Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1506/09.1TBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: DIVÓRCIO
DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
RUPTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
PRINCÍPIO ACTUALISTA DA DECISÃO
Nº do Documento: RP201103291506/09.1TBOAZ.P1
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Alegando o autor, como único fundamento do pedido de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, factos reveladores da ruptura definitiva do casamento a que alude a al. d) do art. 1781.° do Código Civil, o tribunal não pode, oficiosamente, decretar o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges ocorrida na pendência da acção.
II - A separação de facto pelo período de um ano consecutivo, para fundamentar o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, a que alude a al. a) do art. 1781.° do Código Civil, terá que se verificar na data da instauração da acção.
III - A aplicação do art. 663.°, n.° 1, do Código de Processo Civil não é automática nem é oficiosa.
IV - A aplicação do princípio actualista da decisão, a que alude o referido preceito, está condicionado aos factos supervenientes alegados pelas partes e submetidos a audiência contraditória, de que o tribunal pode conhecer.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1506/09.1TBOAZ.P1
Recurso de Apelação
Distribuído em 23-02-2011
Relator: Guerra Banha
Adjuntos: Des. Anabela Dias da Silva e Des. Sílvia Maria Pires
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.

I – RELATÓRIO
1. B…, residente em …, concelho de Oliveira de Azeméis, instaurou, em 25-06-2009, no Tribunal Judicial dessa comarca, acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra C…, residente em …, do mesmo concelho.
Alegou, em síntese, que contraiu casamento com a ré em 05-08-1995, mas, entretanto, surgiram graves desentendimentos entre si que provocaram a ruptura definitiva do seu casamento e, desde Maio de 2009, passaram a habitar, a comer e a dormir em casas separadas.
Pediu que, nos termos do disposto no art. 1781.º, al. d), do Código Civil, segundo a redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31/10, fosse decretado o divórcio entre autor e ré e, por essa via, fosse declarado extinto o casamento entre si contraído.
Realizada a tentativa de conciliação entre os cônjuges, que se frustrou (fls. 19), a ré contestou a acção, em que, impugnando a versão dos factos narrada pelo autor, negou que, até Abril de 2009, tivesse havido desentendimentos graves entre si e concluiu pela improcedência da acção.
Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença, a fls. 84-88, que, julgando a acção procedente, decretou o divórcio entre autor e ré e declarou dissolvido o casamento entre si celebrado em 05-08-1995.

2. Inconformada, a ré apelou dessa sentença, extraindo das suas alegações as conclusões seguintes:
1.º - Ao tribunal recorrido estava vedado tomar conhecimento de que com o decurso do iter processual se veio a verificar a separação de facto entre A. e R. pelo prazo de um ano consecutivo, quando à data da interposição da acção esse prazo não se verificava e a causa de pedir do divórcio foi unicamente a ruptura do casamento;
2.º - Pelo que o tribunal "a quo" ao considerar que com o decurso do processo verificava-se a separação de facto de um ano consecutivo entre A. e R. e, em consequência, decretar o divórcio com base nesse fundamento, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, incorrendo assim na nulidade a que alude a al. d) do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
3.º - O direito ao divórcio tem que se verificar na data da instauração da acção respectiva, sendo irrelevante o preenchimento do prazo para a procedência da acção por separação de facto se tenha completado no decurso do iter processual;
4.º - Devia, por isso, o tribunal recorrido ter considerado improcedente a acção judicial de divórcio pelo facto desta ter por única causa de pedir a ruptura do casamento [al. d) do artigo 1781.º do Código Civil], já que não foi provado qualquer facto correspondente, e devia considerar irrelevantes os factos que ocorreram durante o iter processual e que configurariam a separação de facto, por tal consubstanciar uma alteração, legalmente inadmissível, da causa de pedir.
5.º - O tribunal recorrido estava também legalmente impedido de considerar a separação de facto como causa do divórcio, se a mesma não foi em momento algum do processo invocada pelo A., atento o princípio do dispositivo que impera no processo civil.
6.º - O tribunal recorrido não podia dar como provado que o A. e R. se encontravam separados pelo prazo de um ano consecutivo, considerando a prova da audiência de julgamento, sem conceder àquela, previamente, o exercício do direito legal ao contraditório, uma vez que o facto de haver ou não o decurso desse prazo não fazia parte dos Factos Assentes ou da Base Instrutória;
7.º - Assim, ao desconsiderar como legalmente exigível o exercício pela R. do direito ao contraditório, na desconsideração da nulidade da sentença ou da improcedência da acção, incorreria o processo em nulidade por preterição de formalidade que a lei exige e que teve influência na decisão da causa, devendo ser repetido o julgamento, total ou parcialmente, anulando-se todos os actos que subsequentemente foram praticados.
8.º - Em qualquer dos casos, nunca a sentença recorrida devia ter condenado a R. nas custas do processo, porque o facto pela qual foi decretado o divórcio não foi objecto de contestação, tendo o A. exercido um direito potestativo sem que se possa dizer que a ele fosse exercido qualquer oposição.
9.º - Ao decidir-se nos termos da sentença ora recorrida violou-se, entre outros, as alíneas a) e d) do artigo 1781.º do Código Civil, e 3.º, 201.º, 264.º, 265.º, 272.º, 273.º, 449.º, 517.º, 663.º e al. d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil.
Do processo em suporte físico não consta que o autor tenha apresentado contra-alegação.

II – FACTOS PORVADOS
3. Na 1.ª instância foram julgados provados os factos seguintes:
1) O Autor e a Ré contraíram casamento entre si, em 5 de Agosto de 1995, sem convenção antenupcial.
2) Desse casamento nasceu, em 17 de Novembro de 1996, D….
3) Desde Maio de 2009, o Autor e a Ré deixaram de fazer refeições juntos.
4) E, desde então, deixaram de dormir na mesma cama.
5) O A. e a R. passaram, desde a data referida em 3), a residir em habitações diferentes.
6) O A. passou a fazer as suas refeições em casa de familiares.
7) O A. não pretende restabelecer a vida em comum com a R..
8) O A. e a R. continuam a manter o diálogo entre si.
Estes factos não foram impugnados pela apelante. Pelo que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 684.º, n.ºs 2, 3 e 4, 685.º-A, n.º 1, 685.º-B, n.º 1, e 712.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, tem-se por definitiva a decisão que julgou provados esses factos.

III – AS QUESTÕES DO RECURSO
4. Em face das conclusões formuladas pela apelante, o objecto do recurso compreende as seguintes questões:
1) se a decisão que decretou o divórcio se baseou em causa de pedir diferente da invocada pelo autor e, na afirmativa, se tal modificação da causa de pedir viola os princípios do dispositivo e do contraditório e constitui nulidade da sentença;
2) se, não obstante, o tribunal não podia decretar o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo, uma vez que tal requisito não se verificava à data da instauração da acção;
3) mas, decretando-se o divórcio com esse fundamento, se as custas da acção eram da responsabilidade do autor, e não da ré.
São, pois, estas as questões que cabe apreciar.

5. Em primeiro lugar, a apelante invoca que o divórcio foi decretado com base em fundamento diferente do que havia sido alegado pelo autor e que tal decisão viola o princípio do dispositivo, na medida em que altera a causa de pedir alegada pelo autor, e também viola o princípio do contraditório porque o Tribunal conheceu de um fundamento sem que à ré tenha sido dada oportunidade de se pronunciar sobre ele.
Pretende, por isso, que se declare nula essa decisão e que se profira nova decisão que apenas tenha em conta a causa de pedir alegada pelo autor e a falta de prova dos factos que integravam essa causa de pedir.
Vejamos se lhe assiste razão.
