Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0820286
Nº Convencional: JTRP00041291
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
REGULAMENTO
LEI APLICÁVEL
ACÇÃO PENDENTE
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Nº do Documento: RP200804220820286
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 271 - FLS 216.
Área Temática: .
Sumário: I - O Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29.05.2000, aplicável a processos de insolvência, assenta em três princípios nucleares:
- o princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor;
- o princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência;
- o princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro da abertura do processo.
II - Prevê o Regulamento um regime de excepção para as acções pendentes à data da abertura do processo de insolvência, que se regem exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que as referidas acções se encontram pendentes.
III - Sendo esta acção proposta em Portugal, em data posterior ao "momento da abertura do processo" de insolvência, o caso não será de inutilidade superveniente, nem de impossibilidade (como seria mais próprio), mas de incompetência absoluta dos tribunais portugueses.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 286/08-2
1.ª Secção Cível
NUIP …./06.4TVPRT


Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I

1. Nos presentes autos de acção declarativa com processo comum ordinário, instaurada na ..ª Vara Cível do Porto com o n.º …./06.4TVPRT, B………., C………., D………. e E………., demandaram a sociedade comercial F………., S.A., com sede em Espanha, pedindo a declaração de resolução dos contratos com esta celebrados e a sua condenação a pagar-lhes as quantias discriminadas na petição inicial.
Contestou a Ré, alegando que é uma sociedade de direito espanhol e já foi declarada a sua insolvência por tribunal daquele país, o que determina, face à lei espanhola, que entende ser aqui aplicável, os credores da insolvente apenas em sede concursual podem ver satisfeitos os seus créditos, os quais, no que respeita aos aqui Autores, também já reclamaram naquele processo, requerendo, por tudo isso, a suspensão do processo.
Replicaram os Autores, sustentando que, tendo a presente acção carácter declarativo e ainda que obrigados a reclamar os seus créditos no processo de insolvência da Ré, tal não determina que os presentes autos não possam seguir os seus normais trâmites.
Junta, entretanto, aos autos a certidão que consta a fls. 899-983, a solicitação do tribunal, o Sr. Juiz proferiu o despacho que consta a fls. 988-991, em que julgou extinta a instância nos termos do art. 287.º, al. e), do Código de Processo Civil.

2. Não se conformando com esse despacho, os Autores recorreram para esta Relação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1º. A sentença recorrida considerou que a lei aplicável á presente demanda seria a Lei Concursal espanhola e fazendo uso do normativo dessa mesma lei, considerou os presentes autos extintos por inutilidade superveniente da lide com custas a cargo dos AA.
2º. E para o efeito e desde logo a sentença recorrida alega que a aqui Ré foi declarada insolvente por sentença datada de 14 de Julho de 2006 tendo a respectiva sentença transitado em julgado.
3º. Ora bem, aqui, desde logo, surge a primeira discordância dos AA. Já que da cópia certificada junta aos autos da sentença de declaração de insolvência da Ré não consta em lado algum que a respectiva sentença tenha transitado em julgado.
4º. Aliás da sentença junta consta expressa que da sentença pode ser interposto recurso de apelação ou de reposição no prazo de cinco dias após a data da última publicação da sentença de declaração de insolvência.
5º. Ora, através de consulta Web ao sitio do Boletim Oficial do Estado Espanhol (BOE), equivalente ao nosso Diário da República, in http://www.boe.es/g/es/, verificamos que no BOE n.º 223, de 18 de Setembro de 2006, pág. 10057, foi publicado anuncio de que por «auto de 14 de Júlio de 2006 se há declarado em concurso necessário ... F………., Sociedad Anónima».
6º. Ou seja, duvidas não podem existir que na data em que os AA. deram entrada com a respectiva acção judicial (26 de Julho de 2007) a declaração de insolvência não tinha de certeza transitado em julgado já que os anúncios só foram publicados em 18 de Setembro de 2007. E só após essa publicação é que começava a correr o prazo para um eventual recurso.
7º. Mas repita-se dos autos não constam nenhuma certidão de que a sentença de 14 de Julho transitou em julgado.
8º. A sentença recorrida fazendo uso do Regulamento 1346/2000 de 29 de Maio de 2000, entende que tendo a presente acção sido proposta após a declaração de insolvência que seria a lei espanhola a aplicável aos presentes autos.
9º. Conforme já referimos, esta conclusão está errada já que a existir trânsito em julgado da declaração de insolvência esta é posterior á data de entrada da acção dos aqui recorrentes.
10º. E assim sendo mesmo nos termos da Lei Concursal espanhola (art. 51.º) as acções continuam a correr os seus termos até que seja proferida sentença, a não ser que o juiz do processo de insolvência, oficiosamente ou a requerimento, determine a sua apensação á insolvência por entender que a sua resolução é importante para o apuramento da massa falida ou da lista de credores.
11º. Mas mesmo que assim não fosse (ou seja, mesmo que a declaração de insolvência tivesse transitado em julgado em data anterior) entendemos que o Tribunal recorrido não fez uma aplicação correcta do direito.
12º. Na verdade, nos termos do art. 15.º do Regulamento, os efeitos do processo de insolvência numa acção pendente rege-se exclusivamente pela lei do Estado - Membro em que a referida acção se encontra pendente (aliás o art. 285.º do CIRE refere o mesmo principio).
13º. Ou seja, dúvidas não há que ao contrário do referido na sentença recorrida, a lei aplicável ao presente processo é a lei portuguesa e não a lei espanhola.
14º. E sendo aplicável a lei portuguesa, dispõe o art. 85.º do CIRE que todas as acções intentadas contra o devedor podem ser apensadas aos autos de insolvência quando tal tenha sido requerido pelo administrados judicial.
15º. No caso, a apensação está fora de causa, pelo que, deverá a presente acção prosseguir, tendo aliás o Tribunal elementos suficientes para condenar a Ré no respectivo pedido.
16º. Violou assim a sentença recorrida o disposto no art. 15.º do Regulamento 1346/2000 e os artigos 285.º e 85.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa.
Pretende, assim, que, no provimento do presente agravo, seja revogado o despacho recorrido e seja substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.

2.1. Contra-alegou a Recorrida, concluindo:
a) Decidiu bem o tribunal recorrido pela inutilidade superveniente da lide.
b) Em 14 de Julho de 2006, o "Juzgado Mercantil n.º ." de Madrid, declarou a Recorrida em situação de concurso necessário, tendo designado uma administração concursal da mesma.
c) Nos termos do disposto no art. 285.º do CIRE os efeitos da declaração de insolvência sobre acção pendente relativa a um bem ou um direito integrante da massa insolvente regem-se pela lei do Estado em que a referida acção corra os seus termos.
d) Por aplicação da lei portuguesa, a falência da Recorrida determina a inutilidade superveniente da lide.
e) A acção dos autos é uma acção de condenação, não uma acção de mera apreciação, mediante a qual os AA. pretendem que o Tribunal condene a Recorrida a satisfazer um direito de crédito, pagando uma determinada quantia susceptível de ser executada judicialmente para obter o cumprimento coercivo.
f) A utilidade da acção estará, portanto, em através da acção se obter uma decisão susceptível de por via executiva possibilitar o efectivo reembolso do direito de crédito.
g) Ao abrigo do art. 128.º, n.º 3, do CIRE, têm de ser objecto de reclamação no processo de insolvência todos os créditos, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter o pagamento, o que os Recorrentes fizeram.
h) Mesmo que os AA. viessem a obter a sentença pretendida, estão impedidos de a executar, já que a liquidação do património da Recorrida só pode ser feito no âmbito do processo de insolvência e por acto do respectivo liquidatário, uma vez que a Recorrida falida se encontra inibida dos poderes de administração ou disposição do respectivo património.
i) A impossibilidade de executar bens por parte dos órgãos judiciais de Estados distintos daquele em que foi declarado o concurso tem fundamento no interesse da legislação internacional de salvaguardar o princípio "par conditio creditorum", já que, se se permitisse tal possibilidade, os credores estrangeiros que exibissem tal interesse e o vissem reconhecido em virtude de um título judicial executivo, estariam autorizados a conseguir a cobrança dos seus créditos através da virtualidade de tais execuções, e os credores nacionais veriam frustradas a suas expectativas para efeitos do devido cumprimento da legislação concursal.
j) Deveria ter havido lugar, como houve, à declaração de inutilidade superveniente da lide.
k) Termos em que, não deve ser revogada a decisão recorrida que se deve manter, não sendo dado provimento ao recurso, nos seus termos.

3. Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, que delimitam o objecto do recurso (arts. 684.º, n.º 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a única questão a decidir consiste em apreciar quais os efeitos na presente acção da declaração de insolvência da demandada F………., S.A., decidida por Tribunal Espanhol.
Foram colhidos os vistos legais.
II

4. O despacho recorrido fundamentou a extinção da instância do seguinte modo:
«Consta desde logo daquele que a Ré foi declarada insolvente em data anterior à da propositura da acção.
(…)
A instâncias do Tribunal foi junta e encontra-se devidamente certificada nos autos a sentença, transitada, do Julgado de Lo Mercantil nº ., proferida em 14 de Julho de 2006, e respectiva tradução, que foi declarada a insolvência da aqui ré e se declarou aberta a fase comum de concurso.
Cumpre decidir, sendo a primeira das questões a ponderar a da aplicação da lei no espaço relativa à decisão de qual o ordenamento jurídico a regular a presente demanda.
Ora, prevê o art. 16.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência e posteriormente alterado pelo regulamento (CE) n.º 603/2005 do Conselho de 12 de Abril de 2005 e pelo regulamento (CE) n.º 694/2006 do Conselho de 27 Abril de 2006, que qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência é reconhecida em todos os outros estados membros e neles produz os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado da abertura do processo (cfr. também o art. 17.º).
Donde, sendo imediatamente reconhecida no nosso território aquela decisão – certificada nos autos –, a mesma produz no nosso ordenamento jurídico os mesmos efeitos que tem em território espanhol.
Tal normativo apenas é excepcionado no caso dos processos pendentes – cfr. disposições conjugadas dos artigos 4.º e 15.º do referido Regulamento.
Donde, tendo a presente acção sido proposta após a referida declaração de insolvência, é a lei Espanhola a aplicável no que se refere à decisão da questão posta – ponderar o reflexo nesta acção da decisão em apreço.
A Lei à luz da qual foi declarada a referida insolvência da ré e “aberta a fase comum de concurso” é a LEY Concursual n.º 22/03, de 09-07, disponível em http://ec.europa.eu/civiljustice onde, à semelhança do nosso CIRE, se prevê a obrigatoriedade de um concurso universal de credores para exercício dos direitos de carácter patrimonial contra a insolvente, o que é dizer que todos os créditos anteriores à sentença que decreta a insolvência devem obrigatoriamente ser reclamados naquele processo devendo os juízes das acções “com transcendência patrimonial que se dirixam contra o património do concursado”, abster-se de as conhecer, antes remetendo as partes para o processo de insolvência – cfr. art. 50.º da Ley em análise.
Ou seja, à data da propositura da presente acção – 26-06-2006 –, por já haver sido declarada a insolvência da aqui Ré, já os seus Autores estavam obrigados a reclamar os seus créditos naquele processo, como aliás, e bem, terão feito, nenhuma utilidade tendo o prosseguimento dos autos já que a sentença que daqui pudesse resultar não obrigaria a Ré ao seu pagamento nem vincularia o Julgado de Lo Mercantil nº ., por se referir a créditos que obrigatoriamente ali têm de ser reclamados.
No que tange ao pedido de resolução dos contratos, prevê o n.º 2 do art. 62 da referida Ley concursal que “La acción resolutoria se ejercitará ante el juez del concurso y se sustanciará por los trámites del incidente concursal.”
Donde, também aqui valem as considerações já feitas e relativos à necessidade da pretensão objecto dos autos ser exercida no processo de insolvência.
Donde, em conclusão, não podem os direitos objecto do pedido ser aqui conhecidos ou reconhecidos sendo, pois, inútil a tramitação dos presentes autos, e em consequência, extinta a instância nos termos do art. 287.º e) do Código Processo Civil.»

5. Para além do teor do próprio despacho recorrido, relevam para a apreciação do objecto deste agravo os seguintes factos documentados nos autos:
1) A presente acção foi proposta no dia 26-06-2006;
2) Por decisão do “Juzgado de lo Mercantil n.º . de Madrid” de 14 de Julho de 2006, foi declarada a insolvência da Ré F………., S.A., com carácter necessário, e foi declarada aberta a fase comum de concurso (fls. 900 e 942/943, tradução a fls. 980);
3) Na mesma decisão foi, além do mais, ordenada a notificação dos credores da F………., S.A. para reclamarem os seus créditos junto do administrador de insolvência, no prazo de um mês a contar da data da última das publicações previstas (fls. 944, tradução a fls. 981);
4) Do auto certificado a fls. 899-983 consta ainda que da decisão que declarou a insolvência da F………., S.A. “cabe recurso de apelação a apresentar nos 5 dias seguintes à notificação do auto às partes que tenham comparecido e desde a data da última publicação da declaração de insolvência para todos os interessados. O recurso não terá efeito suspensivo” (fls. 946, tradução a fls. 982).
III

6. No essencial, a base da fundamentação que os agravantes invocam contra a decisão recorrida reside no facto de não estar certificada nos autos a data do trânsito em julgado da decisão do tribunal espanhol que declarou a insolvência da demandada e declarou aberta a fase concursal (concurso de credores).
Neste ponto, há que reconhecer a razão da agravante. Efectivamente, não consta dos autos que a decisão da declaração de insolvência da demandada tenha transitado em julgado. E esse elemento podia ter sido solicitado pelo tribunal recorrido, se o considerava relevante, ou deveria justificar a sua irrelevância para a decisão que proferiu.
Mas, por outro lado, também se constata que, na conclusão 6.ª, a agravante incorre em equívoco acerca da data da publicação do anúncio da declaração de insolvência no BOE, alterando, quanto ao ano (de 2006 para 2007) a data que a própria menciona na conclusão 5.ª.
Assim, na conclusão 5.ª diz que o anúncio da declaração de insolvência da Ré foi publicado “no BOE n.º 223, de 18 de Setembro de 2006, pág. 10057”; mas na conclusão 6.ª diz que na “data em que os Autores deram entrada com a respectiva acção judicial (26 de Julho de 2007), a declaração de insolvência não tinha de certeza transitado em julgado já que os anúncios só foram publicados em 18 de Setembro de 2007”.
Ora, pudemos confirmar, através de consulta ao Boletim Oficial Espanhol (BOE), no endereço que a própria agravante indica (http://www.boe.es/g/es/), que o anúncio da declaração de insolvência da Ré foi efectivamente publicado no BOE n.º 223, de 18 de Setembro de 2006, a págs. 10057-10058, podendo ser consultado através do link http://www.boe.es/boe/dias/2006/09/18/pdfs/B10057-10058.pdf.
Deste modo, não é verdadeira a “certeza” que a agravante afirma na conclusão 6.ª, quando diz que “dúvidas não podem existir que na data em que os AA. deram entrada com a respectiva acção judicial (26 de Julho de 2007) a declaração de insolvência não tinha de certeza transitado em julgado já que os anúncios só foram publicados em 18 de Setembro de 2007”. O que é possível concluir é que esta acção, quando deu entrada em tribunal, em 26-07-2007, já tinham decorrido, desde a data da publicação do anúncio da declaração de falência, 10 meses e 8 dias. Tempo mais do que suficiente para se admitir, como razoável, que aquela decisão já teria transitado em julgado. E o trânsito só não terá ocorrido se foi apresentado algum recurso dentro do respectivo prazo legal. O que não é alegado por nenhuma das partes e se desconhece neste processo.
Assim, de relevante, fica a dúvida sobre o trânsito em julgado da decisão que declarou a Ré insolvente mas fica a certeza de que a presente acção foi proposta muito depois daquela decisão ter sido proferida e ter sido anunciada publicamente. E é destes dois pressupostos que há que partir para a apreciação do objecto do agravo relativamente à conformidade ou desconformidade legal da decisão recorrida.

7. Como bem refere o despacho recorrido, a questão que aqui se coloca tem que ser enquadrada, em primeiro lugar, no âmbito do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho da União Europeia, de 29-05-2000, com as alterações introduzidas pelos regulamentos (CE) n.º 603/2005, de 12-04-2005, e n.º 694/2006 de 27-04-2006, o qual, nos termos do seu artigo 1.º, “é aplicável aos processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico”.
E como é expressamente referido nos respectivos considerandos, o bom funcionamento do mercado interno da União Europeia (UE) “exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz” (2), de modo a “evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou acções judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping)” (4). Com esse objectivo, o presente Regulamento assenta nestes três princípios nucleares:
1) o princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor, a que é atribuído alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor – artigo 3.º e considerando (12);
2) o princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como das decisões proferidas em conexão directa com esses processos, o que deve conduzir a que os efeitos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura do processo se estendam a todos os outros Estados-Membros – artigos 16.º e 17.º e considerando (22);
3) o princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro de abertura do processo (lex concursus), que “determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência” – artigo 4.º e considerando (23).
À luz destes princípios, é correcto concluir que o órgão jurisdicional do Reino de Espanha é o competente para a abertura do processo de insolvência da demandada, por ser ali que esta tem a sua sede e o centro dos seus interesses empresariais; que a declaração de insolvência da Ré, decidida por tribunal competente daquele Estado-Membro, produz efeitos imediatos nos outros Estados-Membros, e, portanto, também em Portugal; e que a lei aplicável ao processo de insolvência bem como aos seus efeitos é a lei do Reino de Espanha, que, neste caso, é a LEY CONCURSUAL n.º 22/2003, de 9 de Julho. Lei que também se aplica “aos efeitos do processo de insolvência nos contratos em vigor nos quais o devedor seja parte” e “aos efeitos do processo de insolvência nas acções individuais, com excepção dos processos pendentes” [cfr. artigo 4.º, n.º 2, als. e) e f), do Regulamento].
Aquela LEY CONCURSUAL prevê a obrigatoriedade de um concurso universal de credores para o exercício dos direitos de carácter patrimonial contra a insolvente, como decorre do próprio auto que contém a declaração de insolvência e manda convocar todos os credores, em termos semelhantes ao que também está previsto no nosso Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – cfr. arts. 36.º, al. j), 47.º e ss. e 128.º e ss. O que significa que todos os créditos contra a insolvente existentes à data da declaração de insolvência devem ser obrigatoriamente reclamados naquele processo.
Quanto às acções instauradas após a declaração de insolvência, “que se dirixam contra o património do concursado”, dispõe o artigo 50 daquela LEY que o juiz deve abster-se de as conhecer, remetendo as partes para o processo de insolvência. O que, aliás, também se identifica com o regime estabelecido no CIRE (cfr. arts. 89.º, n.º 2, e 90.º). E no tocante às acções para resolução dos contratos, prevê o n.º 2 do artigo 62 da mesma LEY que tais acções correm termos perante o juiz do processo de insolvência e são reguladas pelos trâmites do incidente concursal (“La acción resolutoria se ejercitará ante el juez del concurso y se sustanciará por los trámites del incidente concursal”).
De que resulta que esta acção dos Autores, tendo sido proposta depois da declaração de insolvência da Ré, terá que correr perante o tribunal do processo de insolvência e segundo os trâmites da lei espanhola aplicável.

