do prédio e das infiltrações ocorridas.
Todavia, os Réus não assentiram na pretensão do Autor invocando que a renda é de valor reduzido, razão pela qual entenderam que agia em abuso de direito ao reclamar a reparação das graves incidências verificadas no locado, cuja reparação da “…cobertura do imóvel…” orçava em €36.854,00 acrescido de IVA à taxa legal.
Mesmo assim, contactaram um construtor civil para proceder às obras no prédio em causa nos autos, incluindo a necessária substituição do telhado, que foram orçadas em € 105.000,00 acrescido de IVA.
Face ao quadro factual apurado, não há qualquer dúvida de que o imóvel não se encontra com condições mínimas de habitabilidade, carecendo de reparações urgentes, algumas estruturais, sem as quais a segurança das pessoas que nele habitam ou aí entram corre sério risco.
A lei permite ao arrendatário, em determinadas situações, a execução de obras no arrendado, em substituição do senhorio.
Com efeito, existindo mora ou não do locador relativamente à obrigação de proceder a reparações ou obras urgentes, o art.º 1036.º, n.º 1 e 2 do C.Civil e o art. 22.º-A, n.º 1, al. b) do Dec.-Lei n.º 157/2006 de 08.09 (RJOPA) na redação do Dec.-Lei n.º 60/2019 de 21.05, admite a possibilidade do locatário fazer essas obras, com direito a ser reembolsado.
Na hipótese de obras coercivas, em substituição do senhorio, o arrendatário, nos termos do artigo 22.º-D do mencionado Dec.-Lei n.º 157/2006 de 08.09 tem direito a uma compensação, podendo optar por uma das seguintes modalidades:
a) Pagamento direto pelo senhorio, em prazo não inferior a 60 dias;
b) Dedução no valor das rendas mensais vincendas a partir da data da receção da comunicação prevista no n.º 3 do artigo anterior.
Do regime aplicável à matéria em causa verifica-se que aquela norma contém uma das excepções à regra do art.º 1074.º, n.º 1 do C.Civil e prevista nesta norma pois compete ao locador executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário, com autorização do senhorio ou em caso de urgência.
Os Autores não optaram por serem eles a executar as obras urgentes que o arrendado necessita para se tornar habitável, em substituição dos senhorios, exigindo, ao invés, que estes cumprissem essa obrigação, pese embora lhes ter sido comunicado que o valor da renda de 4,00€ não lhes permite custear o orçamento no montante de 36.854,00€ obtido apenas para a reparação do telhado e que foi actualizado para €105.000,00 para a reparação global do imóvel.
Como se esclareceu no Acórdão desta Relação do Porto, de 24/10/2016[2] “fruto da degradação do parque habitacional (em decorrência do congelamento legal de boa parte das rendas, impossibilitando aos senhorios a realização de obras de conservação dos prédios) e da própria desvalorização do montante das rendas (fruto do mesmo fenómeno de congelamento das rendas), os tribunais superiores têm vindo a ser chamados, de forma reiterada, a pronunciar-se sobre a sobredita questão, qual seja a de saber se, não obstante o direito do arrendatário à realização de obras de conservação (ordinária ou extraordinária) no locado, esse seu direito, em face da exiguidade da contrapartida/renda, se mostra exercido em termos clamorosamente desproporcionados ou excessivos, de tal modo que se impõe que esse direito (reconhecido, em tese geral) seja paralisado, sob pena de se criar uma tal desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular e as consequências que outros têm de suportar, de onde derive, necessariamente, clamorosa ofensa da justiça.”
Neste sentido tem sido concordante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça como se refere no sumário do Acórdão de 19/0172017[3] “Constitui jurisprudência reiterada do STJ, a respeito da proporcionalidade entre o valor das rendas pagas pelo arrendatário e o custo das obras a suportar pelo senhorio, que o valor ínfimo da renda se apresenta, em certos casos, como impedimento a que se possa exigir ao senhorio a realização de obras cujo montante ascende a valores elevados.”
Noutro caso similar, o Acórdão do STJ de 28/11/2002[4], fazendo referência a arestos anteriores proferidos sobre esta temática, consignouAssim, entende-se que a desproporção entre o valor da renda mensal e o do custo das obras provoca um desequilíbrio das posições jurídicas da Autora e dos Recorridos e tornam desmesuradamente desproporcionada à vantagem económica que, para os senhorios, decorre do contrato de arrendamento invocado em relação às desvantagens dele decorrentes; Ou seja, o acolhimento da pretensão formulada pela ora Recorrente provocaria uma clamorosa injustiça.
De facto, pretendendo a lei que as contraprestações dos contratos onerosos tenham o maior equilíbrio (art. 237º do Cód. Civil), a pretensão formulada pela ora Recorrente, por não ser um exercício moderado, equilibrado, lógico e racional do seu direito, constitui um abuso de direito e, como tal, tornou-a ilegítima e equivalente à falta de direito, tornando legítima a oposição que se faça a uma tal pretensão.”
Pinto Furtado[5] reconhece que “Tradicionalmente, não se estabelecia expressamente na lei qualquer exigência de proporcionalidade entre a obrigação do senhorio de realizar as prestações de facere destinadas a assegurar ao arrendatário o gozo da coisa e a renda paga por este, mas a nossa jurisprudência foi sensível a tal aspecto, numa assinalável intuição da jurisprudência comparada.”
Os arestos acima mencionados fundamentaram-se, como tivemos oportunidade de verificar, no disposto no art. 334º do C. Civil referente ao enquadramento legal da figura do abuso de direito.
Segundo o referido preceito legal é considerado ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito.
A boa fé, nesta norma, tem o sentido de princípio normativo de actuação. Significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.[6]
As exigências éticas da ordem jurídica que subjazem ao instituto do abuso do direito ao considerar ilegítimo o exercício do direito quando o titular excede manifestamente a boa-fé, impedem, neste caso, a condenação dos Réus na realização de obras avultadas no imóvel quando recebem dos Autores, em contrapartida do uso do locado, um valor praticamente simbólico-quatro euros por mês.
Portanto, acolhendo, como se impõe, a orientação uniforme nesta matéria, propugnada na jurisprudência, concluiu-se acertadamente na sentença que “no caso vertente, ponderando a renda actual de €4,00 (quatro euros), e o valor de €36.854,00 acrescido de IVA – necessário para repor as condições de habitabilidade da fracção dada de arrendamento ao autor – segue-se que para a recuperação do capital que os réus teriam que despender com a execução das obras em apreço seriam necessários, portanto, cerca de 11.330 meses (!), o que perfaz um total de cerca de 944 (novecentos e quarenta e quatro) anos para a recuperação de um tal investimento!”
Acompanhando o raciocínio exposto na sentença, devemos também reconhecer que, atendendo ao custo elevado das obras de que o prédio carece (€105.000,00) e à renda paga pelos Autores, cujo valor manifestamente diminuto é de €4.00 euros por mês, o direito que os Autores se arrogam traduzido na exigência de execução das obras, reconhecido na lei, deve ser neutralizado com fundamento no instituto do abuso do direito por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e económico desse direito-v.art. 334.º do C.Civil.
Nem se argumente que os Réus são responsáveis por não terem ordenado a execução de obras de conservação e manutenção do edifício uma vez que, do quadro factual apurado, inexistem factos que nos permitam concluir nesse sentido, ou seja, de que houve intenção dos proprietários de deixar o prédio chegar a este estado apenas para conseguir obter a caducidade do contrato de arrendamento.
Com efeito, apenas se apurou que o piso da habitação sita por cima da habitação do A., que se encontra devoluta, abateu e ficou assente sobre os tectos da casa do Autor, desconhecendo-se a causa real de tal ter sucedido e/ou se foi o facto de não terem feito obras de conservação durante os dez anos após terem adquirido o prédio, o que não se provou, que originou o abatimento do referido piso.
Acresce que mesmo na hipótese de não terem sido feitas as necessárias obras de conservação no edifício, a verdade é que não podemos imputar a responsabilidade por essa omissão aos Réus, sem o apuramento das reais causas do abatimento do piso, uma vez que o prédio pertenceu a outros titulares, anteriormente a 2009.
Em suma, a ilegitimidade do exercício do direito, no caso concreto, não permite que a pretensão deduzida em juízo seja julgada procedente.
Os Réus, em reconvenção, pediram que fosse declarada a extinção do contrato de arrendamento por caducidade, o que foi acolhido na sentença.
Uma das formas de extinção do contrato de arrendamento, previstas no artigo 1079.º do C.Civil, é justamente a caducidade cujas causas estão enumeradas no artigo 1051.º do C.Civil.
A perda da coisa locada determina, nos termos da alínea e) do mencionado preceito legal, a caducidade do contrato de arrendamento que corresponde à impossibilidade objectiva da prestação prevista no artigo 790.º, n.º 1 do C.Civil como causa de extinção das obrigações.
A questão que surge nesta problemática, e que concretamente nos interessa, é a de saber se ocorre a caducidade do contrato de arrendamento na hipótese de o arrendado não ficar totalmente destruído.
Como refere Pinto Furtado[7] a jurisprudência nacional e alguma doutrina tem seguido “a tendência para se lançar mão de um critério aferidor, à primeira vista razoável: é o critério funcional”.
Explicando que “Haverá, assim, perda do prédio arrendado não apenas quando ele ou todo o espaço arrendado se tenha materialmente destruído, mas ainda quando, deteriorado apenas em parte, a perda sofrida seja tão significativa que determine a impossibilidade de aplicação desse espaço ao fim para que foi arrendado.”
No mesmo sentido, Januário C. Gomes enfatiza que “à luz desta concepção funcional, poderá não ser necessário aguardar que um prédio caia como baralho de cartas para se concluir pela perda do mesmo.”[8]
Por conseguinte, independentemente da eventual culpa do senhorio na falta de conservação do prédio, tem sido reconhecido que não sendo possível continuar a assegurar o gozo do arrendado para o fim convencionado, o qual, no nosso caso, consiste no seu uso como habitação dos Autores, extingue-se essa obrigação, por caducidade, que opera op legis[9], bem como o compromisso de pagar a renda, por parte do arrendatário, por se tratar de obrigações sinalagmáticas.
No Acórdão do STJ de 26/06/2008[10] consignou-se que a culpa do senhorio por não realizar as obras necessárias para evitar a ruína do edifício só releva para efeitos de indemnização do locatário, mas não contende com a caducidade do contrato.
Numa palavra, a culpa do senhorio na omissão do seu dever de realização de obras de conservação apenas assume relevância jurídica, na esteira da doutrina e jurisprudência, na hipótese de se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.
O eventual direito de indemnização do arrendatário decorrente da caducidade do contrato de arrendamento por omissão culposa na realização de obras de conservação e de manutenção do locado depende, assim, da alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil (cfr. art. 798.º do CC).
Nesta conformidade, o Acórdão do STJ de 02/07/2015 esclareceu que “A omissão da realização de obras, se causalmente ligada à derrocada do prédio arrendado, implica responsabilidade civil do locador– art.483º, nº1, do Código Civil, sendo que se presume a sua culpa–art. 799º, nº1, do Código Civil – que radicaria na omissão se houvesse obrigação de agir – art. 486º do Código Civil.
Por outro lado, considerou-se, no Acórdão do STJ de 05/12/2012[11] que “Sendo abusiva a exigência de realização de obras, também a exigência de indemnização pelos alegados danos causados ao arrendatário pela caducidade do contrato de arrendamento, resultante do incumprimento do dever de realização de obras de conservação e manutenção do locado, constitui uma exigência ilegítima, nos termos do mesmo art. 334.º do CC.”
No caso sub judice não ficou demonstrada, como acima tivemos oportunidade de explicar, a causa do abatimento do pavimento, razão pela qual não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre esse evento e uma eventual inacção dos actuais senhorios na execução de obras destinadas a evitá-lo.
Assim sendo, no que concerne ao pedido de indemnização, por danos não patrimoniais, também deve ser confirmada a sentença.
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V-DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a sentença.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.

Porto, 12/9/2023
Anabela Miranda
Rui Moreira
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Manual de Arrendamento e Despejo, Almedina, 2021, pág. 71.
[2] Disponível em www.dgsi.pt.
[3] Disponível em www.dgsi.pt
[4] V. ainda Acs. STJ de 30/09/2008, 20/01/2009, 02/06/2009 disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Manual do Arrendamento Urbano, Almedina, 1996, pág. 382.
[6] Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Do Abuso de Direito, Almedina, 2006, págs. 55 e 56.
[7] Manual do Arrendamento Urbano, Almedina, 2011, pág. 911.
[8] Arrendamentos Para Habitação, Almedina, pág. 250.
[9] Cfr. Seia, Jorge Alberto Aragão, Arrendamento Urbano, Anotado e Comentado, Almedina, 1998, pág. 389.
[10] Disponível em www.dgsi.pt
[11] Acima citado.