Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2142/19.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RP202006182142/19.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 06/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - São pressupostos de facto da providência de restituição provisória da posse, a demonstração da posse do requerente, a sua perda por esbulho e a violência no desapossamento.
II - A violência prevista na lei é aquela a que também alude o n.º 2 do art.º 1261.º do Código Civil, nos termos do qual a posse considera-se violenta quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou de coacção moral, nos termos do art.º 255.º do mesmo diploma legal.
III - Na providência cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento.
IV - Quando a matéria adquirida no procedimento cautelar permite formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não há razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal.
V - No que respeita às providências especificadas é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (cf. art.º 376º, n.º 4 do CPC).
VII - A inversão do contencioso só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e apenas se a providência cautelar requerida (nominada ou inominada) não tiver um sentido manifestamente conservatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2142/19.0T8VFR.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo local Cível de Santa Maria da Feira
Relator: Carlos Portela (1018)
Adjuntos: Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório:
B…, na qualidade de cabeça de casal da herança de C…e D…, na qualidade de herdeira da mesma herança, vieram instaurar a presente Providência Cautelar Especificada de Restituição Provisória de Posse contra E… e F…, pedindo o seguinte:
a) Que se ordene a restituição às Requerentes da parte do terreno ocupada pelos Requeridos, sendo essa parcela parte do prédio rústico sito em …, composto por terreno de cultura, duas laranjeiras, 15 videiras e pinhal, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2518 da freguesia de …, do concelho de Santa Maria da Feira, que não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira;
b) Que se ordene a retirada imediata dos muros, vedação colocada e demais construções de modo a permitir o acesso das Requerentes à totalidade do seu terreno e a passagem para o prédio contíguo de que são proprietárias;
c) Que se ordene que os Requeridos respeitem os limites da propriedade tal como se encontravam antes do dia 20 de Abril de 2019, antes da actuação dos Requeridos.
Mais requerem que, nos termos do disposto no artigo 369º do CPC, seja ainda decretada a inversão do contencioso, com a consequente dispensa de proporem a acção principal de que a providência estaria dependente.
Juntaram documentos e arrolaram testemunhas.
Realizou-se a audiência, com dispensa do contraditório prévio dos Requeridos, com observância de todas as formalidades legais, tendo sido proferida decisão datada de 16 de Agosto de 2019, julgando procedente, por indiciariamente provada, o presente procedimento cautelar, e, em consequência:
- Ordenando a restituição às Requerentes da parte do terreno ocupada pelos Requeridos nos termos acima expostos, sendo essa parcela parte do prédio rústico, sito em …, composto por terreno de cultura, duas laranjeiras, 15 videiras e pinhal, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2518 da freguesia de …, do concelho de Santa Maria da Feira, que não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira.
- Ordenando a imediata retirada dos muros, vedação colocada e demais construções de modo a permitir o acesso das Requerentes à totalidade do seu terreno e a passagem para o prédio contíguo de que são proprietárias;
- Ordenando que os Requeridos respeitem os limites da propriedade tal como se encontravam antes do dia 20 de Abril de 2019, antes da actuação dos Requeridos.
- Nos termos do disposto no artigo 369º do Código de Processo Civil, decretou-se a inversão do contencioso, com a consequente dispensa das Requerentes de propor a acção principal de que a providência estaria dependente.
Os Requeridos deduziram oposição, alegando, no essencial, que são proprietários de um prédio urbano que é contíguo e confinante com os prédios das Requerentes, resultante de um loteamento titulado por alvará e na planta topográfica estabelece que a parcela de terreno em bico é parte integrante do lote nº 94, prédio esse dos Requeridos, a qual sempre foi parte integrante da ….
Terminaram, pedindo que a providência cautelar seja desatendida por injustificada e opõem-se à inversão do contencioso.
Juntaram documentos.
Realizou-se a audiência final, observando-se o legal formalismo, nos termos da qual foram ouvidos os Requeridos em declarações de parte e inquiridas quatro testemunhas.
No culminar da mesma foi produzida decisão na qual se julgou improcedente por não provada a oposição e, em consequência, se decidiu manter a restituição provisória de posse nos termos da decisão proferida a 16 de Agosto de 2019.
Mais se decidiu manter a inversão do contencioso tal como decidido.
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Os requeridos vieram interpor recurso desta decisão apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos, as suas alegações.
Foram apresentadas contra alegações, as quais não foram admitidas por intempestivas.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e ser admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
È consabido que o objecto do Recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos requeridos /apelantes nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
1- O procedimento cautelar de restituição provisória de posse foi julgado em férias judiciais, por Juiz de Turno, sem inspecção ao local e sem audiência dos requeridos.
2- Após a citação de requeridos, os mesmos deduziram oposição, tendo o julgador, titular do processo ficado vinculado à matéria dada como provada, o que desencadeou a verificação de contradições entre o que se achava decidido com o que veio a apurar-se no julgamento da oposição deduzida, com audição de testemunhas, deslocação com inspecção ao local e certidão municipal de alvará de loteamento.
3- Um Alvará de Loteamento constitui uma pormenorização local do Plano Director Municipal, aprovado e em vigor, a que o Estado e demais entidades públicas se encontram vinculadas.
4- Achando-se uma parcela de terreno incluída num lote de terreno titulado por Alvará de Loteamento aprovado e em vigor, esse alvará constitui título que vincula as entidades públicas e o Poder Judicial.
5- Tal parcela de terreno, integrante dum lote, nunca poderia ser transmitida a terceiro, sem documento formalmente válido.
6- E, para que uma parcela de terreno seja adquirida por usucapião será necessário que sejam alegados e provados os requisitos impostos por lei para que essa aquisição originária se verifique.
7- Seria uma contradição insanável que o loteador cedesse verbalmente uma parcela de terreno a terceiro de prédio submetido a loteamento e ao mesmo tempo continuasse a incluí-la num lote a que respeita o Alvará de Loteamento desse prédio.
8- A sentença viola o disposto nos artigos 875º e 220º do Código Civil, viola os artigos 2º g), 3º, d) h) e i), 4º nº 2, 5º, 8º a) e f), 10º, b) e art.º. 20º da Lei 31/2014 de 30 de Maio e os artigos 9º, al. e), 65º, nº 4 e 66º, nº 2, als. b) e f) da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada por outra que acolhendo os preceitos legais faça improceder a providência cautelar e a inversão do contencioso.
Assim pede e espera por ser de JUSTIÇA.
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Perante o antes exposto, resulta claro que é a seguinte a questão suscitada nos autos:
A de saber se nos autos estão verificados os pressupostos de facto e de direito da presente restituição provisória de posse.
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Como se verifica, no recurso dos autos não foi impugnada a decisão da matéria de facto antes proferida.
A ser assim, os factos provados e não provados são pois, os seguintes:
Factos provados:
1. As Requerentes, mãe e filha, na qualidade de herdeiras da Herança de C…, são únicas e legítimas proprietárias do prédio rústico, sito em …, composto por terreno de cultura, duas laranjeiras, 15 videiras e pinhal, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2518 da freguesia de …, do concelho de Santa Maria da Feira, que não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira.
2. É este prédio, aliás, desde há várias gerações, foi sendo transmitido por sucessão por morte dos antecessores das Requerentes, há mais de 100 anos.
3. Verifica-se pela Escritura de Habilitação, Doação e Partilha lavrada a 23/05/1977 que a Requerente B… recebeu por morte do seu pai e doação da sua mãe o prédio Rústico acima descrito.
4. Desde dessa data, a Requerente B… e o seu marido, foram limpando o terreno, possuído de forma pública e pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
5. Sendo pago pelas Requerentes o respectivo imposto Municipal sobre imóveis, e perduravelmente, aquele terreno, foi tratado e mantido por conta das Requerentes.
6. Que sempre pagaram todas as despesas, com a limpeza do mato, que aí faziam periodicamente, até como forma de gestão de combustível e segurança à casa dos Requeridos.
7. A casa de habitação dos Requeridos confina com o aludido prédio.
8. As requerentes, e antes delas os seus antecessores, utilizam ainda aquela parcela de terreno como serventia de passagem para outro prédio rústico confinante do qual são proprietárias.
9. Sendo, na verdade, a única forma de acesso ao prédio confiante, uma vez que, nesta zona, existe uma antiga pedreira que faz com que a única forma viável de aceder a este prédio seja pela parcela de terreno em causa.
10. Sucedeu, porém, que no dia 20 de Abril 2019, pelas 10H, a Requerente D… foi informada pelo Senhor G…, por si contratado para proceder à limpeza do prédio inscrito sob o artigo matricial 2518, de que a Requerida F… lhe havia dito para sair daquele local, alegando que o terreno era de sua propriedade.
11. A Requerente D… dirigiu-se de imediato ao local e ali chegada constatou que haviam sido cortados dois carvalhos de porte médio.
12. As Requerentes não viram quem e em que momento foram os carvalhos cortados.
13. Situação que ficou, no entanto, esclarecida pelas declarações do Requerido E… prestadas à GNR de …, que foi chamada ao local, onde afirma ter sido ele que efectuou o corte dos referidos carvalhos.
14. A Requerente D…, pelas 11h, dirigiu-se à residência da requerida F…., a fim de apurar o sucedido e para reafirmar que iria proceder à limpeza do terreno já aqui identificado, dizendo à Requerida que, como é do seu conhecimento e de toda a vizinhança, aquele terreno é da sua família há muitas gerações, e que por sua ordem e expensas é periodicamente limpo, e que é por ali a única forma que tem de aceder a um outro seu terreno confinante.
15. A Requerente D…, após a conversa com a Requerida, chamou as autoridades policiais.
16. Na realidade, as Requerentes e antes delas os seus antecessores recolheram as utilidades sem violência, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem contestação e sem interrupção até ao momento, tendo usado esta propriedade de forma pacífica, contínua, pública e de boa-fé.
17. No entanto, desde de Abril do presente ano, os Requeridos construíram um muro por forma a vedarem o acesso das requerentes à sua parcela de terreno e impedindo-as também de aceder ao prédio rústico artigo 2519 pelo qual passava para aceder ao mesmo.
18. As Requerentes, no dia 17 de Maio de 2019, pelas 14h15m, alertaram as autoridades policiais para o facto de os aqui Requeridos estarem a iniciar a construção de um muro numa parcela do terreno em questão.
19. Como justificação para a sua actuação, alegam, os Requeridos, serem proprietários de uma parcela do terreno.
20. Sendo certo que os Requeridos são proprietários de um terreno contíguo ao terreno das Requerentes, e que é um lote inserido num loteamento conhecido por …, com o número 94, sita no lugar …, freguesia de …, do concelho de Santa Maria da Feira, descrito na Conservatória do registo Predial de Santa Maria da Feira sob o artigo 77 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 3761 da freguesia de ….
21. Este lote, onde os Requeridos têm a sua habitação, tem a área de 297m2.
22. E que foi o que os Requeridos compraram por escritura pública lavrada no 2º Cartório Notarial da Feira, pelo Notário H…, a 29 de Setembro de 1998.
23. Este lote está vedado há vários anos por um muro de tijolos de cimento, construído por iniciativa dos próprios Requeridos.
24. Bem sabiam os Requeridos que o seu lote é o que por eles foi vedado e que tem 297 metros quadrados.
25. Bem sabiam os Requeridos que a parcela do terreno que agora dizem ser sua, aumentaria a área do lote que compraram em mais de 160 metros quadrados (Parcela do terreno que os Requeridos se apropriaram) o que implicaria uma área de 457 m2.
26. Como bem sabem os Requeridos, as Requerentes possuíam e fruíam, há largos anos, sem limitação criada por quem quer que fosse, da totalidade do terreno contíguo ao lote dos Requeridos – repete-se, vedado por estes por um muro, com altura superior 3 metros, em tijolos de cimento.
27. E que vivendo há vários anos junto àquela parcela, nunca dela usufruíram, cuidaram e/ou a sua actuação se assemelhou com a de um proprietário.
28. Apesar da presença da GNR, nos dias 20 de Abril e 17 de Maio, os Requeridos não se coibiram de continuar a construção do muro de vedação, aumentando a sua altura e construindo um telheiro.
29. A vedação desta parte do terreno das Requeridas, nas condições descritas, impede as Requerentes de aceder ao prédio contíguo de que são igualmente proprietárias.
30. As Requerentes apresentaram, no dia 17 de Junho, uma queixa-crime, contra os Requeridos, junto do Departamento de Investigação e Acção Penal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por um crime de furto, p. e p., pelo artigo 203º do Código Penal, um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º do Código Penal e por um crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo artigo 215 do Código Penal.
31. Essa parcela de terreno em bico, do lado nascente/sul confina com regueira do imóvel das requerentes e no outro lado (poente/norte) havia um muro em pedra propriedade da … a estremar os imóveis, parcialmente derrocado.
32. A … tinha um muro em pedra argamassada que circuitava a quinta e que era exclusivo da quinta.
Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
1. A parcela de terreno em bico é parte integrante do prédio descrito em 20) dos factos provados.
2. Apesar de tal bico se achar desnivelado relativamente ao resto do lote, os Requeridos, por si e antecessores, praticaram actos de fruição e posse sobre tal bico de terreno nos últimos 20 anos.
3. …à vista de todos.
4. …sem oposição.
5. ...continuadamente.
6. ...no convencimento de que tal parcela faz parte do lote de terreno que compraram.
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De acordo com o disposto no art.º 377º do Código de Processo Civil, no âmbito dos procedimentos cautelares especificados, “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Já segundo o previsto no art.º 378º, “se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.
No art.º 1276º do Código Civil dispõe-se que, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.
Nos termos do art.º 1279º do mesmo código, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
Sabemos todos que a restituição provisória da posse, com características antecipatórias, apreciada e decidida de forma acelerada e sem prévia audição do requerido, está reservada para situações em que a ilicitude da conduta é mais grave.
Tal providência visa conferir tutela provisória ao possuidor o qual, por esta via, obtém a reconstituição da situação possessória anterior ao esbulho violento.
Assim, são pressupostos da restituição provisória da posse os seguintes:
- A existência de posse (na concepção objectiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção);
- Seguida de esbulho;
- Com violência. (Neste sentido cf. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, volume II, pág. 833).
Deste modo, o esbulho corresponde a um acto pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada.
Há esbulho, para efeito de aplicação do citado artigo 377º, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar a reter ou a fruir. (cf. Moitinho de Almeida, Restituição da Posse e Ocupações de Imóveis, 2ª ed., pág.100 e Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume II, págs.70 e 71).
Pode pois afirmar-se que no esbulho, o terceiro não permite que o possuidor actue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando o último desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.
No que toca à violência, valem desde logo os ensinamentos de Alberto dos Reis, (Código de Processo Civil anotado, volume I, pág. 670), quando defende que a mesma “tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor”.
Mais ainda quando afirma que “a violência pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coacção moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública”.
A violência sobre a coisa é pois relevante, para efeitos de restituição provisória, nos casos em que a coisa violada pela actuação do esbulhador era em si um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido, quando esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado ou ainda quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral.
Neste caso a violência contra as coisas há de constituir um meio de coação, de constrangimento físico ou moral sobre as pessoas, designadamente, intimidando o possuidor e limitando a sua liberdade de determinação (neste sentido e entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães de 3.11.2011, processo nº69/11.2TBGMR-B.G1, www.dgsi.pt.).
Como bem se afirma no recente Acórdão desta Relação de 09.05.2019, processo nº612/19.9T8PRDE.P1, www.dgsi.pt, “o benefício concedido ao possuidor de ser restituído à posse imediatamente, isto é, antes de julgada procedente a acção, tem a sua justificação precisamente na violência cometida pelo esbulhador: é, por assim dizer, o castigo da violência.
É a violência que compensa o facto da falta da característica típica das providências cautelares: o periculum in mora”.
Como ali também se refere, citando vária jurisprudência relevante, “embora a violência possa dispensar até a presença física do esbulhado na ocasião do esbulho, devendo ponderar-se as circunstâncias concretas em que se verificou, ela só será relevante se os actos que a integram, designadamente, ameaças, tiverem sobre o esbulhado qualquer influência psicológica que afecte a sua liberdade, segurança e tranquilidade”.
Ou seja, para integrar o conceito de violência não basta que a actuação do esbulhador seja feita sem o consentimento ou contra a vontade do possuidor ou que este tenha ficado prejudicado com a actuação daquele, é também necessário alegar e provar a existência de coação física ou moral.
Segundo Lebre de Freitas, Código Processo Civil Anotado, 2ª edição, volume 2º, pág. 78, “é, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador. (…), a coação tem de ser sempre, em última análise exercida sobre uma pessoa, mas a destruição (ou a construção) duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos actos de exercício do direito correspondente.
Em suma, na restituição provisória de posse há esbulho se o possuidor fica em condições de não poder exercer a sua posse ou os direitos que anteriormente tinha, e violência se o possuidor é impedido de aceder ao objecto da posse.”
Deste modo, será de considerar violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo esbulhador.
Regressando ao caso concreto, o que importa considerar é o seguinte:
Relativamente à existência de posse a favor dos requerentes, releva a matéria contida nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9) e 16) dos factos provados, cujo conteúdo aqui damos por inteiramente reproduzido.
Já no que toca ao esbulho valem os factos contidos (e provados) nos pontos 10), 11), 12), 13), 14), 15), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26) e 27), cujo conteúdo damos aqui também como reproduzido.
Por fim e em relação à violência, importa considerar o que se provou e consta dos pontos 28) e 29), cujo teor também damos aqui por inteiramente reproduzido.
Perante tal conjunto de factos podemos concluir, como o Tribunal “a quo”, que estão demonstrados os pressupostos legalmente exigidos para que seja decretada a restituição provisória de posse aqui requerida.
Tem ainda razão a Sr.ª Juiz “a quo” quando afirma que na oposição deduzida, os requeridos não lograram infirmar os fundamentos com base nos quais a presente providência foi decretada, designadamente a posse exclusiva da parcela de terreno em discussão nos autos.
Ou seja, os meios de prova produzidos pelos requeridos não permitem afastar os fundamentos da providência inicialmente decretada.
E também não permitem a sua redução nos termos previstos no art.º 372º, nº1, alínea b) do CPC.
Em conclusão, bem andou o Tribunal “a quo” quando nos termos do nº3 do mesmo artigo manteve a providência anteriormente decretada.
Em suma, contrariamente ao que defendem os requeridos/apelantes, ao assim decidir a decisão recorrida não violou qualquer das normas melhor referidas na conclusão 8ª das alegações de recurso.
Improcede assim, nesta parte, o recurso aqui interposto.
Mas o mesmo ocorre no que toca ao segmento da decisão no qual foi decidido manter a inversão do contencioso tal como o antes decidido.
Vejamos:
Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio (cf. o art.º 369º, n.º 1, sob a epígrafe “inversão do contencioso”).
O regime de inversão do contencioso é aplicável, com as devidas adaptações, à restituição provisória da posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios, ao embargo de obra nova, bem como às demais providências previstas em legislação avulsa cuja natureza permita realizar a composição definitiva do litígio (art.º 376º, n.º 4, sob a epígrafe “Aplicação subsidiária aos procedimentos nominados”).
A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
Entende-se, pois, que nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado - (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) - e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso.
O requerido poderá obstar à consolidação daquela tutela como tutela definitiva através de uma acção de impugnação (cf. os artigos 369º, n.º 1 e 371º, n.º 1.
Segundo este último normativo, “sem prejuízo das regras sobre a distribuição do ónus da prova, logo que transite em julgado a decisão que haja decretado a providência cautelar e invertido o contencioso, é o requerido notificado, com a advertência de que, querendo, deve intentar a acção destinada a impugnar a existência do direito acautelado nos 30 dias subsequentes à notificação, sob pena de a providência decretada se consolidar como composição definitiva do litígio”.
No que toca ás providências especificadas e como já vimos é a própria lei que determina aquelas onde pode ser requerida a inversão do contencioso (cf. art.º 376º, n.º 4).
É, pois, de concluir que a inversão se revela possível e ajustada quando a providência cautelar requerida, de carácter nominado ou inominado, não tiver um sentido manifestamente conservatório (cf. sobre este ponto, entre outros, Carlos Lopes do Rego, Os princípios orientadores da Reforma do Processo Civil, Revista Julgar, nº16, págs. 109 e seguintes).
A inversão do contencioso, prevista no artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, só é admissível se a tutela cautelar puder substituir a definitiva.
Ou seja, para que o requerente seja dispensado do ónus de propor a acção principal, terão de estar verificados dois pressupostos cumulativos:
a) -que a matéria adquirida no procedimento permita ao juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e
b) -que a natureza da providência decretada seja adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Ora nestes autos, não existe discrepância entre a providência requerida (restituição dos requerentes provisoriamente na posse da parcela ocupada pelos requeridos) e a acção a propor, de reconhecimento do direito de propriedade dos requerentes, nas suas várias dimensões, sobre a aludida parcela de terreno ilicitamente ocupada pelos requeridos.
Ora a prova documental e testemunhal inicialmente produzida pelos requerentes relativamente à propriedade do prédio rústico, sito em …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2518 da freguesia de …, concelho de Santa Maria da Feira, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, ultrapassou, claramente, o simples indício, constituindo sim prova bastante da existência do direito ameaçado.
Por outro lado, na oposição que deduziram e na prova que com estas produzira, os requeridos não lograram provar que a parcela em discussão lhes pertence.
Mais, a natureza da presente providência, no que diz respeito à propriedade da parcela a restituir, mostra-se adequada à composição definitiva do litígio.
Em suma, estão verificados os pressupostos de facto e de direito para que fosse antes decretado e agora mantida a inversão do contencioso, nos termos do disposto no artigo 369º, nº1 do CPC.
Assim sendo, também aqui deve ser confirmada a decisão recorrida.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes/requeridos (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 18 de Junho de 2020
Carlos Querido
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos