Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16993/19.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: DIVÓRCIO
ATRIBUIÇÃO DO ARRENDAMENTO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP2020112316993/19.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O critério geral para atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família na sequência de acção de divórcio é no sentido de que esse direito deve ser atribuído ao cônjuge que mais dela necessite, pois o objectivo da lei é proteger o cônjuge que maior sacrifício fará para mudar de residência.
II - O critério da necessidade de um dos cônjuges há-de ser apurado em função dos concretos rendimentos e encargos de ambos os ex-cônjuges, de modo a ajuizar qual deles se encontra numa situação mais desfavorável, isto é, qual deles tem maior premência da necessidade da casa.
III - Sendo as condições pessoais (idade, saúde e rendimentos) de cada um dos ex-cônjuges sensivelmente iguais, a circunstância de um deles viver sozinho e outro ter a seu cargo uma filha menor, que de si depende economicamente, mesmo não sendo filha em comum do ex-casal, constitui factor que depõe a favor deste último, devendo, por isso, por princípio, o direito ao arrendamento da casa de morada de família ser-lhe atribuído.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 16993/19.1T8PRT.P1
Juízo de Família e Menores do Porto – J1
Relator: Des. Jorge Miguel Seabra
1º Juiz Adjunto: Des. Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desª Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


I. RELATÓRIO:
1. B…, casada, residente na Rua …, Bl. .., Ent. …, Casa .., …, …. – … Porto, veio intentar acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra C…, residente na mesma morada, pedindo que seja decretada, por divórcio, a dissolução do casamento celebrado entre ambos.

2. Em sede de tentativa de conciliação em 18 de Dezembro de 2019, foi a acção convertida em divórcio por mútuo consentimento, face à vontade de ambos os cônjuges em dissolver o casamento, mas não se logrou – apenas – obter o acordo quanto à atribuição da casa de morada de família.

3. As partes vieram alegar.

4. Realizou-se audiência de julgamento, sendo proferida sentença que atribui à requerente o direito ao arrendamento da casa de morada de família, sita na Rua …, Bl. .., Ent. …, Casa .., …, …. – … Porto.
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5. Inconformado com tal decisão, dela recorreu o requerido, oferecendo alegações e formulando a final as seguintes
CONCLUSÕES (síntese)
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6. A recorrida contra-alegou no sentido da improcedência do recurso e, ainda, pela condenação do recorrente como litigante de má-fé por não desconhecer a falta de fundamento do recurso por si interposto e procurar, assim, protelar o efeito da decisão proferida.
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7. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.ºs 3 e 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação a questão a dirimir refere-se ao mérito da sentença recorrida e, em particular, à aplicação no caso dos autos dos critérios de atribuição da casa de morada de família, previstos no artigo 1105º, do Cód. Civil.
Por outro lado, em função das contra-alegações da recorrida, importa conhecer da alegada má-fé do recorrente, sendo certo que a matéria em apreço, apesar de não ter sido suscitada em 1ª instância, é de conhecimento oficioso.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Os requerentes contraíram casamento civil em 19 de Fevereiro de 2018, sem convenção antenupcial;
2. Desta relação não nasceram filhos;
3. Antes dessa data o requerente havia formulado pedido de habitação social, junto da “D…”, indicando a sua mãe como fazendo parte do agregado;
4. Posteriormente, mas antes da atribuição de habitação, a progenitora do requerente faleceu.
5. Tendo o mesmo incluído no agregado, junto daquela empresa municipal, a aqui requerente, e a sua filha, menor de idade, fruto de anterior relacionamento;
6. Em consequência foi atribuída ao aqui requerente, tendo em conta a composição do agregado supra identificado, uma habitação de tipologia T2;
7. Sendo que o facto de estar incluída uma menor de idade permite que o processo de atribuição seja mais rápido;
8. Se o requerido estivesse a requerer a habitação social, como único elemento do agregado, ter-lhe-ia sido atribuída uma habitação de tipologia T1;
9. O requerente é o titular do contrato em causa, pagando uma renda mensal no valor de 35,19 €;
10. A requerente trabalha como empregada de limpeza, em equipamentos de hotelaria, auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional;
