Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
72/10.0TAAMM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
Nº do Documento: RP2013011672/10.0TAAMM.P1
Data do Acordão: 01/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui alteração não substancial dos factos relevante, que impõe que seja efectuada a comunicação aludida no art. 358º, nº 1, do CPP, dar como provado «que a arguida disse ao assistente “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200km para me roubar”, quando na acusação fora alegado que lhe havia dito “você roubou-me, apanhou-me a 1.200km para me roubar”, tendo em atenção o contexto em que tal frase fora proferida.
II - Decorrendo da contestação que há uma contenda (entre por um lado a arguida e marido e por outro lado a Junta de Freguesia) quanto à propriedade do terreno em que a Junta de Freguesia tem vindo a fazer intervenções, realizando diferente tipo de obras, impunha-se ao tribunal pronunciar-se sobre os factos subjacentes às questões colocadas naquela peça.
III - Ao não proceder a essa averiguação, ocorre nulidade da sentença (art. 379º, nº 1, al. c), do CPP) por omissão de pronúncia quanto a factos pertinentes alegados pela defesa e questões dela decorrentes.
IV - A falta de exame crítico da prova impede a sindicância da decisão proferida sobre a matéria de facto uma vez que se desconhece qual foi o processo lógico e racional que o julgador seguiu na apreciação que fez, constituindo nulidade da sentença (art. 379º, nº 1, alínea a), do CPP).
V- As fórmulas genéricas e tabelares utilizadas pelo tribunal da 1ª instância na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, a propósito da forma como o assistente (que teria sido “peremptório”) e as testemunhas (que teriam deposto de “forma credível, verosímil e congruente”) prestaram declarações e depoimentos respectivamente em julgamento, não substituem o exame crítico das provas produzidas em julgamento, que é exigido pelo art. 374º, nº 2, do CPP, e nem satisfazem a exigência legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 72/10.0TAAMM.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
1. Na secção Única do Tribunal Judicial de Armamar, nos autos de processo comum (Tribunal Singular) nº 72/10.0TAAMM, foi proferida sentença, em 23.5.2012 (fls. 235 a 251 do 1º volume), constando do dispositivo o seguinte:
Pelo exposto decide-se:
- absolver a arguida B…, da prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º, 184º, nº 1, e art. 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal
- condenar a arguida B…, como autora material (art. 26º do Código Penal) de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 400,00 € (quatrocentos euros);
- condenar a arguida no pagamento ao assistente da quantia de 700,00 € (setecentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais;:
-condenar a arguida no pagamento de 2 Uc`s de taxa de justiça, nos termos dos arts. 513º e 514º do Código de Processo Penal e art. 8º, nº 5, do regulamento das Custas Processuais.
-sem custas cíveis, nos termos da alínea m) do nº 1 do art. 4º do regulamento das Custas Processuais.
(…).
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2. A arguida B… não se conformando com essa sentença, interpôs recurso (fls. 257 a 285), formulando as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso tem como objecto as seguintes questões:
A) Nulidade Da Sentença - Alteração Dos Factos
B) Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
C) Erro na Qualificação Jurídica;
2 - Com interesse para a recorrente, da sentença recorrida ficaram provados os factos constantes dos pontos 2, 3, 6, 7 e 9, que aqui se dão por reproduzidos.
DA NULIDADE DA SENTENÇA - ALTERAÇÃO DOS FACTOS
3 – Entre outros factos, a recorrente vinha acusada do seguinte: “ 2º- Nesse dia 27 de Agosto de 2010, cerca das 10.00H, na Rua …, em … Armamar, quando os trabalhadores executavam o serviço ordenado pelo Presidente da Junta de Freguesia …C…, a arguida abeirou-se do local e dirigindo-se àquele disse-lhe “ você roubou-me, apanhou-me a 1.200Km para me roubar”.
4 - Na sentença é dado como provado que a arguida dirigiu-se ao ofendido e disse-lhe “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200Km para me roubar”.(sublinhado e destacado nosso)
5 - A inclusão ou não de que a arguida chamou “ladrão” ao ofendido tem relevo para a decisão da causa, como demonstra a própria defesa por esta apresentada, pois se a arguida soubesse que tal facto lhe era imputado teria efectuado a defesa de forma diferente, como também alteraria os meios de prova que apresentou.
6 - Da alteração não substancial dos factos supra mencionados não foi dado qualquer conhecimento ao arguido ou mandatário ou seja, não foram cumpridas as condições mencionadas nos arts. 358º, o que, salvo melhor entendimento origina a nulidade da sentença, nos termos do art. 379º/1, b do CPP.
SEM PRESCINDIR
7 - Em sede de defesa foi alegado que: Existe pendente neste Tribunal uma Acção Sumária com o nº 128/10.9TBAMM, em que a arguida é autora e a Junta de Freguesia … é ré, onde se discute a propriedade de uma parcela de terreno. Mais concretamente se discute se a Junta de Freguesia … ocupou ilicitamente uma parcela de terreno propriedade da arguida
8 - Ora tais factos não constam nem dos factos provados, nem dos não provados, pelo que se entende que nem sequer foram tidos em conta pelo Tribunal “ a quo”, pelo que também aqui estamos perante uma nulidade, nos termos do artigo 379/1 c) do CPP.
B) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO;
DOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS
9 - Da compulsada prova produzida em audiência de julgamento e de toda a que consta do processo não poderia o tribunal “a quo”, ter dado como provado os factos constantes dos Pontos 3, 6, 7, 8 dos factos provados:
Para tanto baseou a sua convicção no seguinte:
10 - Declarações do assistente: refere a douta sentença que a sua convicção nas declarações prestadas pelo assistente, o qual foi peremptório na afirmação de que não se sentiu ofendido. (vide motivação da matéria de facto)
11 - Ou seja, se o assistente não se sentiu ofendido, não se entendem os factos provados nos pontos 3, 6, 7 e 8.
12 - Nas declarações do C…: Mandatária do Assistente (04m:40s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149) e Assistente C… (04m:46s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149), quando se refere às palavras da arguida o assistente apenas diz que a arguida disse apenas que a tinha roubado.
13 – Ainda nas declarações do assistente C…: Mandatário da arguida (11m:35s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Assistente C… (11m:45s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Mandatário da arguida (11m:49s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Assistente C… (11m:45s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): o mesmo refere que ficava ofendido da mesma forma caso a arguida tivesse utilizado a expressão “tirou-me” em vez de “roubou-me” o que confirma a tese da defesa que o sentido da expressão, nas circunstâncias em que foi proferida é igual.
14 - No depoimento da testemunha D… e E…: Mandatário da arguida (10m:48s - audiência de 14/05/2012 - CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha D… (11m:13s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Mandatário da arguida (10m:03s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha E… (10m:16s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): corroboram as declarações do assistente no sentido que, naquele contexto, a expressão “tirar” é igual a “roubar”.
15 - Sendo que, ainda nas declarações da testemunha E…: Mandatário da arguida (10m:40s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha E… (10m:16s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): não fica provada a intenção da arguida de ofender o assistente
16 - A expressão roubar é um termo usado na gíria popular sendo que a sua utilização, mais das vezes, não seja usada com o sentido de ofensa ou de imputação da prática de um crime a outrem.
17 - Podendo ser utilizada como um termo para demonstrar desagrado por uma determinada situação, em que o agente se vê privado de algo que entende ser sua propriedade.
18 - As circunstâncias que medeiam o uso da expressão “roubou-me” são essenciais para se aferir se houve intenção do agente em ofender terceiro ou apenas uma manifestação de desagrado ou constatação de que algo da sua propriedade foi violado, sem qualquer intenção subjectiva e objectiva de colocar em causa a honra e consideração desse terceiro.
19 - Pelo que não deveria ficar provado os factos constantes dos pontos 6, 7 e 8 da acusação.
DOS FACTOS DA DEFESA
20 - Em sede de defesa a arguida alegou os seguintes factos essenciais para a descoberta das circunstâncias de tempo em lugar em que foram proferidas as expressões da acusação.
21- Ora em sede de defesa foi requerido que fosse emitida e junta aos autos certidão da Petição Inicial constante dos autos Tribunal uma Acção Sumária com o nº 128/10.9TBAMM, meio de prova esse deferido por despacho de fls..
22 - Além disso, acerca do circunstancialismo dos factos a prova testemunhal confirmou as circunstâncias em que foram proferidas as expressões: Mandatário da arguida (10m:23s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha D… (10m:26s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Mandatário da arguida (10m:37s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha D… (10m:40s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Mandatário da arguida (10m:41s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149): Testemunha D… (10m:45s - audiência de 14/05/2012 – CD: 2012141610023_7738_64149):
23 - Assim, sempre deveria constar dos factos provados que: Existe pendente neste Tribunal uma Acção Sumária com o nº 128/10.9TBAMM, em que a arguida é autora e a Junta de Freguesia … é ré, onde se discute a propriedade de uma parcela de terreno. Mais concretamente se discute se a Junta de Freguesia … ocupou ilicitamente uma parcela de terreno propriedade da arguida
24 - Ora tais factos não constam nem dos factos provados, nem dos não provados, pelo que se entende que nem sequer foram tidos em conta pelo Tribunal “a quo”
C) ERRO NA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA;
25 - Veio a arguida condenada como autora material de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º/1 do CP.
26 - Mesmo que os factos dados como provados fossem verdadeiros, o que não se aceita, o Tribunal não estava em condições de condenar o arguido nos termos supra mencionados.
27 - O facto de existir pendente neste Tribunal uma Acção Sumária com o nº 128/10.9TBAMM, em que a arguida é autora e a Junta de Freguesia … é ré, onde se discute a propriedade de uma parcela de terreno.