8. É certo que o Regulamento prevê um regime de excepção para as acções pendentes à data da abertura do processo de insolvência, e é este regime de excepção que os agravantes invocam e entendem ser-lhes aplicável, mas partem do pressuposto de que a sua acção foi instaurada antes da declaração de insolvência.
Efectivamente, os artigos 4.º, n.º 2, al. f), e 15.º do Regulamento excepcionam do princípio da «lei do Estado de abertura do processo» as acções pendentes. Dispondo o artigo 15.º que “os efeitos do processo de insolvência numa acção pendente relativa a um bem ou um direito de cuja administração ou disposição o devedor está inibido regem-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida acção se encontra pendente”.
Questiona-se, então, o que deve entender-se por “momento de abertura do processo”, para efeitos de se determinar qual a lei aplicável, e qual o momento a partir do qual se tornam vinculativas as decisões do órgão jurisdicional de um Estado-Membro perante os demais Estados-Membros.
A resposta encontra-se na definição dada pela al. f) do artigo 2.º, em conjugação com as normas dos artigos 16.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1, do Regulamento.
Estabelece o artigo 2.º, al. f), que: “Para efeitos do presente regulamento, são aplicáveis as seguintes definições: (…) f) «Momento de abertura do processo», o momento em que a decisão de abertura produz efeitos, independentemente de essa decisão ser ou não definitiva”.
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 16.º dispõe: “Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo”.
Sobre os efeitos do reconhecimento, o n.º 1 do artigo 17.º dispõe que: “A decisão de abertura de um processo referido no n.º 1 do artigo 3.º produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo”.
Decorre dos preceitos citados que a eficácia e o reconhecimento da decisão nos restantes Estados-Membros não depende de ela ser ou não definitiva. Depende, sim, da eficácia que lhe é atribuída pela lei do Estado de abertura do processo, quer quanto ao âmbito dos efeitos que produz, quer quanto ao momento a partir do qual produz efeitos.
Ora, consta do auto certificado a fls. 899-983 que da decisão que declarou a insolvência da F………., S.A. “cabe recurso de apelação a apresentar nos 5 dias seguintes à notificação do auto às partes que tenham comparecido e desde a data da última publicação da declaração de insolvência para todos os interessados. O recurso não terá efeito suspensivo” (fls. 946, tradução a fls. 982).
Se o recurso não tem efeito suspensivo em relação à decisão quer dizer que esta, ainda que não seja definitiva, produz efeitos imediatos. Designadamente no tocante à abertura do processo concursal (concurso de credores), à apreensão dos bens que constituem a massa insolvente, aos contratos em vigor e à propositura de acções de natureza patrimonial contra a insolvente. Abrangendo, portanto, o tipo desta acção que os Autores aqui propuseram contra a insolvente.
Donde se conclui que os Autores não podem beneficiar, quanto a esta acção, do regime de excepção previsto nos artigos 4.º, n.º 2, al. f), e 15.º do Regulamento. Sendo-lhes, antes, oponível, o regime previsto nos arts. 4.º, n.º 1 e n.º 2, als. e) e f), 16.º e 17.º do Regulamento, e o regime da LEY CONCURSUAL em vigor no Reino de Espanha. Que impõem que esta acção tenha que ser proposta perante o Tribunal por onde corre o processo de insolvência da demandada e seguir a tramitação prevista naquela lei.

9. Importa acrescentar mais uma nota para dizer o seguinte:
O tribunal recorrido considerou que, não podendo “os direitos objecto do pedido ser aqui conhecidos ou reconhecidos”, era “inútil a tramitação dos presentes autos”, pelo que declarou “extinta a instância nos termos do art. 287.º, al. e), do Código Processo Civil”.
Que o prosseguimento da acção redundaria numa inutilidade, é certo. O que não nos parece certo é a extinção da instância nos termos da al. e) do art. 287.º do Código de Processo Civil, como se tratasse de uma “inutilidade superveniente da lide”. Ora, como a própria decisão recorrida reconhece, o fundamento que impede a acção de prosseguir já existia à data da sua propositura. Por isso, de superveniente não tem nada. E, mais do que um caso de inutilidade, é um caso de impossibilidade da lide, não superveniente mas ab initio.
Só que esta impossibilidade decorre da violação das regras de competência internacional, como se infere do disposto nos artigos 3.º do Regulamento, 271.º do CIRE e 65.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Pelo que, em nossa opinião, deverá ser resolvido como um caso de incompetência absoluta dos tribunais portugueses (art. 101.º do Código de Processo Civil), que dá lugar à absolvição do réu da instância (arts. 105.º, n.º 1, 288.º, n.º 1, al. a), 493.º, n.º 2, e 494.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil), e não como um caso de extinção da instância. Se bem que o efeito prático seja o mesmo.
Assim, em lugar da extinção da instância, declara-se a absolvição da Ré da instância. O que não afecta o objecto do agravo nem a sua improcedência.
IV

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao agravo.
Custas pelos agravantes (art. 446.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*

Relação do Porto, 22-04-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues