Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
27110/16.0T8LSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
REQUISITOS CUMULATIVOS
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Nº do Documento: RP2021041227110/16.0T8LSB.P1
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exceção de caso julgado é uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e leva à absolvição do Réu da instância (arts 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278º nº1, al. e), todos do CPC), traduzindo-se num pressuposto processual negativo, que impede o prosseguimento da nova ação e obstaculiza nova decisão de mérito;
II - Além da manifesta economia processual, evita que o tribunal se veja na contingência de contradizer ou reproduzir decisão definitiva, o que conflituaria com a força do caso julgado;
III - Tendo o caso julgado material força obrigatória (dentro e fora do processo), não permite nova ação entre as mesmas partes, com o mesmo objeto: pedido e causa de pedir;
IV - Repete-se a causa quando é pedida, pela mesma demandante, numa ação cível, indemnização pelos mesmos danos do pedido de indemnização cível deduzido em processo crime, onde foi afirmada a mesma atuação dos sócios gerentes da sociedade, demandados em ambas as causas com base em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos (cfr. arts 71º e 84º, do CPP).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 27110/16.0T8LSB.P1
Processo do Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 1
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, Sa
Recorridos: C… e D…

B…, Sa propôs ação declarativa, com forma de processo comum, contra C… e D…, pedindo a condenação, solidária, destes a pagarem-lhe a quantia de € 317.554,09, a título de indemnização pelos danos sofridos, acrescida dos juros legais que se vencerem desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que os Réus, no exercício das suas funções de gerência da E…, Lda se apropriaram ilegitimamente de quantias que receberam da Autora para pagamento de trabalhos, com base em documentos e declarações falsos, factos que densificou e qualificou como integrantes de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, invocando que nos processos crime que refere pelos mesmos factos, foram aqueles considerados não demonstrado e, nessa medida, que não estavam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, mas que o que aqui pretende é que os factos, já analisados à luz da responsabilidade criminal, o sejam à luz daquela responsabilidade.
O réu D… contestou e, invocando a exceção de litispendência, alegou que se encontra a ser julgado no processo crime que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – J18, sob o n.º 3858/15.5T8LSB, no qual a autora deduziu um pedido de indemnização cível no valor de € 317.554,09, ou seja, exatamente o valor peticionado nos presentes autos.
Ouvida, a autora pugnou pela improcedência da referida exceção de litispendência, defendendo não se verificar, igualmente a exceção de caso julgado, por estar em causa a responsabilização dos réus na qualidade de gerentes da E…, Lda. e não tendo por base a prática dos crimes que estavam em causa nos processos acima identificados.
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No despacho saneador foi julgada procedente a alegada exceção do caso julgado e, nos termos do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), do C. P. Civil, absolvidos os réus da instância.
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A Autora apresentou recurso de apelação pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que julgue improcedente por não provada a exceção do caso julgado e ordene o prosseguimento dos autos, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Os Réus apresentaram contra alegações pugnando pela improcedência do recurso e por que seja mantida a decisão recorrida, sustentando bem ter decidido o Tribunal a quo ao considerar que, dado o trânsito em julgado da decisão proferida no processo crime, não poderá o Tribunal pronunciar-se sobre os mesmos factos, conclusão que resulta da aplicação conjunta dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 578.º , 580.º, n.º 1, 581.º e 619.º, n.º 1, todos do Código Processo Civil, bem como do artigo 84º, do Código Processo Penal.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se os factos praticados pelos Réus, na qualidade gerentes de sociedade comercial, definitivamente apreciados em procedimentos criminais, onde, com base neles, foi deduzido pedido de indemnização cível, na respetiva ação penal, na mesma importância aqui peticionada, podem ser de apreciados na presente ação, comum, com base em responsabilidade civil extracontratual, à luz do disposto nos arts. 483.º e segs, do Código Civil, e 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, ou se a tal obsta o art. 84º, do CPP e o art. 581º, do CPC, por de repetição de causa se tratar (integrando exceção dilatória de caso julgado).
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com relevância para a decisão (transcrição):
1. No processo crime, que correu termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – J18, sob o n.º 3858/15.5T8LSB, foi proferida, decisão final, transitada em julgado a 24.10.2018, que absolveu D… dos crimes que lhe eram imputados e, consequentemente, julgou improcedente o pedido de indemnização cível nele deduzido.
2. Também no processo no processo crime, que correu termos na [então] Instância Central Criminal de Lisboa – 1.ª Secção – J18, sob o n.º 4724/08.6TDLSB, foi proferida, decisão final, transitada em julgado a 24.10.2018, que absolveu C… dos crimes que lhe eram imputados e, consequentemente, julgou improcedente o pedido de indemnização cível nele deduzido.
3. Nos referidos processos era assistente a aqui autora, que neles deduziu pedido de indemnização cível, pedindo a condenação dos aqui réus, ali arguidos, no pagamento da quantia de € 317.554,09.
4. Os réus foram demandados civilmente no processo crime por terem atuado enquanto gerentes da E…, Lda..
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Do caso julgado, por repetição da causa definitivamente apreciada na decisão dos pedidos de indemnização cível
Entendeu o Tribunal a quo que da análise da factualidade descrita na petição inicial e nos pedidos cíveis deduzidos nos processos referidos nos factos provados 1. e 2. resulta, no que as partes convergem, ser a atuação imputada a cada um dos aqui réus e ali arguido a mesma e bem analisa que, estando os autos acima identificados, nos quais foi, pela autora, deduzido pedido de indemnização cível contra os réus, findos, com decisão final já transitada em julgado, “ao invés de se verificar, neste momento, a invocada exceção de litispendência, a situação dos autos configurará, antes, situação de caso julgado – cfr. arts. 580.º e 581.º do Código de Processo Civil”.
E nos termos do art. 84.°, do Código de Processo Penal, “a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado, nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”, bem referindo o Tribunal a quo que “quanto à autora e aos réus – assistente/demandante e arguidos/demandados nas referidas ações penais, com pedidos de indemnização civil - a decisão penal tem eficácia absoluta quanto aos factos constitutivos da infração [e do ilícito civil] bem como os relativos à culpa, em termos de não mais os poderem discutir, nem dentro nem fora do processo [caso julgado formal e material]”.
Apreciemos, pois, se com esta ação se viola o caso julgado formado nos processos identificados em 1. e 2..

- Dos requisitos da exceção dilatória de caso julgado
Insurge-se a Autora contra a decisão que considerou verificados os pressupostos da exceção de caso julgado, considerando preenchida a referida tríplice identidade, para tal imposta pelos referidos preceitos.
Analisemos a figura jurídica em causa para, depois, revertendo para o caso, se apurar se, na situação sub judice, estão preenchidos os respetivos requisitos.
A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que se traduz num pressuposto processual negativo, pois que impede o prosseguimento do processo evitando que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que reproduza ou contrarie uma decisão definitiva, obstando ao conhecimento do mérito da causa e levando à absolvição da instância – cfr. artigos 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos, na falta de outra indicação.
Para além de satisfazer interesses que se prendem com a economia processual, a exceção de caso julgado visa evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que atentaria contra a força do caso julgado.
Como se refere no Acórdão do STJ de 24/2/2015, processo 915/09.0TBCBR.C1.S1, relatado pela Senhora Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor, ao “caso julgado está inerente a ideia de imutabilidade ou de estabilidade. O fim do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado.
A excepção do caso julgado traduz-se em «a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pp. 305-306)”.
Aí se esclarece “Diz-se material o caso julgado, nos termos do art. 619.º do CPC, se a decisão recai sobre o mérito da causa, e, portanto, sobre a relação jurídica substancial.
O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e por isso não pode ser alterado em qualquer acção nova que porventura se proponha sobre o mesmo objecto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir. A estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo, com a excepção da possibilidade da sua revogação ou modificação por meio dos recursos extraordinários de revisão (art. 696.º do CPC) para os casos em que o caso julgado se formou em circunstâncias patológicas ou anormais”[1].
Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem que a exceção dilatória de caso julgado baseia-se no caso julgado material, projetado para fora do processo em que se forma, não no caso julgado formal[2].
O conceito de caso julgado é dado pelo nº 1, do art. 580º - consiste na repetição de uma causa estando a anterior decidida por sentença que já não admite recurso ordinário[3].
Por sua vez o nº 1, do art. 581º, estabelece que repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, definindo o nº 2 que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, o nº 3 que há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e o nº 4 que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
Para que o caso julgado se imponha, não permitindo nova discussão da questão noutra ação, é necessário que estejam preenchidos os requisitos consagrados no art. 581º - a mencionada tríplice identidade (de sujeitos, pedido e causa de pedir).
Esta exceção dilatória, para além de obstar à propositura de ações inúteis e a originar gastos desnecessários, tem por fim evitar que o tribunal contradiga ou reproduza uma decisão anterior (cfr. nº 2, do art. 580º).
A figura do caso julgado, relativamente à qual vem a ser feita a distinção entre exceção do caso julgado e autoridade do caso julgado, encerrando a primeira a vertente negativa em ordem a evitar-se a repetição de ações (pressupondo, de acordo com o artigo 581.º, a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir) e a segunda traduz a vertente positiva, no sentido de imposição da decisão tomada, tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição, conforme reiterado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/2013, de 17.6, com texto disponível no sítio do próprio Tribunal[4] [5].
“A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis ([1])[6].
Com efeito, a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.
Diferentemente do caso julgado formal – que tem uma eficácia estritamente intraprocessual ([2])[7] – o caso julgado material é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão ou em processos distintos (cf. arts. 619º e 620º do CPC).
A eficácia do caso julgado material – único que releva para a apreciação da questão cuja apreciação ora se suscita – varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.
Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC]. Verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão, destinando-se a excepção a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”[8].
Assim, visa-se evitar que a mesma questão decidida venha a ser, validamente, definida, mais tarde, em termos diferentes pelo mesmo ou por outro tribunal. Pretende-se que o juiz se abstenha de conhecer do fundo da causa, uma vez que já foi julgada outra e evitar eventuais casos julgados contraditórios. O princípio da irrevogabilidade do caso julgado visa assegurar a certeza e a segurança nas relações sociais.
Suscita a recorrente a circunstância de a causa de pedir invocada nesta ação cível ser diversa da que foi alegada nos pedidos cíveis enxertados nas ações penais, pois que nesta a responsabilidade foi analisada à luz dos crimes imputados aos arguidos e no caso dos presentes autos a ação visa a análise dos mesmos factos ilícitos à luz da responsabilidade civil extracontratual dos Réus, gerentes da sociedade.
Para decidir a questão objeto de recurso é necessário, desde logo, atentar no que foi decidido nos processos crime em que foram enxertados os pedidos de indemnização cível pela ora recorrente. Ora, em tais processos os arguidos foram absolvidos dos crimes de que vinham acusados (crimes de falsificação de documento e de burla qualificada), tendo, também, sido julgados improcedentes, por não provados, os pedidos de indemnização cível aí deduzidos pela ora Autora e deles absolvidos os arguidos.
Os pedidos cíveis enxertados nos processos crime fundam-se, exclusivamente, na responsabilidade civil extracontratual dos aqui Réus, aí arguidos, que atuaram na qualidade de gerentes da sociedade aí referida, e não podia deixar de assim o ser, pois que vigora no nosso sistema jurídico o sistema de adesão obrigatória da ação civil à ação penal, na medida em que, segundo dispõe o artigo 71º, do CPP, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
Assim, e em consequência, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal[9].
Daqui resulta que o pedido de indemnização cível terá, sempre, de se basear na responsabilidade civil extracontratual, emergente dos factos ilícitos criminais, prevista nos artigos 483º e seguintes (estando excluída qualquer responsabilidade civil contratual), como resulta do segmento uniformizador do referido Assento nº 7/1999, em que se decidiu: "Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual".
Deste modo e nos referidos termos, sobre o juiz penal impendem limites aos poderes de convolação ou requalificação jurídica da pretensão material formulada pelo lesado no enxerto cível, nos casos de absolvição do arguido[10].
E relativamente ao caso julgado, o artigo 84º, do Código de Processo Penal, determina que a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui caso julgado às sentenças civis, remetendo tal norma para o estatuído no artigo 581º, do CPC, o que significa que ocorre a repetição de causa quando, entre as mesmas partes, houver uma nova ação com o mesmo objeto do litígio, isto é, em que o mesmo pedido e fundado e na mesma causa de pedir.
Vejamos, pois, se entre este processo e os pedidos de indemnização cível, deduzidos nos processos crime, se verifica a tríplice identidade imposta pelo preceito referido, situação em que, na verdade, ocorre a exceção dilatória do caso julgado.
1. Identidade de sujeitos
Estatui o n.º 2 do art. 581.º, que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Como se refere no citado acórdão do STJ de de 24/2/2015, processo 915/09.0TBCBR.C1.S1 “Tem entendido a jurisprudência que «as partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial», não sendo exigível uma correspondência física dos sujeitos nas duas acções e sendo indiferente a posição que os sujeitos assumam em ambos os processos.
Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 1981, pp. 101) entendia, a propósito do significado da expressão “sob o ponto de vista da qualidade jurídica”, que “As partes são as mesmas sob o aspecto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. O que conta, pois, para o efeito da identidade jurídica, é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial”.
Aí se cita “No mesmo sentido, se orientou o acórdão deste Supremo Tribunal, de 24-04-1996, processo n.º 96B120, relatado pelo Conselheiro Costa Marques:
«I - A identidade jurídica dos sujeitos da relação jurídica, não tem, necessariamente, que coincidir com a identidade física, pois o que interessa é que estes actuem como titulares da mesma relação substancial, isto no que toca à litispendência e caso julgado.
II - Ora, nas duas acções em causa, é a mesma relação material controvertida, sendo a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, e há identidade de sujeitos, pois o Conselho Directivo da Comunidade dos Compartes dos Baldios …, actuando em nome próprio nessa relação controvertida nesta acção a mesma posição que nessa mesma relação da acção anterior é ocupada pela Junta de Freguesia …, actuando também em nome próprio, não interessando que esta Junta seja ou não parte legítima, pois a identificação dos sujeitos não tem qualquer relação com o problema da legitimidade».
E, ainda, entre outros, o acórdão deste Supremo tribunal de 2 de Novembro de 2006 (processo n.º 06B3027), relatado pelo Conselheiro Pereira da Silva, em cujo sumário se exarou o seguinte:
«I - O que conta para a avaliação da existência, ou não, do requisito relativo à identidade de sujeitos é a posição das partes quanto à relação jurídica substancial, o serem portadoras do mesmo interesse substancial; tal identidade não fica comprometida ou destruída pelo facto de ocuparem as partes posições opostas em cada um dos processos, acontecer diversidade de forma de processo empregada nas duas acções ou serem de natureza díspar - uma declarativa, outra executiva - as acções em causa.
II - Para haver identidade de pedido, como pressuposto da litispendência, tem que ser o mesmo o direito subjectivo cujo reconhecimento ou protecção se pede, independentemente da sua expressão quantitativa, não sendo, consequentemente, necessária, à luz do prescrito no art. 498.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, rigorosa identidade formal entre os pedidos, antes se mostrando suficiente que seja coincidente o objectivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma das acções».
A agora Relatora defendeu a mesma posição no acórdão de 17 de Junho de 2014 (processo n.º 233/2000.C2.S1), no qual se sumariou o seguinte: (…) IV - Para averiguar o preenchimento do requisito da identidade de sujeitos, deve atender-se, não a critérios formais ou nominais, mas a um ponto de vista substancial, ou seja, ao interesse jurídico que a parte concretamente actuou e actua no processo”.
Assim, verifica-se o requisito da identidade de sujeitos se o interesse jurídico que a parte atua é o que atuou no outro processo.
Para que haja identidade dos sujeitos é necessário que, em ambas as ações Autor e Réu atuem na mesma qualidade jurídica (art. 581º, nº 2), ocupem a mesma posição jurídica quanto à relação substancial, o que, inquestionavelmente, se verifica no caso sub-judice sendo que a aqui Autora deduziu pedido de indemnização cível nos processos crime, figurando como contraparte cada um dos aqui Réus.
Autora e Réus são, nas ações, os titulares da relação jurídica material controvertida, os portadores do mesmo interesse substancial, havendo, por isso, identidade jurídica de sujeitos, além da própria identidade física. Os litigantes são os mesmos na presente ação e na parte cível do processo crime. O interesse jurídico que a Autora aqui pretende fazer valer contra os Réus é precisamente o mesmo, relativo à parte cível, dos processos crime.
Assim, efetivamente, as partes na presente ação cível e na ação cível enxertada nos autos do processo-crime são as mesmas e atuam com a mesma veste jurídica, sendo evidente a verificação de identidade de sujeitos a que se refere o citado n.º 2 do artigo 581.º.
Deste modo, os litigantes neste processo são litigantes nos outros verificando-se a identidade jurídica.
2. Identidade dos pedidos
Estatui o n.º 3 do art. 581.º, que há identidade dos pedidos (ou objetiva) quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Pedido é a providência jurisdicional formulada pelo requerente. É a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar – Manuel Andrade “in” Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 111.
O pedido consiste no efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu através da reconvenção).
Na definição da identidade do pedido, há que atender-se ao objeto da sentença e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem[11].
Identidade de pedido quer dizer identidade de providência jurisdicional solicitada pelo autor [12].
A identidade dos pedidos é perspetivada em função da posição das partes quanto à relação material.
Há identidade de pedidos quando a segunda ação é proposta para exercer o mesmo direito que se está a exercer na primeira.
Existe identidade de pedidos sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, sem que seja de exigir uma adequação integral das pretensões.
Cabe, pois, analisar se há identidade de providência jurisdicional solicitada pela Autora em ambas as ações, bem referindo o tribunal a quo que as partes são, na verdade, portadores do mesmo interesse substancial, independentemente da espécie processual onde seja formulada, sendo que, como se clarifica no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2007 [in CJ- STJ, tomo I, pág. 98 e segs.], há identidade de pedidos se houver coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado”.
A Autora, nesta ação, pede a condenação dos Réus a pagar indemnização. Na anterior ação o pedido era, também, indemnizatório. E para que haja identidade de pedido entre duas ações não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, bastando que sejam coincidentes o objetivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas[13].
No caso há, até total, identidade de pedidos formulados em ambas as ações, já que é a mesma a providência solicitada pela Autora em ambas, a qual passa pelo ressarcimento dos danos causados. É esse o efeito jurídico pretendido pela aqui Autora (requerente da outra ação) em ambas as causas, sendo coincidente o objeto fundamental de que depende o êxito de cada uma das ações.
Ocorre identidade de pedido, pois, numa e noutra causa, a autora pretende obter o mesmo efeito jurídico – a indemnização dos danos causados com a imputada atuação –, sendo, até, para o efeito, indiferente a diversidade dos montantes peticionados para o mesmo ressarcimento numa e noutra acção (cfr. citado acórdão do STJ de 15-03-2001, in CJ/STJ2001-1.º-168)[14], sendo que, contudo, in casu, é, até, coincidente.
Assim, o efeito jurídico que se pretende com a presente ação - indemnização – foi o pretendido com o pedido de indemnização cível deduzido nos processos crime.

3. Identidade de causa de pedir

Estatui o n.º 4, do art. 581º, que há identidade de causas de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo ato ou facto jurídico.
Causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo Autor, que serve de fundamento à ação. É o facto concreto invocado pelo Autor, o acontecimento natural ou a ação humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos. É o princípio gerador do direito, o acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido[15].
A causa de pedir é considerada a mesma “se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis”[16], em concurso real ou aparente.
A qualificação jurídica dada aos factos na primeira ação nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova ação em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação, o que é o corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto e não o facto abstratamente descrito na lei[17].
A causa de pedir não se confunde com a “norma de lei” invocada pela parte, pois a ação identifica-se e individualiza-se, não por essa norma, mas pelos elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal. A causa de pedir – i.e. os elementos de facto que convertem em concreta a vontade legal – não se confunde com a norma invocada, correspondendo, nas ações derivadas de direitos de obrigação, ao facto jurídico de onde nasce o direito de crédito[18].
A causa de pedir não consiste na categoria legal invocada ou no facto jurídico abstrato configurado pela lei, mas, antes, nos concretos factos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor.
A identidade da causa de pedir verifica-se, assim, quando as pretensões formuladas em ambas as ações emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas[19].
Como se refere no Acórdão anteriormente citado “não é somente sobre a pretensão do autor que se forma o caso julgado.
A lei também pretende que a solução dada à pretensão do autor, em função da causa de pedir em que tal pretensão se alicerça, seja respeitada pela força do caso julgado.
Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, entende-se que não é apenas a conclusão ou dispositivo da sentença que tem força de caso julgado, aceitando-se como mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas (os acórdãos deste Supremo, de 10.07.97 – CJ/STJ – 2.º/165; de 27.04.04 – Proc. 04A1060.dgsi.Net; de 20.05.04 – Proc. 04B281.dgsi.Net; de 13.01.05 – Proc. 04B4365.dgsi.Net; de 05.07.05 – Proc. 05ª008.dgsi.Net;e de 08.03.07–CJ/STJ – 1-º/98).
No mesmo sentido, Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pp. 578-579) afirma que «Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressuposto daquela decisão».
O art. 581.º do CPC coloca os dois requisitos da identidade objectiva – pedido e causa de pedir – precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção e alcance.
Factos e pedido são portanto sempre partes do objecto do processo de igual valor e importância. É esta a ideia central defendida pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, e aceite por Castro Mendes, segundo a qual «o caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos» (Cf. Schwab, Der Streitgegenstand, p. 148, apud Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, 1968, pp. 161-162 e Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozess-recht, 15. Auflage, München, 1983, p. 532).
O objecto do processo é necessariamente dual, pois sem causa de pedir não há individualização da pretensão processual e sem pedido não existe requisição de tutela jurisdicional para a pretensão processual individualizada (cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ,1983, Abril, n.º 325, p. 105).
«Entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão delimitada e a pretensão delimitada individualiza a causa de pedir. Esta reciprocidade permite determinar a causa de pedir em razão da pretensão processual individualizada e a pretensão processual individualizada em razão da causa de pedir, estabelecendo-se entre ambas uma relação de implicação mútua» (cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença…ob. cit., p. 106).
Conforme afirma Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, p. 712 e 714), «É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado» e «a eficácia do caso julgado, como se depreende do art. 498.º, apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (art. 659.º, n.º 2, in fine, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir»”.
E bem salienta o Tribunal a quo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.02.2009 [in CJ, tomo 1, pág. 301 e segs.]: «Se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo procedente (os objectos de ambos os processos coincidem integralmente …) verifica-se a excepção do caso julgado;
Se pelo contrário o objecto do processo procedente não abarca esgotantemente o objecto do processo subsequente e neste existe extensão não abrangida no objecto do processo precedente (…) ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objectos, verifica-se a autoridade do caso julgado» e refere, como vimos, “como é atualmente entendimento dominante na Doutrina e Jurisprudência, o caso julgado, como exceção e autoridade, não abrange apenas a parte decisória da sentença ou despacho, abrange também os fundamentos [de facto e de direito] pressupostos da parte dispositiva”, citando Teixeira de Sousa que escreve “[em Estudos Sobre o Processo Civil, pág. 578] «não é a decisão, enquanto silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo»” e mencionando os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 09.05.1996 [in CJ-STJ, tomo II, pág. 55] e de 13.07.2010 [proferido no processo n.º 464/05.6TBCBT-C.G1.S1, disponível para consulta em http//www.dgsi.pt] que decidiu: «Na perspectiva do respeito pela autoridade do caso julgado, isto é, da aferição do âmbito e limites da decisão ou dos “termos em que se julga” (art. 673.º CPC - atual art. 621.º do Código de Processo Civil), entende-se que a determinação dos limites do caso julgado e sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado»”.
Bem refere o Tribunal a quo “São possíveis, teórica e praticamente, dois conceitos de causa de pedir. A nossa lei consagrou a denominada teoria da substanciação, ou seja, a causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito [cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág.204 e segs.].
Como ensinava Alberto dos Reis [em Código Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 121] «há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal. Daí vem que a simples alteração do ponto de vista jurídico não implica alteração da causa de pedir»”.
No caso, como vimos, não se suscitando dúvidas quanto à identidade das partes e à identidade do pedido nas duas ações - na instância cível enxertada nos processos crime e na presente ação -, também se nos não suscita quanto à identidade de causa de pedir em que a recorrente baseia o pedido de condenação dos recorridos, pese embora o que conclui a apelante nas suas alegações de recurso.
Acolheu, na verdade, a nossa lei a “teoria da substanciação, segundo a qual a causa de pedir é constituída pelo conjunto de factos que permitem individualizar a situação jurídica alegada, devendo mostrar-se subsumíveis à norma jurídica (ou normas) de que decorra o efeito de direito material pretendido. Por isso que o nº4, do artigo 581º estabelece que só se verifica identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções proceda do mesmo facto jurídico”[20].
Ora, revertendo para o caso, constata-se da petição inicial que o pedido formulado nesta ação se funda em responsabilidade civil extracontratual sendo imputados aos Réus os factos ilícitos e culposos que constituíram a causa de pedir dos pedidos de indemnização cível deduzidos nos processos crime.
Verifica-se identidade de causa de pedir, pois que, na verdade, alega a autora, como factos jurídicos de onde emerge a pretensão que formula, os que preenchem responsabilidade civil extracontratual, por si anteriormente alegados e já apreciados nos processos crime. Bem considerou o Tribunal a quo que as anteriores ações, em que foi deduzido pedido cível, tinham por fundamento a responsabilidade por factos ilícitos ou delitual, sendo que os pressupostos da mesma, nelas analisados, não resultaram provados (cfr. decisões proferidas nos processos crime juntas aos autos), desde logo considerados foram não provados os alegados factos referentes à ilicitude e à culpa.
Nas mencionadas decisões foi apreciada a responsabilidade civil dos aí arguidos, aqui recorridos, pelos alegados atos ilícitos que praticaram enquanto gerentes da E…, Lda. à luz das disposições invocadas pela A., ora recorrente, para sustentar a sua pretensão – cfr. artigo 483.º, do Código Civil. E a improcedência dos pedidos de indemnização cível deduzidos pela aí assistente, ora apelante, não resultou, tão só, do facto de os ali arguidos, aqui recorridos não terem sido condenados pela prática dos crimes por que foram pronunciados naquelas ações, resultou, sim, e antes de mais, de se não terem provado os factos ilícitos e culposos alegados.
As instâncias criminais referidas nos autos, mais do que conhecerem dos crimes, conheceram e decidiram as condutas que a recorrente imputa aos recorridos e decidido foi que se não provaram os invocados factos ilícitos que aos mesmos foram imputados na qualidade gerentes da E…, Lda., bem se decidindo pela falta de preenchimento, no caso, dos pressupostos da responsabilidade civil extra contratual com base nos alegados factos ilícitos e culposos, invocados a densificar a causa de pedir dos pedidos de indemnização cível, também a causa de pedir da presente ação. São os factos os mesmos e a mesma é, também, a responsabilidade que se pretende efetivar.
Tendo sido deduzidos e apreciados, em ambos os processos crime, pedidos de indemnização cível com fundamento no disposto no art. 483.º, do Código Civil, dúvidas não restam que, também, a responsabilidade civil por factos ilícitos dos Réus, nas vestes com que, alegadamente, atuaram, ali foi apreciada e do pedido cível deduzido, também os arguidos, os aqui réus, foram absolvidos.
Bem considerou o Tribunal a quo ser a factualidade que serviu de fundamento aos pedidos cíveis, no essencial, a matéria de facto alegada nos presentes autos, o que é expressamente afirmado pela própria apelante, logo na petição inicial, e, consequentemente, bem concluiu pela repetição da causa bem referindo que “não admitir esta conclusão, com o pretexto de que nos processos crime apenas se julgou a responsabilidade criminal, quando nos mesmos foram deduzidos e apreciados pedidos cíveis, seria uma violação da finalidade do art. 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil” e violaria, ainda, o 84.°, do Código de Processo Penal, bem citando que «a identidade do pedido, pressuposta pela exceção de caso julgado, não pode deixar de atender ao objeto da sentença anterior e às relações de implicação dele decorrentes, bem como à interpretação que o tribunal fez dos fundamentos invocados pelas partes[21] ».
Assim, decidida se mostra, pois, definitivamente, a questão, cumprindo referir que não se trata de saber o que devia ter sido decidido no processo crime e o não foi e do que se pode ou não nele tratar relativamente ao pedido de indemnização cível mas sim o que, em concreto, se decidiu, com transito em julgado.
E, como vimos, a causa de pedir é um facto concreto, não o facto abstratamente descrito na lei. Tendo o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes sido alegado no primeiro processo (os processos crime), permitindo nele identificar as normas aplicáveis, a causa de pedir de ambas as causas (a anterior e esta) é a mesma. Acresce que, como vimos, a qualificação jurídica dada aos factos na ação já decidida não é elemento identificador do caso julgado. Assim se decidiu no Acórdão do STJ de 5/5/2016, Processo 236/05: Sumários, maio/2016, p. 13 onde se refere I. Para concluir da possibilidade da formação do caso julgado pela decisão do pedido de indemnização no processo penal, assim como de um modo geral da excepção da autoridade do caso julgado, impõe-se averiguar da tríplice identidade estabelecida nos arts 580º, nº1 e 581º, nº2 a 4, do CPC. II. Se as circunstâncias em que explicitamente foi proferida a decisão da primitiva acção, já tinham como pressuposto a decisão implícita para que apontam os pedidos deduzidos na segunda acção, devem considerar-se resolvidas todas as questões cuja solução é, logicamente, necessária para chegar á solução expressa na decisão. III. Uma decisão fundada em certos e determinados factos impede que uma nova acção aprecie o mesmo objecto processual referido a esses mesmos factos, a essas mesmas ocorrências da vida real (a causa de pedir), ainda que os Autores no segundo processo pretendam deles extrair uma total ou parcialmente diferente qualificação jurídica [22], situação que se verifica no caso em análise.
Também no Acórdão do STJ de 26/5/2015, Processo 424/07: Sumários, 2015, p. 300 se decidiu que se as causas de pedir – tanto na acção cível destinada ao ressarcimento dos danos ocasionados pela acção ilícita, causal e culposa do oponente, como no requerimento de adesão da acção cível ao processo crime – são as mesmas, bem como os pedidos sobre que incidiu a discussão dos litígios pretendem obter a mesma tutela jurisdicional, não pode a causa repetir-se, sob pena de violação do princípio de não repetição da causa já julgada, verificando-se a exceção do caso julgado [23].
Assim, na verdade, in casu, verificam-se todos os requisitos para a procedência da exceção de caso julgado, como bem sustentam os réus/recorridos. As partes, além de serem as mesmas do ponto de vista físico, num e noutro processo, são as mesmas do ponto de vista jurídico. No pedido de indemnização civil deduzido nos processos-crime referidos em 1 e 2 a apelante demandou os mesmos réus dos presentes autos, pretendendo obter a satisfação do interesse que pretende agora satisfazer - ser indemnizada pelos danos que alega ter sofrido com a atuação ilícita dos réus, gerentes da sociedade em causa. O interesse substancial da aqui Autora é o mesmo da requerente do pedido de indemnização cível naqueles outros autos, pelo que existe identidade de sujeitos num e noutro processo. Existe, também, identidade do pedido, uma vez que em ambos os casos se pretende obter o mesmo efeito jurídico – ressarcimento dos danos. As indemnizações peticionadas visam, em sede de responsabilidade civil, a reparação do dano, pelos mesmos factos. As sentenças proferidas nos processos crime abrangeram a apreciação de factos que permitiam a qualificação e subsunção na responsabilidade civil extracontratual, esgotando todas as possibilidades de apreciação do direito da autora. Também há identidade de causa de pedir já que a pretensão em ambas as ações radica nos mesmos factos concretos.
Vista a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela Doutrina e Jurisprudência e aplicando-a ao caso concreto conclui-se que, no caso sub judice, estamos perante ações com vista a fazer valer pretensões indemnizatórias cíveis em que, em ambas:
- as partes ocupam a mesma posição ativa (Autora/Requerente) e passiva (Réus/Requeridos) e com a mesma qualidade jurídica;
- o pedido (efeito que se pretende obter) é o mesmo – ressarcimento de danos decorrentes de violação do mesmo direito subjetivo;
- os factos em que a (aqui) Autora e Requerente (das pretensões civeis) alicerçou a sua causa de pedir (facto jurídico de que emerge o direito) são os mesmos: a concreta situação da vida descrita em ambos os processos e já efetivamente conhecida e definitivamente decidida.
Nestes termos, bem se decidiu que em ambas as mencionadas ações estamos perante a mesma relação jurídica, verificando-se a identidade de sujeitos, de pedidos e, também, de causa de pedir.
Verifica-se, assim, a tríplice identidade imposta pelo nº 1, do art. 581º, havendo, por isso, caso julgado material (cfr. art. 84º, do CPP), exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e leva à absolvição dos Réus da instância (arts 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278º nº1, al. e)).