28 – As expressões proferidas aconteceram quando estavam a mando da Junta de Freguesia a retirar os esteios que demarcavam a propriedade em causa.
29 – A verificação do ilícito não pode circunscrever ou limitar à valoração isolada e objectiva das expressões, exigindo-se que as mesmas sejam analisadas e valoradas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas.
30 - A sentença que aqui se recorre violou os arts. 127º, 358º, 359, 374º nº1/d) e nº 2, 379º/1,b), c) do Código Processo penal os arts. 13º, 14º, 40º, 71º, 181º do Código Penal e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Termina pedindo que seja julgada procedente a nulidade da sentença (art. 379º/ 1 b) e c) do CPP), sem prescindir requer que seja revogada a sentença e substituída por outra que julgue não provados os factos 3, 6, 7, 8 (mais concretamente no que se refere à ofensa do assistente e intenção de ofender da arguida), bem como sejam dados como provados os artigos 5 e 6 da defesa ou pelo menos seja tomada posição sobre esses factos e, caso assim não se entenda, seja a arguida absolvida do crime pelo qual foi condenada.
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3. O Ministério Público respondeu ao recurso (fls. 289 a 284 do 1º volume), concluindo dever ser julgado improcedente.
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4. O assistente não respondeu ao recurso.
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5. Nesta Relação, o Sr. PGA emitiu douto parecer (fls. 314 a 320 do 2º volume), no sentido de, sem conhecer das demais questões suscitadas pela recorrente, ser declarada a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art. 379º, nº 1, al. c), do CPP) e, em consequência, determinada a repetição do julgamento ou, no caso de assim não se entender, ser declarada nula a sentença quer nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), do CPP (baixando os autos à 1ª instância para cumprimento do disposto no art. 358º, nº 1, do CPP), quer nos termos dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP (por insuficiente fundamentação, determinando-se que na nova sentença a proferir seja suprido tal vício).
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6. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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7. Na sentença sob recurso:
Foram considerados provados os seguintes factos:
A.1.) Da culpabilidade
1) C…, Presidente da Junta de Freguesia …, ordenou, no dia 27 de Agosto de 2010, o alisamento do caminho da Rua …, em … e a retirada de esteios que haviam sido colocados em tal caminho público;
2) Nesse dia 27 de Agosto de 2010, cerca das 10.00H, na Rua …, em …, Armamar, quando os trabalhadores executavam o serviço ordenado pelo Presidente da Junta de Freguesia …, C…, a arguida abeirou-se do local e dirigindo-se aquele disse-lhe “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200 Km para me roubar”.
3) Ao ouvir tais expressões, C… sentiu-se ofendido na sua honra e reputação social e profissional, bem como no brio pelo desempenho das suas funções de Presidente da Junta, tanto mais que tais expressões foram proferidas pela arguida em frente a todos aqueles que se encontravam no mencionado local.
4) A arguida sabia que o Assistente é o Presidente da Junta de Freguesia ….
5) A arguida actuou de forma livre voluntária e consciente.
6) A arguida ao proferir a expressão “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200 Km de distância para me roubar” quis atingir e ofender, como conseguiu, a consideração, honra e dignidade do Presidente da Junta;
7) A arguida actuou com o propósito conseguido de ofender a honra e consideração de C…;
8) A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para actuar de acordo com essa avaliação;
A.2.) Da determinação da sanção
6) A arguida não tem antecedentes criminais.
7) A arguida é considerada socialmente como boa pessoa, trabalhadora e de confiança;
8) A arguida é proprietária de prédios urbanos e rústicos no Concelho de Armamar, no valor total de 15.773,71€;
A.3.) Do pedido de indemnização Civil
9) O Assistente ficou deveras ofendido na sua honra e consideração com a conduta da arguida que não esquece;
10) O Assistente desempenha as funções de Presidente da Junta de Freguesia …, gozando de reputação impecável perante os habitantes da localidade e de todos aqueles com quem lida;
11) O Assistente é respeitado no meio social em que se insere;
12) O Assistente sentiu-se humilhado, vexado, diminuído e maltratado com as expressões proferidas pela arguida
13) O Assistente pagou o valor de 102.00 € a título de taxa devida pela sua constituição como Assistente nos presentes autos.

Quanto aos factos não provados, consignou-se o seguinte:
B) Matéria de facto não provada
a) C… se encontrava na Rua … na freguesia …, no exercício das suas funções de Presidente da referida Junta de Freguesia;

Da respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto consta:
O Tribunal fundou a sua convicção no que concerne à matéria dada como provada, relativa à culpabilidade e ao pedido de indemnização civil, nas declarações prestadas pelo assistente, o qual foi peremptório na afirmação de que não se sentiu ofendido.