11. Atenta a actual situação de pandemia, encontra-se em casa, com apoio do ISS:
12. Tendo prometido o regresso ao seu trabalho;
13. A requerente não tem qualquer família em Portugal que a possa apoiar;
14. Tendo uma irmã, empregada interna numa família no Porto, em casa de quem vive.
15. O requerente trabalhou sempre na construção civil, auferindo rendimentos não apurados.
16. Tem dois filhos, sendo pelo menos uma das filhas maior de idade;
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV. I. Do mérito da sentença recorrida:
Delimitados os factos apurados e a questão essencial a dirimir, como resulta da factualidade apurada, o ajuizado imóvel constitui, desde data não exactamente apurada posterior ao casamento dos ora ex-cônjuges, casa de morada de família [1] de ambos por nela terem residido, enquanto casal, com caracter de permanência, na sequência de contrato para o efeito firmado entre o ora recorrente C… e “D…“- empresa municipal da CM do … -, pagando o mesmo, como contrapartida, a renda mensal de € 35, 19.
Destarte, não sofre dúvidas que é o ora recorrente o titular do contrato de arrendamento sobre o imóvel que constituiu a casa de morada de família do casal constituído por si e pela ora recorrida, não relevando, nesse contexto, em nosso ver, esgrimirem-se as condições e os pressupostos que estiveram presentes na atribuição de tal habitação social ao aqui recorrente e, ainda, a opção, naturalmente livre e esclarecida, do recorrente de nela instalar o centro da sua vida familiar com a sua ex-mulher e a filha desta última, fruto de um relacionamento anterior da mesma.
Nesta perspectiva, e com o devido respeito, no contexto decisório que se nos coloca, são irrelevantes as considerações tecidas nas conclusões VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV a XIX e XXI a XXVI, pois que o se trata no presente recurso é, dando por assente que o recorrente é titular do contrato de arrendamento firmado com a aludida “D…“ na sequência do procedimento que veio a culminar com tal atribuição, saber se esse contrato deve manter-se na sua titularidade ou, ao invés, se deve ela ser transferida para a recorrida, em função dos interesses que, no caso, devem merecer maior relevância e atento o divórcio decretado por acordo entre ambos.
É certo, diga-se, que ao proferir a decisão que é chamado a proferir no âmbito do divórcio entre os ex-cônjuges, essa decisão sempre contende com a relação de arrendamento previamente estabelecida entre a CM do … e o arrendatário, ora recorrente, mas não está em causa, como parece sugerir o recorrente nas suas alegações, uma qualquer usurpação ou invasão da competência daquela Camara Municipal.
Ao invés, aceitando o tribunal a validade e a legalidade do procedimento administrativo que veio a culminar com a atribuição do arrendado ao recorrente, à luz do regulamento aplicável [2], e pressupondo, portanto, essa relação jurídica de arrendamento, o que se trata é, no contexto do divórcio entre os ex-cônjuges e membros do agregado familiar que habitavam (ou habitam) o arrendado de cariz social, decidir, sob a égide e os poderes conferidos pelo artigo 990º, n.ºs 1 e 4 do CPC, sobre o ex-cônjuge que, à luz do regime substantivo previsto no artigo 1105º, do Cód. Civil, deve ingressar, como arrendatário, naquela relação jurídica de arrendamento validamente constituída e aqui (nesta jurisdição civil comum) expressamente aceite.
Note-se, aliás, neste sentido, que o próprio Regulamento camarário antes citado apenas prevê no seu artigo 23º as condições de transmissibilidade do arrendamento social em caso de falecimento do arrendatário (aliás, em moldes praticamente correspondentes aos previstos no artigo 1106º, do Cód. Civil, para o qual remete), deixando, assim, em nosso ver, a regulação da transmissibilidade desse arrendamento em vida e em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens dos ex-cônjuges para a previsão normativa do direito civil comum, especificamente para o artigo 1105º, do mesmo Cód. Civil.
Portanto, em síntese, a regulação da transmissão do arrendamento, mesmo sendo de cariz social, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens dos ex-cônjuges, como ora sucede, há-de obedecer apenas aos critérios substantivos previstos no citado artigo 1105º, integrando-se, pois, na esfera de competência dos tribunais comuns e nestes ao tribunais de família e menores em que corre o processo de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, constituindo um apenso do mesmo, como decorre do preceituado no artigo 990º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPC.
Dirimida esta questão prévia, cumpre decidir do tema central do recurso.

Neste contexto, pretendendo cada uma das partes que lhe seja atribuído o uso, em exclusivo, dessa casa, perante o conflito entre elas surgido, caberá pois ao juiz resolvê-lo, sendo certo que, naturalmente, não se pode impor a duas pessoas, que decidiram, por via do divórcio, romper os seus laços familiares, a convivência em comum nesse espaço.
Para tal efeito, importa, como se referiu, convocar o regime previsto no artigo 1105º, do Cód. Civil, que no seu n.º 2 dispõe que “Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um [dos cônjuges], os interesses dos filhos e outros factores relevantes.”
Note-se, neste contexto, e ainda que os critérios aplicáveis num caso e no outro não divirjam, que ao caso não é aplicável, ao contrário do que advoga o recorrente, o preceituado no artigo 1793º, n.º 1, do Cód. Civil, pois que este normativo versa sobre a hipótese de atribuição do contrato de arrendamento sobre casa de morada de família que constitua bem comum do ex-casal ou bem próprio do outro ex-cônjuge, hipótese que, no caso dos autos, está fora de cogitação pois que o imóvel não é propriedade de qualquer dos ex-cônjuges, antes é pertença da empresa municipal da Camara …. que atribuiu o seu uso/arrendamento ao aqui recorrente.
Feito este esclarecimento prévio, como vem sendo assinalado, os factores exemplificativamente elencados no citado artigo 1105º, n.º 2, do Cód. Civil não têm qualquer prevalência de uns sobre os outros, cabendo ao julgador, numa análise casuística, atribuir-lhe maior ou menor relevância, de acordo com a sua prudente apreciação e valoração, sendo que, como é consabido, estamos em presença de um processo de jurisdição voluntária [3] em que o tribunal não está vinculado por estritos critérios de legalidade podendo proferir a decisão que se lhe afigure a mais justa e equilibrada em face dos vários interesses em conflito; é o que resulta do artigo 987º, do CPC, que prevê que “nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”
Por conseguinte, o propósito final da lei é o de assegurar que, decretado o divórcio, a casa de morada de família possa ser utilizada pelo ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la tendo em conta as necessidades de um e de outro.
Neste âmbito e em razão da relativa indeterminabilidade dos factores legalmente previstos, a doutrina tem procurado definir critérios operativos que possam ser atendidos para a atribuição em concreto da casa de morada de família.
Assim, PEREIRA COELHO, in Revista Legislação e Jurisprudência, ano 122º, pág. 120 e segs…, apresenta um conjunto de orientações passíveis de ser atendidas na resolução da questão, afirmando, designadamente, que:
- inexiste uma hierarquia entre os vários factores a ponderar;
- a lei sacrificou deliberadamente o interesse do senhorio ao interesse da protecção da casa de morada de família;
- a casa deve ser atribuída ao ex-cônjuge que mais precise dela, sendo irrelevantes a culpa pela separação ou pelo divórcio;
- na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos cônjuges havendo que apurar os rendimentos e proventos de cada um e os respectivos encargos, nomeadamente a obrigação de alimentos de um cônjuge ao outro, bem como aos filhos;
- outras razões atendíveis são as que resultam da idade e estado de saúde de algum dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de cada um, a eventual disponibilidade do casal ou de um deles de dispor de outra casa onde possa residir;
- de escassa relevância será a circunstância de um dos cônjuges poder ser ou ter sido acolhido por familiares que não estejam obrigados a recebê-lo, só o fazendo por mera tolerância.
Por seu turno, PIRES de LIMA e A. VARELA salientam que a atribuição da casa de morada de família “não se trata, efectivamente, de um resultado do ajuste de contas desenvolvido pela crise do divórcio, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar”, acrescentando, ainda, que “o primeiro factor que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da actual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar (…).” [4]

Ainda sobre esta temática, referem PEREIRA COELHO e GUILHERME de OLIVEIRA que “o direito ao arrendamento da casa de morada de família, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. Na verdade, o objectivo da lei (…) não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada de família, em qualquer caso, o ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. (…) Na avaliação da necessidade da casa, deve o tribunal ter em conta, em particular, a situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges e o interesse dos filhos. (…) Trata-se, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, assim como os respectivos encargos; no que se refere ao interesse dos filhos, há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores (…), se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem ficaram confiados. (…) Haverá que considerar ainda outros factores relevantes, como a idade e o estado de saúde dos cônjuges e ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.
Quando possa concluir-se, em face desses elementos, que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada de família àquele que mais precisar dela; só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar outros factores (….).” [5]
Este posicionamento doutrinário tem vindo a ser acolhido, em maior ou menor medida, pela jurisprudência, afirmando-se, neste âmbito, como critério primordial que a casa de morada de família deve ser atribuída ao cônjuge que suporta maior sacrifício com o afastamento daquela, tendo em conta todo o condicionalismo pessoal dos cônjuges e dos seus filhos. [6]
No caso dos autos, como se vê da fundamentação invocada na douta sentença recorrida, esta jurisprudência foi ponderada e, nesse enquadramento, considerando-se que as condições pessoais dos ex-cônjuges eram essencialmente idênticas, erigiu-se como factor diferenciador em favor da recorrida e no sentido da atribuição do arrendamento da casa de morada de família a circunstância de a mesma ter uma filha menor a viver consigo.
É, portanto, neste específico e decisivo segmento, que se manifesta a discordância do recorrente, argumentando o mesmo, no essencial, que é ele quem sofrerá maior sacrifício com o afastamento da casa de morada de família, pois que não tem capacidade económica para obter um arrendamento que não seja de cariz social, que o arrendamento foi por si obtido muito antes de a recorrida e a sua filha fazerem parte do seu agregado familiar, sendo certo, ainda, que a existência de uma filha menor da recorrida não podia consubstanciar um critério distintivo, na medida em que é pressuposto de tal critério que estejam em causa filhos do casal, o que no caso não acontece, pois que a menor não é sua filha, antes é fruto de um anterior relacionamento da recorrida.
Com o devido respeito, não assiste razão ao recorrente.
Se não, vejamos.
De acordo com a factualidade provada o recorrente sempre trabalhou na construção civil, auferindo rendimentos não apurados (ponto 15 da factualidade provada).
Como assim, poder-se-á dizer que, por princípio, o recorrente não auferirá rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional, sendo certo que nada consta da factualidade provada que dê conta de alguma limitação ao nível da capacidade de trabalho do recorrente.
Por seu turno, a recorrida trabalha como empregada de limpeza, auferindo um salário equivalente ao salário mínimo nacional (ponto 10 da factualidade provada), embora, actualmente, fruto da pandemia, se encontre em casa com o apoio da Segurança Social (ponto 11 da factualidade provada).
Como assim, pode dizer-se que, ao nível de rendimentos, a situação de ambos será tendencialmente equivalente, ainda que a recorrida tenha actualmente apenas uma promessa de poder regressar ao seu posto de trabalho (ponto 12 da factualidade provada), o que sempre se traduz num alto grau de incerteza em face da situação da pandemia existente e dos seus conhecidos efeitos ao nível da actividade económica em geral. Ao invés, como é consabido, a actividade da construção civil a que se dedica o recorrente é uma das actividades que nosso país menos tem sido atingida pela situação de pandemia, o que significa que, à partida, as perspectivas de trabalho e de angariação de rendimentos do recorrente são mais consistentes do que as que se apresentam à recorrida.
Todavia, se os rendimentos de ambos se podem ter, ainda assim, como similares, certo é que a recorrida tem a seu cargo uma filha menor, o que, como é da experiência comum, implica um dispêndio mensal que, segundo um juízo de prudente prognose, se estima em quantia mensal não inferior a € 100,00, por mês, para despesas mínimas de alimentação, vestuário, educação e saúde.
Pelo contrário, o recorrente, se tem dois filhos, um dos quais já é maior, não consta da factualidade provada que o mesmo tenha algum deles a seu cargo ou suporte alguma despesa com os mesmos (vide ponto 16 da factualidade provada).
Significa isto que a situação patrimonial global (rendimentos-encargos) dos ex-cônjuges não é essencialmente idêntica, antes a situação da recorrida é mais difícil pois que, por força da filha menor que tem a seu cargo (e que dela depende), naturalmente o rendimento disponível mensalmente é inferior.
Acresce, ainda, que, sendo o agregado familiar da recorrida composto pela própria e por sua filha menor, a mesma terá, segundo as regras da experiência e da lógica, mais dificuldade em pagar uma renda em condições normais de mercado (pois que o seu rendimento mensal disponível é inferior ao do recorrente) e, ainda, mais dificuldades em obter uma casa alternativa, pois que precisará, por princípio, de um habitação de tipologia T2, ao passo que o recorrido, vivendo sozinho, terá, segundo as mesmas regras da experiência e da lógica, mais facilidade em angariar um arrendamento de uma habitação mais pequena (T1) e, em igualdade de condições, também mais barato e, portanto, mais consentâneo com os seus rendimentos.
