Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1824/17.5T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
IDENTIDADE SUBJECTIVA
TERCEIRO JURIDICAMENTE INDIFERENTE
Nº do Documento: RP201906131824/17.5T8PVZ.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 176, FLS 43-51)
Área Temática: .
Sumário: I - A oponibilidade do efeito positivo ou autoridade do caso julgado não pressupõe a identidade objetiva, mas apenas uma relação de prejudicialidade seja de concurso, entre os objetos processuais de duas ações, pelo que a circunstância de serem diversas as causas de pedir e de pedido numa e noutra ação, não obstaria, por si só, à afirmação da autoridade do caso julgado da decisão proferida em primeiro lugar.
II - A eficácia do caso julgado das decisões judiciais pressupõe, no entanto sempre, como regra, uma identidade subjetiva, uma vez as decisões apenas vinculam as partes da ação, pelo que a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2
III - O referido princípio da eficácia relativa do caso julgado tem exceções, e uma delas prende-se com as situações em que as partes da ação esgotam aqueles que por ela poderiam ser afetados. Neste contexto deverá ser considerado terceiro juridicamente indiferente na ação em que se discute a autonomia e validade da descrição predial o terceiro titular do direito a benfeitorias cujo direito poderá sempre invocado independentemente da configuração do prédio ou da sua titularidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 1824/17.5T8PVZ.P1
Relator: Desembargador Freitas Vieira
1º Adjunto: Desembargador Madeira Pinto
2º Adjunto: Desembargador Carlos Portela

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

B… intentou a presente acção declarativa comum de condenação contra
C… e mulher D…, seus avós,
E… e mulher F… , seus tios, e
G…, sua mãe,
Pede que se declare que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/… é parte do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 186/…, e em consequência se declare sem nenhum efeito a escritura celebrada em 22.11.2005 pela qual aqueles seus avós doaram ao Réu E…, seu tio, o referido prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/..., declarando-se a nulidade e se pretende o cancelamento de todos os averbamentos efetuados no registo predial sobre o referido prédio.

A Ré G… e os Réus E… contestaram invocando a exceção de autoridade de caso julgado uma vez que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim os autos de acção comum sob o nº 128/2001 no qual foi proferida sentença de homologação da transação lavrada entre as partes e nos termos da qual reconheceram que a doação celebrada em 1998 apenas teve por objeto o prédio de habitação de rés-do-chão e andar, com logradouro, com a área coberta de 120 m2 e descoberta de 227,96, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 186 e inscrito na matriz sob o artigo 360.

A exceção assim deduzida viria a ser decidida no despacho saneador, no qual se considerou que a decisão que homologou a transação efetuada no processo que correu termos pelo extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim se impunha com força de caso julgado impedindo que de novo se discutisse, agora na presente ação, a composição dos prédios cujos limites e áreas ali foram definidos, julgando assim verificada a invocada exceção de violação da autoridade do caso julgado sendo em consequência absolvidos os Réus da instância.

Não conformado com o decidido recorre o autor B… o qual alegando conclui, depois de reproduzir a decisão recorrida:

4-Ora, salvo o devido respeito, não pode o autor/recorrente concordar com tal decisão.
5-Com efeito, o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu não fez uma correta e adequada aplicação do direito, violando dessa forma o direito substantivo e adjetivo.
6.º Pois, salvo melhor opinião, não se encontram preenchidos os requisitos da exceção de autoridade de caso julgado, pois como é bom de ver estamos na presença de causas do pedir e pedidos totalmente distintos.
7.º Na verdade a acção que correu termos anteriormente tinha como causa do pedir a eventual violação do direito de propriedade dos autores e tinha como pedido o seguinte:
d) “…Reconhecer que com a escritura de doação de 04/09/1998 apenas adquiriram o prédio identificado nos art.º 3.º e 8 da petição com a área mencionada no art.º 10 e nunca o prédio identificado no art.º 4.º;
e) Para a hipótese de assim se não entender, ver declarada anulada a mesma doação, dada a existência de erro essencial dos Autores sobre o objeto do negócio, a inclusão na doação, além do prédio 3.º, do prédio do artigo 4.º.
f) Ver ordenada a retificação em conformidade dos registos executados com base na citada escritura de doação…”
8.º Ora, como é bom de ver, a referida acção nada tem a ver com a acção interposta pelo autor, que tem como causa de pedir a desconformidade entre a realidade predial/matricial e a realidade física dos prédios e que tem como pedido o referido em 1.º.
9.º Acresce que, o referido acordo onde acertaram as áreas, configuração e confrontações dos prédios, por si só, não tem o condão de sanar as ilegalidades praticadas (“in casu” nulidade) com a criação do novo artigo matricial e descrição predial.
10.º Ou seja, estamos na presença de um acordo inábil, ainda que devidamente homologado pelo Tribunal, pois, tal homologação, salvo o devido respeito, não sana as ilegalidades praticadas e que consubstanciam nulidade.
11.º Pelo que, não ofenderá pois a segurança e a certeza jurídicas uma eventual decisão que venha a ser proferida nestes autos, quando, apesar de estarmos perante os mesmos prédios (embora jurídica e fisicamente exista apenas um), são trazidos ao julgador um volumoso elenco de factos que não foram dados a conhecer no processo anterior e que por isso não teve em conta aquando da homologação da respetiva transação.
12.º Sendo certo que, não pode o Tribunal “à quo” decidir pela verificação desta exceção sem analisar todos os contornos dos dois processos, quanto às partes envolvidas, às pretensões reclamadas e, sobretudo, à factualidade apresentada.
13.º Ou seja, o dever da descoberta da verdade material impõe que se conheça da factualidade trazida aos presentes autos, sem que, com isso, se ofenda a certeza e segurança jurídicas da decisão proferida no processo anterior, que foi baseado numa transação que procura “esconder” uma desanexação/fracionamento totalmente ilegal e à revelia de todas as normas urbanísticas e prediais.
14.º Quem nos garante que o referido processo não foi utilizado com a finalidade de conseguirem um desiderato (criação de dois artigos), proibido por lei?
15.º Por outro lado, como é consabido, não se criam prédios por transações (ainda que homologadas), ao arrepio de todas as normas urbanísticas e prediais, caindo na incongruência, de eliminar uma confrontação real, ou seja, a Sul –Rua ….
16.º Acresce que, o caso em análise convoca a complexa problemática da eficácia do caso julgado material e, em especial, no que respeita à sua extensão a terceiros, pois o aqui recorrente nunca foi parte no processo anterior.
17.º Isto é, o aqui autor/recorrente é um terceiro juridicamente prejudicado, titular de relações jurídicas independentes e incompatíveis com o caso julgado alheio, pelo que, salvo devido respeito, nenhuma razão haverá para ser por ele atingido.
18.º Tal proteção do terceiro juridicamente prejudicado encontra-se plasmado no princípio latino nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere solet, ou seja, o caso julgado não deve aproveitar nem prejudicar terceiros.
19.º Nesse sentido pronunciou-se Alberto dos Reis (Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. XVII (1940-1941, pp. 208.), nos seguintes moldes: A ineficácia do caso julgado em relação a terceiros “…É perfeitamente compreensível este princípio da ineficácia do caso julgado em relação a terceiros. A sentença contém a formulação da vontade concreta da lei com referência a um caso particular.
Como se alcança esta formulação? A sentença é um ato do juiz; mas para a produção desse ato contribui, na mais larga medida, a atividade do autor e do réu. São as partes que põem a questão; são as partes que articulam os factos; são as partes que alegam e discutem; são as partes, em suma, que preparam, mobilizam e fornecem ao juiz os materiais de conhecimento, os vários elementos de que há-de sair a sua convicção, expressa na sentença.
Para bem ou para mal, a sentença, se é um ato do juiz, é ao mesmo tempo o produto de intensa e ativa colaboração das partes. Por isso a sentença tem, como destinatários naturais, as partes e só as partes.
Estender a eficácia da sentença a terceiros, estranhos ao processo, que não intervieram nele, que não foram ouvidos nem convencidos, que não foram colocados em condições de dizer da justiça, de alegar as suas razões, de exercer qualquer espécie de influência na formação da convicção do juiz – é uma violência que pode redundar numa iniquidade…”
20.º Ora, no caso em apreço, estender a eficácia de uma transação homologada pelo tribunal ao autor/recorrente, que nunca foi tido nem achado no referido processo, não tendo por isso, exercido qualquer influência na formação da convicção do juiz, mais que ser “…uma violência que pode redundar numa iniquidade…”, é também, uma forma de impedir o acesso à justiça e ao Direito, consagrado constitucionalmente (artigo 20.º CRP).
21.º Canotilho diz que: “O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (…) é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, sendo, por isso inerente à ideia de Estado de Direito”; reforça ainda “ninguém pode ser privado de levar a sua causa (…) à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso. Por isso, o art.20.º consagra um direito fundamental independentemente da sua recondução a direito, liberdade e garantia, ou direito análogo aos direitos liberdades e garantias” (CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. 1. Coimbra Editora 2007-2010. Pág. 408 e 409).
22.º Face ao exposto, torna-se evidente que o tribunal a quo fez uma errada aplicação do direito, violando o disposto nos artigos 580.º, 581.º, 619.º, 620.º, 621.º do CPC e artigo 20 da CRP.
23.º Devendo por isso, ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos relativamente aos pedidos formulados pelo autor.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, nos termos propugnados, devendo em consequência ser revogada, a decisão do despacho saneador que considerou verificada a exceção de autoridade de caso julgado e absolveu os réus da instância, substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento dos autos, fazendo assim, esse Venerando Tribunal a já acostumada, JUSTIÇA!
ˣ
Responderam às alegações do recorrente os RR E… e esposa F…, e bem assim a ré G…, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
ˣ
O objeto do recurso mostra-se no essencial circunscrito às seguintes questões:

I - Não verificação dos requisitos da exceção de autoridade de caso julgado, por se estar em presença de causas do pedir e pedidos totalmente distintos;

II – Ineficácia em relação ao recorrente/autor do caso julgado formado sobre a decisão que homologou a transação efetuada na ação intentada em primeiro lugar, por não ter tido nela intervenção;

III – O eventual reflexo em termos da autoridade do caso julgado da circunstância de se tratar de decisão homologatória de transação alegadamente contrários à lei.
ˣ
Factos:
Ainda que na decisão recorrida não sejam enunciados separadamente os factos tidos como provados que servem de fundamento à decisão – nº 3 do artº 607º do CPC – os mesmos constam da decisão recorrida e são os seguintes:

- Em declaração datada de 20-02-1998, os avós do autor, C… e mulher D… - de fls. 909 – reconhecera a realização pelos pais do autor, G… (aqui 3.º Ré), e B…, de benfeitorias na propriedade ali designada como sendo situada na Rua …, …, …, autorizando-os ainda a realizar as obras que acharem necessárias ou imprescindíveis para a normal habitação da mesma,

- Por escritura de 04-09-1998 os referidos avós do autor, doaram à sua filha G…, mãe do autor, o prédio ali identificado como tendo a descrição predial nº 186

- Por escritura pública de 22-11-2005 os referidos avós do autor, declararam doar ao filho E…, aqui 2º réu, o prédio ali referido como estando descrito sob o número 936/… …

- Por escritura pública de 19 de Janeiro de 2015, o pai do aqui autor dou-lhe “…todos os créditos a título de benfeitorias a que ele tem direito, que foram efetuadas na habitação (casa de morada de família), sita na rua …, …, em …, Póvoa de Varzim:

- Na presente ação o autor B… demanda como réus os seus avós, os referidos C… e mulher D…; os seus tios, o referido E… e mulher; e a sua mãe, G…, formulando o seguinte pedido:
1- Declarar-se que o prédio urbano sito na rua …, n.º …, freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/… … propriedade dos segundos réus, faz parte do prédio urbano sito na Rua …, n.º …, freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 186/… … e os réus condenados a reconhece-lo, e em consequência:
2- Declarar-se nos termos da alínea a) do artigo 16.º do Código de Registo Predial a nulidade de todos os registos prediais efetuados e que digam respeito ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de varzim sob o número 936/… e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1220.
3- Declare nula e de nenhum efeito a escritura pública de doação celebrada em 22/11/2005 no cartório Notarial I….
4- Ordenar nos termos do artigo 8.º e 13.º do CRP o cancelamento dos registos que foram efetuados na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, designadamente a abertura de descrição e as inscrições G3, ap. 36/……… a favor de E…; G2 ap. 18/…… a favor de C… e G ap. 24/……, feitas sobre prédio urbano sito na Rua …, n.º …, freguesia …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/… e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 1220.

- Os avós do autor e do aqui 2º réu marido, réus, C… e mulher D…, haviam intentado anteriormente contra os pais do aqui A. (a aqui terceira R. e, à altura, seu marido B…) acção declarativa que correu termos sob o processo n.º 128/2001 no 4.º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, peticionando a condenação dos mesmos a reconhecerem que através de doação datada de 04/09/1998 apenas foi transmitido o prédio urbano com a descrição 186/…, com área coberta de 120m2 e descoberta de 227,96m.

- A referida ação viria a terminar por transação, homologada por sentença já transitada em julgando, em que os aqui primeiros e terceira RR acordaram em resumo:

CLÁUSULA PRIMEIRA - … fixar para o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 186 e inscrito na matriz sob o artigo 360 a área coberta de 120m2 e descoberta de 227,96,
CLÁUSULA SEGUNDA - … fixar para o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 936 e inscrito na matriz sob o artigo 1220 a área coberta de 50m2 (casa) e 20m2 (anexo) e descoberta de 452,57m2;
CLÁUSULA TERCEIRA - Reconhecer que com a escritura de doação de 04/09/1998 os Autores apenas doaram à Ré G… o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 186 e inscrito na matriz sob o artigo 360 com a área coberta de 120m2 e descoberta de 227,96
ˣ
I -
Embora reconhecendo não existir identidade de causas de pedir e de pedido ou sequer identidade de partes, considerou-se na decisão recorrida que discutir novamente a composição dos prédios e o objeto da doação que teve os mesmos como objeto violaria a autoridade da sentença que homologou tal transação e que transitou em julgado.
O recorrente insurge-se contra este entendimento argumentando, além do mais, que não se encontram preenchidos os requisitos da exceção de autoridade de caso julgado, na medida em que as causas do pedir e pedidos são totalmente distintos numa e noutra ação.
Não colhem neste particular as razões do recorrente.

A distinção entre o efeito negativo e o efeito positivo do caso julgado está há muito estabelecida na doutrina.
O caso julgado na perspetiva do seu efeito negativo, manifesta-se como exceção dilatória, - artº 577º/i) do CPC – impedindo que a questão que haja sido objeto de decisão transitada em julgado possa de novo ser discutida em nova ação a intentar posteriormente, obviando dessa forma a que o tribunal se possa ver confrontado com a alternativa de contrariar ou reproduzir decisão anterior transitada em julgado. Nessa perspetiva a exceção (dilatória) do caso julgado pressupõe a repetição de causa idêntica quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir– artº 580º, nº 1 e 581º, nº 1, 2, 3 e 4) do CPC - e como tal pressupõe a tríplice identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido entre uma e outra ação.

O caso julgado tem, no entanto, também um valor ou efeito positivo – autoridade do caso julgado – de proibição de contradição da decisão transitada. Por força da autoridade do caso julgado o tribunal na da decisão subsequente fica vinculado em termos de não contradição do conteúdo de decisão anterior já transitada.
Para que tal se verifique não será já necessária a identidade de objetos processuais – pedido e causa de pedir – entre uma e outra ação, ainda que se exija, por regra, identidade de sujeitos.
Aliás a autoridade do caso julgado da decisão só se evidencia quando se existe uma diversidade dos objetos processuais entre uma e outra ação, já que, supondo ambos a identidade subjetiva, havendo igualmente identidade objetiva, o que se verifica é o caso julgado enquanto exceção dilatória[1]
Por isso que, ao contrário do que parece ser o entendimento do recorrente, a circunstância de serem diversas as causas de pedir e de pedido numa e noutra ação, não obstaria, por si só, à afirmação da autoridade do caso julgado da decisão proferida em primeiro lugar.
A autoridade do caso julgado pressupõe em todo o caso uma conexão entre o objeto do processo numa e noutra ação, seja em termos de relação de prejudicialidade seja de concurso entre os respetivos objetos processuais, em termos tais que “… a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógicas ou juridicamente incompatíveis com esse teor”[2].

No caso dos autos é evidente a existência de conexão entre o objeto processual nas duas ações na medida em que em ambas é referido o prédio com a descrição nº 936/…. E nessa medida a autonomia do referido prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/…, que era pressuposta do pedido deduzido naquela ação que que correu termos no extinto 4.º juízo do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, sob o n.º 128/2001, e que ali foi declarada por força da sentença que homologou a transação ali efetuada em que essa autonomia era afirmada, impõe-se agora como pressuposto prejudicial em relação à decisão a proferir na presente ação, vinculando o tribunal ao sentido da primeira decisão proferida e já transitada em julgado, obstando dessa forma a que nesta ação possa ser proferida decisão de sentido contrário, como pretendido pelo autor, aqui recorrente. Pretender o contrário, ou seja, pretender, conforme vem peticionado nesta ação, que se declara judicialmente que o referido prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 936/… não tem autonomia e é parte integrante do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número 186/… - e que, com esse fundamento se declare a nulidade de todos os registos prediais efetuados e que digam respeito à descrição predial número 936/… - seria contrariar frontalmente a sentença proferida na ação que correu termos sob o nº 128/2001, que homologou nos seus precisos termos a transação efetuada que tem como pressuposto a autonomia dos dois prédios, e a consequente validade dos registos prediais efetuados.

II – Argumenta o recorrente, invocando os limites subjetivos da autoridade do caso julgado, que não teve qualquer intervenção no referido processo, sendo em relação aquela ação terceiro, não podendo como tal ser tido como abrangido pelo caso julgado da decisão ali proferida sob pena de violação, além do mais do direito constitucional de acesso à justiça e ao Direito (artigo 20.º CRP).
É inquestionável que, seja perspetivado sob o prisma da autoridade do caso julgado, seja sob o prisma da exceção do caso julgado, a eficácia do caso julgado das decisões judiciais pressupõe sempre, como regra, uma identidade subjetiva, uma vez as decisões apenas vinculam as partes da ação. Por isso a autoridade de caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2.

Na sentença recorrida não se teve em devida conta este aspeto. O caso julgado tem eficácia meramente relativa, apenas vinculando as partes que intervieram na acção, não afetando terceiros, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
E, no entanto, e como decorre desde logo do que se deixa dito, o princípio da eficácia meramente relativa do caso julgado tem exceções. E uma delas prende-se com as situações em que as partes da ação esgotam aqueles que por ela poderiam ser afetados. Na medida em que tenham tido intervenção na ação todos os que por ela poderiam ser afetados, o que ali fora decidido vale igualmente perante qualquer terceiro a quem a sentença não seja suscetível de causar qualquer prejuízo jurídico – terceiro juridicamente indiferente [3].
Ora atentando na situação verificada na ação que sob o processo n.º 128/2001 no 4.º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, concluiu-se que as partes que poderiam ser afetados pelos termos da transação ali efetuada e homologada pela sentença ali proferida eram os então proprietários dos prédios que ali estavam em causa, e que figuravam naquela ação como autores e réus.
Conforme salientam os Réus na sua contestação, o autor não era nem é proprietário nem detentor de qualquer outro direito sobre os prédios cuja existência, limites e teor da respetiva descrição predial as partes ali acordaram em transação que a sentença homologou.
O autor, perante o que ele próprio alega e como tal reconhece, é apenas detentor – por lhe ter sido doado pelo pai - do direito de crédito que possa corresponder às benfeitorias realizadas nos prédios em causa. E por isso os Réus contestantes questionam mesmo a legitimidade do autor para a presente ação. Ao contrário do que sustenta nas suas alegações de recurso, o autor é em relação aquela ação terceiro juridicamente indiferente
Não obsta a esta conclusão o argumento esgrimido pelo autor/recorrente, na resposta às exceções deduzidas, e nas alegações de recurso – conclusão 17ª – de que a autorização concedida pelos referidos avós do autor, C… e mulher D… para execução das benfeitorias se reportava apenas ao prédio descrito sob o n.º 186/…, e que por isso só considerando que as benfeitorias foram efetuadas nesse prédio poderá reclamar o direito às mesmas na qualidade de possuidor de boa-fé.
Esta argumentação não colhe. Com efeito, conforme tem entendido a doutrina[4] terceiros juridicamente indiferentes serão todos aqueles em relação aos quais a sentença não interfira com a existência ou validade dos respetivos direitos, muito embora podendo afetar a sua consistência prática ou económica.
E considerado o disposto no artº 1273º, e 1275º do CC será quando muito isso o que se verifica em relação ao direito do autor agora recorrente. Com efeito, nos termos dos referidos normativos, tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados pelas benfeitorias realizadas, ainda que no caso do possuidor de má-fé esse direito esteja limitado às benfeitorias úteis e necessárias.
Em qualquer caso, e como decorre do alegado pelo próprio autor, quando a autorização foi dada, em 1998, ambos os prédios que agora estão descritos sob os números 186 e 936, pertenciam aos avós do autor, abrangendo a autorização dada as benfeitorias a realizar em conformidade com a mesma independentemente de se situarem no que depois veio a corresponder a descrição numero 186 ou 936.
Assim que não possa sustentar-se ser autor/recorrente titular de relações jurídicas independentes e incompatíveis com o caso julgado formado sobre a decisão homologatória da transação efetuada na ação intentada em primeiro lugar.
E sendo assim, tendo tido intervenção na ação que sob o processo n.º 128/2001 correu termos no 4.º Juízo do extinto Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, todas as pessoas que poderiam ser afetadas pela decisão nela proferida, a autoridade do caso julgado da sentença homologatória ali proferida impõe-se também em relação ao autor aqui recorrente, sendo-lhe oponível.

III – O recorrente argumenta ainda que a decisão proferida no processo anterior foi baseada numa transação cujos termos são contrários à lei por se traduzirem numa desanexação/fracionamento contrária às normas urbanísticas e prediais aplicáveis.
Também neste particular não assiste qualquer razão ao recorrente.
Com exceção da inexistência jurídica e da violação de caso julgado anterior, todos os demais vícios de que pudesse padecer a decisão jurídica não impediriam a produção de efeitos jurídicos inerentes à mesma e consequentemente não impedem a produção de caso julgado[5].
Na medida em que transita em julgado, a imutabilidade da decisão impõe-se à organização judiciária tornando irrelevantes os vícios de que possa padecer a decisão proferida, pelo que, sem prejuízo das situações em que seja possível o recurso de revisão, não obsta à imposição da autoridade do caso julgado a alegada injustiça ou desconformidade legal da decisão transitada em julgado.

Em razão do exposto acordam os juízes nesta Secção Cível, em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Em conclusão:
………………………………
………………………………
………………………………
Custas pelo recorrente

Porto, 13 de junho de 2019
Freitas Vieira
Madeira Pinto
Carlos Portela
___________
[1] Miguel Teixeira de Sousa - “O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 171/172
[2] Rui Pinto – JULGAR Online…págs. 27
[3] Ainda que negando o efeito reflexo do caso julgado, mas aceitando a solução que na prática daí decore -V. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nóvoa - Manual págs. 726
[4] Por todos Antunes Varela/Miguel Bezerra e Sampaio e Nora – Manual de Processo Civil – 2ª edição, págs. 726
[5] Castro Mendes … págs. 29