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Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 12 de abril de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Ac. STJ de 24/2/2015, processo 915/09.0TBCBR.C1.S1, in dgsi.net
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág 600
[3] Embora, como refere no citado Ac. STJ de 24/2/2015 “O alcance do caso julgado, por razões de certeza e de segurança jurídica e de prestígio dos tribunais, não se limita aos estreitos contornos definidos, nos artigos 580.º e seguintes do CPC, para a excepção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que apesar da ausência formal de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente”.
[4] Ac. STJ de 29/5/2014, proc. 1722/12.9TBBCL.G1.S1, in dgsi.net
[5] Cfr Ac. do STJ de 30/3/2017, proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1 relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro Tomé Gomes, in dgsi.net onde bem se esclarece e distingue “Segundo (…) Manuel de Andrade (…) o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos:
a) – o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”;
b) – e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”.
Nas lúcidas palavras daquele Autor:
«O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.
Vê-se portanto que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke)»
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina[10] quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Quanto à função negativa ou exceção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, têm de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.
Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade[11]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[12].
Todavia, quanto à identidade objetiva, segundo Castro Mendes[13]:
«(…) se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos»
Para aquele Autor, constitui problema delicado a “relevância do caso julgado em processo civil posterior, quando nesse processo a questão sobre a qual o caso julgado se formou desempenha a função de questão fundamental ou mesmo de questão secundária ou instrumental, não de thema decidenum.[14]
Apesar disso, considera[15] que:
«Base jurídica para afirmarmos que, havendo caso julgado e levantando-se num processo civil seguinte inter easdem personas a questão sobre a qual este recaiu, mas levantando-se como questão fundamental ou instrumental e não como thema decidendum (não sendo, pois, de usar a excepção de caso julgado), o juiz do processo novo está vinculado à decisão anterior, é apenas o artigo 671.º n.º 1, na medida em que fala de força obrigatória fora do processo, sem restrição, e ainda a ponderação das consequências a que essa falta de vinculação conduziria.»
E observa[16] que:
«O respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual que vem já dos tempos de Roma. Não nos parece estar em causa no direito português. Só nos parece inconveniente que o seu fundamento seja apenas o vago e genérico art.º 671.º n.º 1.
A vinculação do juiz ao caso julgado quando a questão respectiva seja levantada como fundamental ou instrumental baseia-se, evidentemente, na função positiva do caso julgado. De iure condito, a excepção de caso julgado, quando peremptória nos termos do art.º 496.º, alínea a), desenvolve igualmente a função positiva do caos julgado.»[17]
Também Lebre de Freitas e outros[18] consideram que:
«(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.»
Em suma, a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido, como se refere no acórdão recorrido, que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”.
[6] O caso julgado visa, essencialmente, obstar a que «o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 391 e s).
[7] Só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida.
[8] Ac. RC de 22/9/2015, proc. 101/14.8TBMGL.C1, in dgsi.net
[9] Cfr. Assento nº 7/1999, de 17.06.1999, publicado no DR Diário da República nº 179/1999, Série l-A de 03.08.1999 (hoje com força de acórdão de uniformização de jurisprudência"), e Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal”, Volume 1, página 107, citados no Ac. STJ de 14/5/2019, proc. 625/17.5T8BGC.G1.S2 (Relator: Senhor Juiz Conselheiro Henrique Araújo)
[10] Ac. STJ de 26.09.2013, proc. Nº 1202/11.0TBBRG.Gl.Sl (Conselheiro Lopes do Rego), em www.dgsi.pt, também citado no acórdão anteriormente referido.
[11] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág 593
[12] Aberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 107
[13] Calvão da Silva, Estudos de Direito Civil e Processo Civil 1996, pag. 234
[14] Para que haja identidade de pedido entre duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal entre um e outro, bastando que sejam coincidentes o objectivo fundamental de que dependa o êxito de cada uma delas (J. Calvão da Silva, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil, 1996, pág. 234).
[15] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág 597
[16] Ibidem, pág 598
[17] Ibidem, pág 599
[18] Ac. STJ de 3/11/2016, proc. 315/15.3T8VRL.G1.S1, in dgsi.net
[19] Ac. STJ de 24/2/2015, proc. 915/09.0TBCBR.C1.S1, in dgsi.net
[20] Ac. do STJ de 14/5/2019, proc. 625/17.5T8BGC.G1.S2 (Relator: Senhor Juiz Conselheiro Henrique Araújo)
[21] Ac. RC, de 10.11.2009, in dgsi.pt
[22] Acórdão do STJ de 5/5/2016, Processo 236/05: Sumários, Maio/2016, p. 13, citado in Abílio Neto Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março 2017, Ediforum, pág 781
[23] Acórdão do STJ de 26/5/2015, Processo 424/07: Sumários, 2015, p. 300 citado in Abílio Neto Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março 2017, Ediforum, pág 780