Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3039/16.0T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP201803213039/16.0T9VNG.P1
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 754, FLS 190-199)
Área Temática: .
Sumário: Tendo o Mº Pº acusado e o arguido sido condenado por crime publico de ofensa à integridade física qualificada, e verificado em recurso que aqueles factos integram apenas do crime de ofensa à integridade física simples e o ofendido não havia nunca manifestado a vontade de procedimento criminal, carece o Mº Pº de legitimidade para acusar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 3039/16.0T9VNG.P1
Secção Criminal
CONFERÊNCIA

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
1. No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Singular n.º 3039/16.0T9VNF, do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia-J4, da Comarca do Porto, por sentença proferida a 20 de Setembro de 2017, foi o arguido B..., com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 143º n.º 1, 145º n.º 1, al. a) e 132º, n.º 2, al. h), do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período mediante regime de prova.
2. No decurso da audiência de julgamento, mais precisamente na sessão do dia 13 de Setembro de 2017, o demandante C..., com os demais sinais dos autos, e o arguido/demandado B... realizaram transacção relativamente ao pedido de indemnização civil que o primeiro formulara contra este, a qual foi logo devidamente homologada.
3. Inconformados com a sentença condenatória, interpuseram recurso o Ministério Públicofazendo uso dos 3 dias úteis seguintes ao do termo do prazo legal - e o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
Ministério Público
1 - O Tribunal Recorrido condenou o arguido B... como autor de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada dos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e 132.º, n.º 2, al. h), do C. Penal, na pena de 2 anos de prisão e lhe suspendeu a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 2 anos, sujeita a regime de prova.
3[1] - O Tribunal recorrido afirmou serem elevadas necessidades de prevenção geral, atenta a frequência deste tipo actos de violência exercida contra a integridade física das pessoas, que vem provocando grande alarme social e fortes sentimentos de insegurança na comunidade.
4 - E serem extremamente elevadas as exigências de prevenção especial, consubstanciadas na circunstância de o arguido já ter sido sofrido uma condenação pela prática do mesmo crime, condenação essa transitada em julgado em Março de 2016, apenas dois meses antes da prática destes factos, e que não foi suficiente para o levar a não praticar o presente crime, que só dele dependia praticar ou não, com o que revela uma menor sensibilidade à pena que lhe venha a ser aplicada.
5 - No entanto, considerando que o arguido (i) se encontra inserido social e familiarmente; (ii) que celebrou transacção quanto ao pedido cível formulado, assim demonstrando uma clara pretensão de reparação dos danos causados (iii); que já teve uma condenação anterior pela prática do mesmo crime de ofensa à integridade física qualificada, uma condenação em pena de prisão suspensa da sua execução, com sujeição a regime de prova, entendeu adequado suspender-lhe a execução da pena por 2 nos com regime de prova.
6 - Decisão que, entente o Ministério Público, está em contradição com a pronúncia inicial do Tribunal recorrido sobre a pena, e constitui uma hipostasiação da conduta recente do arguido, enquanto motivador da confiança do Tribunal de que a mera ameaça da pena bastará para satisfazer os fins das penas.
7 - Na base da decisão de suspensão da execução da pena está uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará no futuro a delinquir, o que significa que o tribunal deverá correr um risco prudente, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.
8 - Nessa prognose devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornem possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo às razões da prevenção especial, postulando-se no caso sujeito, todas as razões para afastar a prognose social favorável, por serem seríssimas as dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreende a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida.
9 - Com efeito, não vemos, como o Tribunal recorrido conseguiu ultrapassar a conduta pregressa do arguido e o seu próprio julgamento de que o arguido era menos sensível à pena que já fora aplicada a suspensão de execução da pena com regime de prova, dois meses antes dos factos, sem resultado como se viu.
10 - O Sistema Penal tem, segundo cremos firmemente, de agir coerentemente. Se um Tribunal avisa o arguido, através da ameaça que constitui uma pena de prisão suspensa na sua execução, de que se voltar a praticar os mesmos factos, irá ver ser-lhe revogada a suspensão e cumprir aquela pena de prisão, não poderá outro tribunal perante o reiterado e injustificado desrespeito daquele aviso, que demonstra a total ineficácia e inoperância da correspondente ameaça, censurar esta nova conduta aplicando-lhe uma nova pena de prisão suspensa na sua execução, mas sim uma pena de prisão efetiva.