Note-se, neste âmbito, que a questão relevante em termos de critério decisor não é a mera circunstância de a recorrida ter uma filha menor e de a mesma não ser fruto da relação conjugal entre os ex-cônjuges, mas a circunstância de se tratar de pessoa que integra o agregado familiar da recorrida e que dela é estritamente dependente (poderia ser outra pessoa, por exemplo, a mãe da recorrida, de idade avançada e sem meios próprios de subsistência), pois que, em tais circunstâncias, sempre se imporia, segundo um julgamento equitativo e justo, a atribuição do arrendamento da casa de morada de família à recorrida, pois que, nesse contexto, a não atribuição do arrendamento à mesma importaria um muito superior sacrifício comparativamente com aquele que é exigido ao recorrente, que vive sozinho, que não tem, por isso, ninguém que de si dependa e, assim estará, segundo as regras da experiência, em melhores condições para obter outra residência.
Por outro lado, ainda, quanto à questão da provisoriedade ou definitividade da atribuição suscitada pelo recorrente, com o devido respeito, a dúvida suscitada pelo recorrente não tem, em nosso ver, fundamento.
De facto, e como se salienta na decisão recorrida, o presente incidente de transmissão do direito ao arrendamento insere-se no âmbito de processo de divórcio e, portanto, à luz do preceituado no artigo 990º, do CPC, essa decisão é definitiva, ingressando o ex-cônjuge, a quem se transmite judicialmente o arrendamento vigente, na posição de arrendatário e tendo como parte contrária no contrato o respectivo senhorio, a quem tal decisão judicial se impõe.
E o mesmo se diga, ainda, quanto ao argumento invocado de não ter o tribunal condenado a recorrida no pagamento da renda do locado, pois essa condenação não tem que ser proferida no âmbito do específico incidente ora em causa, que visa apenas, nos termos consignados no artigo 990º do CPC e 1105º, n.º 2, do Cód. Civil, na ausência de acordo, decidir a qual dos ex-cônjuges é deferida a transmissão do arrendamento que versa sobre a casa de mora de família, sendo certo que, operada definitivamente (por força do trânsito em julgado da decisão) essa transmissão, caberá, por força de expressa previsão legal (artigo 1038º, al. a), do Cód. Civil), ao arrendatário pagar tempestivamente a renda acordada, nos termos previstos no contrato vigente.
Como assim, à luz do antes exposto, improcedendo todos os argumentos do recorrente, a conclusão que se impõe é a de que a decisão recorrida não nos merece qualquer divergência, antes plena confirmação, pois que, à luz dos critérios legais antes descritos, o arrendamento da casa de morada de família deveria ser atribuído, como foi, à recorrida B….
Aqui chegados, coloca-se, ainda, a questão da constitucionalidade da solução antes alcançada, a qual, na perspectiva do recorrente, confronta o artigo 65º, da Constituição da República.
O artigo 65º da Constituição dispõe como segue:
“1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.
3. O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.
O preceito transcrito da Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a preservar a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que, além disso, permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas:
a) “programar e executar uma política de habitação", devidamente articulada com uma “adequada rede de transportes e de equipamento social”;
b) “incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações”, que visem “resolver os respectivos problemas habitacionais” e “fomentar a criação de cooperativas de habitação e a auto-construção“;
c) “estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria - cfr. artigo 65º, nº 2, alíneas a), b) e c).
O Estado há-de, além disso, segundo o mesmo normativo, “adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar” (cfr. artigo 65º, nº 3); e, juntamente com as autarquias locais, há-de exercer um “efectivo controlo do parque imobiliário”, procedendo “às expropriações dos solos que se revelem necessárias” e definindo “o respectivo regime de utilização” (cfr. artigo 65º, nº 4).
O “direito à habitação”, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos n.ºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição.
Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado em termos concretos ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada “reserva do possível”, em termos políticos, económicos e sociais. [7]
Ora, neste contexto, o que está em causa na decisão a proferir nestes autos não é, segundo cremos, a eliminação ou a afectação deste direito – e ainda que não seja possível extrair directamente do texto constitucional um direito genérico a uma habitação -, mas antes, em rigor, a compatibilização, em termos concretos e práticos, desse direito à habitação numa situação de divórcio e falta de acordo entre os ex-cônjuges quanto àquele a quem deve ser atribuído o direito de ingressar na posição de arrendatário do imóvel que antes constituía a casa de morada de família, pois que, naturalmente, face ao rompimento da relação conjugal, não é possível impor que ambos os ex-cônjuges se mantenham a habitar o mesmo locado.
Ora, numa situação de conflito entre estes dois direitos e não sendo, pois, possível salvaguardar o direito de ambos a habitar/usar do imóvel arrendado objecto do litígio, a solução legal tem sempre que implicar o sacrifício de um ex-cônjuge em favor do outro; Ponto é que esse sacrifício não seja discricionário ou arbitrário, pois que se assim for a solução poderá confrontar o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

Ora, no caso dos autos, o sacrifício da posição do recorrente decorre dos critérios legais acima expostos, genericamente consagrados no artigo 1105º, do Cód. Civil, ou seja, da situação ou das circunstâncias concretas de cada um dos ex-cônjuges e da avaliação judicial daquele que, segundo um juízo de equidade, maior necessidade apresenta de se manter no locado que constituiu a casa de morada de família e para quem a mudança de residência implicaria maior sacrifício, nada tem, em nosso ver, de arbitrário ou desproporcionado, antes traduz uma criteriosa e equilibrada ponderação dos interesses envolvidos, dando prevalência àquele que, objectivamente, carece de superior protecção.
Por conseguinte, em nosso julgamento, a solução alcançada nos autos e que decorre, como se expôs, da acolhida interpretação da ponderada e equitativa opção legislativa espelhada no artigo 1105º, do Cód. Civil, não confronta o direito social à habitação consagrado no artigo 65º da Constituição, nem o princípio constitucional da igualdade e, por isso, não sofre da inconstitucionalidade que lhe é assacada pelo recorrente.
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IV.II. Litigância de Má-Fé:
Nas suas contra-alegações sustenta a recorrida que o recorrente actua em má-fé, bem sabendo da falta de fundamento da sua pretensão e procurando, em função do efeito suspensivo do recurso, protelar a situação e a ocupação do local arrendado.
Não lhe assiste, porém, qualquer razão.

Na verdade, neste âmbito, importa ter em consideração que o processo civil é, por natureza, um processo controverso, onde se confrontam, através da acção e da defesa, via de regra, duas versões dos factos opostas uma à outra e, ainda, posições divergentes quanto à interpretação e aplicação do quadro jurídico convocado à solução do litígio.
É, portanto, frequente em tal contexto que, ao nível factual, apenas uma das versões se venha a demonstrar - o que conduz, logicamente, à não demonstração da versão que lhe é oposta -, assim como é frequente que o Tribunal, na sua tarefa de interpretação e aplicação do direito aos factos, venha a dar razão a uma das partes em detrimento da outra.
Trata-se, em suma, de inevitável consequência do caracter argumentativo do direito, da dificuldade ao nível da avaliação dos meios de prova produzidos, das dúvidas que resultam do caracter aberto e lacunoso da legislação e do próprio ordenamento jurídico em geral.
Por conseguinte, como é posição pacífica na jurisprudência, a litigância de má-fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou com a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta, sendo, ainda, exigível, além do preenchimento de algum dos elementos objectivos previstos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 542º, do CPC, a verificação de um outro elemento de índole subjectiva, qual seja o de a parte ter actuado com dolo ou com negligência grave, equivalente esta última à denominada lide temerária.
Na verdade, como emerge do n.º 2 do citado normativo, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave …”, o que bem evidencia que não basta apenas para tal qualificativo o preenchimento do elemento objectivo, sendo mister que se possa ter como comprovado o elemento subjectivo, ou seja, a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte. [8]
Destarte, não há dúvidas, em nosso ver, que o simples não acolhimento de uma determinação interpretação e aplicação do regime jurídico ao caso dos autos, com o consequente não acolhimento da pretensão ou da defesa apresentada, não bastam nunca, e de per si, para conduzir à qualificação da lide como de má-fé.
Com efeito, a parte pode, mesmo não lhe vindo a ser dada razão, como ora sucede com o recorrente, estar legitimamente convicta que a mesma lhe assiste, ademais, que, ainda que tal não se venha a demonstrar, daí não decorre, sem mais, que a sua actuação se possa considerar dolosa ou gravemente negligente e, por isso, que seja merecedora de censura.
Se assim fosse, como bem se compreende, a sanção em causa constituiria uma desproporcionada e inadmissível restrição ao exercício do direito em juízo, sendo que, como é consabido, não constitui condição do recurso a juízo (ou da interposição de recurso) a prévia existência do direito.
Pelo contrário, a parte pretende, precisamente, no âmbito do recurso interposto, que o Tribunal hierarquicamente superior, perante o litígio e a dúvida instalada quanto ao direito aplicável e à sua subsunção ao caso, decida do mérito ou fundamento da sua pretensão, precedendo essa decisão do legal contraditório e sopesando, necessariamente, todos os argumentos, todas as razões e todas as provas que se mostrem relevantes ao caso.
Ora, neste contexto, ainda que os fundamentos do recurso não nos tenham merecido adesão, como se viu, certo é que, em nosso ver, nenhum elemento nos autos nos conduz à conclusão que o recorrente actue com dolo ou com negligência grave, merecedor de censura, a título de má-fé; Ao invés, como é comum, face ao antes exposto, as partes defendem posições distintas no processo em função dos seus interesses, ambas defensáveis e razoáveis no âmbito da subsunção jurídica aplicável, cabendo, no fim, ao tribunal, de forma independente e equidistante a ambos os interesses em disputa, dirimir o conflito e aplicar o direito segundo aquela que julga ser, na sua perspectiva, a interpretação do regime jurídico aplicável ao caso.
Portanto, em nosso ver, não ocorrem os pressupostos da alegada litigância de má-fé do recorrente, pois que a sua posição evidenciada no processo e no recurso não é, de todo, destituída de fundamento, sendo perfeitamente defensável, ainda que, repete-se, não colha a nossa adesão.
Improcede, pois, a alegada má-fé.
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V. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso de apelação, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
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Custas pelo Recorrente, que ficou vencido - artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC. -, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Porto, 23.11.2020
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] Em termos jurídicos, e porque os textos legislativos não contêm qualquer noção, a casa de morada de família tem sido definida pela doutrina como a casa de residência de ambos os cônjuges, o local em que ambos, no exercício do seu poder comum de imprimir uma direcção unitária à vida familiar, determinaram fixar a residência da família – Vide, neste sentido, por todos, SALTER CID, “A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português”, 1996, pág. 30 e segs. e JORGE DUARTE PINHEIRO, “O Direito da Família Contemporâneo – Lições”, 4ª edição, pág. 462.
[2] Acessível in www.domussocial.pt/files/uploads/cms/ domus/24/files /1172/ regulamento. habitacao.pdf.
[3] O processo especial de atribuição de casa de morada de família mostra-se regulado no artigo 990º, do CPC, que integra o elenco dos processos de jurisdição voluntária previstos no Título XV do aludido Código.
[4] P. LIMA, A. VARELA, “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª edição, revista a actualizada, pág. 570; Em sentido semelhante SALTER CID, op. cit., pág. 326 e segs.
[5] F. PEREIRA COELHO, GUILHERME de OLIVEIRA, “Direito da Família”, 5ª edição, pág. 751 e segs.
[6] Vide, neste sentido, por todos, AC RP de 7.10.2010, relator Sr. Juiz Desembargador Amaral Ferreira, AC RP de 1.02.2011, relator Srª. Juíza Desembargadora Maria Cecília Agante, AC RP de 21.06.2012, relator Srª Juíza Desembargadora Deolinda Varão, AC RP de 19.12.2012, relator Sr. Juiz Desembargador Carlos Portela, AC RL de 31.01.2013, relator Sr. Juiz Desembargador Tomé Almeida Ramião e AC RL de 28.03.2013, relator Srª Juíza Desembargadora Ana Lucinda Cabral, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Vide, neste sentido, J. J. GOMES CANOTILHO, “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 1982, p. 365, J.C. VIEIRA de ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), 1987, pág. 199 segs. e 343 segs. e, ainda, JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa Anotada”, I volume, UCE, 2ª edição revista, pág. 957-967.
[8] Vide, por todos, neste sentido, AC STJ de 18.02.2015, relator SILVA SALAZAR, ou, ainda, AC STJ de 12.11.2015, relatora ANA LUÍSA GERALDES, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.