Mais fundou o tribunal a sua convicção no depoimento das testemunhas F…, D…, E… e G…, todos presentes no local, e que de forma credível, verosímil e congruente descreveram circunstanciadamente toda a sequência de acontecimentos, desde a aproximação da arguida, até às expressões pela mesma proferidas.
No que concerne aos factos relativos à determinação da sanção, a prova dos mesmos decorreu das declarações das testemunhas H… e I… que afirmaram que a arguida é boa pessoa educada e de confiança.
Relativamente à propriedade de prédios a prova do facto resultou do teor do documento constante de fls. 109, e no que concerne à ausência de antecedentes criminais a prova de tal facto resultou do teor do certificado de registo criminal constante de fls. 96.
Os factos considerado não provados, resultaram ausência de qualquer prova.

A nível da fundamentação de direito escreveu-se (além do mais):
Vem a arguida acusada da prática de um crime de injúria agravado.
Sobre esta matéria dispõe o artigo 184º do Código Penal que a pena prevista no artigo 181º é elevada de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea j), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal, no exercício das suas funções ou por causa delas.
No elenco das pessoas mencionadas na alínea j), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal está, entre outras, o membro de órgão das autarquias locais.
Conjugando o disposto nos artigos 236º, 244º e 246°, da CRP/76 e 2º e 23º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, verificamos que o Presidente da Junta de Freguesia integra o âmbito do disposto naquela alínea, sendo membro de um órgão de autarquia local.
O que importa aferir, é se no dia da prática dos factos, o Assistente se encontrava no local no exercício das funções de Presidente da Junta, para após aferir da verificação ou não da circunstância que determina a agravação do crime imputado.
(…)
Não duvidamos que o Presidente da Junta, se encontrava naquele local com a melhor das intenções, a fiscalizar uma obra que a autarquia tinha contratado, porém, inexiste qualquer suporte factual do qual decorra que o mesmo se encontrava no local no exercício de competências próprias ou delegadas, sendo que conforme supra referido a competência para a administração e conservação do património é da Junta de Freguesia, e não consta dos autos qualquer delegação de competências.
Assim, e no que concerne ao crime de injúria agravada temos necessariamente que concluir pela ausência do elemento objectivo que determina a agravação, pelo que vai a arguida absolvida da prática desse crime.
Importa no entanto aferir da prática de um crime de injúria.
(…)
Nos presentes autos, e no que concerne à acção típica, o que importa apurar é se “foram dirigidas palavras ofensivas da honra e consideração”.
Será pois importante apurar o carácter ofensivo da expressão utilizada.
Ora a expressão dirigida pela arguida ao Assistente, foi “é um ladrão e esperou apanhar-me a 1200 km para me roubar”.
De acordo com a versão da arguida tal expressão não seria inapta a preencher o tipo de crime imputado, na medida em que seria o mesmo que dizer “tirou-me um bocado de terreno”, porém e de acordo com o padrão médio da sociedade em que quer a arguida quer o Assistente se encontram inseridos, afirmar que alguém retira, tira ou rouba um bocado de terreno, é imputação gravíssima, pois, e como até corre na gíria popular, por trás-os-montes até se mata por um palmo de terra.
Assim, mais que a palavra concretamente proferida, o que o tribunal considera injuriosa, é a imputação do facto, que aquela pessoa teria retirado à arguida uma parcela de terreno.
Defende até a arguida que houve uma apropriação ilícita por parte da Junta de Freguesia de uma parcela do seu terreno, porém, à data da prática dos factos em apreço nestes autos nem sequer tinha dado entrado em juízo a acção onde tal questão de natureza cível se encontra a ser apreciada, pelo que nem sequer se pode entender que a arguida actua ao abrigo de qualquer causa de justificação.
Conclui-se pois que a arguida se constituiu autora material de um crime de injúria na forma consumada.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
Deduz-se da motivação de recurso interposto da sentença proferida nestes autos, que a arguida pretende que se apreciem as seguintes questões:
1ª- Averiguar se há nulidade da sentença, quer por haver alteração não substancial dos factos, sem ter sido cumprido o disposto no art. 358º do CPP (cf. art. 379ºº, nº 1, alínea b), do CPP), quer por omissão de pronúncia quanto a factos alegados na contestação (cf. art. 379º, nº 1, alínea c), do CPP);
2ª- Verificar se há erro de julgamento quanto a factos dados como provados (nos pontos 3, 6, 7 e 8) e quanto a factos alegados pela defesa (que nem sequer foram apreciados pelo tribunal e deviam ter sido dados como provados);
3ª- Analisar se houve errada interpretação na subsunção dos factos ao direito (na perspectiva da recorrente os factos dados como provados não integram qualquer atentado à honra e à consideração pessoal do assistente).
Passemos, então, a conhecer do recurso ora em apreço.
1ª Questão
Começa a recorrente por alegar que existe nulidade da sentença, quer por haver alteração não substancial dos factos, sem cumprimento do disposto no art. 358º do CPP (cf. art. 379º, nº 1, alínea b) do CPP), quer por omissão de pronúncia quanto a factos alegados na contestação (cf. art. 379º, nº 1, alínea c), do CPP).
Quanto ao não cumprimento do disposto no art. 358º do CPP argumenta que a sua defesa (remetendo para a contestação e para a prova que ofereceu) foi apresentada em função do que constava da acusação pública (onde lhe era imputado um crime de injúria agravado p. e p. nos arts. 181º, nº 1, 184º e 132º, nº 2, al. l), do CP) e, por isso, foi surpreendida quando foi dado como provado que havia dito ao assistente “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200km para me roubar” (quando na acusação constava a esse propósito que lhe havia dito “você roubou-me, apanhou-me a 1.200km para me roubar”), tanto mais que o julgador nem se pronunciou sobre o contexto e circunstâncias em que ocorreram os factos, não se pronunciou sobre factos relevantes alegados na contestação, sendo diferente, mesmo para determinar a intencionalidade do agente (para apurar quando este actua com dolo ou quando se limita a manifestar o seu desagrado por entender estar a ser violado o seu direito de propriedade) usar a expressão “roubou-me” ou chamar-lhe “ladrão” (esta última imputação já não pode ser entendida como a constatação do facto de sentir-se esbulhada na sua propriedade, mas antes como a imputação de uma característica da pessoa ofendida, que poderá ser passível de ofensa).
Conclui que aquela alteração de factos é relevante para a decisão da causa (tal como se verifica da defesa que anteriormente apresentou) e que, se dela tivesse tido conhecimento (ou seja, caso o tribunal tivesse dado cumprimento ao disposto no art. 358º do CPP, o que não fez), teria efectuado a defesa de forma diferente, como também alteraria os meios de prova que apresentou.
Quanto à omissão de pronúncia de factos relevantes para a defesa, reporta-se à contestação e ao por si aí alegado sobre a pendência de acção cível que instaurou contra a Junta de Freguesia … (da qual o assistente era então Presidente), onde se discute se aquela Junta de Freguesia ocupou ilicitamente uma parcela de terreno sua (da recorrente e marido) propriedade, o que é importante para se perceber em que contexto actuou e para apurar se agiu ou não com dolo.
Vejamos então.
Compulsando a acusação pública e o que consta da sentença não há dúvidas que ocorreu a apontada alteração de factos (quando se deu como provado que a arguida disse ao assistente “você é um ladrão, apanhou-me a 1.200km para me roubar”, sendo certo que na acusação fora alegado que lhe havia dito “você roubou-me, apanhou-me a 1.200km para me roubar”), a qual é relevante, desde logo considerando o diferente significado da frase dada como provada em relação à que fora alegada na acusação (particularmente no que se refere à expressão “você é um ladrão” dada como provada por comparação com a alegada “você roubou-me”).
Com efeito, chamar ladrão a alguém reporta-se (como diz a recorrente) a uma característica da pessoa ofendida, o que é mais expressivo tendo em atenção a segunda parte da frase dada como provada (“… apanhou-me a 1.200km para me roubar”).
Analisando a expressão alegada na acusação pública, quando ali consta que a arguida disse ao assistente “você roubou-me, apanhou-me a 1.200km para me roubar”, não haverá dúvidas, considerando a tese apresentada na contestação (também sustentável, até tendo em atenção o disposto no art. 339º, nº 4, do CPP), que se coloca a questão de saber com que intenção essa frase teria sido proferida, uma vez que o seu significado é diferente do dado como provado, podendo indiciar que a arguida agiu com intenção de criticar a actuação da Junta de Freguesia, ali representada pelo assistente, que era o seu Presidente[1] (e, portanto, estar afastado o dolo que, como sabido, no crime de injúria é genérico).
Por isso, compreende-se que a defesa não possa ser surpreendida com essa alteração de factos, ainda que não substancial, tendo o direito de exercer o contraditório, como pretende, o qual depende do cumprimento do art. 358º do CPP, que o tribunal omitiu.
Perante os referidos factos novos (“você é um ladrão…” em vez do alegado na acusação pública de “você roubou-me…”), como bem diz o Sr. PGA, “a arguida tem o direito de se defender (…) daquelas precisas expressões, e não das que vinham descritas na acusação, que o tribunal lançou mão e considerou relevantes na ponderação do desvalor da conduta da arguida.”
Ou seja, a alteração efectuada a nível dos factos dados como provados (“você é um ladrão…” em vez do alegado “você roubou-me…”) é relevante para a decisão da causa e impunha que o tribunal tivesse cumprido atempadamente o disposto no art. 358º do CPP, para a arguida poder preparar a sua defesa e defender-se daquela nova e concreta expressão, no contexto da frase dada como provada, que se diz ter sido por ela dirigida ao assistente (aliás, não tendo o tribunal cumprido o disposto no art. 358º do CPP - designadamente por ter diverso entendimento, o que se desconhece - deveria ter explicado na sentença a razão pela qual, apesar da alteração de factos efectuada, assim procedeu para se compreender o raciocínio que fez).
O tribunal procedeu, pois, a uma alteração não substancial de factos, sem ter cumprido, como lhe incumbia, o disposto no art. 358º, nº 1, do CPP.
Assim, tendo em vista o disposto no art. 279º, nº 1, al. b), do CPP, podemos concluir que a sentença é nula por o tribunal não ter cumprido o disposto no art. 358º, nº 1, do mesmo código.
Para além disso, é evidente que as questões colocadas na contestação, particularmente no que se relaciona com a matéria alegada na acção cível interposta em 4.10.2010 contra a Junta de Freguesia (ainda que os factos em discussão nesta acção penal tivessem ocorrido em Agosto de 2010), são relevantes para a descoberta da verdade pela importância que têm para se perceber as circunstâncias, contexto, intencionalidade da actuação da arguida nesta acção penal e, se for o caso, também para determinar se actuou ou não de forma justificada e determinar a sanção.
Resulta da petição inicial dessa acção cível (independentemente de ter sido interposta em 4.10.2010 – cf. certidão de fls. 189 a 202) que já desde 2008 a arguida entende que tem vindo a ser violado o seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno, onde a Junta de Freguesia tem feito obras.
Haverá, portanto, uma contenda (entre por um lado a arguida e marido e por outro lado a Junta de Freguesia) quanto à propriedade do terreno em que a Junta de Freguesia tem feito intervenções, realizando diferente tipo de obras.
Ainda relacionado com essa matéria, foi dado como provado na sentença impugnada que, “C…, Presidente da Junta de Freguesia …, ordenou, no dia 27 de Agosto de 2010, o alisamento do caminho da Rua …, em … e a retirada de esteios que haviam sido colocados em tal caminho público.”
Perante aquela acção cível, ainda não decidida (supõe-se, desde logo considerando o teor da sentença sob recurso) e interposta posteriormente, nem se percebe como é que o tribunal da 1ª instância chegou à conclusão de que os esteios - que o assistente deu ordem de retirada em 27.8.2010 - haviam sido colocados no caminho público, uma vez que não há qualquer fundamentação (de facto ou de direito) que explique o raciocínio seguido (sabido que o dito caminho confronta também com propriedade da arguida e marido, tal como resulta da prova documental constante das fotocópias da escritura pública e da descrição predial juntas a fls. 199 a 202).
O facto da acção cível ter sido interposta posteriormente à data dos factos constantes da acusação pública não significa que anteriormente (desde 2008 ou mesmo em 27.8.2010, considerando o teor da petição inicial da referida acção civel) a arguida entendesse que era propriedade da Junta de Freguesia aquela parcela de terreno onde esta vinha fazendo obras, designadamente local onde estavam colocados os referidos esteios.
Ou seja, a tese defendida na contestação e respectivos factos alegados pela defesa (quer nesse articulado, quer resultantes da discussão da causa em audiência de julgamento), quanto aos limites da propriedade da arguida (vejam-se os limites da respectiva propriedade constantes das fotocópias da escritura pública e da descrição predial juntas a fls. 199 a 202, das quais resulta nomeadamente que a sul confronta com caminho e a poente com ribeiro), quanto à actuação da Junta de Freguesia e ordem dada naquele dia 27.8.2010 são relevantes para se perceber em que contexto, circunstâncias e com que intencionalidade a arguida teria agido e, concluindo-se pela sua culpabilidade (por não estar excluída a ilicitude ou culpa da sua conduta) também para determinar a própria pena a aplicar.
E, nesse aspecto, há uma completa omissão de pronúncia do tribunal da 1ª instância, que não ponderou essas questões colocadas pela arguida na sua contestação, na defesa apresentada em audiência e que decorriam igualmente da referida prova documental junta aos autos, sendo indiferente que a acção cível tivesse sido interposta posteriormente a 27.8.2010 (tanto mais que se reporta a factos que já teriam ocorrido desde 2008).
Nem sequer se apurou se a Junta de Freguesia actuou licita ou ilicitamente, se tinha conhecimento que a arguida alegava que a parcela de terreno, onde v.g. estavam colocados os esteios, era sua propriedade, se houve recurso às vias legais para se considerar válida a ordem dada em 27.8.2010, que averiguações efectuou a Junta de Freguesia (v.g. se apresentou queixa crime) para apurar quem havia colocado os ditos esteios (até porque iria efectuar gastos com as obras ordenadas em 27.8.2010).
É que a Junta de Freguesia não pode actuar à revelia da lei, tem de se socorrer dos mecanismos legais, caso v.g. pretendesse expropriar parcela de terreno que soubesse pertencer a outrem, mesmo que visasse alargar o caminho dito público (até se desconhece se estava ou não objectivamente definido em algum documento, por exemplo, os limites do terreno que constituam o tal caminho público, com a distância em metros que o separavam das demais propriedades com os quais confrontasse).
Resulta até das regras de experiência comum que, designadamente em meios rurais, a colocação de esteios ao longo de determinada parcela de terreno, pode ter o significado (principalmente tendo em atenção o caso concreto nestes autos e que a propriedade da arguida confronta com o referido caminho público, que se desconhece se foi ou não alargado e em que circunstância terá sido modificado) que alguém (quem coloca os esteios) reivindica aquele terreno, seja este privado ou público.
Por isso, era lógico averiguar ainda em julgamento quais os procedimentos que a Junta de Freguesia havia adoptado antes do seu Presidente ter dado a ordem de 27.8.2010, designadamente, quanto à retirada dos esteios (quanto mais não fosse até para averiguar a quem apresentaria a “conta” dos gastos feitos com esse tipo de serviços).
Do exposto resulta a relevância da averiguação dos factos subjacentes às questões colocadas na contestação, mormente que se relacionam com aquela acção cível para melhor se perceber toda a conduta da arguida e se apurar se o seu comportamento é penalmente censurável[2] ou se se encontra justificado de alguma forma prevista na lei (como se viu o facto da acção cível ter sido interposta posteriormente a 27.8.2010, não significa que a arguida tivesse abdicado de eventual direito de propriedade sobre a parcela de terreno em discussão, v.g. onde estavam colocados os esteios, sendo certo que as causas que excluem a ilicitude ou culpa não dependem da instauração de acção cível, nomeadamente da sua interposição antes de 27.8.2010).
E, que todos esses factos e questões que deles decorrem não foram averiguados, como deviam ter sido (obviamente expurgados de conclusões e de conceitos de direito), também em nome da descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 340º do CPP), resulta de não haver qualquer referência a eles seja nos factos dados como provados, seja nos dados como não provados ou mesmo na motivação de facto da sentença sob recurso.
Podemos, assim, concluir (tal como defendido pela recorrente e pelo Sr. PGA) que, tendo em vista o disposto no art. 379º, nº 1, al. c), do CPP, ocorre a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto a factos pertinentes alegados pela defesa e questões dele decorrentes (sendo certo que na acção penal o tribunal, na fase de julgamento, tem um poder de investigação da verdade mais amplo do que na acção cível, precisamente por estarem em causa também interesses públicos).
Por outro lado, como bem diz o Sr. PGA, não se percebe qual foi a análise que o tribunal fez da prova produzida em julgamento, particularmente, daquela a que fez referência na motivação de facto da sentença.
Apesar do tribunal referir que formou a sua convicção, quanto aos factos que deu como provados relativos à acusação pública, “nas declarações prestadas pelo assistente, o qual foi peremptório na afirmação de que não se sentiu ofendido”[3] e nos depoimentos “das testemunhas F…, D…, E… e G…, todos presentes no local, e que de forma credível, verosímil e congruente descreveram circunstanciadamente toda a sequência de acontecimentos, desde a aproximação da arguida, até às expressões pela mesma proferidas”, a verdade é que dessas afirmações genéricas não decorre que haja exame crítico da prova.
A falta de exame crítico da prova impede a sindicância da decisão proferida sobre a matéria de facto (nomeadamente do erro de julgamento também invocado pela recorrente) uma vez que se desconhece qual foi o processo lógico e racional que o julgador seguiu na apreciação que fez.
As fórmulas genéricas e tabelares utilizadas pelo tribunal da 1ª instância a propósito da forma como o assistente (que teria sido “peremptório”) e as testemunhas (que teriam deposto de “forma credível, verosímil e congruente”) prestaram declarações e depoimentos respectivamente em julgamento, não substituem o exame crítico das provas produzidas em julgamento, que é exigido pelo art. 374º, nº 2, do CPP.
Dispõe o art. 374º, nº 2, do CPP que a sentença deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
“O dever de fundamentação cumpre-se quando é publicitado por forma suficiente o processo probatório, isto é, quando é possível conhecer e compreender o itinerário cognitivo do tribunal.”[4]
Por isso, na sentença o tribunal tem de motivar (artigo 374º, nº 2, do CPP) a apreciação que fez do caso submetido a julgamento, expondo fundamentos suficientes (com recurso a regras da ciência, da lógica e da experiência) que expliquem o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas (a razão pela qual a convicção do tribunal se formou em determinado sentido).
Não satisfaz a exigência legal do exame crítico das provas, afirmar (como se fez na motivação da sentença sob recurso, no que aqui interessa analisar) generalidades que se tornam (ao contrário do pretendido pela lei) insindicáveis, quer pelos sujeitos processuais, quer pelos tribunais superiores (havendo trechos da fundamentação de facto que em parte alguma foram explicados e/ou concretizados para se tornar perceptível o raciocínio do julgador).
Da motivação também não resulta que o tribunal tivesse avaliado a prova documental junta aos autos, já acima referida.
Ora, a fundamentação (incluindo o exame crítico das provas), que terá de constar obrigatoriamente da sentença, além de constituir, como diz Germano Marques da Silva[5], “um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso, como meio de autocontrolo”, vai permitir “convencer os interessados e os cidadãos e em geral acerca da sua correcção e justeza”, bem como, possibilitar o “controlo da legalidade do acto”.
Não se dúvida, por isso, que o “princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de direito contra o arbítrio”, sendo uma “garantia de controlo democrático do exercício do poder judicial em face dos cidadãos e do próprio Estado.”
O referido “dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto”, exige que o tribunal explicite o processo lógico e racional que seguiu na apreciação da prova que fez (que seja transparente, que se perceba o juízo decisório que fez sobre as provas submetidas à sua apreciação, explicando os motivos pelos quais determinadas provas e não outras - por exemplo de sentido contrário - o convenceram).
E, quando está em causa o conhecimento amplo da matéria de facto (como sucede neste caso quando no recurso é invocado o erro de julgamento), assume particular importância, o dever de fundamentação da sentença, previsto no nº 2 do art. 374º do CPP.
Neste caso, lendo e relendo a fundamentação de facto da sentença sob recurso, não se percebe (nem se descortina) qual foi raciocínio seguido pelo julgador.
As referências genéricas feitas a propósito das declarações do assistente e dos depoimentos das testemunhas assinaladas, não permitem deduzir qual foi o raciocínio do julgador, nem tão pouco equivalem ao exame crítico das provas.
Por outro lado, não se percebe o motivo pelo qual o tribunal da 1ª instância não avaliou a prova documental junta aos autos, já acima identificada, a qual é objectivamente relevante para a decisão da causa.
Em suma: quando omitiu o exame crítico das provas produzidas em julgamento e existentes nos autos (prova documental acima aludida), o julgador não explicitou o processo de valoração que deveria ter feito, não se percebendo, por isso, o respectivo juízo decisório.
Daí que, este tribunal, fique sem saber qual foi o processo lógico e racional que o julgador seguiu na apreciação da prova que fez.
Ora, o Tribunal da Relação só estará habilitado a fazer um juízo sobre se as provas indicadas pelo recorrente impõem ou não decisão diversa da recorrida (art. 412º, nº 3, alínea b), do CPP) se conhecer cabalmente o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido dos factos que deu como provados.
Do que acima se expôs já se percebe que, sem o referido exame crítico das provas produzidas e na falta de enunciação do juízo decisório sobre as provas apreciadas pelo tribunal a quo fica condicionado o exercício do direito de recurso e impossibilitada a própria sindicância pelo tribunal superior, nomeadamente, quando é discutida a decisão sobre a matéria de facto ou ainda quando a mesma é impugnada nos termos do art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP.
Assim, conclui-se existir, também, nulidade da sentença (art. 379º, nº 1, alínea a), do CPP), por inobservância do disposto no art. 374º, nº 2, do CPP.
As referidas nulidades tornam inválida a sentença proferida, ora sob recurso, o que implica que seja publicada nova sentença (art. 122º do CPP) e, neste caso concreto, previamente seja reaberta a audiência, para suprimento dos vícios apontados.
Perante a declaração de nulidade da sentença fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso da arguida.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
a)- conceder provimento ao recurso interposto pela arguida B…, na parte em que foram conhecidas questões por ela suscitadas e, tendo em vista o disposto nos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alíneas a), b) e c), do CPP, declarar a nulidade da sentença impugnado devendo, em consequência, ser reaberta a audiência e proferida nova sentença que sane os vícios apontados;
b)- no mais, mostra-se prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no mesmo recurso.
Sem custas.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94º, nº 2, do CPP)
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Porto, 16.1.2013
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
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[1] E isso independentemente da conclusão a que se chegou na sentença sob recurso, no sentido de não se ter apurado que o assistente, apesar de ser Presidente daquela Junta de Freguesia, se encontrava no local no exercício de competências próprias ou delegadas.
[2] Apreciando, caso conclua pela culpabilidade da arguida, se se verificam todos os pressupostos processuais para a sua condenação pelo crime de injúria que é de natureza particular (nos autos não há acusação particular, tendo o assistente deduzido apenas pedido cível de indemnização a fls. 110 dos autos, antes de ser deduzida a acusação pública).
[3] Isto já para não falar na contradição notória existente entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação/motivação quando genericamente se escreve que o assistente teria sido “peremptório na afirmação de que não se sentiu ofendido” (itálico nosso).
[4] Assim, Ac. do TRG proferido no recurso nº 1892/08, relatado por Nazaré Saraiva.
[5] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pp. 16 e 17.