Arguido B...
I. Não pode o recorrente concordar com a condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada por ter considerado o Tribunal a quo que foi utilizado meio particularmente perigoso.
II. O recorrente esclareceu o Tribunal a quo que o objeto utilizado terá sido uma faca de cozinha.
III. O Tribunal a quo não atribuiu credibilidade às suas declarações e deu como provado a utilização de uma faca de caraterísticas não apuradas.
IV. Considerou ainda como não provado que o arguido recorrente tenha surpreendido o ofendido pelas costas.
V. A este propósito o Prof. Figueiredo Dias (em comentário ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h do Código Penal) discorreu assim: «(...) Utilizar meio particularmente perigoso é ..servir-se para matar, de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (...) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui, sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso».
VI. Também a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2011 /Dez./07, CJ (S) III/227, Cons. Santos Carvalho e disponível on line em www.dgsi.pt): "Postas as coisas com esta clareza, verifica-se que a arma utilizada pelo arguido não pode ser qualificada como meio particularmente perigoso e, portanto, é insusceptível de integrar o exemplo-padrão sob apreciação."
VII. Ora o arguido que veio a ser condenado no Acórdão supra referenciado perpetrou o crime munido de uma faca da marca Boker Jim Wagner, modelo Reality Based Blade, de cor preta, com lâmina articulada e cabo em material polimérico com o comprimento total de 22,5 cm, sendo o comprimento da lâmina de 9,5 cm e a largura máxima da mesma de 2,5 cm.
VIII. Do mesmo modo foi também considerado que não existiria um meio particularmente perigoso se este se tratasse de uma pistola de calibre 6,35 mm no Ac. STJ 2000/Dez./13 CJ (S) III, Cons. Mariano Pereira; 2003/Out./15, Cons. Henriques Gaspar) ou então de uma arma caçadeira (Ac. STJ 2002/Mai./17, Cons. Flores Ribeiro), ainda que a mesma seja municiada com cartuchos carregados de zagalotes, próprios para a caça ao javali (Ac. STJ 2002/Dez./18, Cons. Carmona da Mota).
IX. Entende o recorrente que face aos factos concretos dados como provados e não provados não deveria ter sido condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 132.º, n.º 2 alínea h) do código Penal.
X. Não pode porém o recorrente concordar com a medida concreta da pena que lhe foi aplicada é excessiva considerando as suas condições pessoais, familiares e profissionais, condições estas muito favoráveis que não foram devidamente tidas em conta pelo Tribunal a quo.
XI. Podendo afirmar-se que relativamente ao recorrente é possível formular um juízo favorável no tocante às exigências de prevenção de futuras delinquências podendo formular-se um juízo de prognose social favorável tendo o arguido interiorizado a gravidade do actos praticados no passado, tendo demonstrado sincera vontade em mudar de vida, contando, para tal, com o apoio incondicional da sua família.
XII. Assim, a pena aplicada o arguido teria, por conseguinte, que se situar mais próxima do limite mínimo legalmente prevista, consideradas as condições económicas e sociais bem como os demais elementos que não fazendo parte do tipo de crime dispõe a favor do arguido.
XIII. Pelo que tudo ponderado, entende-se que a pena, para ser fixada na medida justa, adequada e necessária, seria suficiente a aplicação de uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução e sendo esta pena suficiente para se atingir os fins insertos na norma incriminadora e contribuir para a plena socialização do arguido, sendo que satisfaz ainda às necessidades de prevenção geral e especial tão necessárias á sociedade.
XIV. Pelo exposto, ao condená-lo nessa sanção, o tribunal quo não ponderou como se impunha as condições pessoais do arguido nem a importância futura da sua reintegração social futura, tendo violado os artigos 40.º e 71.º do Código Penal.
4. Admitidos os recursos, por despachos proferidos a fls. 141 e 152, apenas respondeu o arguido B... ao recurso do Ministério Público, pugnando pela manutenção do decidido e rematando com as conclusões que se transcrevem:
I. O Digníssimo Procurador-Adjunto não se conformando com a douta Sentença proferida por discordar da suspensão da execução da pena aplicada, da mesma veio interpor recurso para o douto Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela aplicação de pena efectiva.
II. Em síntese considera o recorrente não existir o juízo de prognose social favorável no qual o Tribunal a quo fundou a sua convicção quanto à decisão de suspender a pena de prisão aplicada ao arguido uma vez que já foi objeto de uma anterior condenação também esta em pena de prisão suspensa na sua execução.
III. Porém não se pode nunca sobrepor às necessidades de prevenção especial a gravidade do crime nem as necessidades de prevenção geral.
IV. E foi neste contexto que bem andou o Tribunal a quo ao suspender a pena aplicada ao arguido pois que quanto ao mesmo existe um forte e fundado juízo de prognose de que a simples ameaça de prisão o afastará, em definitivo, da prática de ilícitos penais.
V. Pois enviar o arguido para uma prisão, não trará nada de bom para ninguém, nem para ele, nem para a sua família nem para a sociedade que não iria entender tal decisão.
VI. Em nosso entender a fundamentação para a suspensão da execução da pena, é clara e convincente, pois que são analisados os vários pressupostos exigidos para a aplicação desse instituto.
VII. Sem esquecer ainda que o Tribunal, naturalmente, formou a sua convicção (além de toda a prova constante dos autos) em todos aqueles aspetos que apenas os princípios da oralidade e da imediação permitem, retratando exemplarmente a consagração no direito processual penal destes princípios, no que toca ao processo psicológico de formação da sua convicção.
VIII. Entende assim o arguido que, ao contrário do afirmado pelo Sr. Procurador Adjunto, que com a suspensão da execução da sua pena, as expectativas da sociedade não sairão defraudadas, pois existe em concreto, um forte motivo justificador para a suspensão da execução da pena de prisão.
IX. Pelo que bem andou o Tribunal a quo ao suspender na sua execução a pena de prisão que lhe foi aplicada pois face às exigências do artigo 50.º do C. Penal, é possível realizar um juízo de prognose favorável de forma a permitir a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.
X. Dispõe o n.º 1 do art. 50.º do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XI. Trata-se de um poder - dever que o tribunal tem sempre de usar desde que verificados os necessários pressupostos.
XII. Em nossa opinião, temos de convir que o argumento do recorrente Ministério Público para a não aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão ao arguido é manifestamente insuficiente para a fundamentação de tal decisão.
XIII. Com efeito, os fundamentos para a não aplicação de tal instituto não se podem esgotar no simples facto de o arguido já ter tido uma condenação anterior.
XIV. Pois o facto de existirem condenações anteriores não pode ter como efeito automático o impedimento de uma nova suspensão.
XV. O que releva é a existência de uma prognose social favorável ao arguido, ou seja a esperança de que sentirá a sua condenação como uma advertência e que de futuro não cometerá nenhum crime (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, tomo I, pág. 444).
XVI. É evidente que, como se refere na obra supra citada, o tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza.
XVII. Ou seja, ninguém pode assegurar que um arguido a quem é aplicado o instituto da suspensão da execução da pena de prisão não venha, de futuro, e mesmo no decorrer do período da suspensão, a cometer um novo crime.
XVIII. Há sempre que correr algum risco, embora um risco calculado.
XIX. Como se refere na obra supra citada, na prognose deve atender-se à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, ou seja, devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido.
XX. No caso temos que, à data da prática dos factos, o arguido contava com 22 anos de idade e sofreu uma condenação anterior por crime da mesma natureza, porém está inserido familiarmente, mostrou vontade em ressarcir o ofendido.
XXI. Bem andou o Tribunal a quo ao considerar que existe ainda uma prognose social favorável ao arguido em termos que permitem suspender-lhe a execução da pena de prisão em que foi condenado.
XXII. A idade do recorrente também nos leva a concluir que a prisão lhe fará mais mal que bem, como diz o povo.
XXIII. Uma pena de prisão efectiva irá atirar o recorrente, ainda jovem, para o cumprimento de uma pena quando este mostra estar numa fase de clara mudança.
XXIV. Deste modo nada há a apontar ao Douto Acórdão proferido, devendo o recurso interposto pelo Ministério Publico improceder, mantendo-se a condenação do arguido nos precisos termos.
5. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da parcial procedência do recurso do arguido, atenta a tendência preponderante da jurisprudência no sentido preconizado pelo mesmo, relativamente à desqualificação do crime, visto não se terem provado as características da faca, com o consequente reajustamento da pena para 1 ano e 6 meses de prisão, adequada e proporcional à natureza e gravidade dos factos provados, grau de culpa, personalidade e demais elementos pessoais, familiares e sociais do agente e finalidades das penas, devendo, porém, na procedência do recurso do Ministério Público, afastar-se a suspensão da execução, fixando-se pena de prisão efectiva.
6. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo sido oferecida qualquer resposta.
7. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
***
II - Fundamentação
1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica (cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt e de 3/2/1999 e 25/6/1998, in B.M.J. 484 e 478, págs. 271 e 242, respectivamente), as conclusões do recurso delimitam o respectivo objecto e âmbito do seu conhecimento, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Assim, in casu, as questões suscitadas são as seguintes:
Recurso do Ministério Público
• Aplicação de pena de prisão efectiva
Recurso do Arguido B...
- Errónea subsunção dos factos ao crime de ofensa à integridade física qualificada
- Excessiva dosimetria da pena
***
2. A fundamentação de facto da decisão recorrida, no que ao caso importa, é a seguinte: (transcrição)
Factos Provados
1º- À data de 27 de Maio de 2016, o arguido B... era vizinho de C..., residente na Rua ..., n.º ..., casa ., em ..., V. N. de Gaia.
2º- No referido dia 27 de Maio de 2016, ao final da tarde, por motivo não apurado, o arguido e C... desentenderam-se no pátio que dá acesso às suas residências.
3º- A dada altura, o arguido lançou mão de uma faca de características não apuradas e desferiu a C... várias facadas, atingindo-o na linha axilar anterior esquerda, no dorso da mão direita e na hemiface esquerda.
4º- Com a conduta descrita em 3º, o arguido causou ao C... ferida incisa da hemiface esquerda, superficial, com 5 cm, ferida corto-contusa da região escapular esquerda, com 2 cm de comprimento e cera de 2 cm de profundidade em trajeto oblíquo inferior, feridas múltiplas da face dorsal da mão direita e da face dorsal do 3º dedo da mão direita.
5º- Tais lesões determinaram para a sua cura um período de doença não apurado.
6º- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 2º e 3º, C... estava sob o efeito do álcool.
7º- O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde de C... e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado que representou.
8º- Agiu ainda com recurso a uma faca, sabendo da especial perigosidade de tal instrumento quando manuseado contra alguém.
9º- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
10º- Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
11º- O arguido e C... celebraram transação quanto ao pedido de indemnização civil formulado, no decurso da audiência de julgamento.
12º- O arguido é solteiro, encontra-se desempregado e não aufere qualquer vencimento ou prestação social, vivendo a expensas da madrasta, na residência da qual habita, e tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.
13º- O arguido foi condenado, por sentença proferida a 10 de Fevereiro de 2016, nos autos de Processo Comum n.º 1593/13.6PAVNG, do Juízo local Criminal de Vila Nova de Gaia, J1, transitada em julgado a 11 de Março de 2016, pela prática, em 20/09/2013, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º e 145º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova.
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B - Factos Não provados
Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir:
a) - Que, nas circunstâncias de tempo de lugar referidas em 2º e 3º, o arguido tenha surpreendido C... pelas costas;
b) - Que a faca utilizada pelo arguido nas circunstâncias descritas em 3º se tratasse de uma faca de cozinha.
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3. Decidindo de mérito
Atenta a substância dos recursos apresentados, impõe-se, por razões de pré-ordenação lógica, o conhecimento prévio das questões suscitadas pelo arguido.
Vejamos, então.
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3.1 Da subsunção jurídica
§1º Consoante se apura do exposto o arguido foi acusado e condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e 132º, n.º 2, al. h), do Cód. Penal, assentando a qualificação no facto de ter sido utilizada uma faca na lesão da integridade física alheia, instrumento que, para o efeito, foi classificado, tanto na acusação como na decisão recorrida, como tendo “carácter altamente perigoso”.
Em qualquer dos casos, ficou oculto o tipo de faca utilizada e, por conseguinte, as reais e concretas especificidades da mesma [v.g. formato, dimensão, peso, comprimento, espécie de lâmina, etc.], constituindo a única divergência entre a acusação e a sentença o facto de na primeira se aludir a “faca de cozinha”, enquanto nesta se alude apenas a uma faca de características não apuradas, o que, no fundo, é praticamente o mesmo dada a amplitude daquele termo.
Ciente dessa ambiguidade, o arguido B..., aqui recorrente, estribado em abundantes citações jurisprudenciais e doutrinárias, sustenta a impossibilidade de qualificação da ofensa à integridade física infligida ao ofendido por não ter sido alegada nem provada qualquer característica que tornasse a faca em causa particularmente perigosa.
Vejamos.
É consabido, que na categoria dos bens jurídicos de natureza pessoal, dispõe de protecção constitucional e legal, entre outros, a integridade física – v. arts. 70º, n.º 1, do Cód. Civil e 25º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O reconhecimento de necessidade de protecção ético-jurídica de tal bem encontra também assento no art. 143º n.º 1, do Cód. Penal, que dispõe que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Punição esta agravada para prisão até 4 (quatro) anos, de harmonia com o preceituado no art. 145º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal, se as ofensas “forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente”, sendo disso exemplo as hipóteses prevista nas alíneas a) a m), do n.º 2, do art. 132º, aplicável por remissão do n.º 2, daquele normativo.
Os exemplos-padrão espelham uma imagem global do facto agravada, assente ora numa cláusula genérica, apoiada com recurso a conceitos indeterminados, sob a forma expressiva de especial censurabilidade e perversidade, ora indiciada por circunstâncias ou elementos relativos à culpa.
A especial censurabilidade a atribuir ao facto é o que incorpora um juízo de culpa que se fundamenta numa sua realização de modo especialmente desvalioso. A especial perversidade é aquela em que o facto fundamente um exacerbado grau de culpa mercê da repercussão nele de uma personalidade do agente impregnada de qualidades desvaliosas, como teoriza a doutrina e a jurisprudência não dissente[2].
E, entre o elenco de circunstâncias agravativas, consagrou o legislador aquelas em que o agente pratica o facto com utilização de meio particularmente perigoso ou que se traduza em prática de crime de perigo comum – v. al. h) – precisamente aquela que serviu de esteio à impugnada condenação pelo crime qualificado.
Todavia, estando as mencionadas circunstâncias qualificativas agravantes associadas a razões de agravamento da culpa não são por isso de funcionamento automático, pelo que a simples verificação, de per si, de qualquer das hipóteses previstas, não implica necessariamente a qualificação da ofensa e o facto de determinada circunstância aí não estar expressamente prevista não obsta à qualificação se o tribunal concluir que aquela concreta actuação do agente é demonstrativa de especial perversidade ou merece ser especialmente censurada.
Tanto bastaria para, face à fluidez da matéria de facto provada – não se sabem as razões/contexto do sucedido, desconhecem-se as particularidades do objecto utilizado e bem assim a extensão das consequências (estão em causa pequenas feridas, superficiais ou de diminuta profundidade, não se tendo apurado qualquer período de doença) – se afastar a qualificativa agravante.
Porém, para tanto, seria necessário que a conduta do arguido pudesse, efectivamente, subsumir-se ao exemplo-padrão invocado, o que, manifestamente, não é o caso.
Com efeito, sabendo-se que as facas são perigosas, dado o seu poder corto-perfurante, tanto não basta para afirmar a especial perigosidade, normativamente densificada.
Na verdade, é consensual o entendimento, na doutrina e jurisprudência, que o accionamento de tal agravante está dependente de requisitos bem mais exigentes que a mera inserção em determinada categoria de instrumentos [v.g. facas, armas de fogo, etc.], destinando-a à utilização de meios que pelas suas específicas características, traduzam um perigo acentuado, qualitativamente superior ao perigo inerente a qualquer meio habitualmente usado para causar a morte de outrem, designadamente aquele meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitua perigo para outros bens jurídicos pessoais, ou seja a utilização do meio legalmente previsto para efeitos de agravação significa que o mesmo deve exceder a perigosidade dos meios que normalmente são utilizados no cometimento do crime já que, de outro modo, a qualificação transformar-se-ia no crime regra[3].
É, pois, necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios habitualmente usados para tal desiderato “(não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes)” e que da sua natureza resulte já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, sob pena “de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso”[4].
Assim, a qualificação do crime de ofensa à integridade física com base na mera circunstância de ter sido utilizada uma faca, cuja real capacidade e características nem sequer são conhecidas, não pode subsistir, procedendo a pretensão do recorrente nessa sede.
Resumindo e concluindo:
A conduta perpetrada pelo arguido inscreve-se no âmbito do crime matriz, ou seja da ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo já citado art. 143º, n.º 1, consabidamente de natureza semi-pública (v. n.º 2) e, consequentemente, dependente de queixa do ofendido, ao contrário da infracção imputada circunscrita ao âmbito dos crimes públicos.
§2º Ocorre que, nos autos, não há qualquer acto demonstrativo de que o ofendido tenha, por qualquer meio, dado a conhecer às autoridades a existência do crime e que pretendia que o perpetrador fosse responsabilizado criminalmente.
Com efeito, a investigação iniciou-se com base em auto de notícia lavrado por agente da PSP que nem sequer teve contacto com o ofendido, consoante se apura do respectivo teor (fls. 3).
Acresce ainda que o ofendido, inquirido posteriormente no âmbito dos autos, ainda no decurso do prazo legal de 6 meses estabelecido no art. 115º, n.º 1, do Cód. Penal, não só não disse desejar procedimento criminal como nem sequer praticou qualquer acto do qual, implicitamente, se pudesse extrair uma manifestação inequívoca dessa vontade, sendo certo que a sua única iniciativa processual se verificou cerca de um ano depois dos factos – 24/4/2017-, quando deduziu o pedido de indemnização civil (anteriormente, durante a aludida inquirição levada a efeito a 31/10/2016, perguntado se pretendia a reparação dos danos sofridos disse não conseguir responder, no momento – fls. 10 e 11, parte final).
Sabendo-se que o exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade [pressuposto positivo da instância] para os crimes de natureza semi-pública e particular, importa, pois, saber se, in casu, será possível responsabilizar criminalmente o arguido relativamente ao citado crime matriz de ofensa à integridade física simples.
As consequências a extrair da alteração da natureza do crime de público para semi-público ou mesmo particular, seja em resultado de alteração legislativa, seja por força da modificação da matéria de facto imputada, após a produção da prova, em sede de audiência de julgamento, com alguma proximidade à questão que ora nos ocupa, não tem merecido resposta unânime da jurisprudência.
Assim, entre o mais, há quem - sufragando embora a dupla natureza (material e substancial) das normas relativas ao direito de queixa e, por conseguinte, a aplicação retroactiva do regime penal mais favorável ao arguido - considere, neste preciso segmento que, tendo sido já deduzida acusação, em conformidade com a lei vigente e estando, pois, estabelecida a legitimidade do Ministério Público no momento próprio, apenas se consubstancia uma alteração de procedimentos que em nada afecta os direitos do arguido, sendo inaplicável a previsão do art. 2º, n.º 4, do Cód. Penal[5].
Já outra corrente, assinalando igualmente a natureza mista do instituto da queixa, conclui que se a alteração posterior faz depender de queixa o procedimento criminal que até aí a dispensava, há que aplicar a lei mais favorável ao arguido, ditando a absolvição[6].
Existem ainda algumas variantes que afirmam a necessidade de ouvir o ofendido, concedendo-lhe prazo para, querendo:
a) Exercitar o seu direito de procedimento criminal e demais trâmites legais; ou
b) Desistir do procedimento.
Na primeira hipótese os autos prosseguirão ou não consoante seja deduzida a queixa em falta, enquanto na restante o processo seguirá os seus normais termos a não ser que o ofendido formule desistência de queixa e o arguido a tal não se oponha, caso em que a mesma será homologada e o procedimento extinto[7].
No entanto, a hipótese sub judice apresenta uma configuração muito específica, pois que a alteração da natureza do crime não resultou de qualquer modificação operada por lei nova ou sequer da conformação probatória da audiência de julgamento, pois já vimos que é indiferente, para o desiderato em causa, a menção a “faca de cozinha” ou faca de características não apuradas.
O que está em causa é que o processo não se iniciou - nem devia ter prosseguido - para investigação de um crime público, pois que os factos objecto de comunicação ao OPC e relatados no auto de notícia que suporta a instauração de inquérito, não indiciavam ser esse o caso e as diligências subsequentes realizadas também não se compadeciam com tal entendimento.
Quer dizer, a investigação iniciou-se, prosseguiu e foi concluída com uma acusação por crime público que não encontra respaldo na doutrina e jurisprudência dominantes, não podendo acolher-se a opção do Ministério Público e considerar assente a sua legitimidade, sob pena de subversão dos pressupostos da punição.
Na realidade, a punição efectiva de um facto que consubstancie crime semi-público (ou particular) depende não apenas da verificação dos pressupostos de natureza substantiva, mas também da verificação das condições de natureza processual vertidas nos arts. 49º e 50º, do Cód. Proc. Penal, para que o processo penal possa iniciar-se e prosseguir, não podendo salvaguardar-se a actuação do Ministério Público quando esta assenta numa patologia que reverte à génese e prossecução do procedimento criminal, pois que inexistia suporte legal para a iniciativa processual do Ministério Público, uma vez que os factos indiciavam apenas crime de natureza semi-pública sem que o ofendido se tivesse queixado ou, por alguma forma, tivesse dado a conhecer a sua vontade de procedimento contra o arguido.
Quer dizer, não é o facto do Ministério Público classificar indevidamente os autos e o crime, inicialmente, investigado e, subsequentemente, acusado que pode conferir legitimidade a procedimento que, à partida, carecia do inexistente requisito de procedibilidade previsto no art. 49º, do Cód. Proc. Penal, sem que a omissão tivesse sido suprida no prazo previsto no art. 115º, n.º 1, do Cód. Penal.
Neste conspecto, facilmente se intui que inscrevendo-se o evento delituoso no campo de actuação do crime de ofensa à integridade física simples, falecia legitimidade ao Ministério Público para deduzir acusação, por falta de queixa do respectivo titular.
E, não podendo a omissão ser já suprida resta concluir que a responsabilização criminal do arguido a esse título não é admissível nem viável, impondo-se, sem mais, a respectiva absolvição.
Assim sendo, como é, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo arguido, ora recorrente B..., e bem assim o recurso do Ministério Público.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal da Relação do Porto:
1 - JULGAR PROCEDENTE o recurso do arguido B... e absolvê-lo da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos arts. 143º, n.º 1, e 145º, n.º 1, al. a), com referência ao art. 132º, n.º 2, al. h), do Cód. Penal, considerando ainda inadmissível a imputação e condenação pela prática do crime matriz, nos termos do citado art. 143º, n.º 1, por falta de queixa, e determinando, por isso, o arquivamento dos autos;
2 – DECLARAR extinta a medida de coacção aplicada;
3 – CONSIDERAR prejudicado o recurso interposto pelo Ministério Público.
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Sem tributação em qualquer dos casos - art. 513º, n.º 1, a contrario, e 522º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP[8]]

Porto, 21 de Março de 2018
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Segue-se a numeração original pese embora o lapso de que a mesma padece.
[2] Cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 25 e segs., e Ac. STJ de 17/10/2007, relatado por Armindo Monteiro, Proc. n.º 07P3395, in dgsi.pt
[3] Veja-se que as circunstâncias em causa estão previstas para o crime de homicídio cuja consumação envolve, regra geral, a utilização de instrumentos, em si mesmos, potencialmente perigosos, v.g. armas de fogo, facas, utensílios agrícolas, etc.
[4] Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 37.
[5] V., Ac. RC, de 15/5/2013, Proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1, in dgsi.pt e, na doutrina, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Editorial Verbo, 1997, pág. 275, e Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis no Tempo, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 385/410.
[6] Cfr. Ac. do STJ, de 19/3/97, CJ, Tomo I, pág. 292.
[7] V, entre outros, Acs. do STJ (Sumário), de 12/11/1997, in Boletim Interno, desta RP, de 19/2/2014, Proc. n.º 1467/12.0PHMTS.P1, e da RG de 4/7/2005, Proc. n.º 2247/04-1, ambos in dgsi.pt.
[8] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.