Para fundamentar a requerida pretensão do divórcio, o autor alegou, na petição inicial, como factos relevantes e integradores da causa de pedir, que, na sequência de "graves desentendimentos" entre si, que se vinham arrastando "desde há uns sete/oito anos", "desde Maio de 2009 que autor e ré não fazem refeições juntos, nem dormem na mesma cama, praticamente não dialogam entre si" e "habitam casas diferentes", pelo que existe a "ruptura definitiva do casamento entre autor e ré" (cfr. arts. 4.º a 9.º da p.i.). E concluiu a descrição desses factos dizendo o seguinte: "E face ao supra exposto, nos termos do disposto no art. 1781.º alínea d) do Código Civil (com a nova redacção do Decreto-Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro), dispõe o autor de fundamento legal para requerer, como requer, o divórcio sem o consentimento do cônjuge mulher, com base na ruptura definitiva do casamento" (cfr. art. 11.º da p.i.).
Perante esta exposição feita pelo autor, não pode restar qualquer dúvida de que o único fundamento do pedido de divórcio invocado pelo autor foi "a ruptura definitiva do casamento", a que alude a al. d) do art. 1781.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, sendo a causa de pedir constituída pelo conjunto dos factos concretos alegados pelo autor como reveladores da "ruptura definitiva do casamento".
E também não pode ficar qualquer dúvida de que o autor não fundamentou, nem podia fundamentar, o pedido de divórcio na "separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo", previsto na al. a) do art. 1871.º do Código Civil, pela razão óbvio de que, alegando o autor que o início da separação dos cônjuges havia ocorrido em Maio de 2009 e sendo a acção instaurada em Junho de 2009, é manifesto que, à data da apresentação em juízo da petição inicial, tal fundamento não se verificava.
Ora, a sentença diz, a respeito da causa de pedir alegada pelo autor — ou seja, os factos reveladores da ruptura definitiva do casamento — que "conforme se alcança da matéria de facto que foi levada ao despacho saneador [isto é, à base instrutória], pese embora ter sido alegada, os fundamentos relativos ao decretamento do divórcio por quaisquer factos que mostrem a ruptura definitiva do casamento [redacção da al.d)] ali não constam". Considerando, deste modo, que os factos alegados pelo autor para demonstrar a ruptura definitiva do seu casamento com a ré não ficaram provados e, consequentemente, não decretou o divórcio com base nesse fundamento.
Mas veio a decretá-lo com fundamento na separação de facto dos cônjuges por mais de um ano consecutivo, a que alude a al. a) do art. 1781.º do Código Civil, com a seguinte argumentação:
«Provou-se, no entanto, que desde Maio de 2009 que A. e R. não coabitam, não havendo qualquer comunhão entre os cônjuges e sendo propósito daquele primeiro pôr fim ao matrimónio.
Tendo a acção sido intentada em 25 de Junho de 2009, é manifesto que nessa data não estava decorrido o prazo de um ano da alínea a) do art. 1781.º para a separação de facto, o que, todavia, já sucedeu entretanto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender em alguns arestos que nestas situações em que o decurso do prazo só se completou no decurso da acção, será de lançar mão do art. 663.º do Código de Processo Civil, que manda tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento de encerramento da discussão (cfr. acórdãos de 03-11-2005 e de 06-03-2007, in www.dgsi.pt).
Em conformidade com o que aí se refere, não faria sentido, seria penoso para as partes e revelaria um notório desajustamento social e um excessivo apego a literalismos, dizer-se agora ao autor que, não obstante estar já separado de facto da ré há mais de um ano e não pretendendo manter o casamento, terá de intentar uma nova acção, com custas e desgaste inerente para demonstrar aquilo que já agora está demonstrado, pela simples razão de que quando a presente acção foi proposta ainda não tinha decorrido um ano sobre a separação de facto.
Tanto basta para que, atento o novo regime e o disposto no art. 1781.º a) do Código Civil, seja decretado o divórcio entre A. e R.
Provou-se, no entanto, que desde Maio de 2009 que A. e R. não coabitam, não havendo qualquer comunhão entre os cônjuges e sendo propósito daquele primeiro pôr fim ao matrimónio.
Tendo a acção sido intentada em 25 de Junho de 2009, é manifesto que nessa data não estava decorrido o prazo de um ano da alínea a) do art. 1781.º para a separação de facto, o que, todavia, já sucedeu entretanto.»
Esta solução comporta, a nosso ver, três equívocos, que a recorrente suscita nas suas alegações de recurso e que importa esclarecer: (i) o primeiro, é o da modificação oficiosa da causa de pedir, que a lei não permite, como se infere do disposto nos arts. 264.º, n.º 2, e 664.º do Código de Processo Civil; (ii) o segundo, é o da preterição do direito da ré ao contraditório, já que apenas foi chamada a pronunciar-se sobre os factos relativos à alegada ruptura do casamento, mas não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo, visto que tal fundamento não havia sido alegado pelo autor; (iii) o terceiro, diz respeito ao próprio conceito de separação de facto pelo período de um ano consecutivo para fundamentar o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, a que alude a al. a) do art. 1781.º do Código Civil.

6. Quanto à modificação a causa de pedir, importa assinalar que não consta do processo, nem tal é referido na sentença, que o autor tenha requerido, até ao encerramento da audiência de julgamento, a alteração ou a ampliação da causa de pedir, de modo a que também viesse a ser considerada na decisão, como fundamento do divórcio, a separação de facto dos cônjuges consecutivamente desde o mês de Maio de 2009, data mencionada na petição inicial, até à nova data que viesse a ser alegada.
Se tal ampliação viesse a ser requerida e fosse admitida, havia que ouvir a parte contrária sobre os novos factos alegados, e haveria que ampliar o objecto da audiência de discussão e julgamento a esses novos factos, como impõe o art. 506.º, n.ºs 4, 5 e 6, do Código de Processo Civil.
Não tendo sido requerida essa ampliação quanto aos fundamentos do divórcio, o Juiz não podia fundamentar a sua decisão em factos não alegados pelas partes e, consequentemente, em causa de pedir diferente da invocada pelo autor. Tal como prescrevem os arts. 264.º, n.º 2, e 664.º do Código Civil.
Neste âmbito, importa salientar que o julgador, ao decretar o divórcio com base numa causa de pedir diferente da alegada pelo autor, não se limitou a interpretar de forma diferente os factos alegados pelas partes, como lhe era permitido pelos preceitos legais antes citados. Foi muito mais além, na medida em que, para considerar provada a separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo, teve que presumir que, após a instauração da acção, os cônjuges se mantiveram ininterruptamente separados, ou seja, sem qualquer modo de vida em comum entre si, como exige o art. 1782.º do Código Civil. Facto que nunca foi alegado no processo, nem na petição inicial, nem posteriormente, e também não foi submetido a audiência contraditória das partes.
Ora, os factos alegados pelo autor e provados apenas comprovam que, à data da instauração da acção, em Junho de 2009, os cônjuges estavam separados de facto desde Maio de 2009, ou seja, desde há um mês. Mas nada mais dizem sobre o que se terá passado a partir de Maio de 2009. Designadamente, se em algum momento interromperam essa separação.
Consequentemente, e como também concluímos em recente acórdão proferido em 15-03-2011, no proc. n.º 5496/09.2TBVFR (que subscrevemos como adjunto), o tribunal não podia, oficiosamente, dar por provada a separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo e decretar o divórcio com esse fundamento não invocado pelo autor.

7. Mas para além disso, também se confirma que a ré nunca foi ouvida acerca da possibilidade de ser decretado o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo. Apenas foi ouvida e pode exercer o contraditório quanto ao fundamento da ruptura definitiva do casamento, invocado pelo autor na petição inicial.
Ora, o n.º 3 do art. 3.º do Código de Processo Civil prescreve que "o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem".
Assim, o dever de observar o contraditório implicava, no mínimo, que, se o Juiz entendia que podia decretar o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo, desse oportunidade a cada uma das partes para se pronunciarem sobre esse fundamento. E não deu.
Tal omissão configura, pois, violação do direito da ré ao contraditório.

8. Mas para além disso, está também em causa a própria caracterização do conceito de "separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo", como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, a que alude a al. a) do art. 1781.º do Código Civil.
A sentença recorrida considerou a este respeito que o tempo decorrido na pendência da acção também contava para completar o período de um ano, invocando o disposto no art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e dois arestos do Supremo Tribunal de Justiça.
Ora, quanto à invocação do preceito do art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, cabe dizer, em primeiro lugar, que a sua aplicação não é automática nem é oficiosa, como se infere do segmento normativo que começa logo por ressalvar as "restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir". O que quer dizer que a previsão da norma, no que respeita à atendibilidade de factos supervenientes, comporta restrições. A primeira das quais refere-se à sua compatibilização com os limites da causa de pedir alegada pelo autor. E face a esta restrição, só podem ser atendidos os factos que sejam compatíveis com a causa de pedir, cujas fronteiras estão consignadas nos arts. 272.º, 273.º, n.º 1, e 506.º do Código de Processo Civil, tal como esclarece REMÉDIOS MARQUES, em Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 428.
Em segundo lugar, tratando-se de factos essenciais à procedência do pedido, e não de factos meramente instrumentais, não podem ser conhecidos oficiosamente pelo tribunal, como já ficou dito supra (cfr. arts. 264.º, n.º 2, e 664.º do Código de Processo Civil). Têm que ser alegados pela respectiva parte interessada, em articulado superveniente, nos termos e condições previstas no art. 506.º do Código de Processo Civil.
Em terceiro lugar, mesmo que o tribunal pudesse servir-se oficiosamente desses factos novos, nunca o poderia fazer sem que fossem ouvidas as respectivas partes em contraditório, como impõem os preceitos do n.º 2 e 3 do art. 3.º do Código de Processo Civil.
Neste caso, o autor apenas requereu o divórcio com fundamento em factos reveladores da ruptura definitiva do casamento. Factos que não provou e, por isso, o tribunal considerou inexistir este fundamento para decretar o divórcio. Decisão que nenhuma das partes impugnou.
O autor não requereu o divórcio com fundamento na separação de facto, que se baseia em pressupostos diferentes dos que consubstanciam a ruptura definitiva do casamento. E também em momento algum do processo alterou ou ampliou a causa de pedir, por forma a que viesse a ser também considerado o fundamento da separação de facto pelo período de um ano consecutivo. Consequentemente, o juiz estava impedido de conhecer desse novo e diferente fundamento (art. 664.º do Código de Processo Civil). Como exemplifica REMÉDIO MARQUES (em ob. cit. p. 429), se, numa acção de divórcio litigioso baseada na violação de deveres conjugais, o autor não conseguir provar a violação grave e culposa pelo cônjuge demandado de algum desses deveres conjugais, não pode ser atendível o facto deste ter abandonado o lar conjugal para efeitos do divórcio fundado na separação de facto se o autor não proceder à alteração da causa de pedir dentro do prazo que a lei consente (cfr. também neste sentido o acórdão do STJ de 10-10-2006, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 06A2736).
Donde se conclui que o art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não tem aplicação ao caso.
Quanto ao plano da jurisprudência, não se desconhece que existe uma minoritária corrente jurisprudencial que, baseada em meras considerações de economia processual, persiste em argumentar que o tempo decorrido na pendência da acção releva para efeitos do preenchimento do período de tempo de separação exigido por lei.
No seguimento do que já deixámos exposto anteriormente, esta interpretação é, em nosso entender, violadora dos princípios consignados nos arts. 3.º, n.º 3, 264.º, n.º 2, e 664.º do Código de Processo Civil, que impedem que, na decisão, sejam tomados em conta factos não alegados pelas partes e fundamentos não submetidos a audiência contraditória das partes.
A verdade é que a maioria da jurisprudência mantém o entendimento de que os pressupostos que servem de fundamento ao pedido de divórcio hão-de verificar-se na data da instauração da acção ou hão-de resultar de alegação posterior superveniente, nos termos permitidos pelos arts. 272.º, 273.º, n.º 1, e 506.º do Código de Processo Civil. Foi esta a interpretação que subscrevemos em acórdão de 15-01-2008 (em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0726339), de que fomos relator, e mais recentemente, como adjunto, no acórdão de 15-03-2011, proferido no proc. n.º 5496/09.2TBVFR, que visou situação exactamente idêntica a esta e onde foram citados vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações em sentido convergente com essa orientação, designadamente o acórdão do STJ de 24-10-2006 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 06B2898) — o qual concluiu, de forma clara e inequívoca, que "o decurso do lapso de tempo exigido pela al. a) do art. 1781.º do CC é um requisito de natureza substantiva, que, por isso, tem de estar verificado à data do pedido" — os acórdãos da Relação do Porto de 25-05-2006 e de 14-06-2010 (em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0632604 e 318/09.7TBCHV.P1) e o acórdão da Relação de Guimarães de 11-11-2010 (em www.dgsi.pt/jtrg.nsf/ proc. n.º 52/09.8TBMLG.G1).
Como se salientou no acórdão de 15-03-2011 acima citado, o legislador de 2008 (Lei n.º 61/2008) considerou que o período mínimo de um ano consecutivo de separação dos cônjuges era "o adequado para, com alguma segurança, se poder formular um juízo da ruptura (definitiva) da vida em comum". E acrescentou: "Estamos perante aquilo que a doutrina vem designando como «divórcio-remédio», em que o divórcio é encarado como a solução natural para os casos em que o casamento fracassou definitivamente. Mas para que (se) possa invocar que ocorreu esse fracasso definitivo, a lei exige que decorra um período mínimo de separação de facto, que actualmente é de um ano".
Compreende-se, assim, que este período de tempo mínimo de separação, de "um ano consecutivo", já tenha decorrido aquando da propositura da acção, pois, se assim não for, o direito potestativo ao divórcio ainda não se constituiu na esfera jurídica do cônjuge demandante à data em que o pretende exercer. E nesse caso, existe até fundamento para indeferimento liminar, nos termos do art. 234.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, por manifesta improcedência do pedido.
Procedem, assim, os fundamentos do recurso, os quais conduzem à revogação da sentença recorrida e à consequente absolvição da ré do pedido de divórcio. Ficando, por isso, prejudicado o conhecimento da questão relativamente às custas — se bem que também nesse ponto assistia razão à recorrente, em face do disposto no art. 449.º do Código de Processo Civil, considerando que, sendo o divórcio decretado a pedido e no interesse do autor e não tendo a ré sido chamada a pronunciar-se nem deduzido oposição ao divórcio baseado na separação de facto, era ao autor que competia assumir o encargo pelo pagamento das respectivas custas.

9. Sumário:
1) Alegando o autor, como único fundamento do pedido de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, factos reveladores da ruptura definitiva do casamento a que alude a al. d) do art. 1781.º do Código Civil, o tribunal não pode, oficiosamente, decretar o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges ocorrida na pendência da acção.
2) Decretando-o oficiosamente, tal decisão comporta três equívocos: (i) o primeiro, é a modificação oficiosa da causa de pedir, que a lei não permite, como se infere do disposto nos arts. 264.º, n.º 2, e 664.º do Código de Processo Civil; (ii) o segundo, é o da preterição do direito da ré ao contraditório, já que apenas foi chamada a pronunciar-se sobre os factos relativos à alegada ruptura definitiva do casamento, mas não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano consecutivo, visto que tal fundamento não havia sido alegado pelo autor; (iii) o terceiro, diz respeito ao próprio conceito de separação de facto pelo período de um ano consecutivo para fundamentar o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, a que alude a al. a) do art. 1781.º do Código Civil, o qual terá que se verificar na data da instauração da acção.
3) A aplicação do art. 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não é automática nem é oficiosa, como se infere do segmento normativo que começa logo por ressalvar as "restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir".
4) Por isso, a aplicação do princípio actualista da decisão, a que alude o referido preceito, está condicionado aos factos supervenientes alegados pelas partes e submetidos a audiência contraditória, de que o tribunal pode conhecer.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência:
1) Revoga-se a sentença recorrida.
2) Julga-se improcedente a acção e absolve-se a ré do pedido.
3) Custas da acção e do recurso pelo autor (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Relação do Porto, 29-03-2011
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Sílvia Maria Pereira Pires