Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1885/10.8PIPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: PERDÃO
LEI ESPECIAL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202402211885/10.8PIPRT-C.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Dada a excecionalidade que qualifica as leis de amnistia, e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, as mesmas não comportam aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo a respetiva interpretação, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa.
II – Por outro lado, dúvidas não existem de que eventuais normas legais que atentem contra preceitos ou princípios constitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais, sendo que tais preceitos, se respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis.
III – O perdão genérico de penas decretado através da Lei nº 38-A/2023 só é aplicável a penas de prisão até 8 anos.
IV – Em caso de cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares, estando excluída a aplicação de perdão sobre as penas parcelares que integram o cúmulo jurídico.
V – Face aos termos em que se mostram redigidos os preceitos aqui em questão, os mesmos não colidem com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade que aqui também imperam.
VI – Na verdade, tais normas aplicam-se a todos os que se encontrem na situação visada, sendo de aplicação geral, fazendo parte da discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de tal perdão, com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida situações punidas com penas mais graves, atinentes a condutas mais gravosas, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do “ius puniendi” do Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1885/10.8PIPRT-C.P1
Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 10) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto





Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 10) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no processo comum coletivo nº 1885/10.8PIPRT, em que é arguido AA, por despacho de 03.10.2023, foi decidido não aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2-8, relativamente à pena única de 9 anos e 6 meses de prisão que foi imposta no mesmo processo.
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Inconformado com tal despacho, o arguido veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
I – O recorrente viu-lhe negada a aplicação da lei 38-A/2023, por ter sido entendimento do tribunal a quo, que o mesmo não podia beneficiar do perdão de um ano à pena única a que foi condenado no âmbito de diversos Inquéritos apensados aos autos, cujo despacho , ora se recorre , porquanto , a mesma excedia os 8 anos.
II- o Tribunal a quo, fez uma incorreta interpretação da lei, no que diz respeito à situação do arguido e ao modo como foi condenado numa pena única.
III- O Recorrente foi condenado no âmbito do processo 1885/10.8PIPRT, pelo cometimento de crimes de furtos qualificado, na forma consumada e tentada, crimes de furto simples e cxrime de violência depois da subtracção, na pena única de 9 anos e 6 meses , tendo na data da prática dos factos , ainda, 27 anos.
IV – Ao arguido, ora recorrente, em nenhuma das penas parcelares, foi aplicada pena de prisão superior a 3 anos e 3 meses , ou seja , cada um dos crimes pelos quais foi achada uma pena , é inferior a 8 anos.
VI- Sendo que, a final , foi achada a pena única de 9 anos e 6 meses.
VI- Aquando da prática dos factos nos presentes autos, o arguido, tinha ainda 28 anos de idade e foi condenado por crimes que não faz parte das excepções previstas no art.º 7.º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.
VII – Pelo que, teria sempre de ter beneficiado da Lei 38-A/2023, sendo aplicado, ao seu caso o perdão correspondente.
VIII- E tem sido este o entendimento dos vários tribunais de 1ª instância- que apreciam a aplicação do perdão a cada caso concreto – Ainda que a pena cumulatória aplicada seja superior a 8 anos, o facto de constarem no “rol “ de crimes que está afecto ao cúmulo jurídico , que sejam abrangidos pela Lei do perdão e sobre os quais não tenha sido aplicada uma pena – unitária – superior a 8 anos , importa que seja feito o desconto de um ano, sobre a pena achada em cúmulo, seja ela de 1 ou de 25 anos.
IX. Se o arguido tivesse sido julgado nos vários inquéritos que sustentam este processo, de forma separada e não houvesse lugar à apensação de inquéritos não, o mesmo veria as penas parcelares perdoadas em 1 ano, pela aplicação da lei do perdão.
X – Certo é que, o despacho de que ora se recorre, erradamente, não aplicou a Lei do Perdão, por considerar a pena única, ao invés de, considerar os processos (crimes) que poderiam estar abrangidos por aquela lei, antevendo se cumpriam, ou não, os requisitos para a sua aplicação.
XI Sendo certo que, se dúvidas houvessem na interpretação da lei , sempre seriam em benéfico do arguido e não contra ele.
XII- A lei é igual para todos e tem de ser aplicada nas mesmas circunstâncias para todos.
XIII – Existe uma franca desigualdade na aplicação da Lei da amnistia e dessa forma estão a ser violados os direitos e princípios constitucionalmente consagrados, desde logo, art.º 13 nº 1 e nº 2 da CRP que dita que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a Lei“
XIV- Está a ser frontalmente violado o art.º 26.º da CRP, garante que a todos são reconhecidos os direitos (…) e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
XV. Por outro lado, e mesmo havendo entendimento diferente ( o que não se concede nem se aceita) relativamente à aplicação da Lei da Amnistia em caso de condenação em pena cumulatória superior a 8 anos, como é o caso, do recorrente, sempre se dirá que em caso de dúvida , deverá SEMPRE ser BENEFICIADO o arguido.
XVI – os princípios basilares do processo penal equitativo dita que, mesmo em situações em que se considere que a Lei não é clara em determinado ponto (o que não se vislumbra neste caso concreto) , deverá sempre ser decidia a causa em BENEFÍCIO do cidadão!
XVII- Deverá, pois, o arguido, ora recorrente beneficiar da lei 38-A/2023, por estarem preenchidos os seus pressupostos no âmbito das várias penas parcelares que correspondem a um apenso (inquérito) e que originaram uma pena única de 9 anos e 6 meses.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO DEVERÁ O DESPACHO PROFERIDO SER REVOGADO, SENDO APLICADO AO RECORRENTE O PERDÃO/AMNISTIA PREVISTO NA LEI 38-A/2023.
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O recurso foi admitido por despacho datado de 13.11.2023.
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O Ministério Público respondeu defendendo que deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência mantido o despacho recorrido. Formulou as seguintes conclusões:
1- Nos presentes autos e por acordão do STJ de 02.12.2013, já transitado em julgado foi o recorrente condenado pela prática de crimes de furtos e de furtos qualificados na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.
2- De acordo com a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos aplicadas por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-06-2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, da dita Lei). Acresce que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei).
3- Ora, no presente caso, foi aplicada em cúmulo jurídico, a pena de 9 anos e 6 meses, o que logo excluí, quanto a eles, o perdão de penas.
4- Invoca o recorrente que tal importa violação do parâmetro constitucional do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
5- A Doutrina e a Jurisprudência são coincidentes, no âmbito das medidas de clemência da amnistia ou do perdão, de que uma diferenciação de tratamento, desde que seja a mesma fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas não coloca em crise o princípio da igualdade.
6- Entendemos que a opção político-criminal subjacente ao diploma em causa considerando que apenas beneficiam de tais medidas de clemencia os condenados em penas até 8 anos, se encontra fundada, não sendo arbitrária, pelo que não viola o princípio constitucional da igualdade ínsito do art. 13º da CRP.
7- Ademais, refira-se, que as regras referentes a apensação e ou separação de processos e ao cúmulo jurídico em consequência do conhecimento superveniente de concurso de crimes são de aplicação obrigatória desde que estejam verificados e sejam conhecidos os respectivos pressupostos.
8- Deste modo, ainda que haja - por hipótese de raciocínio - sido aplicado em processos autónomos perdão a penas parcelares que depois se vem apurar estarem numa relação de concurso superveniente, realizado que seja cúmulo jurídico o ou os perdões já aplicados terão de ser desconsiderados, aplicando-se apenas o perdão de 1 ano à pena única que vier a ser encontrada.
9- Por conseguinte, afigurando-se não existir qualquer inconstitucionalidade normativa, entendemos que o Tribunal a quo decidiu bem não aplicar qualquer perdão da pena ao condenado recorrente, por a Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto não lhe ser aplicável, não estando o condenado/recorrente abrangido, desde logo, por ter sido condenado na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.
10 - Não foram violadas as normas jurídicas invocadas pelo condenado/recorrente.
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Por despacho proferido em 14.01.2024 foi indeferida a requerida realização de audiência.
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Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto, dando por reproduzidas as considerações do Ministério Público junto da primeira instância emitiu parecer no sentido de que “foi correctamente inaplicado o perdão de penas previsto no artigo 3º, nº1 e nº4 da Lei nº 38-A/2023, de 02.08. ao arguido AA”, e de que “o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão ora em crise, nos seus precisos termos”.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso do despacho recorrido e proferido em 03.10.2023.
1. Para tanto, vejamos, antes de mais, o teor de tal despacho (transcrição):
“Em virtude das Jornadas Mundiais da Juventude realizadas em Portugal neste ano de 2023, no dia 1 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções. A Lei é aplicável aos crimes, contra-ordenações, infracções disciplinares e infracções militares praticadas até 19 de Junho de 2023, por jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos (apenas no caso dos crimes), à data da prática do facto.
Independentemente da idade e data da prática dos factos, não são elegíveis todos os crimes nem tampouco estão abrangidas a totalidade das penas, pois foram excluídos do perdão/amnistia, os crimes elencados no seu artigo 7º, bem como condenados em penas de prisão superior a 8 anos.
No caso e relativamente aos condenados BB, CC, DD, EE, FF e GG, na medida em que as penas em que foram condenados já se encontram extintas, não há lugar à apreciação/aplicação da lei nº 38 –A/2023, de 02/08.
Igualmente não se curará da apreciação da referida Lei relativamente aos condenados HH, II e JJ, porquanto as penas em que foram condenados foram englobadas em cúmulos jurídicos realizados em outros processos, pelo que perderam autonomia.
Finalmente e relativamente ao condenado AA, na medida em que foi condenado numa pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, de acordo com a conjugação do disposto no artigo 3º, nº1 e nº4, não podem beneficiar da mesma, indeferindo-se, deste modo, o requerido pelo mesmo através do requerimento junto aos autos sob a refª nº 36749345 de 25/9, pois não cabe ao aplicador da lei, pronunciar-se sobre a justeza do que é legislado, cabendo sim aplicá-la tal como foi aprovada e, nesta medida a lei é muito clara no sentido de que o perdão se aplica na pena única, pois é essa pena que sintetiza uma avaliação global da conduta do agente em cada situação concreta.
Notifique.”
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2. Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada e Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95)].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo arguido a questão que importa decidir consiste em saber se é de aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, à pena única de 9 anos e 6 meses de prisão em que o recorrente foi condenado na sequência de cúmulo jurídico efetuado.
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3. Decidindo.
No caso presente, o tribunal a quo, considerando que o arguido foi condenado numa pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, decidiu que o mesmo não pode beneficiar do perdão previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
O recorrente insurge-se contra tal decisão alegando que “em nenhuma das penas parcelares foi aplicada pena de prisão superior a 3 anos e 3 meses, ou seja, cada um dos crimes pelos quais foi achada uma pena, é inferior a 8 anos”, sendo que “Aquando da prática dos factos tinha ainda 28 anos de idade e foi condenado por crimes que não faz parte das excepções previstas no art.º 7.º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, pelo que, teria sempre de ter beneficiado da Lei 38-A/2023, sendo aplicado, ao seu caso o perdão correspondente”.
Sustenta ainda que “Se o arguido tivesse sido julgado nos vários inquéritos que sustentam este processo, de forma separada e não houvesse lugar à apensação de inquéritos não, o mesmo veria as penas parcelares perdoadas em 1 ano, pela aplicação da lei do perdão”.
E defende que “Existe uma franca desigualdade na aplicação da Lei da amnistia e dessa forma estão a ser violados os direitos e princípios constitucionalmente consagrados, desde logo, art.º 13 nº 1 e nº 2 da CRP”.
Vejamos.
O âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 está definido no seu artigo 2.º, e que, no concernente aos ilícitos penais, está limitado aos crimes praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade na data da prática dos factos.
Estabelece o citado artigo 3.º, n.º 1, que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, determinando o n.º 4 do preceito legal que no caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
No caso dos autos, os ilícitos pelos quais o arguido foi condenado – crimes de furtos qualificado, na forma consumada e tentada, crimes de furto simples e crime de violência depois da subtração - foram praticados antes de 19.06.2023, não contando o arguido mais de 30 anos na data da prática de tais factos. Assim, em princípio deveria o mesmo considerar-se abrangido pela medida de clemência decretada pela referida Lei.
E embora os crimes pelos quais foi condenado se mostrem excluídos da aplicação do perdão genérico decretado (vd. artigo 7º do diploma em referência), certo é que, de acordo com o artigo 3º, nº 1 da referida Lei nº 38-A/2023, o mencionado perdão só é aplicável a penas de prisão até 8 anos.
E, não obstante o cúmulo efetuado englobe penas parcelares aplicadas pela prática de crimes não excluídos pelo perdão, penas parcelares cuja medida não é superior a 8 anos, importa ter em conta que o nº 4 do mesmo artigo 3º dispõe que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. Quer dizer, estabelece expressamente o n.º 1 do art.º 3.º que, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos e o respetivo n.º 4 que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Ou seja, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares, estando excluída a aplicação de perdão sobre as penas parcelares que integram o cúmulo jurídico.
Em suma, uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, e atento que a duração da pena única imposta ao arguido é superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão, nos termos previstos no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.
Assim tem sido a partir da Lei nº 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares.
No artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 16/86, de 11 de junho estipulava-se que: “O perdão referido no n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores.”
E no artigo 14.º, n.º 3, da Lei n.º 23/91, de 04 de julho dispunha que: “O perdão referido nas alíneas a) e b) do n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores”.
E como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 2000, proc. n.º 2748/00-5: “as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas”.
Com efeito, dada a excecionalidade que qualifica as leis de amnistia, e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, as mesmas não comportam aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo a respetiva interpretação, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo” (Cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023, Diário da República, 1.ª série, de 1 de fevereiro de 2023).
E sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.
Ora, face aos termos em que se mostram redigidos os preceitos em questão e aplicáveis ao caso, não podem considerar-se postos em causa os princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade: a norma aplica-se a todos os que se encontrem na situação visada (sendo de aplicação geral), fazendo parte da discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de tal perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida situações punidas com penas mais graves, atinentes a condutas mais gravosas, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado.
Veja-se, a propósito do princípio da igualdade, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 232/2003, publicado no Diário da República I Série-A, de 17 de junho de 2003. No qual se escreve: “[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
Não obstante, como também se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt: “Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.”
Ora, a lei aqui em causa reveste carácter geral e abstrato, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita e prevista.
Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária.
Por conseguinte, face a todo o exposto, impõe-se manter o despacho recorrido, proferido sem violar qualquer preceito legal ou princípio constitucional, mormente os invocados pelo recorrente.
Improcede, assim, o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, mantendo o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
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Porto, 21 de fevereiro de 2024
Elsa Paixão [Relatora]
João Pedro Cardoso [1º Adjunto]
Liliana de Páris Dias [2ª Adjunta]