Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
492/09.2PJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: EVASÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20110316492/09.2PJPRT.P1
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não comete o crime de evasão do art. 352º do Código Penal aquele que, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção da obrigação de permanência na habitação, viola essa obrigação, abandonando a casa onde cumpria a medida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 492/09.2 PJPRT.P1

Tribunal da Relação do Porto
(2ª Secção Criminal – 4ª Secção Judicial)

Origem: 1ª Vara Criminal do Porto

Espécie: recurso penal (acórdão)

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

No processo supra identificado, por acórdão datado de 28/09/2010, depositado na mesma data, decidiu-se julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação, e, em consequência:

– absolver a arguida B… da autoria de um crime de evasão;

– condenar a mesma arguida, pela autoria de um crime continuado de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30º do Código Penal e 21º, nº 1, do Dec-lei nº 15/93, de 22/01, na pena de cinco anos de prisão efectiva.

Inconformado com a sobredita decisão, veio o Ministério Público interpôr recurso da mesma, nos termos constantes de fls. 651 a 660 dos autos, aqui tidos como especificados.

Na motivação apresentada formulou as seguintes conclusões (transcrição):
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Não houve resposta.

O recurso foi regularmente admitido (cfr. fls. 662 dos autos).

Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer junto a fls. 682 a 684 dos autos, aqui tido como renovado, concluindo no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi aduzido.

Após exame preliminar, colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, nada obstando a tal.

II – Fundamentação:

a) a decisão recorrida:
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b) – apreciação do mérito:

Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal[2].
Anote-se, em sede de conclusões, que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma singular questão a tratar.

Neste contexto, face às conclusões apresentadas pelo Ilustre recorrente, importa saber apenas se a arguida também deve ser condenada pelo imputado crime de evasão, com a inerente alteração da fixada pena (única questão a tratar).

Vejamos, pois.

Antes de nos debruçarmos sobre a erigida questão, diremos que não se vislumbra que a decisão recorrida padeça de qualquer um dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, ou de qualquer outro que, também de conhecimento oficioso, igualmente a pudesse inquinar, pelo que, e na ausência de impugnação da matéria de facto, sedimentaram-se todos os factos ali fixados, bem como as inerentes consequências jurídicas aqui não questionadas.

Isto posto.

Pegando agora na questão trazida à discussão, entende o Ilustre recorrente que, contrariamente à tese vertida na decisão recorrida, que, sufragando a posição de Cristina Monteiro no Comentário Conimbricense do Código Penal, considera que o bem jurídico protegido com o crime de evasão é a segurança da custódia oficial e que não está sujeito a tal custódia o agente a quem foi aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, estão perfectibilizados os elementos típicos do crime de evasão, em termos que explicita, pelo que preconiza que a arguida deveria ter sido condenada também por esse verificado ilícito, com a inerente alteração da pena fixada, impondo-se a aplicação de adequada pena e ulterior pena única.

Razões de tal:

– a singela formulação do artigo 352º do Código Penal, da qual decorre que comete o crime quem, por decisão judicial, está privado da sua liberdade, independentemente do meio, modo ou circunstância ou alcance em que está coarctada a sua capacidade de se movimentar, o seu direito a ser livre;

– o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque que, no Comentário do Código de Processo Penal, edição da Universidade Católica, 2008, pág. 829, sustenta que “Por decisões privativas de liberdade deve entender-se todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias...” e “Também está incluída a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coacção seja como pena”, o que, resulta, em seu entendimento, da substituição da expressão “pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reacções criminais privativas de liberdade” ocorrida com a reforma do Código Penal de 1995, assinalando ainda, na esteira da posição de Maia Gonçalves, no seu Código Penal Português, que a alteração visou precisamente o alargamento da âmbito da tipicidade de modo a incluir todas as formas de privação de liberdade, como ressalta com exuberância das salientadas actas do Código Penal de Figueiredo Dias;

– o argumento de que o entendimento vertido no acórdão consiste em ler no texto da lei aquilo que manifestamente lá não está e que o legislador deliberadamente não quis que ficasse e em interpretar a lei como se esta não tivesse sofrido alterações, num conservadorismo interpretativo que não tem o mínimo acolhimento no texto, à revelia do artigo 9º, nº 1, do Código Civil;

– a sustentação de que, além do sentido do entendimento acolhido no acórdão não merecer guarida no texto legal e contrariar o pensamento legislativo vertido nas actas, a solução propugnada é aquela que está de acordo com a unidade do sistema jurídico, uma vez que para todos os efeitos a obrigação de permanência na habitação, enquanto medida coactiva, foi equiparada à prisão, seja para contagem do tempo de prisão (art. 80°, do CP), seja para verificação dos pressupostos de aplicação ou ainda para efeitos de reexame dos mesmos pressupostos (arts. 193°, n°2 e 213°, respectivamente, ambos do CPP);

– finalmente, a ideia de que o argumento esgrimido no acórdão de que o incumprimento desta medida coactiva tem como “sanção” a prisão preventiva, no que liquidava o paralelismo entre as duas situações, não deve proceder, pois que ao permitir que o arguido, no aconchego da sua casa, eventualmente no conforto e companhia dos que lhe são queridos e, manifestamente, num meio bem menos opressivo e limitativo que uma prisão, aí aguarde o decurso do processo como se, para todos os efeitos, estivesse em Estabelecimento Prisional, o Estado deve ser tão exigente com o cumprimento dessa obrigação como é com um preso “convencional”, configurando o entendimento diferente um tratamento injustificado de favor a quem já de si se encontra numa situação de privilégio, nada o justificando, nem a lei o consentindo.

Embora anotando a valia e sustentação doutrinária da precedente argumentação, o Ex.mo PGA veio rebater a solução ali preconizada, adiantando, para tanto, e em síntese, que:

– comparando os dois regimes, o originalmente consagrado no código de 1982, aprovado pelo Dec-lei 400/82, de 23/9, com o regime que resulta do Código Penal actual, segundo a alteração aprovada pelo Dec-lei 48/95, de 15/3, verifica-se que a expressão “legalmente privado da liberdade” substituiu o conjunto de expressões “encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei, de detenção, internamento, ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando a sua remoção ou transferência ...”, pelo que a questão está em saber se o novo texto, além da alteração da terminologia, pretendeu alterar o âmbito da previsão, alargando-a a situações que estão para além das tipificadas na anterior redacção, concretamente à obrigação de permanência na habitação prevista no artigo 201º do actual Código de Processo Penal, ou, em maior pormenor, se a expressão “legalmente” tem âmbito diferente da expressão “imposta nos termos da lei”.

– não nos parece que o termo “legalmente” possa corresponder a realidades distintas das previstas na expressão “imposta nos termos da lei”, porque não vislumbramos quais as situações de privação de liberdade que possam resultar directamente da lei, sem que, entre a lei e a sua aplicação, não aconteça de permeio uma imposição, pelo que, neste sentido não é significativa, quanto às realidades a que se aplicam, a diferença entre os dois textos;

– depois, o legislador manteve a distinção entre “privação da liberdade” e “limitação da liberdade”, a primeira prevista no artigo 352 e a segunda no artigo 353, relativa às obrigações agora expressas na referência a proibições ou interdições, porém, impostas por sentença, e mesmo nas formas de cumprimento das penas o legislador distingue “prisão” de “dias livres” em que a privação da liberdade alterna com os dias de liberdade (ver artigo 45 n°s 1 e 2) e “privação da liberdade” com as “saídas” necessárias ao cumprimento das obrigações que transforma a detenção em semidetenção (ver artigo 46);

– esta distinção força-nos a prestar atenção aos conceitos de privação de liberdade e de limitação de liberdade e ainda ao conceito de evasão; a obrigação de permanência na habitação é por definição uma “obrigação” e como tal não é uma “privação”, e como obrigação é mera limitação da liberdade e não privação da liberdade, pelo que de uma forma muito simples se evidencia a distinção entre as duas situações: na obrigação de permanência na habitação, enquanto mera obrigação, o seu cumprimento está ainda na esfera da liberdade de obedecer de quem a ela está sujeito;

– o incumprimento da obrigação de permanência na habitação tem como consequência a agravação da medida coactiva, nos termos do artigo 203º do Código de Processo Penal;

– já no domínio da anterior redacção, em anotação ao artigo 393º, no código anotado pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito do Porto, se dizia que “Não abrange os deveres impostos no caso de liberdade provisória, suspensão da execução da pena ou condenação em regime de prova. Para estes casos, a lei prevê uma sanção que não se compadece com a instauração cumulativa de procedimento criminal pelo crime previsto no artigo 393 — v. art° 285-A do CPP e art° 50°, 51°, 56° e 57º do C.P.)”;

– o conceito de evasão também se não compadece com a situação em que o cumprimento ou incumprimento depende da liberdade de agir (obedecer ou desobedecer) de quem está sujeito a uma obrigação, antes pressupõe uma vigilância efectiva de cumprimento, corporizada na proximidade de alguém (quando se não traduza em reclusão) e dirigida à privação da liberdade, que se não verifica na obrigação de permanência na habitação.

Apreciando.

Cotejando a tríplice argumentação aqui em apreço, pois que a vertida no acórdão recorrido é também algo diversa da ora sustentada pelo Ex.mo PGA, ainda que o resultado final seja o mesmo, fácil será perceber, por um lado, a dificuldade subjacente à análise do tipo legal em presença e, doutra parte, a similar valia da diversa argumentação aqui em disputa.
Ora bem.
Como não podia deixar de ser, cremos que o ponto de partida desta discussão há-de radicar na letra da lei, pois que, como é sabido, e o recorrente salienta, não poderá sustentar-se interpretação que não tenha um mínimo de assento na lei, ou, nas palavras de Ferrara, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efectivamente, o texto da lei forma o substracto de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o intérprete há-de começar por extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua natural conexão e as regras gramaticais”[3].
Assim, convém desde logo reter que o artigo 352º, nº 1, do Código Penal, estipula que “Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até dois anos”.
Depois, e ainda adentro deste mesmo critério de interpretação, importa saber se as palavras aqui utilizadas contêm um sentido normal (uso linguístico comum), revestem uma acepção técnica que não corresponde ao seu significado popular ou traduzem um uso linguístico individual do próprio legislador.
Cremos que a expressão “legalmente privado da liberdade” encerra um claro sentido técnico-jurídico, o mesmo não sucedendo com o termo “evadir”, pois que este corporiza a linguagem normal ou comum.
Ora, se é pacífico que “evadir” significa escapar, iludir ou fugir às ocultas[4], já a expressão “legalmente privado da liberdade” poderá suportar várias interpretações, incluindo a que sustenta o recorrente, ou seja, que ali se engloba quem, por decisão judicial, está privado da sua liberdade, independentemente do meio, modo ou circunstância ou alcance em que está coarctada a sua capacidade de se movimentar, o seu direito a ser livre, ou, na aportada tese de Paulo Pinto de Albuquerque, que as decisões privativas de liberdade englobam todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias, pelo que ali também estará incluída a obrigação de permanência na habitação, doravante, OPH, seja como medida de coacção, seja como pena.
Porém, e atendo-nos à sobredita interpretação literal, cremos difícil compaginar o escapar ou fugir às ocultas com a “guarda de si próprio” que a OPH encerra, mormente quando não acompanhada de vigilância electrónica, tal como sucedia “in casu”.
Contudo, e embora o texto legal pareça propender para a não aceitação da tese do recorrente, tal objectiva dificuldade não tem a virtualidade de resolver decisivamente a questão, pois que não esclarece de forma inequívoca a pretendida abrangência do tipo em questão, o que, tornando insuficiente o elemento literal, nos obriga a percorrer outros elementos de interpretação.
Assim, importa ponderar, desde logo, a interpretação lógica ou racional, “…que remonta ao espírito da disposição, inferindo-o dos factores racionais que a inspiraram, da génese histórica que a prende a leis anteriores, da conexão que a enlaça às outras normas e de todo o sistema”.
No seio desta, deve tentar apreender-se a “ratio juris” da norma em questão, o seu fundamento jurídico, ou seja, as relações da vida para cuja regulamentação a norma foi criada, sem esquecer, se for esse o caso, a “occasio legis”, e tendo presente que “a ratio legis é uma força vigente móvel que anima a disposição, acompanhando-a em toda a sua vida e desenvolvimento”, o que significa que a disposição “…pode ganhar com o tempo um sentido novo e aplicar-se a novos casos” – interpretação evolutiva. A par, e porque o sobredito elemento racional é falível, não deverão esquecer-se os elementos sistemático, já que “O direito objectivo … não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio”, e histórico, pois que a origem histórica da norma, associada ao seu desenvolvimento e transformações, constitui um precioso auxílio para a sua plena inteligência[5].
Analisando tais vectores interpretativos, convém reter que as fontes da disposição aqui em apreço remetem-nos para os artigos 191º e 196º, ambos do Código Penal de 1886, sendo que o primeiro aludia à evasão de detidos e o segundo à evasão de preso condenado.
Posteriormente, o Código Penal de 1982 veio regular tal matéria no capítulo “Dos crimes contra a autoridade pública” e, dentro destes, na secção “Da tirada, evasão de presos e não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal” (artigos 389º a 395º), inserção que se mantém na sua versão actual (artigos 349º a 354º).
Daqui decorre, desde logo, que aqui se pretende genericamente salvaguardar a autoridade pública e as decisões judiciais.
Resta saber se o específico bem jurídico em presença é a autoridade pública do sistema estadual de justiça, quando profere decisões de privação da liberdade, tal como sustenta Paulo Pinto de Albuquerque[6], ou apenas a segurança dos estabelecimentos onde se executam medidas privativas da liberdade, ou seja, e agora na tese de Cristina Líbano Monteiro, a segurança da custódia oficial, enquanto materialização da autonomia intencional do Estado ao nível da condição última de efectividade de decisões penais[7].
Ora, como vimos, a análise meramente literal pouco permitia explicar relativamente à eventual pretensão de alargar a abrangência do tipo em questão, pois que permitia apenas sublinhar que era difícil compaginar o “escapar” ou “fugir às ocultas” com a “guarda de si próprio” que a OPH encerra, mormente quando não acompanhada de vigilância electrónica. O que, obviamente, não era um argumento decisivo.
Sabemos, porém, que a expressão “legalmente privado da liberdade” veio substituir a expressão anterior “legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reacções criminais privativas da liberdade”, o que, objectivamente, permite abarcar qualquer das teses aqui em disputa.
E, sempre no imperioso avanço interpretativo, descortinamos também o que consta das actas de revisão do Código Penal, de onde resulta que o Prof. Figueiredo Dias esclareceu que “pessoa legalmente privada de liberdade” está utilizada no sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação.
No entanto, as actas não têm um valor decisivo, mas meramente indiciário de certa vontade legislativa e, por isso, não vinculativo, muito menos “a se”.
Por outro lado, da análise da sobredita inserção sistemática decorre, objectivamente, até pelos tipos que precedem este ilícito, que a evasão implicará necessariamente a custódia oficial.
E se conjugarmos a sistemática também com a própria natureza da medida em questão, então teremos de concluir que a mesma há-de escapar a uma tal previsão legal.
Na verdade, e tal como resulta expressamente do próprio artigo 201º, do Código de Processo Penal, a OPH é uma mera obrigação, ainda que possa ser controlada à distância através de adequados meios técnicos, cujo incumprimento pode determinar a aplicação da prisão preventiva, estipula o artigo 203º, nº 2, do Código de Processo Penal (a anterior redacção deste preceito, vigente até à recente entrada em vigor da Lei nº 26/2010, de 30/08, era até exclusiva da OPH), sendo esta a única consequência visionável decorrente do seu incumprimento. Se assim não fosse, então o legislador teria que o ter esclarecido no texto respectivo, anotando que um tal agravamento seria ponderado, sem prejuízo da correspondente responsabilidade criminal. E, relembre-se, sem um mínimo de expressão escrita, não há correspondência possível.
Cremos, até, que uma tal omissão terá sido deliberada, pois que o legislador não ignorava que se assim fosse estaria a sancionar duplamente uma mesma conduta, o que poderia comprometer a sua intrínseca legitimidade/validade (vide a “ratio” do princípio “ne bis in idem”).
E não pode sustentar-se, tal como pretende o recorrente, que a equiparação à prisão preventiva que o legislador emprestou à OPH encerra a ideia de que as medidas são idênticas e, por isso, não poderá fazer-se qualquer distinção em sede de incumprimento, sob pena de estarmos a beneficiar quem já está apenas com a OPH, o que constituiria um duplo privilégio, já que este argumento, além de não ser decisivo, é perfeitamente reversível.
De facto, e por um lado, se o legislador teve necessidade de equiparar é porque estava perante realidades diferentes[8]. Ilação óbvia.
Depois, não pode aceitar-se que esta medida de OPH seja um privilégio, pois que encerra uma subjacente filosofia específica condizente com a “fuga” ao estigma da prisão, razão pela qual o legislador decidiu estendê-la, recentemente, à própria execução de algumas penas curtas (cfr. artigo 44º, do Código Penal). E também aqui, anote-se, previu que a revogação de tal medida, na qual se incluiu também a faceta decorrente do incumprimento, implica apenas o cumprimento da fixada pena de prisão. E uma vez mais também teve necessidade de a equiparar para efeitos de desconto no respectivo cômputo (vide, nº 4 do assinalado dispositivo). Ambos argumentos em prol da nossa argumentação, anotando-se que aqui são mais decisivos, pois que estamos já a falar de cumprimento de pena, pelo que, se o legislador assim o quisesse, teria previsto também a eventual responsabilização criminal no caso de abandono do local de cumprimento.
De resto, a ausência de específica previsão legal colidiria sempre com a previsão do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, por este prisma, a sobredita sustentação do crime de evasão seria de duvidosa legalidade/constitucionalidade.
Acresce que, e mesmo na citada tese de Paulo Pinto de Albuquerque, seria difícil sustentar que possibilitando a OPH a saída do arguido, v.g, para trabalhar, para estudar, etc…, uma tal obrigação, mormente quando desacompanhada de qualquer controlo à distância, não seja afinal uma medida aberta, equiparada ao regime aberto virado para o exterior, e em que, por isso, não existe uma efectiva e permanente privação fáctica da liberdade[9].
Por último, cremos que a nossa Lei Fundamental também não permite considerar a OPH como uma efectiva privação da liberdade, pois que, ao contrário da prisão preventiva, não a incluiu no seu artigo 27º, aqui se aceitando apenas como tal a privação resultante de condenação transitada que implique aplicação de pena de prisão ou de medida de segurança ou outras situações pontuais ali expressamente previstas. O que significa que se considerássemos a OPH no conceito “legalmente privado da liberdade” previsto no artigo 352º, nº 1, do Código Penal, estaríamos, no mínimo, a proceder a uma interpretação violadora da Constituição da República Portuguesa e, por isso, ilegal/inconstitucional. O que não nos parece ser de sustentar.
Neste mesmo sentido, afirma Germano Marques da Silva que “No direito português não é possível considerar a obrigação de permanência na habitação como uma espécie de privação da liberdade, de prisão domiciliária, pois a Constituição não o consente (art. 27º da CRP) e consequentemente a violação da obrigação de permanência não constitui o crime de evasão, p.p. pelo art. 352º do Código Penal, nem é a admissível a guarda permanente da habitação por autoridade policial para impedir o incumprimento da medida, o que a acontecer representaria efectiva privação da liberdade fora dos casos em que a Constituição a admite”, sustentando ainda que a fiscalização do cumprimento da medida através de controlo à distância não é o mesmo que constrição ao seu cumprimento[10].
Ainda que um tanto “a laterae”, permitimo-nos anotar ainda que, sendo a liberdade um bem precioso, e constituindo a “fuga” à prisão um “quase” estado de necessidade para o detido, resta ao Estado conseguir deter e, depois, vigiar os seus presos. Assim, pretender que quem está sujeito à OPH, mormente sem vigilância alguma, deva “guardar-se a si próprio”, além de contrariar aquela ancestral tarefa monopolista do Estado, constituiria como que a imposição de um ilegal (nulo) contrato a celebrar consigo próprio. O que, obviamente, não preconizamos, podendo anotar-se ainda que tal imposição seria ontologicamente “contranatura”, pois que, tal como afirma Cristina Líbano Monteiro[11], “… não se negará que estar preso na sua pessoa cria uma situação de fragilidade tamanha, uma ânsia de retorno à condição natural de homem livre…”, pelo que, adianta, “Pôr aos ombros indigentes de quem se encontra privado da liberdade o pesado dever (criminalmente acautelado) de não atentar contra esse estado parece excessivo”. E daí que “A guarda existe precisamente para neutralizar anseios irreprimíveis de libertação”.
Em suma: tudo razões para concordarmos com o decidido que, por isso, deverá manter-se, com a inerente improcedência do recurso interposto, pese embora a valia da sua argumentação e o inquestionável empenho e brio ali depositados.
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III – Dispositivo:

Pelo exposto, os juízes desta relação acordam em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, em consequência do que, e nos moldes sobreditos, decidem manter a decisão recorrida relativamente à absolvição da arguida quanto ao imputado crime de evasão.

Sem tributação.

Notifique.
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Porto, 16/03/2011[12].
António José Moreira Ramos
Moisés Pereira da Silva
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[1] Vide Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, aqui citado por ser um dos mais recentes, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95.
[3] Citação da Obra do Professor da Universidade de Pisa Francesco Ferrara, intitulada “Interpretação e Aplicação das Leis”, traduzida pelo Professor Manuel de Andrade e inserida na obra deste último denominada “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Edição, Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139, obras que, tendo-as como paradigmáticas nesta matéria, aqui iremos seguir de perto.
[4] Vide, Dicionário da Língua Portuguesa, J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, 5ª edição, Porto Editora.
[5] Citações de Francesco Ferrara, Ob. Cit., págs. 140 a 146.
[6] In “Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Univ. Católica, anotação aos artigos 349º e 352º.
[7] Vide, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra editora 2001, págs. 360 a 364.
[8] Admitimos, contudo, que o desconto a que alude o artigo 80º, nº 1, do Código Penal, deveria estabelecer uma proporção que não correspondesse ao desconto directo. Assim, em vez de cada dia de OPH descontar um dia na pena de prisão aplicada, deveria descontar menos, por exemplo, metade, sobretudo nos caso em que o arguido fica autorizado a sair durante o dia para trabalhar ou para frequentar acções de formação, etc…
[9] Vide Aut. e Ob. cit., anotação ao artigo 349º.
[10] Vide Aut. Cit., in Curso de Processo penal, II Vol, Verbo 2008, págs. 333 e 334, aqui citado.
[11] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra editora 2001, págs. 394.
[12] Composto e revisto pelo relator - versos em branco (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal).